ARTIGO ARTICLE
e redes de atenção como referenciais teórico-operacionais
para a reforma do hospital
Abstract This paper uses elements of the Paideia Resumo Este ensaio utiliza elementos da concep-
concept to suggest guidelines for contemporary ção Paidéia para sugerir diretrizes para a reforma
hospital reform, particularly the reorganization do hospital contemporâneo. A concepção Paidéia
of work processes based on the concepts of extend- sugere a reorganização do processo de trabalho com
ed general practice and democratic management. base nos conceitos de clínica ampliada e gestão de-
Instead of production-line work processes, an al- mocrática. Em vez de centrar o processo de traba-
ternative way of structuring patient care is pro- lho em linhas de produção, é proposto um modo
posed, newly crafted with professional autonomy alternativo para organizar a atenção aos pacien-
and clearly defined clinical responsibilities. An tes, um novo artesanato com autonomia profissio-
analysis is also presented of the difficulties and con- nal e clara definição de responsabilidade clínica. É
sequences of integrating hospitals with public também realizada uma análise das dificuldades e
health systems. das conseqüências da integração do hospital em
Key words Hospital management, Extended gen- sistemas públicos de saúde.
eral practice, Democratic management Palavras-chave Gestão hospitalar, Clínica am-
pliada, Gestão democrática
1
Departamento de Medicina
Preventiva e Social,
Universidade Estadual de
Campinas. Rua Américo de
Campos 93, Cidade
Universitária. 13083-040.
Campinas SP.
gastaowagner@mpc.com.br
2
Secretaria Municipal de
Saúde de Campinas.
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Campos, G. W. S. & Amaral, M. A.
dade gerencial interna, descuidando-se da inte- um desses lados do espectro ideológico tratou de
gração de novos organismos mais ou menos esgrimir princípios e valores quando da cons-
autônomos ao Sistema de Saúde. trução tanto de um diagnóstico da crise que real-
Observe-se, contudo, que os Hospitais Filan- mente atingiu sistemas públicos de bem-estar e o
trópicos, ainda quando desfrutem de relativa denominado socialismo real quanto de soluções
autonomia gerencial, também apresentam sin- para aqueles impasses. Na prática, parece que
tomas de crise. Nesse caso, os analistas tendem a essa polarização favoreceu a inércia, dificultando
atribuir ao financiamento e ao padrão de gerên- a invenção de novos modelos de gestão e de fun-
cia, considerados inadequados, a responsabili- cionamento para os sistemas públicos de educa-
dade pelos resultados insatisfatórios. A receita ção, saúde e segurança pública. Os defensores
estaria na adoção de pacotes gerenciais na linha dos sistemas públicos tenderam a subestimar a
da qualidade total, acreditação e outras modali- crise, atribuindo-a a fatores conjunturais – inép-
dades de controle interno18. cia de governantes, financiamento insuficiente,
Por outro lado, a doutrina fundadora do sis- cultura clientelista – permanecendo, portanto,
tema público identifica o hospital como fazendo incapazes de sugerir reformas estruturais que
parte de uma rede de atenção à saúde, devendo recompusessem o modelo de gestão e de atenção
funcionar em articulação estreita com outras dos sistemas públicos, resgatando-os da buro-
organizações (centros de saúde, equipes de saúde cratização e apropriação privada de recursos em
pública, policlínicas, etc.)19. A lei orgânica que que, de fato, haviam caído. Os ideólogos de mer-
regulamenta o SUS também prevê que os hospi- cado tenderam ao outro extremo, imaginaram
tais deveriam funcionar integrados a uma rede como única solução distintos graus e formas de
hierarquizada e regionalizada de serviços, tendo privatização e de desregulamentação de direitos.
inclusive que pactuar seu papel e sua responsabi- Esqueceram-se que havia experiência histórica,
lidade sanitária com os gestores públicos, medi- em vários países, como nos Estados Unidos da
ante a definição de mecanismos de acesso e de América, indicando os possíveis desdobramen-
relação com outros serviços20. tos desse estilo de política: em geral, tendentes a
Observe-se que essas duas recomendações aprofundar diferenças sociais e expor a maioria,
têm efeitos paradoxais já que sugerem movimen- bem como o planeta, a graus importantes de ex-
tos em sentidos diferentes: funcionamento com ploração e de degradação.
autonomia ou funcionamento em rede. Integrar De qualquer modo, nenhuma dessas corren-
uma rede, em tese, será sempre um modo de di- tes buscou inventar uma reforma que salvasse
minuir a liberdade dos componentes de um sis- os sistemas públicos com base no passado, re-
tema. Poder-se-ia considerar que a recomenda- forçando elementos positivos verificados em vá-
ção de integração é típica do pensamento sistê- rias experiências, e abrindo espaço para novos
mico, particularmente quando articulado a polí- arranjos organizacionais onde fosse necessário.
ticas públicas, constituindo-se em um discurso Seria tempo de se inverter essa lógica. Buscar
característico das correntes socialistas, social-de- novos desenhos para políticas públicas de modo
mocratas e trabalhistas, bastante influentes em bem mais indutivo – refletir com abertura sobre
todos os países que constituíram sistemas públi- evidências positivas e negativas acumuladas so-
cos de saúde, em geral, até o final dos anos oiten- bre modelos de gestão e de atenção dos sistemas
ta do século XX. Já a ênfase na autonomia re- públicos –, de modo a constituir-se uma análise
monta às duas últimas décadas do século passa- desse contexto menos ideológica, ainda que não
do, e aparece articulada à doutrina neoliberal, desconsiderando valores fundamentais a cada
que recomendava, em linhas gerais, maior res- sistema. No caso do SUS, o direito à saúde, o
peito à dinâmica de mercado, privatização de ser- funcionamento em rede hierarquizada e regio-
viços públicos, constituição de organizações au- nalizada, a integralidade da atenção e a gestão
tônomas, submetidas a mecanismos de concor- participativa.
rência. Esse receituário, em teoria, seria potente No entanto, não bastaria, ainda que seja es-
para estimular correções de rota, já que seriam sencial, alcançar-se diagnóstico mais elaborado,
eliminados os modelos de gestão tradicionais dos em acordo à complexidade do tema. Seria im-
sistemas públicos, considerados ineficazes e ine- portante buscarem-se novos caminhos, diretri-
ficientes21. zes que potencializem o bom desempenho do
Vale debruçar-se de modo mais reflexivo so- SUS. Por bom desempenho entenda-se um siste-
bre a maneira polarizada como essa discussão ma com capacidade para interferir positivamen-
veio se armando nos últimos trinta anos. Cada te no bem-estar da população. No caso do SUS,
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Aprovado em 05/02/2007
Versão final apresentada em 13/02/2007