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A clínica ampliada e compartilhada, a gestão democrática

ARTIGO ARTICLE
e redes de atenção como referenciais teórico-operacionais
para a reforma do hospital

Amplified clinic, democratic management and care networks


as theoretical and pragmatic references to the hospital reform

Gastão Wagner de Sousa Campos1


Márcia Aparecida do Amaral2

Abstract This paper uses elements of the Paideia Resumo Este ensaio utiliza elementos da concep-
concept to suggest guidelines for contemporary ção Paidéia para sugerir diretrizes para a reforma
hospital reform, particularly the reorganization do hospital contemporâneo. A concepção Paidéia
of work processes based on the concepts of extend- sugere a reorganização do processo de trabalho com
ed general practice and democratic management. base nos conceitos de clínica ampliada e gestão de-
Instead of production-line work processes, an al- mocrática. Em vez de centrar o processo de traba-
ternative way of structuring patient care is pro- lho em linhas de produção, é proposto um modo
posed, newly crafted with professional autonomy alternativo para organizar a atenção aos pacien-
and clearly defined clinical responsibilities. An tes, um novo artesanato com autonomia profissio-
analysis is also presented of the difficulties and con- nal e clara definição de responsabilidade clínica. É
sequences of integrating hospitals with public também realizada uma análise das dificuldades e
health systems. das conseqüências da integração do hospital em
Key words Hospital management, Extended gen- sistemas públicos de saúde.
eral practice, Democratic management Palavras-chave Gestão hospitalar, Clínica am-
pliada, Gestão democrática

1
Departamento de Medicina
Preventiva e Social,
Universidade Estadual de
Campinas. Rua Américo de
Campos 93, Cidade
Universitária. 13083-040.
Campinas SP.
gastaowagner@mpc.com.br
2
Secretaria Municipal de
Saúde de Campinas.
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Campos, G. W. S. & Amaral, M. A.

Referenciais teórico-operacionais A segunda vertente desenvolveu-se a partir


para a reorganização do hospital dos Estados Unidos da América, onde se origi-
nou uma escola genericamente denominada de
A concepção Paidéia foi apresentada na tese de managed care, centralmente voltada para dimi-
livre docência de Gastão Wagner de Sousa Cam- nuir a autonomia do médico e de outros profis-
pos e se propõe à tarefa de pensar tanto mecanis- sionais de saúde, mediante a adoção de protoco-
mos que recomponham a relação singular pro- los e de sistema de decisão sobre os casos clínicos
fissional/usuário quanto a de sugerir uma refor- fora da relação médico-paciente. Essa escola trou-
mulação do paradigma da Medicina baseada em xe para a administração privada uma série de
evidências, que têm sustentado teoricamente a clí- conceitos e de ferramentas desenvolvidos em sis-
nica contemporânea. Utilizaremos alguns elemen- temas públicos de saúde. Entre eles, há a noção
tos dessa concepção, para sugerir linhas para a de médico de cabeceira ou generalista, uma espé-
reforma do modelo de gestão e de atenção do cie de adaptação do conceito de atenção primá-
hospital comtemporâneo10. Essa concepção su- ria a redes privadas de saúde. De qualquer modo,
gerida se propõe a realizar uma reformulação, essa linha de gestão volta-se centralmente para
uma reconstrução ampliada do modelo biomé- reduzir a autonomia dos profissionais de saúde,
dico, trazendo para a prática clínica saberes pro- particularmente do médico4.
venientes da Saúde Coletiva, Saúde Mental, do Resumindo, poder-se-ia dizer que toda essa
Planejamento e da Gestão, e das Ciências Sociais e variedade de sugestões objetiva controlar o tra-
Políticas. A concepção Paidéia caracteriza-se pelo balho em saúde, valendo-se de métodos discipli-
esforço para envolver trabalhadores e usuários nares e normativos, apostando pouco ou quase
no processo de reforma e de reorganização, con- nada na modificação de valores ou de posturas
siderando que mudanças estruturais e organiza- dos profissionais.
cionais têm maior eficácia quando são acompa- Este artigo apresentará uma série de suges-
nhadas por processos de mudança no modo de tões para a reorganização da clínica e da gestão
ser dos sujeitos envolvidos. Reforma da estrutura em hospitais com base em três noções diferentes
e mudanças culturais. – algumas vezes em sentido antagônico; outras,
Há uma importante convergência sobre a complementar – a essas duas vertentes acima
necessidade de proceder-se a uma ampla revisão apontadas. Os conceitos que orientaram a linha
sobre as doutrinas que até agora orientaram a de reforma aqui apresentada são a clínica ampli-
organização e administração hospitalar 1. Há, ada, a democratização da gestão (sistema de co-
contudo, uma variedade de caminhos sugeridos gestão) e a integração do hospital como um dos
para a reforma do papel, da gestão e do modo de pontos de conexão de um sistema público de saú-
funcionamento dos hospitais. Essa heterogenei- de. Em termos genéricos, temos denominado a
dade de projetos reflete tanto diferenças ideoló- essa concepção de Paidéia5.
gicas, quanto a multiplicidade de contextos e de
referenciais teórico-organizacionais.
Nesse esforço de reforma da gestão hospita- Clínica ampliada
lar, tem predominado duas vertentes teórico- e obstáculos à reforma do hospital
operacionais: uma tecnocrática e gerencial e bas-
tante influenciada pela qualidade total e por al- O trabalho clínico apresenta regularidades possí-
gumas de suas variantes metodológicas. Essas veis de serem identificadas e descritas em manu-
correntes trouxeram para hospitais a preocupa- ais, cadeias de cuidado ou protocolos. No entan-
ção com a avaliação de resultados e gestão com to, a clínica também se caracteriza pela extrema
base em evidências, partindo do princípio de que variedade dos casos quando encarnados em su-
os hospitais, do ponto de vista gerencial, são bas- jeitos concretos. Nesse sentido, torna-se inevitá-
tante assemelhados a qualquer outra empresa2. vel a construção de uma metodologia organizaci-
A preocupação com a satisfação do cliente (in- onal que combine a padronização de condutas
terno e externo) e métodos de padronização de diagnósticas e terapêuticas com a necessidade e a
procedimentos, objetivando aumentar a produ- possibilidade de adaptação dessas regras gerais
tividade e a eficiência, são alguns de seus pilares às inevitáveis variações presentes em cada caso.
conceituais. Próximo a essa perspectiva, desen- Ora, os métodos de gestão voltados para a
volveram-se métodos de gestão com base em padronização de procedimentos atendem ao pri-
acreditação e na verificação sistemática da quali- meiro elemento dessa equação, mas não ao se-
dade dos processos e resultados da produção3. gundo. A singularização do atendimento clínico
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somente será possível mediante um esforço par- gerenciada” investe na gestão da clínica, mas o
ticular de cada profissional diante de cada caso faz retirando poder de decisão dos clínicos e ori-
específico. Um pré-requisito para que haja pos- enta as decisões segundo normas e protocolos
sibilidade dessa abertura dos profissionais ao im- genéricos, incapazes de dar conta da variedade
previsto e à variação regular da vida cotidiana é a inata do processo saúde/doença. Esses modelos
existência de certo grau de autonomia durante o podem apresentar ganhos em eficiência e produ-
trabalho clínico. Além dessa liberdade relativa, é tividade, mas tendem a subestimar a eficácia; ou
fundamental assegurar a motivação dos profis- seja, o objetivo primário dos serviços de saúde
sionais e criar um padrão de gestão em que a que é a produção de saúde.
maioria se sinta motivada para dedicar-se à pro- Esses modelos de gestão que priorizam o con-
dução de saúde. Parte importante da crise dos trole são uma resposta à tendência estrutural e
sistemas de atenção depende dessa dissociação e histórica constatada nos serviços de saúde de
da predominância de métodos de gestão dirigi- produzirem-se duas linhas de comando: uma da
dos ao controle externo da vontade e conduta gestão administrativa e do trabalho de enferma-
dos profissionais. Há como que certa desistência gem; e uma outra que pouco coordena e regula o
em se resgatar a responsabilidade e a relativa trabalho médico. Esse duplo comando foi bem
autonomia necessária para que profissionais fa- estudado pela denominada escola estruturalista
çam clínica com singularização dos casos em de administração7. Em virtude dessa tendência
grandes sistemas ou organizações de saúde. estrutural de distribuição de poder em serviços
A hipótese central deste trabalho é a de que de saúde e, particularmente, no hospital, torna-
seria necessário reconstruir-se certo traço arte- se difícil, senão impossível, constituir departa-
sanal do trabalho clínico ainda quando realiza- mentos que integrem as distintas profissões e
do em organizações contemporâneas, em geral especialidades médicas sob gestão unificada.
complexas; portanto, com importante grau de Em decorrência, costuma haver repetição de
divisão do processo de trabalho e integrado em exames e elevação da média de permanência, com
redes de serviços sem que exista uma hierarquia o conseqüente aumento de custos. Quando há
gerencial entre elas. abandono do tratamento, geralmente, não se re-
Todas as metodologias de padronização – gistra ou tampouco são acionados mecanismos
protocolos, fluxograma, cadeias de cuidado e para melhorar a adesão ao projeto terapêutico.
acreditação – tentam transportar para os servi- Há ainda dificuldade em realizar-se o atendimen-
ços e sistemas de saúde a lógica da linha de pro- to a intercorrências, já que a maioria dos impre-
dução. Reconhecem como inevitáveis a fragmen- vistos costuma ser atendida em outra instância
tação do trabalho clínico decorrente da multipli- que não aquela encarregada dos casos, geralmente
cação de especialidades e de profissões de saúde, em algum serviço de urgência.
bem como da existência de inúmeros serviços de A transferência de ferramentas da qualida-
apoio diagnósticos e terapêuticos, e sugerem sua de total, a adoção de sistemas de acreditação
integração mediante a constituição de documen- impositivos e de diretrizes da “atenção gerenci-
tos que descreveriam o percurso devido a cada ada” são esforços objetivando reverter esse qua-
doença ou problema de saúde. Em cada etapa do dro de dificuldade de gestão do poder das espe-
processo, haveria um profissional responsável. cialidades médicas e de profissionais no cotidia-
A transição de uma etapa a outra ocorreria me- no do hospital.
diante sistemas de regulação ou de referência e A concepção Paidéia aposta em outra estra-
contra-referência definidos em protocolos6, ca- tégia organizacional e em outra concepção de
bendo ao paciente ou aos seus familiares provi- gestão do trabalho clínico.
denciar o deslocamento e procedimentos admi- Além do mais, essas metodologias de gestão
nistrativos necessários para alcançar a etapa ou supõem que o interesse corporativo dos profis-
estação de cuidado seguinte. sionais sempre dominará sobre seu compro-
Em geral, esse sistema produz importante misso com o usuário e com a organização; pre-
grau de desresponsabilização diante de casos con- missa que justificaria a busca sistemática e per-
cretos, acarretando ainda custos crescentes e re- manente de modalidades de controle do traba-
tardo no acesso a tratamentos essenciais. O mo- lho em saúde.
delo da acreditação e da qualidade total centra Sem descartar a utilização dessas metodo-
sua atenção em equipamentos, fluxos e procedi- logias para padronização, a concepção episte-
mentos; em geral, não instituindo alternativa para mológica e organizacional denominada de clí-
a gestão do caso clínico. O modelo de “gestão nica ampliada e compartilhada8 baseia-se na re-
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construção do trabalho clínico segundo um Além disso, considera-se essencial a amplia-


“neo-artesanato”. ção também do objetivo ou da finalidade do tra-
Considera-se necessário repensar a organi- balho clínico: além de buscar a produção de saú-
zação do trabalho clínico objetivando facilitar a de, por distintos meios – curativos, preventivos,
construção explícita de responsabilidade macro de reabilitação ou com cuidados paliativos –, a
e microssanitária. clínica poderá também contribuir para a amplia-
Há, de fato, obstáculos políticos, estruturais ção do grau de autonomia dos usuários. Autono-
e culturais para a realização dessas reformas que mia entendida aqui como um conceito relativo,
estimulem e possibilitem a realização de uma clí- não como a ausência de qualquer tipo de depen-
nica singular e compartilhada. Nos sistemas pú- dência, mas como uma ampliação da capacidade
blicos, costuma haver excesso de demanda, além do usuário de lidar com sua própria rede ou sis-
disso, médicos e enfermeiros no Brasil têm múl- tema de dependências. A idade, a condição debili-
tiplos empregos9, predominando formas de con- tante – hipertensão, diabete, câncer, etc. “, o con-
tratação para plantões, o que gera uma inserção texto social e cultural, e, até mesmo, a própria
vertical desses profissionais nos serviços, com subjetividade e a relação de afetos em que cada
redução do número de médicos e enfermeiros pessoa inevitavelmente estará envolvida.
com inserção longitudinal (horizontal no tem- A ampliação do grau de autonomia pode ser
po, os denominados diaristas) em enfermarias e avaliada pelo aumento da capacidade dos usuá-
ambulatórios. Isso vem produzindo um modo rios compreenderem e atuarem sobre si mesmo
inadequado de inserção particularmente dos e sobre o mundo da vida. O grau de autonomia
médicos e enfermeiros em hospitais públicos. Em se mede pela capacidade de autocuidado, de com-
conseqüência, em enfermarias e ambulatórios preensão sobre o processo saúde/enfermidade,
predomina um regime de trabalho semelhante pela capacidade de usar o poder e de estabelecer
ao do pronto-socorro, em que uma mesma equi- compromisso e contrato com outros.
pe não se responsabiliza pela atenção ao mesmo Essa alteração do “objeto” e do “objetivo” do
paciente durante todo o processo terapêutico. trabalho clínico exigirá mudança nos meios de
Cresce ainda mais a fragmentação do pro- intervenção, sejam eles diagnósticos ou terapêu-
cesso terapêutico, a especialização e a multiplica- ticos. Lidar com pessoas, com sua dimensão so-
ção de profissões em saúde, tendência que vem cial e subjetiva e não somente biológica; esse é
aumentando o número de trabalhadores que in- um desafio para a saúde em geral, inclusive para
tervém em um mesmo caso. Todos esses elemen- a clínica realizada em hospitais. Para que o diag-
tos contribuem em maior ou menor grau para a nóstico consiga avaliar a vulnerabilidade, a equi-
fragmentação e degradação do trabalho clínico. pe deverá colher dados e analisar o problema de
saúde encarnado em um sujeito em um contexto
específico; para esse fim, além de utilizar a semi-
Reforma cultural e epistemológica ologia tradicional, será necessário agregar elemen-
da clínica praticada no hospital: tos da história de vida de cada pessoa, identifi-
clínica ampliada e co-gestão cando fatores de risco e de proteção.
A terapêutica não se restringirá, em conseqü-
A clínica ampliada considera fundamental am- ência, somente a fármacos e à cirurgia; há mais
pliar o “objeto de trabalho” da clínica. Em geral, o recursos terapêuticos do que esses, como, por
objeto de trabalho indica o encargo, aquilo sobre exemplo, valorizar o poder terapêutico da escuta
o que aquela prática se responsabiliza. A Medici- e da palavra, o poder da educação em saúde e do
na tradicional se encarrega do tratamento de do- apoio psicossocial.
enças; para a clínica ampliada, haveria necessida- Estes resultados – construção de autonomia
de de se ampliar esse objeto, agregando a ele, além e de autocuidado – somente serão alcançados
das doenças, também problemas de saúde (situ- caso se pratique uma clínica compartilhada, alte-
ações que ampliam o risco ou vulnerabilidade das rando-se radicalmente a postura tradicional que
pessoas). A ampliação mais importante, contu- tende a transformar o paciente em um objeto
do, seria a consideração de que, em concreto, não inerte, ou em uma criança que deveria acatar, de
há problema de saúde ou doença sem que este- maneira acrítica e sem restrições, todas as pres-
jam encarnadas em sujeitos, em pessoas. crições e diretrizes disciplinares da equipe de saú-
Clínica do sujeito: essa é a principal amplia- de. Desde a construção do diagnóstico – mapa
ção sugerida. de vulnerabilidade “, ao projeto terapêutico, com
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a clínica ampliada, buscar-se-á construir modos a intenção de lançar-se no presente em direção
para haver uma co-responsabilização do clínico ao futuro, depois de uma reflexão sistematizada.
e do usuário. O “Projeto Terapêutico Singular” objetiva a reali-
Para que essa reforma seja possível na práti- zação de uma revisão do diagnóstico, nova ava-
ca, a clínica necessitará de recorrer a conhecimen- liação de riscos e uma redefinição das linhas de
tos, já sistematizados em outras áreas, sobre o intervenção terapêutica, redefinindo tarefas e en-
funcionamento do sujeito quando considerado cargos dos vários especialistas. Essa prática ini-
para além de sua dimensão orgânica ou biológi- ciou-se em 1990, nos serviços de Saúde Mental
ca. A prática clínica necessita de uma nova semi- de Santos/SP e, posteriormente, tratamos de
ologia e de uma nova terapêutica; parte desses adaptá-la para outros espaços em que se pratica
conhecimentos pode ser buscada na Saúde Cole- clínica, como atenção primária, centros de refe-
tiva, na Pedagogia, Psicologia, Antropologia, Ci- rência e hospitais13.
ências Sociais e Políticas e, até mesmo, em noções Outro recurso muito simples e que favorece o
de Gestão e de Planejamento. intercâmbio de conhecimentos e estimula a aber-
Considerando-se a complexidade desse mo- tura profissional é a prática de visitas interdisci-
vimento de ampliação e de reformulação da clí- plinares a pacientes internados. Uma ou duas ve-
nica, é importante reconhecer que realizá-lo de- zes por semana, o profissional responsável pelo
penderá também de uma reforma cultural; da caso promove uma corrida de leitos com outros
criação de um ambiente de trabalho propício à profissionais de sua equipe, ou até com especia-
abertura das estruturas disciplinares em que es- listas de outros departamentos, mas que seriam
pecialistas e profissionais vêm se encerrando. importantes para qualificar a atenção. Exemplo:
Há alguns elementos da conjuntura científica um serviço de traumatologia poderia promover
e de política de saúde que são favoráveis a esti- uma visita a pacientes internados com a partici-
mular essa abertura cultural de médicos e de pação do médico, enfermeiro e técnicos respon-
outros profissionais. Recentemente, o programa sáveis pelo caso, mas acompanhados por um
“HumanizaSUS”, do Ministério da Saúde, ado- anestesista, um clínico geral, um fisioterapeuta ou
tou como política oficial parcela dessas diretri- psicólogo. Seria um Projeto Terapêutico peripaté-
zes11. Por outro lado, inúmeros estudos científi- tico, elaborado enquanto as pessoas caminham.
cos têm acumulado evidências favoráveis à valo- Um terceiro procedimento que não somente
rização do autocuidado, do trabalho em equipe educa, mas que também aumenta a democracia
interdisciplinar e da consideração de fatores sub- institucional e amplia o poder de influência das
jetivos e sociais na prática clínica12. deliberações é a adoção de uma metodologia de
Entretanto, para que esse processo alcance co-gestão (gestão participativa). Adotar o costu-
capilaridade, é importante que cada hospital in- me de construir protocolos ou diretrizes clínicas
corpore em seu cotidiano dispositivo de educa- sempre buscando sua construção dialógica: a
ção continuada, que possibilite uma reconstru- proposta inicial é elaborada pelos especialistas
ção de conhecimentos e das posturas da maioria ou encarregados dos problemas, mas, em segui-
de seus trabalhadores. Há práticas bem simples da, institui-se um processo de análise e de reela-
de serem adotadas e que têm grande potencial de boração do documento pelas equipes e pessoas
facilitar o trânsito da clínica tradicional à ampli- que serão afetadas pela nova diretriz. O mesmo
ada. Um desses recursos é a recomendação de procedimento processual poderá ser adotado
que os departamentos ou serviços do hospital quando da elaboração de planos, projetos ou
elaborem Projetos Terapêuticos Singulares para programas, bem quando da realização de avalia-
os casos complexos e com alta vulnerabilidade. ções ou de acreditações. Tanto a construção de
Projeto Terapêutico é uma discussão de caso em indicadores como a análise sobre seu significado
equipe, um grupo que incorpore a noção inter- podem ser realizadas de modo compartilhado e
disciplinar e que recolha a contribuição de várias não somente pela chefia ou pelos especialistas.
especialidades e de distintas profissões. Entretan- Esses mecanismos servem não apenas para
to, como indica o termo “projeto”, trata-se de ampliar o “efeito Paidéia” – efeito pedagógico e
uma discussão prospectiva e não retrospectiva, terapêutico sobre as equipes – mas também dão
conforme acontecia com a tradição de discussão maior legitimidade e eficácia às deliberações, pla-
de casos em Medicina. A noção de projeto indica nos e protocolos.
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A clínica ampliada e a reorganização integração do processo de trabalho. Assim, al-


do poder no hospital: unidades guns hospitais que adotaram essa estratégia cria-
de produção, equipe de referência, ram novos departamentos como os de Clínica
apoio matricial e responsável pelo caso Médica, Pediatria, Urgência, Terapia Intensiva,
Traumatologia e Reabilitação, que aglutinam dis-
Para que a clínica ampliada possa ser também tintos profissionais sobre um mesmo comando
praticada no hospital, é importante rever a tradi- e coordenação. Cria-se um gestor único e apoia-
ção organizacional. Por um lado, aumentar o dores especializados em enfermagem, clínica, pla-
poder do usuário na gestão e no cotidiano do nejamento e avaliação, etc.
hospital. Há uma série de dispositivos que am- Para assegurar a gestão democrática dessas
pliam a possibilidade do usuário e de seus fami- Unidades de Produção, agregou-se a esse dese-
liares participarem do processo de gestão e dos nho a proposta de criação de Colegiados de Ges-
projetos terapêuticos. Um deles se refere à pre- tão, em que o gestor da Unidade de Produção se
sença de acompanhantes; somar ao paciente al- reúne periodicamente com as Equipes de Refe-
guém de sua confiança, tanto para companhia e rência para avaliação, elaboração de projetos e
apoio quanto para participar de momentos do decisões estratégicas. Recomenda-se a constitui-
projeto terapêutico em que o paciente e clínico ção de um sistema de co-gestão: a base seria com-
julgarem convenientes. A ampliação do horário posta pela unidade gerencial básica do hospital,
de visitas em hospitais é fundamental para lo- a Equipe de Referência; haveria Colegiados em
grar esse objetivo. Em várias cidades brasileiras, cada Unidade de Produção e ainda um Colegia-
os hospitais e centros especializados ligados ao do de Gestão Central, composto pela superin-
SUS iniciaram a construção de Conselhos de Ges- tendência e gestores das Unidades de Produção.
tão tripartite (representação da direção, dos usu- Os usuários ingressariam nesse sistema por meio
ários e de profissionais) ou, até mesmo, de as- do Conselho de Gestão do hospital ou da reali-
sembléias com usuários em que se discutem pro- zação de assembléias e de reuniões com objetivos
blemas do serviço, elaboram-se projetos e reali- e temas específicos.
za-se a avaliação do trabalho. As presenças de A estruturação de colegiados de co-gestão visa
ouvidores e de espaços de diálogo complemen- à construção de espaço onde ocorra a contrata-
tam essas medidas. ção dos objetivos institucionais, elaboração dos
Por outro lado, é fundamental alterar a lógi- planos operativos, acompanhamento e avalia-
ca atualmente vigente e com a qual se costuma ção de processos e resultados, mediante o uso de
realizar a “departamentalização” em serviços hos- indicadores.
pitalares. Em geral, os serviços e departamentos Experiências americanas de aplicação da teo-
voltados para a assistência nos hospitais organi- ria da qualidade em hospitais apontam como
zam-se com base em especialidades médicas ou dificuldade o envolvimento dos médicos no tra-
profissões. Essa prática favorece a existência do balho em equipe, assim como na gestão dos cus-
duplo comando conforme verificada pela escola tos, sendo que a prática médica é um dos fatores
estruturalista de administração. que mais agregam custos aos serviços14,15. No
A concepção Paidéia sugere tomar-se como Brasil, não é diferente. Assim como para as de-
unidade nuclear de poder gerencial a Equipe In- mais categorias profissionais, reconhecemos que
terdisciplinar. Equipes interprofissões e interes- o sentimento de co-autoria das melhorias pro-
pecialidades organizadas em função de grandes duzidas, o sentido de obra, é um poderoso ins-
áreas voltadas para uma mesma finalidade e para trumento para vincular o profissional a uma dada
um mesmo objeto (encargo). Essas equipes têm organização e um dado projeto. Os sujeitos que
sido denominadas de Equipe de Referência. Se- compõem uma equipe podem ser apoiados para
gundo essa concepção, um conjunto de equipes identificar e para construir objetos de investimen-
de referência constituiria o novo “departamento” to, isto é, a depositar afetos positivos em aspecto
desse hospital reformulado. Esse novo tipo de do trabalho clínico que se conectem ao seu pró-
“departamento” tem sido denominado de Uni- prio interesse e desejo, o que amplia a capacidade
dade de Produção. São departamentos recorta- de contrato ou de assumir compromissos das
dos segundo o objetivo e o encargo (objeto de equipes.
trabalho) de um conjunto de trabalhadores, in- Assim, ao exercer a prática clínica, os profis-
dependentemente de sua especialidade. As Uni- sionais de saúde não necessariamente serão mo-
dades de Produção recortam o hospital segundo tivados apenas por interesses financeiros ou de
uma nova lógica, uma racionalidade centrada na carreira, mas também pelo desejo de realizar-se
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profissionalmente e de serem aceitos como legí- de reorganizar-se o trabalho de enfermagem,
timos pela comunidade. Essa ambigüidade é uma abandonando a tradição parcelar de especializa-
evidência contra as concepções que delegam toda ção e de responsabilidade por procedimento, e
a responsabilidade pela qualidade ao gerente ou adotando-se o trabalho centrado no paciente:
aos mecanismos de controle. Os médicos, enfer- cada grupo de técnicos de enfermagem e de en-
meiros, técnicos, a equipe tende, de modo com- fermeiros se encarrega de um grupo definido de
plementar, a assumir algum padrão de co-res- pacientes, buscando-se uma abordagem ampli-
ponsabilidade com a eficácia e eficiência do seu ada da atenção e do cuidado de enfermagem16.
trabalho. Essa é a base observacional sobre a qual Resumindo: para a concepção Paidéia, é tão
se assentam as propostas de clínica ampliada e importante e estratégico proceder-se à reorgani-
de co-gestão. zação estrutural do hospital quanto instituírem-
Facilita bastante à comunicação horizontal a se novos padrões de microgestão do trabalho
noção de “apoio matricial”, em que um especia- clínico. Somente que aqui a gestão da clínica é
lista de determinada Unidade de Produção apóia realizada, centralmente, pela Equipe de Referên-
equipe de referência de outra unidade em casos cia e pelo coordenador de cada caso.
de maior complexidade ou na elaboração de di-
retrizes clínicas, protocolos e projetos. Um espe-
cialista em clínica médica, vinculado à Unidade Paradoxo: autonomia de gestão
de Produção Clínica Médica, poderá fazer visitas e integração em rede ao sistema de saúde
conjuntas com a Equipe de Referência ou com
cirurgiões da Unidade de Produção de Trauma, O hospital é uma organização complexa. Há
por exemplo. O “apoio matricial” destina-se tam- ampla bibliografia indicando que seu funciona-
bém a dar suporte especializado ao gestor e às mento adequado depende de modelos de gestão
equipes de uma Unidade de Produção: assim, por que lhe assegurem importante grau de autono-
exemplo, uma apoiadora de enfermagem pode- mia. O hospital necessitaria de agilidade e preste-
rá apoiar o trabalho em todas as Unidades onde za na compra de insumos, na administração de
houver trabalho de enfermagem, sem que neces- pessoal e na definição de programas para incor-
sariamente integre essas Unidades de Produção. poração de tecnologia1. Quando inserido em re-
A clínica ampliada baseia-se na construção gime de mercado, o hospital poderia, em maior
de responsabilidade singular e de vínculo estável ou menor grau, também selecionar sua clientela,
entre equipe de saúde e paciente. O contato espo- definindo quais problemas de saúde seriam ou
rádico e vertical de diferentes profissionais sem não atendidos em função de seu equilíbrio orça-
um coordenador para cada caso tem acarretado mentário e interesse financeiro.
inúmeros transtornos à eficácia e eficiência dos Vários estudos indicam que há problemas de
processos terapêuticos. O conceito de profissio- eficácia e de eficiência na gestão de hospitais liga-
nal de referência é um instrumento importante dos ao SUS. Quando se trata de hospitais públi-
para a reconstrução dessa clínica ampliada. O cos, os diagnósticos tendem a atribuir à rigidez e
profissional de referência é o encarregado da co- à burocratização da administração pública dire-
ordenação de uma série de casos, sejam em en- ta a principal responsabilidade por esse desem-
fermarias, unidades de urgência ou terapia in- penho inadequado. A solução sugerida costuma
tensiva, seja em ambulatórios. Valendo-se de ser a de ampliar a autonomia desses hospitais
mecanismos de adscrição de clientela e constitui- com administração direta mediante uma radical
ção de cadastros personalizados, cada profissio- reforma administrativa. A solução seria atribuir
nal de referência terá o encargo de acompanhar aos hospitais da administração direta um status
as pessoas ao longo de todo seu tratamento na- organizacional que os aproximasse dos hospi-
quela organização, providenciando a interven- tais filantrópicos: reformas que os transformas-
ção de outros profissionais ou serviços de apoio sem em organizações privadas, mas com poten-
conforme o necessário e, finalmente, asseguran- cial caráter público: Organização Social e Orga-
do sua alta e continuidade de acompanhamento nização Social Civil de Interesse Público são as
em outra instância do sistema. propostas mais fortes17, ainda que existam situ-
A possibilidade da realização de uma clínica ações híbridas em que há uma mistura da admi-
ampliada depende da construção de vínculo en- nistração direta com organizações privadas,
tre profissional e usuário. Nesse sentido, todos como são as Fundações de Apoio existentes em
os dispositivos que facilitem essa interação de- inúmeros hospitais públicos.
vem ser adotados. Entre eles, há a possibilidade Todas essas soluções privilegiam a racionali-
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Campos, G. W. S. & Amaral, M. A.

dade gerencial interna, descuidando-se da inte- um desses lados do espectro ideológico tratou de
gração de novos organismos mais ou menos esgrimir princípios e valores quando da cons-
autônomos ao Sistema de Saúde. trução tanto de um diagnóstico da crise que real-
Observe-se, contudo, que os Hospitais Filan- mente atingiu sistemas públicos de bem-estar e o
trópicos, ainda quando desfrutem de relativa denominado socialismo real quanto de soluções
autonomia gerencial, também apresentam sin- para aqueles impasses. Na prática, parece que
tomas de crise. Nesse caso, os analistas tendem a essa polarização favoreceu a inércia, dificultando
atribuir ao financiamento e ao padrão de gerên- a invenção de novos modelos de gestão e de fun-
cia, considerados inadequados, a responsabili- cionamento para os sistemas públicos de educa-
dade pelos resultados insatisfatórios. A receita ção, saúde e segurança pública. Os defensores
estaria na adoção de pacotes gerenciais na linha dos sistemas públicos tenderam a subestimar a
da qualidade total, acreditação e outras modali- crise, atribuindo-a a fatores conjunturais – inép-
dades de controle interno18. cia de governantes, financiamento insuficiente,
Por outro lado, a doutrina fundadora do sis- cultura clientelista – permanecendo, portanto,
tema público identifica o hospital como fazendo incapazes de sugerir reformas estruturais que
parte de uma rede de atenção à saúde, devendo recompusessem o modelo de gestão e de atenção
funcionar em articulação estreita com outras dos sistemas públicos, resgatando-os da buro-
organizações (centros de saúde, equipes de saúde cratização e apropriação privada de recursos em
pública, policlínicas, etc.)19. A lei orgânica que que, de fato, haviam caído. Os ideólogos de mer-
regulamenta o SUS também prevê que os hospi- cado tenderam ao outro extremo, imaginaram
tais deveriam funcionar integrados a uma rede como única solução distintos graus e formas de
hierarquizada e regionalizada de serviços, tendo privatização e de desregulamentação de direitos.
inclusive que pactuar seu papel e sua responsabi- Esqueceram-se que havia experiência histórica,
lidade sanitária com os gestores públicos, medi- em vários países, como nos Estados Unidos da
ante a definição de mecanismos de acesso e de América, indicando os possíveis desdobramen-
relação com outros serviços20. tos desse estilo de política: em geral, tendentes a
Observe-se que essas duas recomendações aprofundar diferenças sociais e expor a maioria,
têm efeitos paradoxais já que sugerem movimen- bem como o planeta, a graus importantes de ex-
tos em sentidos diferentes: funcionamento com ploração e de degradação.
autonomia ou funcionamento em rede. Integrar De qualquer modo, nenhuma dessas corren-
uma rede, em tese, será sempre um modo de di- tes buscou inventar uma reforma que salvasse
minuir a liberdade dos componentes de um sis- os sistemas públicos com base no passado, re-
tema. Poder-se-ia considerar que a recomenda- forçando elementos positivos verificados em vá-
ção de integração é típica do pensamento sistê- rias experiências, e abrindo espaço para novos
mico, particularmente quando articulado a polí- arranjos organizacionais onde fosse necessário.
ticas públicas, constituindo-se em um discurso Seria tempo de se inverter essa lógica. Buscar
característico das correntes socialistas, social-de- novos desenhos para políticas públicas de modo
mocratas e trabalhistas, bastante influentes em bem mais indutivo – refletir com abertura sobre
todos os países que constituíram sistemas públi- evidências positivas e negativas acumuladas so-
cos de saúde, em geral, até o final dos anos oiten- bre modelos de gestão e de atenção dos sistemas
ta do século XX. Já a ênfase na autonomia re- públicos –, de modo a constituir-se uma análise
monta às duas últimas décadas do século passa- desse contexto menos ideológica, ainda que não
do, e aparece articulada à doutrina neoliberal, desconsiderando valores fundamentais a cada
que recomendava, em linhas gerais, maior res- sistema. No caso do SUS, o direito à saúde, o
peito à dinâmica de mercado, privatização de ser- funcionamento em rede hierarquizada e regio-
viços públicos, constituição de organizações au- nalizada, a integralidade da atenção e a gestão
tônomas, submetidas a mecanismos de concor- participativa.
rência. Esse receituário, em teoria, seria potente No entanto, não bastaria, ainda que seja es-
para estimular correções de rota, já que seriam sencial, alcançar-se diagnóstico mais elaborado,
eliminados os modelos de gestão tradicionais dos em acordo à complexidade do tema. Seria im-
sistemas públicos, considerados ineficazes e ine- portante buscarem-se novos caminhos, diretri-
ficientes21. zes que potencializem o bom desempenho do
Vale debruçar-se de modo mais reflexivo so- SUS. Por bom desempenho entenda-se um siste-
bre a maneira polarizada como essa discussão ma com capacidade para interferir positivamen-
veio se armando nos últimos trinta anos. Cada te no bem-estar da população. No caso do SUS,
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poder-se-ia pensar em quatro diretrizes orienta- Redefinição do papel do hospital:
doras de qualquer avaliação de desempenho: pri- desospitalização, apoio e co-gestão
meiro, produzir saúde (eficácia) de modo uni- com a rede de serviços
versal, mas operando de modo eqüitativo – a
cada um de acordo com seu problema ou neces- Ainda que o número de leitos hospitalares no
sidade; segundo, organizar um sistema capaz de Brasil venha diminuindo6, a incorporação de
ampliar o coeficiente de autonomia dos usuári- tecnologias que redefinam a utilização do hospi-
os, entendendo autonomia como capacidade tal dentro da rede de saúde tem sido feita no SUS
para compreender e para lidar com a rede de de modo gradativo, talvez pudesse até ser consi-
dependência a que cada pessoa ou agrupamento derado lento. As respostas frente às pressões de
estarão sempre submetidos, autonomia como incorporação de procedimentos de alto custo
conceito relativo, não absoluto; terceiro, um sis- acontecem em ritmo mais acelerado do que para
tema que reduzisse ao máximo o dano resultan- procedimentos que atendam à desospitalização.
te de suas intervenções, no caso, o controle soci- Ao contrário do sistema suplementar de atenção
al, a iatrogenia, etc.; quarto, um sistema eficiente, à saúde e de vários países, as modalidades assis-
que produzisse ações de saúde sempre com o tenciais extra-hospitalares, seja no ambulatório
menor custo possível. ou no domicílio, não têm sido estimuladas de
Adotando-se esse tipo de metodologia, po- modo suficiente para redefinir o papel do hospi-
der-se-ia buscar a composição indutiva de uma tal no sistema de saúde. Um dos principais moti-
série de diretrizes e de características (arranjos vos que tem levado a expansão mundial no cui-
organizacionais e da clínica conforme viemos dado extra-hospitalar é, sem sombra de dúvida,
sugerindo) que orientassem a composição do que o menor custo dessas ações em relação ao trata-
seria um futuro hospital do SUS. Pensar elemen- mento intra-hospitalar. O envelhecimento da po-
tos para uma reforma política e administrativa pulação e a necessidade de cuidados permanentes
das organizações de saúde do SUS que superas- demandam racionalização dos custos, mas tam-
sem os entraves típicos da administração direta bém outras questões como o desenvolvimento
brasileira, mas que não implicassem adoção de tecnológico que permite a abordagem ambulato-
normas de mercado para os serviços públicos. O rial ou domiciliar com segurança e, ainda, a acei-
Estado não poderá assumir apenas a função de tação que essas formas de tratamento vêm ob-
regulação. Isso implica acrescentar à lei orgânica tendo por parte dos pacientes. Dessa maneira, o
do SUS novos elementos que inventem uma nova hospital tenderá a se responsabilizar cada vez mais
organização para os estabelecimentos do SUS, por doentes graves e procedimentos complexos1.
diferente da administração direta tradicional, mas O Brasil não realizou uma reforma sistêmica
sem privatização de funções públicas. Nessa pers- do sistema hospitalar, optando por desencadear
pectiva, haveria hospital ou estabelecimento do medidas complementares, mas relativamente iso-
SUS sob gestão estadual e municipal (excepcio- ladas6. Isso tem feito com que as políticas provo-
nalmente, também sob gestão federal). quem menor efeito – já que programas isolados
Retomando o paradoxo entre ganho de auto- tendem a não demonstrar a possibilidade de um
nomia e inserção do hospital no sistema de saú- novo rumo.
de, é necessário delimitar o âmbito dessa autono- À exceção da Saúde Mental, que pode ser ca-
mia. É verdade que os mecanismos de gestão dos racterizada como reforma de modelo de atenção,
recursos financeiros e materiais demandam a in- na área hospitalar, isso não aconteceu no SUS. As
corporação de novas tecnologias e maior flexibi- diretrizes para redimensionar o porte dos hospi-
lidade administrativa. Assim também, os instru- tais, os mecanismos de contratação interna e ex-
mentos hoje instituídos para a gestão de pessoas terna e as novas modalidades assistenciais são
não têm sido capazes de viabilizar mudanças subs- compreendidas como ações isoladas e dependen-
tantivas no modo de produzir saúde; portanto, do de financiamentos específicos. Apesar da insu-
nesses campos, a autonomia deve ser ampliada. ficiente indução das políticas, as experiências de
Finalmente, a hoje quase absoluta autonomia para serviços substitutivos ao hospital têm crescido no
definição dos objetivos assistenciais do hospital, país, a partir dos municípios ou dos próprios
a nosso ver, deveria ser diminuída, submetendo- hospitais. No entanto, não será possível avançar
se o hospital à lógica da contratação e co-gestão na redefinição do papel do hospital no sistema de
dentro do sistema de saúde. saúde se as políticas não forem integradas, novas
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Campos, G. W. S. & Amaral, M. A.

modalidades assistenciais inseridas no modelo de importante considerar que mesmos resultados


atenção, com ênfase em tecnologias menos inva- mostrados em indicadores podem contar histó-
sivas e de alta resolutividade. rias bastante diferentes acerca do significado que
agregaram às vidas de muitos trabalhadores da
saúde. Retomando o tema da autonomia dos
Paradoxo: mecanismos de controle hospitais, mais difícil do que alcançar a agilidade
e democratização organizacional administrativa é a gestão de pessoal. Nesse cam-
po, definitivamente, o setor público encontra
Para que se alcance uma nova instituição hospi- grandes dificuldades para a consecução de um
talar no SUS, são necessárias mudanças do modo projeto socialmente legitimado.
de produzir saúde, mas isso não será possível Para que o gradiente de autonomia do hos-
sem que o modelo de gestão seja coerente, uma pital seja estabelecido, além do óbvio respeito à
vez que a finalidade deve estar articulada com legislação pertinente, a adoção de uma metodo-
seus processos mediadores. logia com base em contrato de gestão pode de-
Tendo como referência que as finalidades da sempenhar papel fundamental. Os países que
gestão e do trabalho são atender os usuários e promoveram grandes reformas no setor hospi-
melhorar suas condições de saúde, a realização talar lançaram mão dele, como instrumento de
profissional dos trabalhadores e a reprodução definir os objetivos tanto assistenciais como de
social da instituição, a reforma do hospital ne- gestão23. No Brasil, a utilização dos contratos de
cessitaria de mudanças nessas três dimensões. gestão na área hospitalar tem se apegado mais a
As mudanças administrativas implementa- indicadores de produção (o que é absolutamen-
das nos hospitais brasileiros quase sempre con- te necessário), a mecanismos de certificação de
servam as suas características anteriores. Não qualidade e valorizado menos o modo de pro-
basta passar da administração direta à indireta dução em saúde e a integração do hospital ao
se permanecem as linhas de mando baseadas nas sistema de saúde; fato que é atestado pela peque-
profissões, a centralização das decisões e o baixo na participação do gestor local nesses processos.
compartilhamento pelos resultados. Na experi- É possível trabalhar-se com duas formas de
ência francesa de contrato de gestão, o foco da contrato de gestão: uma entre o hospital e o ges-
ampliação da autonomia dos hospitais foi a res- tor do SUS e outra interna, entre as unidades de
ponsabilização dos quadros dirigentes, o que já é produção e a direção. Nos dois casos, a abran-
muita coisa22. gência da contratação deve se dar sobre o objeto
No entanto, a contratação interna ao hospi- e sua tradução em objetivos e metas, a eficácia e
tal, no microcosmo das unidades de produção, é eficiência da clínica. Identificando-se mecanismos
essencial. As diretrizes para a prática de uma clí- de aferição e avaliação de resultados.
nica compartilhada implicam, do mesmo modo, O objeto do contrato de gestão entre hospital
que se pratique a co-gestão entre profissionais e e gestores deve conter cláusulas relacionadas à
dirigentes. O trabalho em equipe interdisciplinar ampliação do acesso e qualificação da atenção,
não se dá sem a presença de arranjos organizaci- valorização dos trabalhadores e implementação
onais que o sustentem e é necessário buscar no- de gestão participativa, além da sustentabilidade
vas formas de inserir os profissionais no traba- do projeto institucional6.
lho de produzir saúde. Para que a mudança se efetive, é necessário
Os principais arranjos organizacionais acima que o contrato de gestão estimule a descentrali-
apresentados – a gestão compartilhada em cole- zação do poder, à medida que amplia a co-res-
giados, a constituição das unidades de produção ponsabilidade pelos resultados e pelo uso dos
e o apoio matricial –, ganham dinamismo quan- recursos, assim como a expressão e criatividade
do se utiliza a metodologia dos “contratos de ges- dos sujeitos acerca de sua prática profissional. A
tão” para operacionalizar esse paradoxo entre sua articulação com uma política de pessoal que
autonomia relativa e necessidade de integração e remunere desempenho é fundamental, de modo
de coordenação de cada parte com o todo. a agregar mais valor perante o corpo de traba-
Poucas instituições hospitalares têm se preo- lhadores. Outras finalidades dessa forma de
cupado em investir em espaços de gestão com- compartilhamento da gestão são orientar a agen-
partilhada, fazendo a opção pelas normas e não da do gerente/gestor e aprimorar a comunicação
pela construção de sujeitos autônomos. Aqui, é institucional.
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Colaboradores

GWS Campos e MA Amaral participaram igual-


mente de todas as etapas da elaboração do artigo.

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Aprovado em 05/02/2007
Versão final apresentada em 13/02/2007

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