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Ciço Leo • Franco Gualtieri Neviani • Lucas Paio

Claudio Parreira • W. Surtan • Rodolfo Viana

A velha
debaixo
da cama

Grandes Clássicos
piauí
1
2 31
A velha
debaixo
da cama

Grandes Clássicos
piauí

30 3
I
O Rato
Ciço Leo
pág. 7

II
Quase Volta à Ilha
Rodolfo Viana
pág. 9

III
A Proposta
Claudio Parreira
pág. 11

IV
A Revelação
Franco Gualtieri Neviani
pág. 13

V
O Porão
Lucas Paio
pág. 15

4 a velha debaixo da cama 29


combinado, os músicos, os animais e o populacho permaneceram do
lado de fora. Ao adentrar sozinha no campo-santo, Maria de Maria
percorreu tranqüila as aléias, agora ao som de Evocação, ouvida ao
longe, continuamente, em ritmo de choro, tom baixo e moderado.
Esquivando-se dos sepulcros, rodeando mausoléus, Maria chegou,
enfim, ao túmulo onde jaziam os restos mortais – sobretudo o farto VI
bigode e a vasta cabeleira – do Coronel Mergulhão. Aproximou- Nem Sovaco Salva
se, depositou um ramalhete de flores de romãzeira sobre a campa, Rodolfo Viana
acocorou-se e encenou gestos incompreensíveis acompanhados pág. 19
de murmúrios ininteligíveis. Findo o ritual, ao aprumar o corpo, a
imagem de Antônio de cócoras cruzou-lhe a mente num lampejo. Um VII
esboço de sorriso entortou-lhe involuntariamente os lábios finos. Em O Movimento Inesperado
seguida, puxou para fora do sutiã cor de ametista os seios muxibentos Franco Gualtieri Neviani
pág. 21
e, segurando com cuidado pela cabeça, retirou da bolsa que trazia a
tiracolo uma cobra-coral Micrurus ibiboboca.
VIII
Durante alguns instantes, enquanto mantinha imóvel a pequena A Maisena e a Algema
serpente enrodilhada em seu pulso, Maria de Maria excitou-se roçando Rodolfo Viana
lentamente a cabeça do animal em seus mamilos secos. De repente, pág. 23
emitindo um gemido de gozo, fez a coral morde-lhe seguidamente o
mamilo direito. IX
Horas mais tarde, com a banda ainda fazendo soar, sempre em ritmo Perfídia
de choro, tom baixo e moderado os acordes finais de Evocação, Maria de Ciço Leo
Maria Mergulhão foi encontrada morta junto à tumba do Coronel. pág. 25
Assim termina a história de três tristes trastes que, sem dúvida,
foram felizes – não para sempre, mas cada um à sua maneira. X
A Visita
W. Surtan
pág. 27

28 5
X
A Visita
W. Surtan

T
rajando um longo vestido de cetim preto generosamente decotado,
chapéu preto de abas largas, óculos escuros que encobriam as olheiras
causadas pelo remorso e a insônia de sucessivas noites maldormidas,
Maria de Maria saiu do bangalô e encetou a pé, trôpega e garbosa, extensa
caminhada em direção ao cemitério da cidade. Seguida por um séquito
desordenado e barulhento de animais das mais variadas espécies, formas,
tamanhos, cores, gêneros e plumagens, Maria fez-se também acompanhar,
dada a patente do defunto, pelos membros da gloriosa banda do Corpo
de Bombeiros, composta por Ocitano na flauta transversa, Dentinho
no clarinete, Zé do Preto no pandeiro, Magriço no violino, Fininho no
bandolim, Irineu no oficlide, Bambu no violão de sete cordas, Anacleto
no trombone de vara e Bautista no cavaquinho. Diante daquele espetáculo
inusitado, dezenas de curiosos e desocupados foram engrossando o cortejo
pelo caminho que se estendia ao longo de quilômetros.
Por recomendação expressa da viúva, a banda executou em ritmo de
choro, tom baixo e moderado as composições Amor perdido e Evocação,
ambas de autoria de Patápio Silva. Amor perdido foi tocada durante
o trajeto até os portões da necrópole. Nessa oportunidade, conforme o

6 a velha debaixo da cama 27


Engendrado pela mente diabólica de dr. Pitombeira, o plano que
livrou a cara e parte da fortuna de Maria incriminava Antônio em todos
os atos ilícitos cometidos pelo Coronel. Com a reviravolta do caso,
I
pesava ainda sobre ele o assassinato do próprio pai. Influenciados pelo O Rato
advogado, os investigadores consideraram a viúva uma das vítimas. Ciço Leo
A octogenária teria sido coagida a assinar documentos e a manter
relações escusas. Estava, portanto, livre, mas não de sua consciência.
A Polícia Federal não tardou em fazer estardalhaço sobre o caso.
O nome da operação foi decidido numa empolgante disputa
de porrinha.
A honra de batizá-la coube ao agente Torquato, que duvidava da
masculinidade do mancebo. No dia seguinte, jornais de todo o país
traziam a foto de Antônio Euclides de cócoras, catando piolho, no canto
de uma cela, e o desfecho da operação Édipo Gay.
Maria concordara com tudo, contudo não estava feliz. Rica e

A
sozinha, voltou ao bangalô, trazendo os jornais debaixo do braço e um ntônio levantou-se, abriu a janela e viu Maria lá embaixo, à espera.
desmedido sentimento de culpa. Foi nessa época que resolveu se isolar Respirou fundo e, nostálgico, sentiu saudades da infância, quando
do mundo. Ergueu muros, transformou sua casa numa fortaleza. Para disputava restos de comida com os gabirus, nas feiras livres da cidade.
suprir a ausência do amado, infestou o sítio com animais de estimação Naquele tempo, pelo menos podia dormir até mais tarde, pensou.
de toda espécie. Ratos, gatos, cachorros, jumentos, veados e até cobras O enorme relógio de parede, talhado em jacarandá, sinalizava
passaram a coabitar com a velha. que já eram cinco horas. Ele precisava apressar-se para o pungente
Passado um ano da prisão de Antônio, não se ouvia eco de Maria passeio matinal. Correu para o banheiro e, durante o asseio, viu que
de Maria. Seu comportamento excêntrico estimulou o surgimento de o espelho não mais lhe retribuía a cordialidade. Por mais que forçasse
lendas – ainda vivas no imaginário de muita gente. Numa delas, a velha os sorrisos, o cristal bisotado refletia um semblante aborrecido, como
teria morrido, devorada pelas feras que criava. se ele usasse a máscara do enfado.
Mas eis que, numa manhã de domingo, os portões da fortaleza se Seu infortúnio tinha nome duplo e sobrenome imponente: Maria
abrem e a viúva surge com uma vivacidade singular e a alça do sutiã cor de Maria Mergulhão. Viúva de um dos homens mais poderosos das
de ametista à mostra. redondezas, ela retirara Antônio do cabaré onde ele levava vida fácil,
Indagada para onde ia por um perplexo vizinho, Maria responde: prometendo-lhe outra, mais fácil ainda. Amancebou-se com a velha
– Vou fazer uma visita. e, da noite para o dia, passou a morar em um bangalô, que, embora
carregasse a fama de mal assombrado, oferecia-lhe tudo do bom e do
melhor. Mesmo assim, se sentia a pior das almas viventes. A casa não era
o problema. O inferno era Maria.

26 a velha debaixo da cama 7


Todos os dias, o casal, cuja diferença de idade beirava os cinqüenta
anos, visitava, aos primeiros raios de sol, os pomares e roseirais do sítio IX
onde viviam. O passeio extemporâneo era uma entre tantas esquisitices
da velha, que exigia a presença do companheiro em suas desventuras. Perfídia
Ciço Leo
E ele ouvia sempre as mesmas histórias. Lembranças de um mundo
encantado, onde Maria de Maria perdia-se em devaneios sobre um
império de poder e riqueza, erguido pela indefectível figura do Coronel
Mergulhão, falecido há trinta anos.
– Aquilo é que era homem! – suspirava a viúva, colhendo as rosas
brancas que enfeitariam, durante o dia, o altar erguido em louvor ao
Coronel, no centro da sala de estar. Antônio engolia em seco, e, tocado
a chicote, rezava à tardinha diante do relicário.
O ápice da via-crúcis chegava com as noites – quando tinha que
enfrentar a penumbra da casa, iluminada somente por candeeiros –, e a
pior, e mais exótica, das torturas: dormir com a velha debaixo da cama.

A
ntônio teve um espasmo de alegria quando o gorducho dr. Pi-
O capricho era justificado pelo respeito e, principalmente, pelo tombeira, advogado de maior prestígio das redondezas, entrou
temor de Maria ao Coronel Mergulhão. Imaginava que o espírito do banhado de suor na delegacia. Trazia na mão direita uma mala
finado vinha visitá-la todas as noites e sob nenhuma hipótese ele poderia preta, que parecia pesar uns 20 quilos, e, na esquerda, uma folha
vê-la ao lado do amante. Precisavam se esconder. de papel.
Deitado sobre o frio chão de cimento, Antônio ainda era obrigado Sem dizer palavra, entregou o habeas corpus ao delegado. A
a agüentar os desvarios da viúva, que tinha terror noturno. Sonâmbula, autoridade leu o documento por longos 45 segundos e, num aceno de
ela lastimava a perda do marido. Sua voz aguda martelava os tímpanos mão, chamou os policiais.
de Antônio: Só nesse momento dr. Pitombeira dirigiu o olhar ao casal. As
– Meu Deus, tudo se acaba! Tanto bem que eu te queria! – berrava a covas de suas bochechas, abertas pelo sorriso vistoso, tranqüilizaram
velha, de olhos bem acesos, debaixo da cama. Antônio, não Maria.
Incapaz de cometer qualquer maldade contra a concubina, Antônio Finalmente os agentes se aproximam, conversando com o advogado.
suportava todas as suas excentricidades, mas estava chegando ao limite. Ávido por coçar a cabeça, Antônio se antecipa e ergue os punhos a fim
Naquela manhã, ele não foi ao passeio. Ignorou os apelos do relógio de retirar as algemas. Mas, de súbito, sua expressão de alívio se desalinha e
de jacarandá e decidiu ir ao sótão, em busca de alguns pertences. dá lugar a um semblante que unia surpresa e desalento, fúria e desengano.
Pretendia fugir. Só havia uma chave e ela libertou os punhos da viúva.
– Dona Maria pode ir pra casa, mas o garotão fica. No presídio ele vai ver
o que fazem com exploradores de velhinhas – zombou o agente Diógenes.

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– Dividimos o dinheiro igualmente – cochichou Maria ao enteado
e amante, em meio a afagos recíprocos de mútua fingida dor. – Depois
você pega os dois Rembrandt, o Cézanne e os três Portinari que levou
II
à garçonnière e a gente vê o que faz. Quase Volta à Ilha
Antônio assentiu enquanto levava o indicador à boca para tirar Rodolfo Viana
a massa dos biscoitos de maisena e observava um homem de paletó
puído se aproximar.
– Vocês são Maria de Maria e Antônio Euclides?
– Sim – responderam ambos, em uníssono. Não sabiam o que
desejava aquele rapaz, mas não devia ser algo bom: sempre que dito o
segundo nome de Antônio, boa coisa não era.
– Meu nome é Diógenes. Sou agente da Polícia Federal – disse o
homem, tirando do rosto os óculos escuros e do bolso o distintivo – e
preciso que ambos me acompanhem à delegacia.
Entreolharam-se Maria e Antônio, e não perceberam a chegada de

A
outros quatro agentes, ali designados para algemá-los e escoltá-los. escada é a analogia de uma vida plena, sem os grilhões do aferro
– Do que se trata, doutor? – questionou Antônio na saída do daquela mulher: cada um dos degraus carcomidos não leva ao
cemitério, sentindo a pressão das algemas no pulso. desvão apenas, mas ao prometido céu dos homens, sejam eles
– Há dois anos, estamos em operação que investiga ações de uma ainda imberbes como Antônio ou não mais. No sótão da lúgubre
quadrilha criminosa. Lavagem de dinheiro, corrupção, tráfico de garçonnière, Antônio rema poeira e teia da sua frente; faz-se náufrago,
influências e até mesmo furtos em museus. O finado Mergulhão era de fato, a golfar, a agonizar, a estender aos céus, em meio à tormenta,
parte do esquema, apontado por um banqueiro já preso como mentor. uma mão desesperada.
Encontramos alguns quadros roubados na casa alugada em nome da Uma mão desesperada. A mesma que esbarrou em algo na penumbra
senhora Maria e ocupada pelo senhor Antônio. daquele insalubre lugar. Murmura um palavrão ao notar a luz queimada.
Silêncio. Tateia os dedos em biombos que ladeiam o lugar abochornado. Antônio
No carro oficial, Maria manteve-se cabisbaixa todo o tempo, e toca os tabiques de compensado e sente as lascas da superfície farpada
Antônio travava uma batalha aquílica para tentar tirar a massa de entrar na pele. Diante da dor, porém, segue seu rumo reto para fugir
maisena que restava na boca. Impedido pelas algemas, sossegou. daquela vida sinuosa.
Refletiu. Berrou um palavrão. – Que faz aí, homem de Deus? Vamos perder o orvalho madrugador
– O que foi? Que grito foi esse? – indagou Maria, em susto. das romãzeiras! – indaga indigna Maria de Maria, que, impacientada
– Era por isso que o maldito Mergulhão sorria do caixão! – pela omissão de seu mancebo depois de tanto ganir e gralhar seu nome
concluiu o rapaz. na entrada, se cala e entra. Ela traz consigo as correspondências que
encontrara no capacho inscrito “Aqui mora uma família feliz”.

24 a velha debaixo da cama 9


Antônio não se faz responder. Desvairado, o amásio segue sua trilha
rente aos tapumes. Aquela dor das farpas na carne compensaria, e nada
seria se comparada à angústia latente de adormecer – ou tentar, ao
VIII
menos – toda noite sob a imaculada cama do falecido Coronel, nos A Maisena e a Algema
tacos desalinhados do chão grená. Rodolfo Viana
Antônio sente por entre os dedos grossos e calejados da vida
pregressa, na escureza do sótão já íntima de suas mãos, o que procura.
Sorri ladinamente diante de um pano. Mesmo sem enxergar, sabe o que
é: uma camisa furta-cor, usada na boate L’Île de La Tentation, nos idos
de “Conan, o bárbaro”, alter ego de Antônio antes de viver em pecado
com Maria de Maria, quando era apenas um garoto pobre que revirava
xepas durante o dia e rebolava no queijo à noite.
Com a camisa em riste, Antônio passa por Maria de Maria sem lhe
dedicar um olhar piedoso sequer. Já despido de concupiscência, mostra-
se disposto a se despir mais e mais a cada noite a partir de então. Seria de

D
novo um homem digno, trajado apenas com a velha sunga enodoada. e dentro do caixão que levava um suspeito tuiuiú talhado no
Deixaria o bangalô para voltar à boate. tampo, o cadáver de Mergulhão sorria. Os presentes comentavam
– Marque as horas de minha partida. É agora que você me perde. à boca miúda um descuido tanatopráxico do profissional funerário
Culpe os tacos do piso, o orvalho das romãzeiras e a si mesma, Maria. em lhe desenhar tal expressão. Quiçá o Coronel achara graça na ironia
Culpe o fantasma do Coronel – sussurra à mulher um irascível Antônio, da morte: ao cabo, pagara para que os leigos capangas o matassem a
todo dono de si, esquecendo-se por um instante que devia a ela gratidão coronhadas, em qüiproquó devidamente registrado na 3ª DP.
desde uma certa noite regada a mojitos e altas doses de antiinflamatórios. Também sorriam, mesmo que inibidos pelo cenário e pelo contexto,
Diante da afronta, Maria se mantém austera. Antônio e Maria. Estes, porém, vivos estavam. E muito. Sorriam à
– Tome – diz a mulher, entregando a seu futuro ex-amásio as fastuosa herança, ao fim do encalço do Coronel, à possibilidade de uma
correspondências. – Estavam no capacho. vida pacífica e, mais uma vez, à herança. Era aquele um sentimento
Ele, ainda esboçando um sorriso nos lábios bem conhecidos pelo de felicidade e de alívio: não moveram um dedo para que Mergulhão
corpo de Maria de Maria, passa os olhos nos envelopes. Um a um. Pára defunto se tornasse. Gozariam os dois – um como filho, outro como
no quinto. Lê o remetente. Perde o viço. Muda a feição Antônio, como esposa – da riqueza do homem sem remorsos. Por ora, apreciavam as
quem muda de idéia, como quem decide ir e acaba por ficar. flores do velório, os cheiros ímpares da ocasião, os trajes dos presentes,
o café com biscoito de maisena, os abraços de condolências.
Na hora do enterro, a Marinha prestou reverência. Sobre o tampo
do esquife, porém, seu brasão teve de dividir espaço com uma bandeira
do Íbis, time que outrora fizera bater o coração do velho.

10 a velha debaixo da cama 23


Maria abotoa a blusa até o pescoço. Tira da bolsa óculos de aros
dourados. Reposiciona-se na poltrona, toda ereta, mãos nos joelhos... E
que cara é essa? Pensa ser uma colegial?
III
É o que ela e Antônio se dão ares de imaginar... A Proposta
Insinuam-se. Maria faz-se tímida, mas deixa escapar um sorriso Claudio Parreira
maroto.
Antônio segura suas mãos e a leva para o centro da sala. Desabotoa a
própria camisa, despe o dorso, arremessa o pano. Saracoteia sempre.
Maria parada, mãos cruzadas na frente, encena: é a ingênua.
O Coronel boquiaberto, pasma-se.
Vê Antônio tirar as calças num lânguido e lento balouçado.
Maria o olha fundo. Aproxima o corpo quase a encostar, e com
jeito acanhado inicia a tocá-lo. Passa o dedo pelo tórax, desce pelo
abdome, vai fazendo o contorno da sunga com os indicadores. Depois
acaba de despir Antônio, deita-o no chão e, ainda vestida, se coloca por

E
cima dele. Quem sabe, mesmo na sua estapafúrdia inércia, o Coronel mbora seus pés quisessem dar o fora o mais rápido possível,
esteja pensando. E depois de tanto tempo considere que, de qualquer Antonio se deteve. O envelope em suas mãos trazia notícias do
forma, Maria ainda é sua esposa. Não divorciou, nem viuvou. Então, outro mundo.
em termos técnicos, ele é um corno. E Maria de Maria, infernizando ao pé da escada:
Mas, não... A cena, forte, talvez não lhe permita conjecturas. Por – Vamos, homem!, que a memória do Coronel nos aguarda!
fim, quase um grito de Maria... Antonio engoliu em seco três vezes, três vezes se benzeu antes de abrir o
O Coronel desperta. Num impulso vai até a escrivaninha, pega seu envelope. Sabia que o conteúdo da carta mudaria sua vida infeliz outra vez.
Colt 45 prateado e o aponta para Maria: Ignorando os rosnados da velha, foi com as mãos trêmulas e os olhos
“É agora que tu vais ver, safada!” arregalados que leu:
A frase sai entrecortada pela ira. “Meu jovem, sei o quão difícil é o momento pelo qual está passando
O delegado pensa ouvir a senha. Manda os capangas, informados agora. Trinta anos atrás eu também hesitei aí mesmo onde você está.
com pouca precisão sobre quem é quem, invadirem o local. Mas a minha determinação em fugir foi tão forte quanto foi fraco o
Só o último deles, designado para cobrir a retaguarda da pancadaria, meu coração, e aí eu morri convenientemente. Só assim pra fugir da
repara em Antônio e Maria, ainda deitados um sobre o outro. velha, só assim pra ganhar a liberdade que nem mesmo todo o meu
Coisa estranha... Parecem não se dar conta! Ficam ali! dinheiro conseguiu comprar.
E reiniciam um calculado movimento rebolado... “Sim, a minha morte é uma farsa. Se é que você me entende, foi
preciso morrer para enfim ganhar a vida. Essa aí me sufocava com
as suas maluquices, com os mesmos passeios matinais aos quais você

22 a velha debaixo da cama 11


agora é submetido. Sofri, como você pode ver – mas agora estou me
divertindo. Há tempos venho me divertindo, principalmente depois
que você, meu jovem, entrou na história. Agora estou muito velho, mas
VII
o meu dinheiro faz as vezes dos meus olhos: alguém que pago muito O Movimento Inesperado
bem os observa diariamente, você e a velha, e eu fico sabendo de tudo, Franco Gualtieri Neviani
inclusive que vocês dormem debaixo da cama temendo a visita furiosa
do meu fantasma! Ah, rá-rá!
“Mas o motivo real desta carta não é contar a minha história. Um
dos meus poucos prazeres hoje é ver essa cachorra velha sofrer. Faz
trinta anos que eu ‘morri’ pra ela – e gostaria que ela continuasse a
pensar assim. Escrevi esta carta porque você tem sido responsável pelos
melhores dias da minha vida. Nenhum filme me fez rir tanto. Sei que
você não passa dum degenerado de boate, um oportunista qualquer. Se
lascou, isso sim! Mas não pense que ela está feliz. Sei de fonte segura que
ela sofre ao seu lado, porque não encontra em você nenhum traço do

O
que fui eu. Mas ela é orgulhosa, você sabe, e por isso te humilha desse Coronel espera ver surgir alguma arma. Mas ela não aparece.
jeito: é a maneira que ela encontrou de te punir pelo simples fato de Nenhum revólver, faca, corda ou porrete.
você não ser o inesquecível Coronel Mergulhão. Acredita na intenção que Antônio e Maria têm de matá-lo.
“Vou ser curto e grosso: eu sei que se você for embora ela vai sofrer. Já tinha tratado com o delegado Gervásio: armariam um flagrante.
Mas nem tanto. E, pior, se você voltar pra boate acaba a minha diversão. Quando a ameaça fosse feita, gritaria a senha combinada: “É agora
Mas se você ficar, guardar em segredo o nosso acordo e fizer ela sofrer que tudo se acaba!”
ainda mais... Proponho o seguinte: se você partir, dou-lhe apenas adeus. A força-tarefa, na escuta do lado de fora, adentraria. Seis marmanjos
Mas se você ficar, te dou 10 milhões em dinheiro vivinho e prometo haviam sido importados do sertão pelo policial. A recomendação havia
ainda te fazer meu único herdeiro. Que tal? Nada mal pra quem vivia de sido clara para Gervásio:
rebolar no queijo, não é mesmo? “Avise os cabras: Se, quando entrarem, for o homem quem
“O que é que você acha?” estiver empunhando a arma, desçam o cacete primeiro, perguntem
Antônio, branco de susto, parou diante da porta. A boate lhe oferecia depois!”
um presente de muita desavergonhança e prazer, mas a carta do Coronel Nas últimas noites ficara insone, prelibando com volúpia o
lhe oferecia um futuro com todas as letras. Fazer a velha sofrer não lhe encarceramento dos dois.
seria tão difícil assim. Mas e o seu próprio sofrimento, como ficava? Mas... o que faz Antônio agora?
Anda de um lado para outro na frente de Maria, dando em cada
passada um gingado lascivo.
Parecem esquecidos do Coronel.

12 a velha debaixo da cama 21


Posicionado atrás da mesma poltrona ocre onde descansa o decrépito
corpo de Maria, com as mãos gentilmente apoiadas nos ombros da ex-
mulher, Mergulhão fita Antônio, seu filho, amante de Maria.
IV
– Não o esperávamos tão cedo, rapaz – começa o Coronel, quase A Revelação
escondendo a rouquidão na calmaria da voz –, mas já que aqui está... Franco Gualtieri Neviani
Antônio dá uma olhada de esguelha na sala nua e alva, pálida como
sua face espavorida. Não sabe para onde fugir, o que fazer. Portanto,
nada faz. Deixa-se estar ali, todo ouvidos e algum receio. Mergulhão
continua, em didática impecável:
– Sua mãe era a única estivadora naquele porto. Uma grande mulher
que, apesar do bíceps avantajado, encantava a todos com seu sorriso
falhado no incisivo lateral. Numa de minhas paradas, a convidei para
uma bebida.
“Eu já estava cansado do meu casamento com Maria, que era um
martírio graças às suas manias estapafúrdias, e por isso me envolvi

H
com aquela estivadora uma única noite, tempo suficiente para eu me avia algo de errado em tudo aquilo. Ao entregar-lhe as cartas,
apaixonar. Você nasceu nove meses depois, matando sua mãe – minha Maria de Maria não havia lido os remetentes? Não parecera em
paixão – durante o parto. É por isso...” nenhum momento assombrada. E por que, afinal, para ficar livre,
O Coronel arrasta a chinela e um sorriso diáfano até o centro da sala, o Coronel precisara simular sua morte? Por que pagaria agora, passados
entre Antônio e Maria. tantos anos, 10 milhões para fazê-la sofrer? Como poderia ter certeza
– É por isso que eu dedico toda a riqueza que consegui até hoje, que Antônio não sumiria depois de receber o dinheiro?
meus 10 milhões e o que for, para que você infernize Maria. Assim Intrigado, Antônio decide ficar. Na hora certa iria atrás daquele endereço.
como fiz a mesma oferta a Maria: infernizar a sua vida. Por vocês dois, Mas precisaria ter pelo menos uma foto, alguma noção de como seria a
tenho asco, e o que mais desejo antes de morrer é vê-los engalfinhando- aparência do Coronel. Maria de Maria não lhe permitira ver... No altar só
se pela minha fortuna. resplandecia o nome imponente. Na única vez em que havia demonstrado
Tudo faz sentido para Antônio: a carta entregue pelas mãos de Maria, os tal curiosidade, fora repreendido com uma admoestação filosófica, ou pelo
infindáveis passeios pelas romãzeiras, a cópula debaixo da cama... Antônio, menos assim lhe aparentara: “Ele não deve vê-lo e nem você a ele.”
perplexo, cheira o dedo com fervor. Maria, por outro lado, provoca. Espera ela sair. Era o dia de compras.
– Está preparado, meu querido? – indaga a velha a Antônio. Antônio vai para a outra casa de Maria de Maria, naquela em que,
– Mais do que nunca – retruca o rapaz, sem gaguejar um nada. de forma velada, ela não lhe permite nunca entrar. Está encravada na
parte mais alta da colina e domina com imponência o terreno. Para não
chamar a atenção da moça que trabalha na cozinha, escala a parede lateral
e, forçando um pouco, ultrapassa a janela do primeiro piso.

20 a velha debaixo da cama 13


Nunca havia estado naquele quarto, um ambiente austero, de poucas
cores e ares. Nenhum retrato. De um lado, a cama de casal embalsamada
pelo passado preso. Do outro, o guarda-roupa desproporcional cobrindo
VI
toda uma parede. Nem Sovaco Salva
Vasculha com cuidado, temendo deixar indícios de sua presença. Rodolfo Viana
Quando já desanima, aturdido pela impressão causada por tantos figurinos
de época, encontra fotografias numa caixa de sapatos. Mas uma após outra,
só mostram a Maria de Maria de outro tempo.
Finalmente, embaixo de todas, embrulhado num papel seda, o retrato
amarelado de um homem em uniforme militar, bigode espesso cobrindo
os lábios, olhar severo. Sozinho.
E... algo familiar.
Procura em outros lugares, caixas e gavetas. Nada mais. Sustenta mais
uma vez a imagem nas mãos: os olhos enviesados, quase semicerrados em
desafio... Onde já os teria visto? Atrás, algumas palavras escritas à mão:

A
“De quem não consegue mais viver sem teu perdão.” ntônio e Maria mantêm os olhos arregalados, mas por razões
Enfia a foto no bolso e volta para o chalé. Em seu quarto tenta imaginar diferentes. Dos dois, um estava tenso; o outro, apenas curioso. A
aquele rosto com mais trinta anos. brancura do rosto do rapaz feneceu no instante em que a velha
Não se atreve a mudar o ritual noturno com Maria de Maria. Ela não soltou o primeiro timbre, de maciez ímpar.
demonstra nenhuma mudança, pelo contrário, parece ainda mais libidinosa. – O que você faz aqui?
Pela manhã, Antônio decide mostrar-se disposto para o passeio. Antônio nada disse.
Capricha no asseio e na revisão no espelho. Numa braçada, sabendo que a resposta tardaria, a velha tira
Mais do que devia. o corpo de seu mancebo da entrada. Na desenxabida sala, Maria
Faz micagens, se retorce para ver o perfil, olha-se de longe e de perto. E senta-se numa velha poltrona ocre, à espera de uma explicação que
tanto que perde o horário. Maria de Maria já o chama. se esboça entrecortada na gagueira do amante. Não resta opção: de
Antônio já não se move. Parado e pasmado, quase não respira. maneira párvula, Antônio leva o indicador às axilas e, em seguida,
Mira os olhos que o olham. às narinas. Fecha os olhos para aguçar o olfato. Cheira o dedo com
Por fim já não se permite ficar quieto. devoção aflita.
Inventa na sua, uma outra mão. Tateia, descobre-se, sente na ponta dos – Maria, que surpresa grata – diz em sua rouquidão o Coronel, que
dedos os contornos, como se não fossem de seu próprio rosto. desponta no corredor, primeiro o nariz, depois o corpulento bigode e,
Perplexo, compreende então. então, o todo. Traz no rosto um sorriso cordial, quase amistoso.
Porque se lembrava de alguém que nunca tinha visto. – É sempre um prazer, meu querido – retribui Maria.
Antônio sente-se perdido.

14 a velha debaixo da cama 19


V
O Porão
Lucas Paio

A
ntônio analisa a porta de madeira carcomida. Está ali parado há
dez minutos, estranhando a casa, juntando coragem. Faz que vai
bater, desiste no meio do caminho, desiste de desistir. Três toques
breves bastam para que, ao colar o ouvido no mogno, já escute o
ruído dos chinelos.
Havia andado o dia todo pra chegar até ali. Atravessara fazendas,
cruzara riachos e por duas vezes quebrara a cara: a primeira quando
entrou na casa de um senhor, proseou e tomou café, xingou e abraçou,
e descobriu que não era ele o procurado; a segunda quando invadiu as
propriedades de uma mansão, achando errado, e foi posto pra correr por
perdigueiros pouco amistosos.
Mas agora tem certeza, e é essa certeza que tanto o incomoda. Pois
é simplesmente inconcebível que essa casa velha seja o “lar, doce lar” do
ilustre e ex-finado Coronel Mergulhão.
– Pois não – diz o velho, cortês. Bate os olhos no rapaz e troca de
feição. – Ah. Entra.
Antônio segue o velho – que mais podia fazer? Observa como ele anda:
curvado, as pernas arqueadas, os passos descompassados de um pingüim.

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Mesmo corcunda, é mais alto que ele; ainda que trôpego, traz no rosto Tira do bolso a foto amarelada e o velho ri.
uma firmeza que o imberbe Antônio sequer já vira pessoalmente. Sem – Achei que ela guardasse essas coisas com mais cuidado.
falar, é claro, na serenidade imponente do bigodão grisalho. – Ela guarda, eu é que sou atrevido. – Mostra o verso com o recado
– Senta – manda o velho, sentando-se também. Depois dá um manuscrito, “De quem não consegue mais viver sem teu perdão”, e
sorriso, como quem se diverte com a ansiedade alheia. Intimidado emenda: – Que quer dizer isso?
pelo olhar, é Antônio quem fala. O velho é seco.
– Recebi sua carta. – Usou a palavra certa: atrevido.
– Eu sei. Você não estaria aqui por outro motivo. – Coronel! – Antônio o chama pela patente, pela primeira vez.
– Na verdade, eu vim mesmo foi por outro motivo. – Tenho motivos para acreditar que o senhor manteve um
– Você veio porque duvida de um velho que já morreu. Não tiro relacionamento extraconjugal durante seu casamento e que eu...
sua razão. A campainha interrompe o discurso, mas o velho vê com
– Olha, eu só queria... naturalidade.
– Deixa eu te mostrar um negócio. – Faça um favor e abra lá pra mim. Deve ser o rapaz que pago pra
O velho tem dessas. Levanta e vai, os outros que andem atrás. ficar de olho em você.
Se por fora a casa é triste, por dentro é só inexpressiva. Nenhum Antônio sobe com raiva. Sente-se frustrado; “esnobado” definiria até
quadro nas paredes, nada de adornos, pintura chocha. O quarto melhor. Encara a porta de mogno e decide espiar pela greta antes de abrir.
onde entram deve ser o dele. O colchão não está no chão, nem Estremece, então: é Maria de Maria.
faltam as cobertas; mas aquilo está longe de ser a vida boa alardeada
na correspondência.
O velho abre o guarda-roupa e puxa no piso uma tábua solta.
Antônio esfrega os olhos – são degraus que vejo ali? – e acaba indo
atrás do homem escada abaixo.
Leva um choque. O porão oculto sob o casebre esconde tanta coisa
que Antônio não sabe onde prender o olhar: nas espingardas na parede
dividindo o espaço com obras de arte, nas prateleiras acomodando
livros antigos, na poltrona convidativa no meio da sala, na caixa de
uísques chamando pro abraço. Vê o cofre metálico num canto e não
duvida que ele possa abrigar os dez prometidos milhões. Nem precisa
que o velho explique. Sabe que é ali o seu refúgio, seu canto escolhido
para morrer sorrindo.
– Belo esconderijo – diz Antônio sincero, sem a ironia que a frase
aparenta. – Mas olha, realmente eu vim pra outra coisa.

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