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ponto,

revista

João Pessoa, julho de 2009, número zero

uma publicação do
ponto,
revista

a s palavras não apenas nos conferem realidade; elas


podem ainda defendê-la para nós, diz Alberto Man-
guel no interessante A cidade das palavras. A frase
também suscita uma idéia, quiçá não muito nova,
de que o milagre de estarmos juntos, sitiados ou
não, faz-se por meio das palavras. Elas são como muralhas que nos
concentram em atividades encantatórias, em oficinas tanto transpa-
rentes quanto obscuras. Dito isto, o Clube do Conto, que nada mais
é do que um número indefinido de parceiros em uma espécie de
novo decameron, inicia aqui uma revista e faz uma justa homena-
gem ao amigo e escritor que, antes de partir, não fez estardalhaço e
soube contar a vida com arte em suas histórias. Geraldo Maciel ou,
para os mais próximos, Barreto, idealizador das famosas Atas do Clu-
be do Conto da Paraíba, norteou boa parte de sua vida para a cons-
trução do seu reino de palavras e de uma editora que tratava com
carinho as palavras dos outros. Para apreciar sua maestria nesses
ofícios tanto, basta ler seus contos. Suas histórias parecem dizer, nos
andares subterrâneos do significado, algo maior: que não estamos
mais indefesos contra a aridez ou o vazio. Que ali, entre páginas, as
fortificações da memória eram são vigorosas. E a imaginação, uma
bússola.
Este primeiro número de “ponto,”, ainda experimental, além de
trazer um pouco da querida figura do contista através de sua la-
voura, também traz depoimentos sobre o autor de Aquelas Criaturas
tão Estranhas e contos e crônicas inspirados nele. E dá início a uma
nova fase do Clube do Conto da Paraíba, porque somos muitos e as
palavras são habitações que não podem prescindir de moradores. A
casa, portanto, faz é o próprio convite. Que aqui já está feito.
ponto,
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índice
Organização João e Maria: o caso
Clube do Conto
Geraldo Maciel ‘Barreto’ ................................................................. 4
da Paraíba
Colaboraram 21g
nesta edição
Ronaldo Monte ............................................................................... 6
Dôra Limeira
doralims@bol.com.br
Geraldo Maciel ‘Barreto’ Delicado
Maria Valéria Rezende Ronaldo Monte ................................................................................ 7
valeria-rezende@uol.com.br
Roberto Menezes
betomenezes@gmail.com Viva Barreto!
Ronaldo Monte Dôra Limeira ..................................................................................... 8
rona.monte@terra.com.br

Edição O tipógrafo
André Aguiar Maria Valéria Rezende ................................................................. 10
diariodebordo@yahoo.com

Design Não há vagas


Alfredo Albuquerque Roberto Menezes ......................................................................... 16
alfredoalbuquerque@gmail.com

Tiragem: 100 Urucubaca


Geraldo Maciel ‘Barreto’ ............................................................. 17
O Clube do Conto se reúne
todos os sábados, a partir
das 16h, no restaurante O escritor
Coelhos, no Bancários. Os Geraldo Maciel ‘Barreto’ ............................................................. 22
encontros são abertos e
gratuitos. Peccata Mundi (trecho)
Geraldo Maciel ‘Barreto’ ............................................................. 26

Façamos nós a nossa história


Dôra Limeira .................................................................................. 30

www.
clubedoconto.blogspot.com
Folha corrida
Geraldo Maciel ............................................................................... 32
João e Maria: o caso
Geraldo Maciel ‘Barreto’
Lembro: o ocaso era um pôr-do-sol derramado, um minguante
despejar de luzes que caminhava para o lusco-fusco, hora em que a
luz divide sua soberania com o escuro, a noite se amalgama com o
dia, momento em que um homem triste, de semblante fusco, eu, com
meu único olho, procurava por ela, a soberana de minha tristeza.
Eu um João qualquer, ela uma Maria única, pelo menos para
mim. Esse João tentando, como a luz, inutilmente sustentar o clarão
dos olhos dela sobre sua vida; ela, como a noite, soberana, queren-
do cobrir esse João, seu reino e seu domínio, com o manto da escu-
ridão que leva ao esquecimento.
Ela dizia: João escute. O amor é como o dia: quando chega a noi-
te, ele murcha, morre, se recolhe, desaparece; assim acontece agora
com nós dois. Nada pode deter essa avalancha que nos cobre. Ama-
nhã o sol, um outro sol, vai nascer apagando o que foi a noite. Você
encontra outra. O amor é como o sol. Nada impede que ele volte,
que apague a escuridão, que volte a aquecer o mundo e os entes.
Eu respondia: Maria, ouça. Se você quiser, a noite não chega, o
dia vai durar para sempre, jamais haverá o ocaso, e eu não me per-
derei nos caminhos que à noite são invisíveis.
Você quer o impossível, João. Congelar o amor é como congelar
o tempo; é como parar o sol, apagar a noite, dar um fim à eternida-
de. Impossível João.
Não, não é impossível. Diga sim, diga que me quer, diga que me
ama, diga pare sol, diga morra a noite, e você estabelecerá a eterni-

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dade. Diga! Ordene! Os deuses a ouvirão, a natureza lhe obedecerá,
o cosmo cumprirá sua sentença!
João, isto é para os deuses, e até para eles pode ser uma impossibi-
lidade. Aceite a nossa humilde condição, a nossa frágil consistência; os
limites de nossa carne e do nosso coração! A vida é assim, nossa vida é
assim determinada. Do pó ao pó, da aurora ao ocaso. Princípio e fim.
Assim foi. Vi-me num deserto a perseguir horizontes que estão
sempre longe; afoguei-me numa noite tão longa que parecia eter-
na; mergulhei num silencio tão profundo que me pensei surdo. Mas
sobrevivi. Conseguir manter o nariz acima das marolas do dilúvio.
Vislumbrei pálidos reflexos ao longe, como relâmpagos no infinito;
cheguei à borda do deserto, à fronteira entre a esterilidade e o úbe-
re, entre o ocre e o verde, ao local onde o horizonte é alcançável.
Hoje Maria é uma lembrança em baixo relevo, um palimpsesto que
se esfarela ao contato, um vácuo aonde um dia existiu a dor. Sobrevivi. E
lembro ainda, e talvez essa seja a última lembrança, quando ela naque-
le dia me disse: o amor é como o sol, nada impede que ele volte...
Eu espero. Sobrevivi e espero aqui neste limbo, imerso neste in-
quietante espera do albor, aguardando a luz, procurando a aurora
como um girassol demente, esperando que aquilo que ela disse um
dia seja verdade. Que volte o sol, que volte a luz, que volte alguma
coisa que, mesmo infinitamente pequeno, lembre aquilo que por
ela eu senti um dia.
Espero e desejo esse futuro como se isso fosse a única coisa a
fazer na vida, mesmo sabendo que daqui a pouco, ele, como o sol,
vai caminhar para a queda, para seu ninho de escuridão e eu tenha
que mergulhar novamente no ocaso.

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Pesamos todos mais 21 gramas.
É o peso da alma do amigo
que arrastamos
toneladamente.

Falta paquidérmica
densa
insustentável.

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Delicado
Ronaldo Monte
Se me pedissem uma palavra para definir Barreto, responderia
sem hesitar: delicadeza. Esta era uma qualidade que vinha antes de
todas as outras. Ele podia ser crítico, irônico, até mesmo gozador.
Mas tudo isto revestido com a embalagem da delicadeza.
Se o leitor quiser saber exatamente do que estou falando, leia
um livro de Barreto. Esses que ele assina como Geraldo Maciel. Pe-
gue um conto, que seja. Logo se dará conta de que aquilo é fruto
de um delicado trabalho de ouriversaria, ouro e prata engastados
de palavras preciosas, mas tudo muito bem disfarçado em simplici-
dade e clareza. Tente imitar, como eu tentei, um mínimo parágrafo e
saberá como é difícil e exaustivo o resultado.
Até para morrer, Barreto foi delicado. Nada de períodos longos
de internamento, promessas ilusórias de melhora. Foi ao encontro do
Clube do Conto, no sábado, sem dar a menor bandeira. Acordou no
outro dia bem disposto e saiu para cuidar da vida. Foi ali, morreu e
pronto. Não obrigou ninguém a cancelar compromissos, adiar ocupa-
ções, pois escolheu para partir numa manhã chuvosa de domingo, em
que não dava praia. Com isso, não estragou o programa de ninguém.
Foi uma pena Barreto ter faltado ao seu velório. Ia ficar feliz
com a turma que se reuniu, incrédula, para ter certeza de que a
notícia não era brincadeira de mau gosto. Tinha muita gente boa,
gente querida. Mas faltava alguém imprescindível. Aquele que sa-
beria dizer as palavras exatas para a ocasião. Nos falaria de perda,
de dor e de ausência. Mas falaria muito delicadamente.

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Viva Barreto!
Dôra Limeira

“Dôra, você está elegante neste seu traje amarelo, tom sobre
tom.” Foi assim que Barreto me cumprimentou logo que desci do
carro na porta da Escola Aruanda, nesse último sábado passado. En-
tre risos e brincadeiras, dirigimo-nos ao recinto da reunião do Clube
do Conto.
Fizemos reunião normal, como se nada fosse acontecer que nos
alterasse a rotina do dia a dia. Discutimos um pouco sobre literatura,
um pouco sobre essa fase de refluxo do grupo e sobre a hipótese
de buscarmos outro lugar para reuniões. Barreto ponderou as coisas
com a serenidade que lhe foi sempre muito peculiar.
Chegamos a ler dois contos. Valéria leu o seu “Platéia”, eu li o
meu “Uma tia misteriosa”. Durante todo o tempo que estive lendo
meu conto, Barreto, como sempre costumava fazer, acompanhou a
leitura com atenção e sua caneta riscou, sublinhou, anotou ao lado,
sugeriu. Ah, Barreto, essa era uma de suas marcas, o companheiris-
mo. Sentirei falta disso.
Eu gostava de chamar Barreto de “meu galã preferido”, fazendo
alusão à sua semelhança física com um ator chamado Edward G.
Robinson, do cinema antigo. Notava-se que expressava sua boa vai-
dade com um discreto ar de riso. Barreto vai fazer falta às estranhas
criaturas do Clube do Conto.
Geraldo Maciel, este era seu nome de cartório, foi o editor de
meus três livros. Meu quarto livro estava em suas cuidadosas e me-
ticulosas mãos para a edição.

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Não sabíamos, mas naquele último sábado, Barreto
estava se despedindo de nós, do Clube do Conto, sem
nos dizer que viajaria no dia seguinte, domingo, às 10
horas da manhã. Já era noitinha quando encerramos a
reunião e nos nos dissemos até logo. Despediu-se sem
estardalhaços, assim como nos amou, sem alardes. Foi
equilibrado, sóbrio, ponderado, inspirou confiança em
todas as empreitadas que abraçou.
No que teria pensado Barreto em seu último e rápido
instante? Na família? No apartamento novo? Nos amigos?
Na literatura? No Clube do Conto? Nunca se vai saber.
Agora, está dormindo. Que tenha um sono tranquilo.
O tipógrafo
Maria Valéria Rezende

Envolvido com gosto na lida da dura matéria, nos truques es-


pertíssimos da física e da química, engenheiro pra lá de competen-
te, sim. Isto era a profissão. Mas havia a paixão, que a empregada
nomeava prosaicamente mania de livro, pra que amontoar essa
livrarada toda que só serve pra criar poeira? Gostou quando se viu
citado como bibliófilo.
George Meireles dedicou-se mais ainda, criando novas cate-
gorias para arrumar as estantes, segundo um complexo jogo de
critérios que iam da encadernação, qualidade do papel, excelência
tipográfica, ilustrações, se houvesse, até, é claro, sumo critério, a
qualidade literária e a riqueza vocabular. Cada volume identificado
com o belo ex-libris que ele mesmo xilogravara, sugestão de man-
dacaru florido e o discreto monograma, GM, num canto.
Imaginava que ali, naqueles volumes enfileirados, vivia adorme-
cida toda a riqueza da língua, esperando apenas que ele os abris-
se como janelas da manhã para deixar entrar a luz e despertar as
palavras. Era missão que cumpria com alegria, a cada dia, tão logo
acertava as contas diárias com a engenharia. Num rincão da biblio-
teca, por trás de um biombo, separava os livros nos quais aplicava a
etiqueta genérica de mereciam ser melhores, que GM nunca mos-
trava aos visitantes.
Cada vez que chegava com nova pilha de alfarrábios, a empre-
gada não perdoava: e já não chega tudo isso que tem aí, não? −
Não, não basta, Amélia. A resposta, porém, não se dirigia propria-

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mente a Amélia, mas a ele mesmo, e abria uma fresta para aquele
penumbroso vão de inquietações, vagas sensações de missão não
cumprida só reveladas à mulher Adelaide, vazio que se lhe escondia
em algum canto da alma e ele bem sabia que não se preencheria
com a mera quantidade de aquisições e nem mesmo com a leitura
e a releitura de tudo aquilo.
Num domingo de chuva, folheando o suplemento cultural de
um dos grandes jornais de São Paulo, G.M. deu com os olhos numa
nota anunciando que a senhora Artemísia Souto, viúva de um velho
tipógrafo, tinha intenção de vender o único item valioso do espólio
do marido, imenso arquivo contendo, criteriosamente classificados,
o primeiro exemplar definitivo e as provas tipográficas com revisões
de cada livro que havia composto em sua longa vida. G.M. não acre-
ditou que outros teriam lido a minúscula nota, certo de que aquilo
era dirigido pessoalmente a ele, não hesitou, alertou o amigo reven-
dedor de automóveis de que estava à venda seu utilitário com tração
nas quatro rodas, avisou aos auxiliares que estaria fora do escritório
por três dias, comprou pela internet a passagem para o primeiro vôo
da madrugada e desembarcou de manhãzinha em São Paulo.
Foi fácil conseguir, na redação do jornal, o endereço da viúva do
tipógrafo. Ninguém havia chegado antes dele e a penúria apressava
também a mulher. Não regateou quando a viúve lhe deu o preço,
confirmou ao revendedor a venda do carro, soube que já havia um
comprador. Com o coração trêmulo, passou o cheque do total para
daí a uma semana, esquivou-se do excesso de abraços gratos da vi-
úva, fechou as pesadas caixas, sem conferir o conteúdo, endereçou-
as a si próprio, chamou uma transportadora para entregas urgentes,

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esperou
Viva Barreto,
chegar osim.
caminhão, arrumarem-se com cuidado as caixas
e ver sumir na esquina a preciosa carga. Então foi-se para os sebos
da Liberdade, onde passou a tarde até à hora de ir pegar o último
vôo de volta.
Desembarcou muito antes das caixas e ansioso pela chegada
do caminhão, prevista para sexta-feira à tardinha. Aquele fim-de-se-
mana terá sido o mais emocionante de sua vida de bibliófilo. De-
sembrulhou com urgência o primeiro pacote envolto em papel im-
permeável, pensou em usar luvas para manusear as velhas provas,
mas Amélia tinha jogado no lixo as suas luvas de algodão branco
que, em busca de poeira oculta, achara numa gaveta da biblioteca,
alegando que já não havia lixívia que as alvejasse. Custaria um tem-
po precioso ir comprá-las. Ficaria para depois.
O primeiro livro do arquivo, acompanhado de duas versões de
provas tipográficas com correções a lápis, já se havia tornado um
clássico da literatura brasileira. GM, emocionado por surpreendê-lo
assim, ainda no nascedouro, folheou com mãos trêmulas o exem-
plar número um da obra, verdadeira prova de artista, sentindo-lhe a
textura da capa e das folhas, o cheiro característico, tão vivo como
se tinta e cola estivessem ainda frescas, o papel tresandando a tem-
po, talento e história. Leu várias vezes com emoção a dedicatória
que registrava sucintamente a gratidão do escritor a seu tipógrafo.
Entrou então na experiência mais inédita: ler e cotejar as primei-
ras provas tipográficas de um clássico! Eras duas as cópias. Abriu-as
ambas, lado a lado sobre a mesa, logo abaixo do pequeno suporte
inclinado em que abrira o livro, e teve a primeira surpresa: cada uma
delas continha correções a lápis, a segunda muito mais numerosas

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e extensas do que na primeira, e a caligrafia, sem dúvida, não era a
mesma. Reconheceu na primeira prova a caligrafia da dedicatória
do livro. Na segunda, em longas frases inscritas nas margens e mes-
mo parágrafos inteiros no verso das folhas, reconheceu a letra que
listava títulos, autores e datas no papel pardo que envolvia cada um
dos pacotes. GM pos-se a ler, ora uma, ora outra das provas, cotejan-
do-as com o exemplar publicado e, embora duvidando de si mes-
mo, percebeu o insuspeitável: a primeira prova trazia um texto cor-
reto, bem escrito, mas em estilo convencional que não levaria nem
o livro nem o autor aos píncaros da glória em que hoje estavam
instalados. A segunda prova revelava: toda a beleza e a originalidade
do texto deviam-se às modificações ali registradas, sem dúvida al-
guma, pela mão do tipógrafo. Mas seriam obra dele ou fruto de um
simples ditado do verdadeiro autor, talvez fisicamente impedido de
escrever de próprio punho? Chegou a imaginar a cena: o escritor, de
colarinho duro e gravata de seda, um braço na tipóia, recostado em
poltrona de veludo, a mão esquerda cofiando seus bastos bigodes,
o tipógrafo franzino, com a pala verde sobre os olhos, as ligas pretas
sustendo as mangas da camisa, os óculos grossos, curvado sobre
uma escrivaninha, lápis e provas nas mãos.
O exame febril, dia e noite, de dezenas de livros e provas tipo-
gráficas provou o incrível: o desconhecido tipógrafo tinha transfor-
mado, ao longo de sua vida, centenas de livros quase banais em
grandes obras de arte literária. Não era possível supor que todos
os escritores que lhe confiaram seus originais tivessem dedos, co-
tovelos ou óculos quebrados no momento de rever as provas de
seus livros.

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Nem por um segundo GM sentiu-se tentado a revelar o segredo
descoberto, que o tornaria talvez o mais famoso bibliófilo do país.
Uma réstia de luz infiltrara-se naquele inquietante vão escuro de seu
espírito. Soube o que queria fazer. Encaminhou os papéis com o pe-
dido de aposentadoria. Favorecido pela tecnologia mais moderna,
montou em poucos dias uma gráfica nos fundos de casa e anunciou
que se estabelecia como editor. De suas mão não sairia nenhum
livro que não pudesse ser considerado perfeito. Começou por criar
novas e belas edições críticas dos livros de domínio público que ti-
nha guardado por detrás do biombo
Anuncia-se para a próxima semana a defesa de uma tese de
doutorado na Universidade mais próxima, que promete desvendar
as razões de um súbito salto de qualidade na produção literária da
província, prêmios e mais prêmios conquistados pelos escritores lo-
cais em concursos país afora e mesmo no exterior, o recente assédio
de grandes casas editoras federais aos vates municipais e estaduais.
Embora o tema lhe seja extremamente interessante, GM não assis-
tirá à defesa. O simples convite para o ritual acadêmico, descreven-
do o tema tratado, preencheu qualquer espaço ainda vago em sua
alma, o coração deu-se por satisfeito e parou, num domingo chuvo-
so, marcando a conclusão de uma vida plena.

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Não há vagas
Roberto Menezes
Procura-se um engenheiro aposenta
do que tenha experiência
na área de cirurgia das palavras.
Procura-se um engenheiro das palav
ras que produza inveja em
escritores tão grandes quanto ele.
Procura-se um homem de poucas
palavras que incite nos escri-
tores menores maiores vontades.
Procura-se desesperadamente algu
ém que se encaixe na condi-
ção de tutor que com valia passe
régua, esquadro e bisturi em
vôos de ícaros frustrados.
Procura-se um podador de arbustos
metidos a carvalhos, para
que com tempo aqueles venham se
calhar se tornar estes.
Procura-se um velho carvalho que
chegue atrasado e não assine
ponto.
Procura-se um funcionário público
que tenha o vício de sair
apressado, que não dê aviso prévio,
que se exonere antes de re-
ceber a demissão.
Procura-se um pilar de aço forte para
suportar com os outros pi-
lares esse pesos insustentáveis.
Procura-se uma barragem que só vaze
quando o açude, que den-
tro tenha dela, sangre.
Procura-se um jacarandá que jama
is empene quando o vento
amostrado algum escândalo encene.
Procura-se um ser humano, um ser
extraterreno. Nem alto, nem
magro, nem metido a político.
Procura-se aquela criatura que tenh
a o dom de barretear*.
Viva Barreto!
*fundir (o ouro) em barras.
Urucubaca
Geraldo Maciel ‘Barreto’

Como todo mandatário a quem o poder lhe chega por vias


pouco ortodoxas, o sargento Quintiliano começou a ter medo de
sofrer um atentado. Sabe-se lá que monturos de inveja, que vul-
cões de safadeza habitam o coração dessa gente sonsa? Um pode
me achar feio e me olhar torto; outro pode ter tido alguma von-
tade contrariada e me declarar inimigo; outro inventa de cismar
que eu sou a encarnação do mal, qualquer mal, e lá vem ele pra
cima de mim! É preciso ter muito cuidado, andar com os olhos
bem abertos, a arma sempre à mão e ter um cerco de seguranças.
O poder atrai essas mazelas, esses vingadores, os que se acham
justiceiros.
Ele morria de medo especialmente dos barbeiros. Achava que
era o local onde ficava mais exposto. Arrepiava-se só em pensar que
expunha sua jugular a um desconhecido armado com uma navalha
afiada. Tanto medo tinha, ou veio a ter, já que antes chegava a dor-
mir na cadeira de seu barbeiro de confiança o gago Luiz Rosa, que
depois de assumir o cargo de chefe da junta, não pôs mais os pés na
barbearia. Fazia ele mesmo sua barba, com um aparelho de lâminas
que comprara, pois apesar de gostar de fazer a barba com navalha,
não dominava a arte de afiá-la.
Depois, deixou transparecer, no início, o medo de ser envene-
nado. Mais adiante, de forma aberta, declarou ao seu secretário esse
temor, e sem quê nem mais, ordenou:
- Sendo assim, a partir de amanhã você vai avisar à cozinheira

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para redobrar os cuidados e vai, você mesmo e em pessoa, provar
antes todo bocado que eu for pôr na boca.
O atarantado secretário via, assim, mais uma obrigação ser acres-
centada ao rol das que já tinha: provador oficial de sua excelência
ou, dito de outra forma, aquele que morre no lugar de quem devia.
- Cuidado com o sal, bicarbonatos, farinhas, goma de mandioca,
ararutas e outros produtos brancos e em pó. Não vá me fazer essa
maluca dessa cozinheira o que a cozinheira do padre Nicanor fez
com seus mantimentos. Trocou o sal por um veneno para formigas
e não fossem as beatas terem provado antes, e morrido logo de-
pois, o padre teria batido a batina nas canelas antes do tempo. Veri-
fique os lacres das garrafas, o fecho das latas, o estado dos pacotes.
Qualquer sinal de violação você rejeita o produto. Mesmo aqueles
de embalagem não violada devem ser provados por você antes de
mim. Por isso, vai ganhar dez por cento de aumento no seu salário.
- Isso não é um exagero de sua parte, excelência? Não o salário,
queria dizer o secretário, mas os cuidados.
- Pode ser, mas não é por causa disso que eu vou morrer. Não
vou dar trégua à inveja, à maldade ou ao azar. Seguro morreu de
velho e não envenenado.
Que podia o pobre secretário mais objetar, a não ser que se to-
masse o silêncio como objeção, o que parece não ser apropriado
para o caso?
Mesmo sem ter visto em filme, lido em qualquer livro de história
ou sequer ter ouvido a história numa cantoria de viola, o sargento
passou a desconfiar que, como Cleópatra, poderia morrer picado
por uma cobra. E não as cobras dos tabuleiros, aquelas surpreendi-

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das no sono ou de tocaia nos caminhos, que essas ele já as encon-
trara aos montes e delas quase não tinha receio. Usava coturnos e
andava prevenido, de olhos abertos e mirando touceiras, ramagens,
folhas secas, locas de pedras, e todo e qualquer local onde elas pu-
dessem estar. Quantas ele não matou quando teve que se enfiar no
mato em busca de criminosos fugitivos ou bandos de assaltantes de
estrada? E nunca foi sequer arranhado por nenhuma delas.
Seu medo era ser picado por uma cobra deixada de propósito
no enrodilhado do seu lençol, enganchada no punho de sua rede,
colocada dentro de seu coturno. Tanto temia essa artimanha que
revistava os caibros do telhado do quarto onde passava a noite, are-
java várias vezes o lençol que não chegava a usar, pendurava seu
coturno em um torno que havia no quarto. Era mais um motivo para
que não dormisse.
Passou a temer os ratos, não porque esses pudessem mordê-lo,
tampouco por que transmitissem doenças, coisa que ele nem des-
confiava ser possível, mas porque é sabido que ratos atraem cobras.
Então, como temia usar veneno em casa, começou a criar gatos. Seu
medo aperfeiçoou-se e ele passou a temer também, escorpiões, la-
craias e piolhos de cobras, esses até mais furtivos que as serpentes e
de veneno quase tão mortal quanto o delas.
Depois foi a vez da carne reimosa e da comida carregada.
- Não me venham com carne de porco, de tacacá, de tejuaçu,
seriema, peba ou tatu verdadeiro; basta um risco, um arranhão
qualquer, e ele, por menor que seja, vai arruinando, inflamando,
apodrecendo, se transforma numa chaga dolorosa que, num lugar
atrasado como esse, vai dar em morte certa. Nem quero ver carne

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de bicho que menstrua ou peixe de couro; longe de mim carne de
bicho amojado ou parido de pouco; nada de arribaçãs ou codornas.
De pena só capão ou galinha cevado pro trinta dias, e ave do mato,
caça, só a codorniz. Esses bichos, que muitos me trazem de presen-
te, podem ser dados com as tais intenções outras, as mesmas de
quem pode querer me envenenar ou me ver picado de cobra.
- Como queira, sargento.
- Abreu, sereno faz mal?
- Não excelência, que eu saiba, não faz mal, a menos que se es-
teja com um defluxo brabo ou constipação das narinas; dizem que
não faz bem para quem está com febre ou tem sinusite. Para o resto,
não faz mal algum, pelo menos que eu saiba.
- Mas o que você sabe dessas coisas, Abreu? Onde aprendeu
essa ciência? Que garantias você pode me dar?
- Garantia nenhuma, sargento. Foi só uma opinião, aliás, pedida
por vossa Excelência!
- Isso quer dizer que mal pode fazer, não é?
- Na verdade, é, senhor sargento.
- Agora eu estou arrumado! Uma cidade que não tem médico
– por que diabos eu mandei prender e expulsar aquele velho curan-
deiro? –, e um secretário que mais me pergunta que afirma e ainda
por cima nada sabe dessas coisas que podem fazer mal. Eu estou
bem arrumado!
Parou, permaneceu uns dois minutos calados e disparou outra:
- E em mau-olhado, você acredita Abreu?
- Sim e não excelência. Depende da hora e do meu humor. Dão-
se os casos em que é tão patente a presença de um mal olhado que

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seria heresia não acreditar; noutros, a situação pende mais para a
fome que muitos passam, não sendo mais que o resultado da fra-
queza que a inditosa traz; há, também, e para não deixar de nomear
todas as possibilidades, o caso de ser malandragem, simulação, tea-
tro puro, artes que inventam para fugir de algum castigo, se descul-
par de alguma falta ou por pura sem-vergonhice mesmo.
- E você acha que uma coisa botada pode prejudicar uma pes-
soa e atrasar um governo?
- Achar, eu acho, mas não é o caso, excelência.
- Como não é o caso? Então os governos estaduais, os presiden-
tes da república, senadores, deputados, todos esses não são dados
a consultar videntes, perscrutar os búzios, pedir proteção de deuses
outros que não os da Igreja Católica, requisitar o futuro através de
baralhos, tarôs, fumaças, espelhos, bolas de cristal, preto-velhos, e
toda essa multidão de jeitos e formas que os homens acham para
suprir sua ignorância e diminuir suas incertezas sobre o futuro?
- Isso é verdade, excelência! Até parece que o futuro do poder é
tão escuro que eles apelam para tudo.
- Então? O meu governo daqui pra frente, não vai dispensar o
auxílio de quem pode me ajudar. A partir de amanhã, mande trazer
de volta aquele velho curandeiro, e vê se me acha uma cigana que
possa ler mãos e botar o baralho, que eu quero saber quem, dentre
os meus inimigos, anda pretendendo me matar.
- Sim, excelência.

21
Um escritor
Geraldo Maciel ‘Barreto’

Um escritor amigo meu acaba de lançar um livro. É


um livro original, tão diferente e revolucionário que ele
não sabe como classificá-lo. A síntese perfeita entre o
signo e seu oposto, entre a palavra e o silêncio. Um livro
revolucionário. No lançamento havia oito pessoas. O na-
morado do autor, dois amigos ligados às letras profun-
das e radicais, uma tia idosa que o sustenta, uma irmã,
um amigo do namorado, um transeunte e eu. Oito. Ele
completava os nove estava feliz.
Um dos amigos das letras radicais disse algumas
palavras, durante uma hora, e eu tive que falar do livro,
relembrar algumas passagens da nossa adolescência,
quando estudamos juntos, de nossa amizade e afinida-
des literárias. A tia chorou uns quatros lenços de cam-
braia, a irmã somente três; o namorado, um pouco afas-
tado, olhava embevecido e tímido para o maior escritor
do mundo. São assim os lançamentos. Afinal é a coroa-
ção de dias e noites, noites e dias de suor e labuta, de la-
buta e suor, com pequenos intervalos para uma olhada
no espelho e busca de inspiração.
Ele demorou exatos dez anos para construir sua

22
obra. Dez anos. Noites de labura e canseira. De insônia
e labuta. Pelo menos foi o que ele afirmou na hora dos
agradecimentos. Dois anos de hipérboles, metáforas,
paráfrases e aliterações; não sei quantos mais de rees-
truturação, reescritura e acréscimos; e o restante de con-
densação.
Ao fim do segundo ano tinha 510 páginas escritas,
251.620 palavras, 1.647.760 caracteres com espaço,
3.900 parágrafos e 22.570 linhas. Um castelo de pala-
vras, produto da primeira fase, e de aglutinação.
Os dois últimos anos ele os gastou polindo, cortan-
do, buscando a essência. Quando fez uma primeira lei-
tura, retirou os erros mais grosseiros, as repetições, por
si mesmas desnecessárias, e os parágrafos obscuros,
economizou 56 páginas; na segunda leitura, cuidou de
retirar o excesso de adjetivos - os manuais falam dos tais
adjetivos e de seus malefícios para o estilo -, e lá se foram
32 páginas; com o excesso de quês implicantes e repeti-
tivos cortou 16 páginas. Ao fim dessa primeira passada,
estava com 407 páginas e uma ligeira impressão de que
seu romance tinha tudo para ser uma grande obra.
Na terceira leitura, notou que ainda havia muita
gordura, muita coisa que não contribuia para a solidez
da obra e resolveu cortar. Aplicaria algo que leu de um

23
determinado crítico de literatura que dizia: se você no-
tar que retirando um capítulo ou parágrafo ele não faz
falta, corte. É porque realmente ele não serve para nada.
Começou com os capítulos. Dos trinta e oito, cortou
quatorze. Os vinte e quatro restantes, após a poda dos
parágrafos mal ajambrados, obscuros, desnecessários
ou ilegíveis redundaram em 231 páginas.
Semanas depois, uma leitura sobre Graciliano Ra-
mos e sua febre pela concisão, somada com outra so-
bre a poesia de João Cabral, fez com que devastasse
dez capítulos, que refundidos resultaram em oito e 126
páginas. dessas 126 páginas, retirou todos os persona-
gens, deixando só o principal e com isso seu texto ficou
reduzido a 45 páginas. Podando as páginas onde havia
algum tipo de ação do personagem, restaram-lhe 19 pá-
ginas. Com um texto tão condensado, não havia neces-
sidade de divisão em capítulos, o que economizou três
páginas.
Na última leitura, resolveu deixar somente os mo-
nólogos interiores que tivessem relação direta com o
suicídio - tema do livro -, o que lhe custou sete páginas.
Cortou, depois, oito delas por não terem um cunho filo-
sófico mais profundo e se viu frente a frente com meia
página altamente condensada, profundamente densa.

24
Mas, pensando bem, nada seria mais profundo que
o ato do seu personagem. E trocou aquele parágrafo
profundo por esta frase banal, mas tão representativa:
Ele iria se matar. E tal concisão levou à idéia genial: A
morte é o absoluto. O que é uma frase para represen-
tá-la? E riscou a frase dando origem àquela sua obra de
tantos anos. Pelo menos foi o que ele disse na hora dos
agradecimentos.
A crítica não tomou conhecimento. Os resenhistas
passaram ao largo, e as más línguas acharam outras coi-
sas de que se ocupar.
Vendeu oito exemplares no lançamento. Embria-
gou-se e começou a se preparar para escrever o próxi-
mo livro.

25
Peccata Mundi*
Geraldo Maciel ‘Barreto’

E
ra o ano da graça de 1800
e tantos, soprava uma
brisa quente e cheirosa
pelas ruas da cidade de Parahy-
ba naquele fim de manhã, quase
meio-dia, e essa tal brisa, perfu-
mada pelo cheiro das mangas,
mangabas, oitis e araçás, foi en-
contrar o padre Leocádio Carrão
Brindeiro sentado à testa da mesa de refeições, arfando, a boca
cheia com um naco generoso de uma coxa de galinha e o rosto
sujo de farofa. Sua cara quase chafurdava no prato que comia, e
suas mãos nervosas espalhavam restos de comida sobre a toalha,
já suja e engordurada.
Vestia uma batina surrada, apesar de ser um homem rico, e tra-
zia um pano de prato, também já sujo e encardido – ao modo de
um guardanapo – atado ao pescoço, adereço de todo compatível
com a porcalhada que fazia na mesa à sua frente.
Enquanto mastigava com pressa, a cozinheira entrou na sala e
lhe disse ao ouvido, como se ele fosse surdo:
– Padre, tem uma pessoa aí fora querendo falar com o senhor. É
um emissário do senhor de engenho, o Major Florentino.
Sem parar de mastigar, o padre disse à cozinheira para mandar
o rapaz esperar, enquanto limpava a boca com o tal guardanapo

26
e tentava suavizar um arroto que denunciava o quanto já se em-
panturrara.
O padre, apesar dos sessenta anos já vividos, era um homem
ativo, forte e corpulento. Além de oficiar os sacramentos que o de-
ver lhe impunha – mesmo que algumas vezes os achasse excessi-
vos – cuidava de duas fazendas no Brejo, e de uma próxima à vila
do Pilar, todas elas com engenho, cana, gado e escravos. Como um
grande proprietário, comprava e vendia boiadas, exportava açúcar,
fabricava rapadura e cachaça, emprestava dinheiro a juros, que
alguns achavam extorsivos, tinha comissões em negócios que os
inimigos achavam duvidosos, mantinha, supria e dava assistência a
três casas, onde mantinha três amásias com quem ajudava a povoar
a província da Paraíba do Norte.
Nos atropelos de suas múltiplas atividades, padre Leocádio ha-
via esquecido os votos de castidade em algum canto por aí e não
lembrava mais onde os havia deixado. Uma vez perdido o voto de
castidade, não foi difícil perder todos os demais, à medida que ia
encontrando as coisas que a vida podia lhe oferecer. Foi assim com
relação ao celibato, foi assim com relação à pobreza, à parcimônia
e à temperança.
Ninguém mais que ele levava a sério a exortação crescei e mul-
tiplicai-vos. Tanto que, da parte que lhe cabia, apesar dos esforços
que tais proezas exigem, já havia posto no mundo dezoito filhas
– das quais seis haviam morrido muito cedo – desgraciosas, ou me-
lhor, dezessete, pois a décima oitava, Maria Esplendorosa, era delga-
da, graciosa, e bela como um amanhecer.
Por serem tantas e morarem em casas diferentes, ele, como pai,

27
só as via duas vezes por semana, umas às segundas, outras às quar-
ta, o restante às sextas, e aos domingos quando as via reunidas na
igreja. As desobediências a esse calendário só ocorriam quando o
padre tinha que viajar para vistoriar suas fazendas e conferir o an-
damento dos seus negócios. Nos intervalos, tentava manter acesa a
chama da fé que, naquela época, ali na capital da província, bruxulea-
va e às vezes quase apagava por completo. Se tal chama amortecia,
mas não apagava, isto se devia aos cuidados que a ela devotava o
nosso guloso pároco.
Na segunda-feira, após o café da manhã, na casa da amásia
número um, parte de suas filhas fazia uma fila para beijar-lhe a
mão e pedir-lhe a benção. Sua benção, meu padre. Deus lhe aben-
çoe Maria da Paz. E se seguiam Maria Dolores, Maria Anunciada, e
Maria Concebida; na quarta-feira e na segunda casa, abençoava
Maria das Graças, Maria das Vitórias, Maria do Amparo e Maria do
Perpétuo Socorro; e na sexta-feira, abençoava Maria da Luz, Maria
da Conceição, Maria das Dores, também conhecida como Maria, a
horrorosa, e Maria Esplendorosa, que todos chamavam de Maria,
a bela.
Normalmente Maria Esplendorosa era a última a lhe pedir a
benção, coisa que lhe enchia os olhos e lhe apascentava o coração.
Quando olhava sua linda filha, sempre dizia consigo mesmo: vou
arranjar um bom casamento para você, minha filha!
No momento, porém, ele estava na casa paroquial, ainda sen-
tado à mesa, rodeado de ossos de frango, sujo de farofa, rumi-
nando a última porção do prato enquanto o trabalho de digestão
lhe retirava qualquer vestígio de pensamento da cabeça. O torpor

28
que normalmente sentia após a refeição não o impediu de lem-
brar que ainda teria de atender ao emissário do Major Florentino
que o esperava.
“Que pode querer o Major para me mandar um recado a esta
hora?” Pensou enquanto dava mais um arroto, empurrava a cadeira
para trás e levantava. Retirou o guardanapo do pescoço, atirou-o
sobre a mesa e dirigiu-se para a sala.
O emissário esperava. Ao vê-lo, levantou-se, fez uma reverência,
pediu-lhe a benção e beijou-lhe a mão, ainda com resquícios de
cheiro do frango e da farofa.
– Deus te abençoe – disse o padre de forma displicente –, que
deseja o Major Florentino?
– Ele pede que o reverendo padre, logo que possa, vá até sua
casa para tratar de um assunto urgente.
– Diga ao senhor Major que no fim da tarde, sem falta, estarei lá.
E com um sinal da cruz mal traçado no ar, despediu o serviçal.
Tão logo o emissário saiu, o padre dirigiu-se para o quarto
onde o esperava uma rede, lugar de sua sesta habitual, ocasião
em que, com calma, faria sua trabalhosa digestão e que, de acordo
com o estado de seus intestinos, lhe proporcionaria um sono leve
ou pesado, acompanhado de seus inseparáveis sonhos, normal-
mente pesadelos, os pesadelos do padre Carrão.

* Estes são os primeiros parágrafos do romance Peccata Mundi, de Geraldo


Maciel ‘Barreto’, premiado com o primeiro lugar no concurso literário ci-
dade do Recife 2008
29
E nasce um formigueiro de contos
1
por Dôra Limeira

E
façamos nós a nossa história
m abril de 2004 o Clube do Conto ainda não existe
efetivamente. O que existe é uma lista de discussão
na internet constituída de escritores locais que cur-
tem o conto como gênero literário. Essa lista virtual, criada
pelo poeta e contista Antônio Mariano, dentro de pouco
tempo, evolui para encontros presenciais. Dois ou quatro
escritores contistas se encontram aos sábados, finais de tar-
des, para tomar cafezinho, conversar amenidades, falar de
literatura, falar de contos. No entanto, ainda não há nada
definido, não se pensa em “criar” um grupo de contistas, for-
malmente. Esse grupo surge de forma espontânea e natural,
resultado da necessidade que têm algumas pessoas de tro-
car idéias e experiências, compartilhar sobre suas perspec-
tivas, seus modos de escrever. Não há nada de pretensioso
naquele momento.
A brincadeira, o faz de conta, e o despojamento são as
tônicas iniciais do grupo que nasce num point barulhento
do Shopping Sul, Conjunto dos Bancários, onde é servido
cafezinho expresso. O ajuntamento inicial de escritores atrai
parceiros dentro do próprio shopping. A Livraria Almeida e a
Associação de Lojistas do Shopping, sensíveis a esse grupo
nascedouro perdido naquela barulheira comercial, opera-
cionalizam para que um recanto discreto do shopping seja

30
destinado às reuniões. Mesas e cadeiras da Associação são coloca-
das à disposição do grupo aos sábados. Livraria Almeida e Associa-
ção dos Lojistas, portanto, são as primeiras duas parcerias.
A divulgação boca a boca, os convites pela internet, pelo tele-
fone e por outras vias ajudam o grupo a emergir. O não formalismo,
o não academicismo e a acolhida são alguns elementos que fazem
a diferença entre o grupo nascente e os demais focos de literatura
existentes na cidade. Tendo a inclusão como diapasão a nortear os
tons das reuniões nos finais de tarde dos sábados, é permitido que
qualquer pessoa possa participar, escrevendo ou não. Basta que
goste de ler, que aprecie o conto literário, que ame o bom livro. O in-
tercambio de idéias, projetos, pontos de vista, a troca de abobrinhas,
enfim, qualquer pretexto pode ser um bom início de conversa. Nesse
sentido, a interação é muito importante. Em abril de 2004, portanto,
o grupo ainda engatinha. Tenta se afirmar, tanto pela assiduidade,
como pela leitura de textos, autorais ou não. Trivialidades literárias
também fazem parte e são bem aceitas a cada encontro.

r e
avi
ni X
Rao

31
Geraldo Maciel
Raoni Xavier

‘Barreto’

P
araibano, nascido em Nova Palmei-
ra, em 1950. Foi professor do De-
partamento de Engenharia de Pro-
dução da Universidade Federal da Paraíba,
engenheiro civil e Doutor em Engenharia de Produção
pela Escola Politécnica da USP.
Seu primeiro livro de contos Aquelas ciaturas tão
folha corrida

estranhas, foi lançado em 1995, pela Editora Rio Fundo,


RJ, tendo já uma segunda edição pela Editora Manu-
fatura.
Publicou um segundo livro de contos, Inventário de
pequenas paixões, em 2000 e lançou em 2005 seu tercei-
ro livro de contos O Concertista e a Concertina.
Publicou contos em revistas culturais e em Antolo-
gias nacionais, a exemplo da Contos Cruéis, pela Gera-
ção Editorial e Quartas Histórias, pela Editora Garamond.
Concluiu um romance – Aqui as noites são mais longas e
terá editado em breve um quarto livro de contos. Seu
romance Peccata Mundi ganhou o primeiro lugar no
concurso literário cidade do Recife 2008.
Faleceu em 31 de maio de 2009 deixando uma sau-
dade imensa no Clube do Conto da Paraíba, do qual
era um dos membros mais atuantes.

32

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