Resumo
O debate sobre a cidade contemporânea se enriquece com revisita à obra
de Camillo Sitte (1843-1903). Geralmente associado às discussões de estética
urbana de fins do século XIX, seu olhar revela-se com maior amplitude na atual
circulação de idéias a partir de nova leitura de Der Städtebau traduzido por
Henrique (1992) e reflexões conduzidas por Collins & Collins (1980), Choay
(1965, 1980) e Andrade (1992). Tais autores indicaram aportes conceituais,
teóricos e metodológicos de Sitte para além de sua influência no urbanismo da
primeira metade do século XX e no urban design desenvolvido a partir dos anos
1950.
Centrada nas áreas públicas, a proposta de Sitte remete a indagações ao
atual contexto urbano e às práticas correntes de sua construção, vinculando
reflexão teórica e operacionalidade planejadora. A partir desse marco, observam-
se contribuições “sitteanas” para o atual debate sobre metodologias e estratégias
de intervenção voltadas ao papel da configuração do espaço público na formação
da cidadania. Examina-se a aplicação de seu pensamento à discussão das
relações entre percepção espacial cotidiana e representações para o
planejamento de futuras cidades, assim como da função da memória inscrita no
espaço na construção da história individual e coletiva do sujeito.
IntroduÇÃO
Procurar a presença de Camillo Sitte na circulação de idéias sobre a cidade de
hoje traz inevitáveis comparações entre o seu e o nosso fin de siècle. Em ambos,
a questão urbana ocupa o centro do palco cotidiano: assim como havia cidades
em enormes mutações na Europa que se industrializava no século XIX, hoje
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assiste-se ao reinado do urbano na atual ordem mundial da globalização. Ambos
caracterizam-se por incertezas quanto ao futuro desconhecido, inconformidade
com os processos do presente e efervescência de debates sobre o passado. Então
e agora, olhares atravessam ou ficam retidos em espessas névoas de sintomas,
procurando entender, afinal de contas, o que está acontecendo.
Apresentações do olhar de Camillo Sitte geralmente o evocam por sua nostalgia
da cidade antiga e pelo romantismo das teses que defendia. Sitte nostálgico
encabeça a “corrente culturalista” proposta por Choay (1965), acompanhado por
Ruskin, Willian Morris, Howard e Unwin. Ele não teria entendido mudanças sociais
profundas ocorridas a partir da Revolução Industrial, tratando como desordem a
nova ordem por ela trazida às cidades. Logo, a presença de Camillo Sitte não
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teria ultrapassado o lamento devido à perda da cidade como lugar da cultura.
A maioria dos debates sobre sua obra mostra Sitte romântico e reduzido à
defesa do pitoresco, pictórico ou pinturesco, expressões que procuram traduzir
malerisch. O termo em alemão deriva diretamente do verbo pintar e não se limita
a associações ao romantismo; contudo, interpretaram-se menções daquele autor
às virtudes do malerisch como indício de um olhar conservador, ignorando a
possibilidade crítica que conviveu com o subjetivismo na escola romântica.3
Collins & Collins (1980) são cuidadosos exegetas das idéias de Sitte, nele
resgatam características atemporais e o alinham a Vitruvio e Alberti, devido ao
caráter de compêndio de seu livro. Segundo esses autores, tal obra é também
um manual popular, onde se estabelecem noções que possuem força de preceitos
úteis para a ação projetual sobre a cidade, ao lado de princípios para uma teoria
do espaço antrópico. A permanência dessas noções é possível porque elas
ultrapassaram constrangimentos da circunstância histórica de Camillo Sitte,
tornando-se regras de organização espacial passíveis de aplicação em diferentes
tempos.
Reduções equivocadas das idéias de Sitte, em geral provenientes de sua
associação ao Romantismo, desmistificam-se na abordagem de Collins & Collins
(ibid.). Eles revelam um intelectual inconformado e crítico, lutando pelo
estabelecimento do planejamento urbano, por atribuições profissionais dos
arquitetos e por concursos públicos para projetos. Contradições da moldura
romântica, competentemente apontadas por Bresciani (2004), não devem impedir
apreciação do alcance do legado sitteano, especialmente quando se tratam de
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implicações que se iriam apresentar apenas em época posterior. Entretanto,
essas questões foram, até recentemente, manipuladas pelo pensamento que
impôs à construção das cidades uma visão de mundo tecnicista, necessária à
realização da ordem capitalista e da sociedade da era das máquinas. Na verdade,
a oposição racionalista a Camillo Sitte não se mostra menos distante da realidade
do que o foi o romantismo.
Assim, apenas em fins do séc.XX expôs-se claramente o banimento que
sofrera Der Städtebau e o ostracismo imposto a seu autor, no prefácio de
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Françoise Choay à elogiada tradução francesa de Wieczorek (1980:V):
“Precisou-se [entre outros] da destruição de suas paisagens, do
massacre de sua herança urbana, da poluição do conjunto de seu
território pela produção, sem medida nem crítica, de construções que
pretendem simbolizar a modernidade e o progresso, para que os
franceses se amedrontassem e preocupassem com seu quadro de vida.
[...] Der Städtebau de Sitte, que é, em matéria de urbanismo, um dos
textos pioneiros do séc.XIX, encontrou nos países francófonos destino
duplamente hostil. Foi truncado e falsificado, tanto por um primeiro
tradutor demasiadamente convencido da justeza das teses de Sitte
[refere-se a Camille Martin], quanto por detratores excessivamente
convencidos de sua falsidade [refere-se, provavelmente, à corrente
funcionalista no Urbanismo]”.
Choay encerra o prefácio destacando a atualidade do trabalho de Sitte (ibid:
IX):
“Estas páginas escritas em Viena, há quase cem anos [mais de cem
anos], aparecem singularmente esclarecedoras e talvez indispensáveis
àqueles que desejam hoje em dia interrogar-se sobre a natureza do
urbano ou se debruçar sobre os problemas do patrimônio construído,
da participação dos usuários na construção do quadro de vida, das
relações entre a técnica e a estética, ou como diria Alberti, entre a
comodidade e a beleza.” (tradução livre)
Na valiosa apresentação com que é brindada a tradução brasileira de Henrique,
Andrade (1990) referiu-se a Camillo Sitte como analista que iria “situar-se
criticamente em relação aos princípios que então norteavam a construção de
novos bairros ou novas cidades” (ibid.:4). Mencionou a proposta teórica de Sitte,
voltada ao desempenho do espaço urbano no cotidiano dos indivíduos e que, por
tal motivo, demandava observação a partir do seu interior: “Der Städtebau fala
da cidade como é apreendida pelo cidadão comum [...] como é vista por aquele
que transita por suas ruas, atravessa seus territórios ...” (ibid:4).
Analogamente a Collins & Collins (op.cit.), Andrade destacou desdobramentos
futuros dos postulados de Camillo Sitte nas primeiras décadas do séc.XX,
possibilitando prática urbanística com características distintas àquelas da corrente
racionalista dominante e, após a Segunda Guerra Mundial, na crítica ao ideário e
às realizações modernistas. Neste sentido o método de Sitte, compreendendo a
cidade a partir de seu interior, encontraria posição defendida por Bourdieu (1972) e
como indispensável à decodificação de práticas sociais em geral, em
Certeau (1990)
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termos de observador contido no observado.
Assim como os demais, Andrade (op.cit.) também considerou deturpações que
vitimaram o pensamento sitteano a partir de traduções problemáticas, estratégias
do embate ideológico, ignorância ou má fé. Das mais conhecidas, a tradução de
Camille Martin para Der Städtebau em 1902 impôs leitura equivocada de Sitte,
associado ao medievalismo porque se excluíram, nessa versão, exemplos do
barroco. Por outro lado, nela Martin inseriu discutível capítulo de sua autoria
sobre ruas, rendendo infindável polêmica com Le Corbusier e seus seguidores.
Portanto, revisita à obra de Sitte enseja visualizar contribuições fundamentais
e avaliar deformações a ela impostas em sua difusão. Vamos realizar esse
processo não como um olhar ao passado, mas uma celebração da presença de
Camillo Sitte nos dias de hoje.
Antecedentes
Camillo Sitte nasceu em 1843 em Viena e morreu com sessenta anos. Filho de
conhecido artista e arquiteto, educou-se em atmosfera de arte, beleza e
criatividade de certa forma inconformista, em período de rico debate na
Alemanha e na Áustria. Teve formação em arquitetura, história da arte,
arqueologia, fisiologia da visão, percepção espacial, anatomia e dissecação,
escreveu artigos de crítica de arte, realizou projetos edilícios, planos gerais,
centros cívicos, novos bairros e subúrbios. Chamado para organizar a Nova Escola
Oficial de Artes Aplicadas de Viena, situada na borda da área antiga da cidade, aí
estabeleceu sua casa e seu atelier, convertidos em ponto de discussões,
atividades artísticas e intelectuais como projeto e feitura de móveis, tapeçarias,
tecidos, pinturas e artesanatos realizados por ele, sua esposa e amigos, fato que
remete à Red House de William Morris. Foi tutor de jovens arquitetos, consultor
nos planos de Adelaide, Melbourne e Sidney, das prefeituras de Hamburgo e San
Francisco, e realizou projetos urbanísticos para pequenas cidades industriais
austríacas.
Nessa época, consolidava-se uma Europa industrial e os Estados Unidos
emergiam para o atual poder mundial a partir de sua industrialização; o modo de
produção capitalista impunha-se, atingindo países centrais e colônias recém
tornadas independentes. Alastrada a partir da Inglaterra em fins do séc.XVIII, a
Revolução Industrial tornara a urbanização processo irreversível nos países
europeus, desfigurava como jamais estruturas centenárias de suas cidades e
expunha contradições urbanas ameaçadoras à realização da nova ordem social.
Esse contexto efervescente produziu significativa circulação de idéias, mas
também um novo urbanista encarregado de organizar o espaço das cidades para
garantia de implantação e desenvolvimento da sociedade industrial. Pensamento
e prática sobre o urbano viram-se especialmente divididos, nos países de língua
alemã, entre a tradição artística (nutrida no período romântico por integração
entre artes visuais, música e literatura) e a engenharia (nascida das novas
tecnologias).
Camillo Sitte foi ativo nos campos do debate e do projeto urbano a ponto de
balizar uma escola de pensamento à qual se aliava um savoir faire de
planejamento urbano sob o mote “fazer com arte”. Ele tributava as idéias que
expunha à visita a antigos mestres (como Aristóteles e Vitruvio) e velhas cidades
que analisava em constantes viagens; seu livro Der Städtebau nach seinen
künstlerischen Grundsätzen nasceu em 1889 graças a reflexões secretas a partir
dessas lembranças. Hábito comum à época, anotações de viagens inspiravam
intelectuais e literatos, bastando lembrar as flâneries relatadas por Baudelaire e,
mais tarde, Benjamin.
O sucesso do livro de Sitte conduziu-o a integrar júris de vários concursos para
projetos de urbanismo e a contatar personagens importantes da época, como
Baumeister e Stübben, com quem travaria inesgotáveis debates. A essa obra
somou-se a revista Der Städtebau, dedicada a “todos os fatores implicados na
construção das cidades”, e não apenas à questão artística; ao falecer, preparava o
segundo volume de seu livro, “versando sobre planejamento urbano segundo
princípios científicos e sociais” (Collins & Collins, op.cit.:20).
O contexto em que viveu Camillo Sitte foi especial porque marcou a origem do
planejamento urbano moderno nascido, segundo Brix (apud Collins & Collins, op.
cit.), na Alemanha e daí expandido para o mundo inteiro. Suas bases fundaram-
se por Baumeister na Verein (Associação) de Berlin em 1874, em época onde os
escritórios de planejamento urbano alemães eram mais controlados por
engenheiros, topógrafos e geômetras do que em outros países. Nessa conjuntura,
Sitte apontava diversos problemas da produção urbanística:
Notas e ReferÊNcias
1) “Reinado do urbano” refere-se a La Règne de l'Urbain et la Mort de la Ville
(Choay, FranÇOise. Paris: Centre Georges Pompidou, 1994).
2) Cf. Choay, FranÇOise (1965): L'Urbanisme utopies et réalités. Paris: Ed. Du Seuil.
3) Cf. Bresciani, Stella (2004): “Camillo Sitte entre a estética romântica e a eficiência
moderna”. Palestra em I Congresso Internacional de História Urbana.
Agudos,SP.: UNESP (mímeo).
4) Sitte, Camillo (1992, 1909, 1889): A Construção das Cidades segundo seus Princípios
Artísticos (trad.Henrique, Ricardo Ferreira). São Paulo: Ed. Ática. Traduções de
Henrique, Canosa e Wieczorek de Der Städtebau preservam melhor o
pensamento sitteano do que outras (como, por exemplo, a de Martin).
Referências bibliográficas:
- Collins, George & Christiane C. (1980, 1965): Camillo Sitte y el Nacimiento del
Urbanismo Moderno. Barcelona: Ed. G.Gilli.
- Choay, FranÇOise (1980): Prefácio à primeira edição de L'Art de Batir les Villes
(trad. D. Wieczorek). Paris: Editions l'Équerre.
___________________ (1969): The Modern City city planning in the nineth
century. New York: Ed. Braziller.
___________________ (1985): A Regra e o Modelo. São Paulo: Ed.
Perspectiva
- Monteiro de Andrade, Carlos Roberto (1992): Apresentação à tradução de Henrique à
Der Städtebau nach seinen künstlerischen Grundzätzen (op.cit.).
5) Choay (1965, 1969) e Collins & Collins (op.cit.) indicam romantismo em atitudes de
nostalgia (quanto à cidade pré-industrial) e de combate (ao urbanismo oficial)
associadas a Camillo Sitte. Collins & Collins (ibid.) comparam-no com Siegfried (em
Tannhäuser de Wagner) e fazem paralelo entre seu sonho de monumento
nacional e a Outlook Tower reformada por Patrick Geddes, em Edimbourgh.
Mas a Gesamtkunstwerk em que se baseava Sitte ainda não desencadeara, em
sua época, o pangermanismo que alimentou o nazi-fascismo, algumas décadas
depois.
6) Sobre o assunto, ver as demais obras dessa autora, citadas anteriormente.
7) Faz-se, aqui, referência ao observador contido no observado, exposto por Pierre
Bourdieu (Esquisse d'une Théorie de la Pratique. Genève: Ed. Droz, 1972) e
também presente em Michel de Certeau (A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Ed.
Vozes, 1994), como postura científica indispensável à decodificação das
práticas sociais.
8) FOUCAULT, Michel (1982): “Espaço, conhecimento e poder”. Entrevista a Paul
Rabinow. Skyline.
9) Essa última atitude foi expressa como “desinteressada” por Shaftsbury e,
depois, por Kant (apud BAstos, Fernando: Panorama das Idéias Estéticas no
Ocidente.Brasília: Ed. UnB, 1996). Sobre o assunto, ver também:
- Kohlsdorf, Maria Elaine: A Apreensão da Forma da Cidade. Brasília: Ed. UnB,
1996.
________________________: Metodologia para Recolhimento de Dados de
Configuração Urbana em Sítios Tombados. Brasília: IPHAN DID, 2000
(mímeo).
- Silva, Eliel AmÉRico Santana: Ensaio sobre a Agradabilidade Visual da Cidade.
Dissertação de Mestrado. Brasília: FAU-UnB, 2000.
10) Por exemplo, em:
- Hillier, Bill: “Architecture as a Discipline”. JAR 5 / 1, March, 1976, p. 28-32.
- Hillier, Bill; Musgrove, John & O'Sullivan, Patrick: “Knowledge and Design”, EDRA 3,
1972.
- Rapoport, Amos (1969): “Complexity and Ambiguity in the Environmental
Design”. AIP Journal, vol.32, no1, Jan.:210-221.
Ver também:
- Holanda, Frederico :O Espaço de Exceção. Brasília: Ed. UnB, 2002.
- Kohlsdorf, Maria Elaine:“Breve histórico sobre o espaço urbano como campo
disciplinar”, Farret, Ricardo: O Espaço da Cidade. São Paulo: Ed. Projeto,
1985. ________________________: Ensaio sobre o Pensamento
Urbanístico. Brasília: CIORD-UnB, 1994 (circ. rest.).