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A PRESENÇA DE CAMILLO SITTE *

Maria Elaine Kohlsdorf


* Brasília, fevereiro de 2005. Trabalho aceito no XI ENA Encontro Nacional da Anpur
(Salvador, maio de 2005).

Resumo
O debate sobre a cidade contemporânea se enriquece com revisita à obra
de Camillo Sitte (1843-1903). Geralmente associado às discussões de estética
urbana de fins do século XIX, seu olhar revela-se com maior amplitude na atual
circulação de idéias a partir de nova leitura de Der Städtebau traduzido por
Henrique (1992) e reflexões conduzidas por Collins & Collins (1980), Choay
(1965, 1980) e Andrade (1992). Tais autores indicaram aportes conceituais,
teóricos e metodológicos de Sitte para além de sua influência no urbanismo da
primeira metade do século XX e no urban design desenvolvido a partir dos anos
1950.
Centrada nas áreas públicas, a proposta de Sitte remete a indagações ao
atual contexto urbano e às práticas correntes de sua construção, vinculando
reflexão teórica e operacionalidade planejadora. A partir desse marco, observam-
se contribuições “sitteanas” para o atual debate sobre metodologias e estratégias
de intervenção voltadas ao papel da configuração do espaço público na formação
da cidadania. Examina-se a aplicação de seu pensamento à discussão das
relações entre percepção espacial cotidiana e representações para o
planejamento de futuras cidades, assim como da função da memória inscrita no
espaço na construção da história individual e coletiva do sujeito.

IntroduÇÃO
Procurar a presença de Camillo Sitte na circulação de idéias sobre a cidade de
hoje traz inevitáveis comparações entre o seu e o nosso fin de siècle. Em ambos,
a questão urbana ocupa o centro do palco cotidiano: assim como havia cidades
em enormes mutações na Europa que se industrializava no século XIX, hoje
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assiste-se ao reinado do urbano na atual ordem mundial da globalização. Ambos
caracterizam-se por incertezas quanto ao futuro desconhecido, inconformidade
com os processos do presente e efervescência de debates sobre o passado. Então
e agora, olhares atravessam ou ficam retidos em espessas névoas de sintomas,
procurando entender, afinal de contas, o que está acontecendo.
Apresentações do olhar de Camillo Sitte geralmente o evocam por sua nostalgia
da cidade antiga e pelo romantismo das teses que defendia. Sitte nostálgico
encabeça a “corrente culturalista” proposta por Choay (1965), acompanhado por
Ruskin, Willian Morris, Howard e Unwin. Ele não teria entendido mudanças sociais
profundas ocorridas a partir da Revolução Industrial, tratando como desordem a
nova ordem por ela trazida às cidades. Logo, a presença de Camillo Sitte não
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teria ultrapassado o lamento devido à perda da cidade como lugar da cultura.
A maioria dos debates sobre sua obra mostra Sitte romântico e reduzido à
defesa do pitoresco, pictórico ou pinturesco, expressões que procuram traduzir
malerisch. O termo em alemão deriva diretamente do verbo pintar e não se limita
a associações ao romantismo; contudo, interpretaram-se menções daquele autor
às virtudes do malerisch como indício de um olhar conservador, ignorando a
possibilidade crítica que conviveu com o subjetivismo na escola romântica.3

Terceira opção revela influência sitteana no urbanismo do século XX, na contra-


corrente do corbusianismo e em movimentos reunidos no viés humanista do
pensamento urbanístico contemporâneo, como o organicismo, a escola de
townscape, o contextualismo, o urban design, antropopolis e o new urbanism.
Nossa revisita a Camillo Sitte é, evidentemente, mais um olhar possível sobre
sua obra. Não se pretende incursão biográfica ou historiográfica, mas procurar
contribuições do referido autor ao debate sobre estratégias de intervenção
voltadas ao papel da configuração do espaço público no processo de cidadania.
Vínculos entre essa discussão e o pensamento sitteano encontram-se no foco
deste último nas áreas livres públicas; para Sitte, cidade e espaço público eram
sinônimos, e a construção urbana resumia-se a organizar lugares de convívio
cotidiano e cerimonial:
“ Que a grande massa de moradias seja consagrada à labuta nesta
esfera, a cidade pode apresentar-se em roupas de trabalho, mas as
poucas praças e ruas principais deveriam poder apresentar-se em
trajes domingueiros, para alegria e orgulho dos cidadãos (...)” (Sitte,
1992:101).
Porém, deve-se abstrair de seu discurso o contingencial e nele investigar a
permanência de noções metodológicas aplicáveis a estratégias atuais de
planejamento urbano. Sitte indicou o caminho, ao propor que seu trabalho fosse
uma “estética prática e (servisse) aos técnicos da construção urbana como uma
contribuição útil” (ibid.,ibid:11). Mas sua obra não se concentrou na questão
estética; geralmente empregava o termo künstlerisch (artístico) remetendo,
assim, a certa possibilidade de discussão no universo estético. Por outro lado,
Camillo Sitte associava sempre a dimensão artística da cidade à utilização pública
de suas áreas livres.
As reflexões ora apresentadas resultam de análise da obra principal de Sitte, A
Construção das Cidades segundo seus Princípios Artísticos, e de autores
dedicados a seu estudo: George e Christiane Collins, Françoise Choay e Carlos
Roberto Monteiro de Andrade. 4

Collins & Collins (1980) são cuidadosos exegetas das idéias de Sitte, nele
resgatam características atemporais e o alinham a Vitruvio e Alberti, devido ao
caráter de compêndio de seu livro. Segundo esses autores, tal obra é também
um manual popular, onde se estabelecem noções que possuem força de preceitos
úteis para a ação projetual sobre a cidade, ao lado de princípios para uma teoria
do espaço antrópico. A permanência dessas noções é possível porque elas
ultrapassaram constrangimentos da circunstância histórica de Camillo Sitte,
tornando-se regras de organização espacial passíveis de aplicação em diferentes
tempos.
Reduções equivocadas das idéias de Sitte, em geral provenientes de sua
associação ao Romantismo, desmistificam-se na abordagem de Collins & Collins
(ibid.). Eles revelam um intelectual inconformado e crítico, lutando pelo
estabelecimento do planejamento urbano, por atribuições profissionais dos
arquitetos e por concursos públicos para projetos. Contradições da moldura
romântica, competentemente apontadas por Bresciani (2004), não devem impedir
apreciação do alcance do legado sitteano, especialmente quando se tratam de
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implicações que se iriam apresentar apenas em época posterior. Entretanto,
essas questões foram, até recentemente, manipuladas pelo pensamento que
impôs à construção das cidades uma visão de mundo tecnicista, necessária à
realização da ordem capitalista e da sociedade da era das máquinas. Na verdade,
a oposição racionalista a Camillo Sitte não se mostra menos distante da realidade
do que o foi o romantismo.
Assim, apenas em fins do séc.XX expôs-se claramente o banimento que
sofrera Der Städtebau e o ostracismo imposto a seu autor, no prefácio de
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Françoise Choay à elogiada tradução francesa de Wieczorek (1980:V):
“Precisou-se [entre outros] da destruição de suas paisagens, do
massacre de sua herança urbana, da poluição do conjunto de seu
território pela produção, sem medida nem crítica, de construções que
pretendem simbolizar a modernidade e o progresso, para que os
franceses se amedrontassem e preocupassem com seu quadro de vida.
[...] Der Städtebau de Sitte, que é, em matéria de urbanismo, um dos
textos pioneiros do séc.XIX, encontrou nos países francófonos destino
duplamente hostil. Foi truncado e falsificado, tanto por um primeiro
tradutor demasiadamente convencido da justeza das teses de Sitte
[refere-se a Camille Martin], quanto por detratores excessivamente
convencidos de sua falsidade [refere-se, provavelmente, à corrente
funcionalista no Urbanismo]”.
Choay encerra o prefácio destacando a atualidade do trabalho de Sitte (ibid:
IX):
“Estas páginas escritas em Viena, há quase cem anos [mais de cem
anos], aparecem singularmente esclarecedoras e talvez indispensáveis
àqueles que desejam hoje em dia interrogar-se sobre a natureza do
urbano ou se debruçar sobre os problemas do patrimônio construído,
da participação dos usuários na construção do quadro de vida, das
relações entre a técnica e a estética, ou como diria Alberti, entre a
comodidade e a beleza.” (tradução livre)
Na valiosa apresentação com que é brindada a tradução brasileira de Henrique,
Andrade (1990) referiu-se a Camillo Sitte como analista que iria “situar-se
criticamente em relação aos princípios que então norteavam a construção de
novos bairros ou novas cidades” (ibid.:4). Mencionou a proposta teórica de Sitte,
voltada ao desempenho do espaço urbano no cotidiano dos indivíduos e que, por
tal motivo, demandava observação a partir do seu interior: “Der Städtebau fala
da cidade como é apreendida pelo cidadão comum [...] como é vista por aquele
que transita por suas ruas, atravessa seus territórios ...” (ibid:4).
Analogamente a Collins & Collins (op.cit.), Andrade destacou desdobramentos
futuros dos postulados de Camillo Sitte nas primeiras décadas do séc.XX,
possibilitando prática urbanística com características distintas àquelas da corrente
racionalista dominante e, após a Segunda Guerra Mundial, na crítica ao ideário e
às realizações modernistas. Neste sentido o método de Sitte, compreendendo a
cidade a partir de seu interior, encontraria posição defendida por Bourdieu (1972) e
como indispensável à decodificação de práticas sociais em geral, em
Certeau (1990)
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termos de observador contido no observado.
Assim como os demais, Andrade (op.cit.) também considerou deturpações que
vitimaram o pensamento sitteano a partir de traduções problemáticas, estratégias
do embate ideológico, ignorância ou má fé. Das mais conhecidas, a tradução de
Camille Martin para Der Städtebau em 1902 impôs leitura equivocada de Sitte,
associado ao medievalismo porque se excluíram, nessa versão, exemplos do
barroco. Por outro lado, nela Martin inseriu discutível capítulo de sua autoria
sobre ruas, rendendo infindável polêmica com Le Corbusier e seus seguidores.
Portanto, revisita à obra de Sitte enseja visualizar contribuições fundamentais
e avaliar deformações a ela impostas em sua difusão. Vamos realizar esse
processo não como um olhar ao passado, mas uma celebração da presença de
Camillo Sitte nos dias de hoje.

Antecedentes
Camillo Sitte nasceu em 1843 em Viena e morreu com sessenta anos. Filho de
conhecido artista e arquiteto, educou-se em atmosfera de arte, beleza e
criatividade de certa forma inconformista, em período de rico debate na
Alemanha e na Áustria. Teve formação em arquitetura, história da arte,
arqueologia, fisiologia da visão, percepção espacial, anatomia e dissecação,
escreveu artigos de crítica de arte, realizou projetos edilícios, planos gerais,
centros cívicos, novos bairros e subúrbios. Chamado para organizar a Nova Escola
Oficial de Artes Aplicadas de Viena, situada na borda da área antiga da cidade, aí
estabeleceu sua casa e seu atelier, convertidos em ponto de discussões,
atividades artísticas e intelectuais como projeto e feitura de móveis, tapeçarias,
tecidos, pinturas e artesanatos realizados por ele, sua esposa e amigos, fato que
remete à Red House de William Morris. Foi tutor de jovens arquitetos, consultor
nos planos de Adelaide, Melbourne e Sidney, das prefeituras de Hamburgo e San
Francisco, e realizou projetos urbanísticos para pequenas cidades industriais
austríacas.
Nessa época, consolidava-se uma Europa industrial e os Estados Unidos
emergiam para o atual poder mundial a partir de sua industrialização; o modo de
produção capitalista impunha-se, atingindo países centrais e colônias recém
tornadas independentes. Alastrada a partir da Inglaterra em fins do séc.XVIII, a
Revolução Industrial tornara a urbanização processo irreversível nos países
europeus, desfigurava como jamais estruturas centenárias de suas cidades e
expunha contradições urbanas ameaçadoras à realização da nova ordem social.
Esse contexto efervescente produziu significativa circulação de idéias, mas
também um novo urbanista encarregado de organizar o espaço das cidades para
garantia de implantação e desenvolvimento da sociedade industrial. Pensamento
e prática sobre o urbano viram-se especialmente divididos, nos países de língua
alemã, entre a tradição artística (nutrida no período romântico por integração
entre artes visuais, música e literatura) e a engenharia (nascida das novas
tecnologias).
Camillo Sitte foi ativo nos campos do debate e do projeto urbano a ponto de
balizar uma escola de pensamento à qual se aliava um savoir faire de
planejamento urbano sob o mote “fazer com arte”. Ele tributava as idéias que
expunha à visita a antigos mestres (como Aristóteles e Vitruvio) e velhas cidades
que analisava em constantes viagens; seu livro Der Städtebau nach seinen
künstlerischen Grundsätzen nasceu em 1889 graças a reflexões secretas a partir
dessas lembranças. Hábito comum à época, anotações de viagens inspiravam
intelectuais e literatos, bastando lembrar as flâneries relatadas por Baudelaire e,
mais tarde, Benjamin.
O sucesso do livro de Sitte conduziu-o a integrar júris de vários concursos para
projetos de urbanismo e a contatar personagens importantes da época, como
Baumeister e Stübben, com quem travaria inesgotáveis debates. A essa obra
somou-se a revista Der Städtebau, dedicada a “todos os fatores implicados na
construção das cidades”, e não apenas à questão artística; ao falecer, preparava o
segundo volume de seu livro, “versando sobre planejamento urbano segundo
princípios científicos e sociais” (Collins & Collins, op.cit.:20).
O contexto em que viveu Camillo Sitte foi especial porque marcou a origem do
planejamento urbano moderno nascido, segundo Brix (apud Collins & Collins, op.
cit.), na Alemanha e daí expandido para o mundo inteiro. Suas bases fundaram-
se por Baumeister na Verein (Associação) de Berlin em 1874, em época onde os
escritórios de planejamento urbano alemães eram mais controlados por
engenheiros, topógrafos e geômetras do que em outros países. Nessa conjuntura,
Sitte apontava diversos problemas da produção urbanística:

a) Os planos urbanísticos representavam superfícies apenas em plantas


(Grundriss, Stadtplan ou Stadtanlage); Sitte propunha Verbauungsplan ou
Bebauungsplan (planos de massas), onde se indicassem as alturas que os
edifícios deveriam ter.
b) Ignorância do relevo do solo ou de outros eventos físicos preexistentes na área
considerada, restringindo o projeto urbanístico à precisão da representação
geométrica.
c) Restrição de elementos básicos do tecido urbano aos quarteirões
(Blockrastrum). Sitte considerava unidades morfológicas fundamentais espaços
públicos de praças e ruas, assim como pátios privados; para ele, ruas poderiam
ser retas (gerade, que entendia necessárias para o tráfego crescente) ou curvas
(krumme, tidas como adequadas a efeitos visuais mais estimulantes devido à
perspectiva interrompida).
d) Redução dos problemas urbanos àqueles provenientes do trânsito, tornando
meta principal dos planos a boa circulação de veículos. Neste ponto, Sitte
discordava de Baumeister e Stübben, admiradores da escola parisiense de
planejamento que se filiava às idéias de Haussmann. Eram para Sitte inaceitáveis
propostas, geralmente sustentadas por engenheiros, que convertiam praças em
entroncamentos viários e atravessavam bairros antigos por vias expressas.
e) Extrema ênfase dos planejadores alemães na higiene e na salubridade ajudou
a colocar a construção de cidades em mãos dos engenheiros, levando Sitte a
protestar diante do condicionamento do planejamento da superfície do solo à
infraestrutura de saneamento.
f) O verde na cidade era mais desenvolvido na Inglaterra do que na Alemanha,
embora nesta houvesse melhores condições habitacionais do que na primeira. Os
engenheiros alemães copiavam desenhos ingleses com superficiais efeitos
românticos, mas Baumeister, Stübben e Sitte alimentaram-se da tradição daquele
país, inserindo squares e parks no tecido urbano. Conheceram o movimento pelos
parques urbanos nos EUA, especialmente os parques conectados de Olmstead em
Boston (que inspirou o Cottage Anlagen de Viena); Sitte incluiu, em
DerStädtebau, um capítulo sobre vegetação na cidade.
g) O zoneamento como legislação urbanística, muito enfatizado pelos alemães na
época, não atraiu atenção de Sitte, especialmente as regulamentações de
Baufluchtlinie e Strassenfluchtlinie (alinhamentos de construções que implicavam
forte unidade às paredes das ruas), constantes do Handbuch (manual) de
Stübben. Para Camillo Sitte, os alinhamentos irregulares antigos eram
visualmente mais agradáveis.
A listagem anterior revela o quanto afloravam, na época de Sitte, questões
profissionais nas estratégias de organização espacial via planejamento urbano
que hoje ainda não foram superadas. Por exemplo, a carência de qualificação
para projetação urbanística de profissionais sem formação em arquitetura e o
encargo desses planos. Este último ponto levou a Verein de Viena (1877) a
reafirmar postura que, desde incidente havido com o pai de Sitte, aconselhava
concursos públicos para planejamento da referida cidade. Isso explica o caráter
personalizado dos edifícios da Ringstrasse em Viena, ao contrário da experiência
de Haussmann em Paris; segundo Collins & Collins (op.cit.), o caso vienense é
arquitetonicamente mais expressivo, pois espelha a impressionante linhagem de
Semper, Ferstel, Schmidt, Sitte e Otto Wagner, ao contrário do anonimato por
detrás da unidade haussmaniana. Porém, o impacto da nova imagem francesa de
metrópole na maioria dos escritórios de construção da Alemanha fomentou o
caráter ditatorial do planejamento urbano, com ênfase nos requisitos técnicos
para grandes escalas, severamente criticado por Sitte.
Embora seja aqui impossível empreender discussões profundas, os fatos
relatados tornam difícil sustentar distanciamento da postura sitteana das
características próprias à nova sociedade que emergia no séc.XIX. Atores desta
última moviam-se na cidade industrial, que necessitava desesperadamente de
configurações espaciais diferentes das preexistentes para que o jogo se
processasse. Essa incompatibilidade expressou-se na argumentação higienista ou
na veneração à tecnologia, sendo ambas justificativas usadas para imposição de
outros modelos às antigas estruturas urbanas. Estes foram, porém, discursos
manifestos da latente questão do controle social exercido através de padrões
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morfológicos, como demonstraria Foucault (1982) tempos depois. Camillo Sitte
jamais se omitiu neste embate de idéias e fazeres.

Atualidade de Camillo Sitte


Aportes de nossa revisita a Camillo Sitte para o presente são dificilmente
condensáveis, dada à riqueza de seu pensamento. Entretanto, o tema central de
sua obra encontra-se nas discussões sobre os rumos do atual processo urbano
porque o fio condutor das reflexões desse autor era o espaço público. Para Sitte,
cidade era sinônimo de lugares públicos.
Lamentavelmente, o espaço de ruas e praças percorrido por DerStädtebau é
divulgado menos nas possibilidades por ele exploradas, do que em reduções a
desempenhos complementares, que se contrapõem ao fundamentalismo da
racionalidade. Assim, a referência a Aristóteles na Introdução àquela obra reduz-
se a condição menor, tal como Sitte advertira (op.cit.:15):
“Apenas em nosso século matemático é que os conjuntos urbanos e a
expansão das cidades se tornaram uma questão puramente técnica,
(...) com isso, apenas um aspecto do problema é solucionado...”
Sitte contrapunha-se ao urbanismo tecnicista devido a seu abandono das
questões artísticas, da mesma forma que se indaga hoje por que a sensibilidade
contemplada pela arte não merece o mesmo status da razão defendida pelo
funcionalismo. Para aquele autor, construir cidades segundo seus princípios
artísticos significava faze-las com arte, como acontecera na maior parte da
história das cidades, quando essa realização associava tecnologias disponíveis a
referências expressivas e simbólicas.
Por outro lado, ele considerava a construção das cidades apenas um aspecto
do grande conjunto das artes, este compreensível através de dimensões
filosófica, psicológica, fisiológica e histórica, inclusive em suas origens. Tal
conjunto abrigava outras artes em seu interior, faceando a música, essencial para
Sitte e por ele admirada especialmente através de Richard Wagner e Beethoven.
Porém, o contexto centro-europeu do séc.XX relacionou esse viés do pensamento
sitteano à psicologia nacional e ao pensamento teutônico, ignorando
possibilidades de investigação que apenas recentemente foram retomadas.
O romantismo manifesta-se na rebeldia de Camillo Sitte às imposições do
maquinismo, mostrando-o crítico, porém com posturas jamais gratuitas, pois
provinham de avaliações de lugares existentes. Ele os analisava por meio de duas
abordagens, cuja articulação é indispensável ao exercício projetual: a) a posição
do observador cotidiano, fisicamente dentro do espaço considerado; b) o ponto
de vista do cientista ou do técnico, física e intelectualmente fora do espaço
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examinado. Sitte realizava ambas as observações colhendo informações
perceptíveis durante percursos na área considerada e utilizando mapa da mesma;
por outro lado, procurava ponto elevado para observar a cidade de cima, de fora
e em seu conjunto. Exemplo da necessidade de se associarem ambos os modos
de observação no processo de projeto encontra-se quando criticou a base circular
de praças (op.cit:105):
“Em uma planta, tais praças até se comportam de maneira sutilmente
regular, mas e na realidade? O que temos é o máximo de abertura da
visão sobre as linhas de tráfego (...) Ao contornarmos praça temos
sempre a mesma imagem perante os olhos, de maneira que nunca
sabemos ao certo onde estamos.”
Posicionando-se dentro do espaço, como observador desinteressado e no
cotidiano,
Sitte anunciou estudos de percepção espacial aplicados à projetação, que
seriam desenvolvidos a partir de 1940 e impulsionados duas décadas depois, por
pesquisadores como Gary Winkel, Kevin Lynch, Donald Appleyard, Terence Lee e
outros.
As análises de Camillo Sitte não são meras descrições, mas descobertas de
atributos fundamentais da configuração espacial; para tal, propunha “aprender
com a natureza e com os mestres” (op.cit:12) sem que isso significasse imita-los,
mas entender seus processos. Pouco adequados ao pragmatismo do
planejamento urbano dominante, tais procedimentos encontraram mais respaldo
nas ciências sociais do que no ensino de urbanismo, salvo raras exceções. Por
outro lado, eles incomodavam a rotina projetual, pois análises implicam
avaliações a partir de critérios, estes claramente expostos por Sitte e, hoje em
dia, com explicitação reclamada no embate entre diferentes atores envolvidos na
organização territorial.
A revisita a este autor revelou-o teórico do projeto urbanístico cuja
contribuição, porém, desvia-se da pretensão científica assumida pelo urbanismo
oficialmente praticado à sua época. Ideologizado, tal urbanismo assumia-se a
partir da fé na indústria, na ciência e na tecnologia que lhe outorgavam poderes
para “organizar a desordem” da cidade; serviu à construção da sociedade
industrial e pós-industrial, impôs-se no ensino e na enorme produção urbanística
do séc.XX, mas não logrou explicar os processos sociais urbanos.
Certos conceitos da obra de Sitte foram retomados no século passado visando
estabelecimento disciplinar do urbanismo e do planejamento urbano. Dentre eles,
destaca-se a idéia de espaço da cidade como espaço arquitetônico, tratado por
Sitte em analogia ao espaço da casa, do teatro, do mercado e do fórum. Essa
afinidade entre diferentes tipos de lugar concede continuidade ao campo da
Arquitetura, encontrando o continuum espacial formulado por Aristóteles e
Alberti, e abandonado a partir da divisão profissional trazida pela Revolução
Industrial. Legado da nova Divisão Social do Trabalho, a divisão entre espaço
edilício e urbano foi problemática no ensino e na prática projetual dos arquitetos
no século XX a ponto de gerar reações, em movimentos como os da Bartlett
School e de centros em Berkeley e no MIT. Nos anos 1960, palavras de Aldo van
Eick retomaram Camillo Sitte ao evocarem Alberti: uma cidade é como uma casa
e, esta, nada mais é do que uma cidade.
O espaço da cidade foi qualificado em DerStädtebau como vazio delimitado por
fronteiras físicas que possuem forma, conceito hoje amplamente aceito; as
questões urbanas condensavam-se na configuração espacial, descrita por meio de
elementos e relações morfológicas. Esse enfoque preservou-se ao longo das
incursões teóricas de Sitte, realizadas quase contemporaneamente a Patrick
Geddes e, assim como neste, comprometidas com a atividade projetual.
Referindo-se a esta como “construção de cidades”, manteve proximidade entre
planejamento e obra, que se distanciariam no ofício do arquiteto no séc.XX.
A teoria aplicada ao projeto formulada por Sitte significa desenho de passos do
processo de projetação urbana; ela não se desprende da finalidade propositiva
senão em momentos de abstração para inferência de características genéricas ou
típicas. Tal atitude seria retomada a partir dos anos 1950 em estudos tipológicos
em Arquitetura e Urbanismo, e na procura de leis de projetação do espaço
socialmente utilizado, nas décadas seguintes. Estas últimas seriam debatidas em
pioneiros congressos da EDRA (Environmental Design Research Association) e
defendidas em artigos, hoje clássicos, por Bill Hillier, Adrian Leaman e Amos
10
Rapoport.
Camillo Sitte não focou o caráter de arte da cidade dissociado de sua vida
coletiva, pois sua reflexão sobre espaços públicos amparava-se sempre pela
interação social possível nos mesmos; outros aspectos também comparecem nos
seis capítulos sobre Praças em Der Städtebau, como os funcionais, econômicos e
bioclimáticos. Isto levou Collins & Collins (op.cit.) a observar que sua sensibilização
atingiu a questão da participação popular no processo de organização espacial,
que ganharia corpo na segunda metade do século passado. Embora sem extensão
em ações públicas ou organização de grupos, as idéias de Sitte sobre como “fazer
com arte” cidades, pressupunham motivação de cada cidadão para contemplar
seu contexto espacial e, conseqüentemente, nestes encontrar estímulos no
cotidiano. Para tais estímulos concorreria a diversidade de soluções
arquitetônicas, mais prováveis se escolhidas a partir de opções em concursos
públicos, ao contrário do que ocorrera na Paris haussmaniana.
Outra questão geralmente associada a Camillo Sitte, a preservação do
patrimônio histórico, emergia no Romantismo assim como ressurgiu ao final do
milênio. Porém ele contribuiu à formulação desse problema distanciando-se da
melancolia de sua época, do apelo ao pastiche e do elogio à imitação. Conforme
já comentado, ele deixou claro que “aprender com os mestres” não significa
imita-los, mas compreender suas criações por meio de análise espacial das
mesmas. E sua crítica à cidade que abria mão de ser lugar da cultura para tornar-
se lócus do capital jamais pode ser entendida como discurso nostálgico, pois
construiu-se como resistência à morte da História, pretendida pela nova ordem
urbana. Finalmente, não corresponde divulgação das idéias de Sitte como
estando limitadas ao elogio do cânone medieval porque elas não se
constrangeram nesses limites; leitura breve de Der Städtebau basta para
encontrar sua abrangência de paisagens de diferentes tempos e culturas, como
da Grécia e Roma antigas e do barroco centro-europeu.
Entretanto, a transcendência de sua contribuição nesse campo reside no
encontro que se daria, muitas décadas depois, entre seu pensamento e idéias
que atualmente sustentam as ações de preservação do patrimônio cultural. O
resguardo de testemunhos espaciais justifica-se hoje por seu papel simbólico na
formação da memória social, esta considerada fundamental na construção da
história individual e coletiva do sujeito. Esse processo dá-se, principalmente, por
identificação dos referidos testemunhos em práticas do cotidiano, e não em
situações esporádicas, e deve abranger toda a população, como têm sido exposto
por vários teóricos, dentre eles Michel de Certeau (op.cit.). Assim com este último,
Sitte manifestou-se sobre a democratização da transmissão da memória social,
que necessitava de “antimuseus” e não de “cárceres da arte”:
“É necessário um grande esforço espiritual para superar-se o efeito
danoso (...) causado por monumentos encerrados nos cárceres da arte
chamados museus (...). É preciso ter em mente que a cidade é o
espaço da arte por excelência, porque é esse tipo de obra que surte os
efeitos mais edificantes e duradouros sobre a grande massa da
população (....). “(Sitte, op.cit.: 118).
Embora expondo posição contrária ao urbanismo oficial, que se consolidaria no
séc.XX, Sitte não falava sozinho. A interpretação capitalista do panorama urbano
da Europa industrial encontrava olhares críticos em sincronia ao de Camillo Sitte,
e ele concedeu aos mesmos a cristalização necessária naquele momento,
trazendo o planejamento urbano para os arquitetos (Collins & Collins, op.cit.)
“apenas quando todo o mundo sente e pensa mais ou menos em um mesmo
sentido” (Sitte, op.cit.:22).
A influência de Sitte nas gerações futuras, especialmente na Alemanha, é
amplamente aceita. Para Collins & Collins (op.cit.), trata-se de um certo olhar sobre
a cidade e sua construção que o precede mas que, a partir dele, adquire impacto
no planejamento urbano corrente e, por meio de Karl Henrici, Theodor Fischer,
Goecke, Stübben, Baumeister e Gurlitt, contagia outros países e a América do
Norte.
A influência de Sitte chegou às primeiras décadas do séc. XX e renasceu após
a segunda guerra mundial, período que define o desenvolvimento da pesquisa em
Arquitetura Urbana. Em quarenta anos da mesma, a presença de Camillo Sitte
está nas origens da escola de Townscape; vai ao encontro da interdisciplinaridade
para nutrir conceitos e a prática projetual; encontra posturas filosóficas
humanistas e projeta-se no ressurgimento da questão do patrimônio histórico
como atenção a bens de referência cultural dos povos. Muito embora desvios,
problemas e imperfeições que cercam essa produção, é inegável seu papel na
discussão tanto da cidade do mundo globalizado, quanto na busca de novas
formas de ação urbanística. E, neste processo, revisitas a Camillo Sitte
permanecem indispensáveis: mais do que à atualidade, talvez nos devamos
referir à necessidade de Camillo Sitte no pensamento urbanístico contemporâneo.

Notas e ReferÊNcias
1) “Reinado do urbano” refere-se a La Règne de l'Urbain et la Mort de la Ville
(Choay, FranÇOise. Paris: Centre Georges Pompidou, 1994).
2) Cf. Choay, FranÇOise (1965): L'Urbanisme utopies et réalités. Paris: Ed. Du Seuil.
3) Cf. Bresciani, Stella (2004): “Camillo Sitte entre a estética romântica e a eficiência
moderna”. Palestra em I Congresso Internacional de História Urbana.
Agudos,SP.: UNESP (mímeo).
4) Sitte, Camillo (1992, 1909, 1889): A Construção das Cidades segundo seus Princípios
Artísticos (trad.Henrique, Ricardo Ferreira). São Paulo: Ed. Ática. Traduções de
Henrique, Canosa e Wieczorek de Der Städtebau preservam melhor o
pensamento sitteano do que outras (como, por exemplo, a de Martin).
Referências bibliográficas:
- Collins, George & Christiane C. (1980, 1965): Camillo Sitte y el Nacimiento del
Urbanismo Moderno. Barcelona: Ed. G.Gilli.
- Choay, FranÇOise (1980): Prefácio à primeira edição de L'Art de Batir les Villes
(trad. D. Wieczorek). Paris: Editions l'Équerre.
___________________ (1969): The Modern City city planning in the nineth
century. New York: Ed. Braziller.
___________________ (1985): A Regra e o Modelo. São Paulo: Ed.
Perspectiva
- Monteiro de Andrade, Carlos Roberto (1992): Apresentação à tradução de Henrique à
Der Städtebau nach seinen künstlerischen Grundzätzen (op.cit.).
5) Choay (1965, 1969) e Collins & Collins (op.cit.) indicam romantismo em atitudes de
nostalgia (quanto à cidade pré-industrial) e de combate (ao urbanismo oficial)
associadas a Camillo Sitte. Collins & Collins (ibid.) comparam-no com Siegfried (em
Tannhäuser de Wagner) e fazem paralelo entre seu sonho de monumento
nacional e a Outlook Tower reformada por Patrick Geddes, em Edimbourgh.
Mas a Gesamtkunstwerk em que se baseava Sitte ainda não desencadeara, em
sua época, o pangermanismo que alimentou o nazi-fascismo, algumas décadas
depois.
6) Sobre o assunto, ver as demais obras dessa autora, citadas anteriormente.
7) Faz-se, aqui, referência ao observador contido no observado, exposto por Pierre
Bourdieu (Esquisse d'une Théorie de la Pratique. Genève: Ed. Droz, 1972) e
também presente em Michel de Certeau (A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Ed.
Vozes, 1994), como postura científica indispensável à decodificação das
práticas sociais.
8) FOUCAULT, Michel (1982): “Espaço, conhecimento e poder”. Entrevista a Paul
Rabinow. Skyline.
9) Essa última atitude foi expressa como “desinteressada” por Shaftsbury e,
depois, por Kant (apud BAstos, Fernando: Panorama das Idéias Estéticas no
Ocidente.Brasília: Ed. UnB, 1996). Sobre o assunto, ver também:
- Kohlsdorf, Maria Elaine: A Apreensão da Forma da Cidade. Brasília: Ed. UnB,
1996.
________________________: Metodologia para Recolhimento de Dados de
Configuração Urbana em Sítios Tombados. Brasília: IPHAN DID, 2000
(mímeo).
- Silva, Eliel AmÉRico Santana: Ensaio sobre a Agradabilidade Visual da Cidade.
Dissertação de Mestrado. Brasília: FAU-UnB, 2000.
10) Por exemplo, em:
- Hillier, Bill: “Architecture as a Discipline”. JAR 5 / 1, March, 1976, p. 28-32.
- Hillier, Bill; Musgrove, John & O'Sullivan, Patrick: “Knowledge and Design”, EDRA 3,
1972.
- Rapoport, Amos (1969): “Complexity and Ambiguity in the Environmental
Design”. AIP Journal, vol.32, no1, Jan.:210-221.

Ver também:
- Holanda, Frederico :O Espaço de Exceção. Brasília: Ed. UnB, 2002.
- Kohlsdorf, Maria Elaine:“Breve histórico sobre o espaço urbano como campo
disciplinar”, Farret, Ricardo: O Espaço da Cidade. São Paulo: Ed. Projeto,
1985. ________________________: Ensaio sobre o Pensamento
Urbanístico. Brasília: CIORD-UnB, 1994 (circ. rest.).

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