RODRIGO NATAN
2008
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Índice
Coma Metafísico
Antônia
A travessia
A Batalha da Humanidade
Quão cedo é?
O Disco Voador
Mais uma caminhada
Alice no País das Idiossincrasias
Esquecimento
Sé - São Bento
Pessoas A e B
Uma tarde má sucedida de bird watching
Texto 1
A última Flor do Sertão
Os amantes de Teruel
Texto 2
Parapeito
Viva a Monarquia
BLÉIN! Fragilidade da vida
Capítulo I
Carta de um amigo
Relatório psicanalítico de um suicida
De um rapaz extremamente apaixonado
Bipolaridade
Naturalidade
Um tatu brasileiro
Marduque
Declaração de Amor
Almir
Raquel Urbana
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Coma Metafísico
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aumentava. Durante estes dias, me tranquei em casa. Para Cassandra eu
disse que estava doente e gostaria de ficar descansando por uns dias.
Certo dia, quando não havia ninguém em minha casa, percebeu que
também estava perdendo minha audição, pois o vizinho veio reclamar do
volume da música que eu estava ouvindo e que para mim parecia estar na
altura normal. Fiquei extremamente preocupado, pois realmente a doença
só piorava. Decidi ir ao hospital.
Foi uma luta caminhar pelas calçadas escuras em pleno dia, mas
como se fosse uma madrugada sem lua. Já não sentia meus pés tocarem o
chão e o som dos carros e das pessoas era apenas um barulho distante e sem
sentido para mim.
Isso aconteceu há não sei quantos dias, quantos meses, quantos anos
e até hoje estou preso na escuridão de minha mente. A sensação de tempo
foi completamente alterada. Não posso acompanhar o correr dos dias, por
isso não sei há quanto tempo estou aqui. Pode ter ocorrido há um mês ou há
uma década.
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O desespero que tive no início já passou. Aprendi a conviver apenas
comigo mesmo. Criei um mundo próprio, paisagens próprias e pessoas
próprias. Até mesmo Cassandra continua comigo. Claro que sei que nada
mais são do que o resultado de minha imaginação, mas às vezes eles me
causam sensações semelhantes aos que me causavam antes de eu entrar
nesse coma.
E ainda vou além: imaginarei que passaram 100 anos desde meu
“coma”. Será que meu corpo ainda é vivo – se é que realmente tive um
corpo? Seria eu apenas uma mente, uma personalidade a vagar por um
universo infinito a criar seus mundos próprios? Será que realmente existem
outras mentes assim como eu? Seria eu o único ser existente, uma mente
solitária que passa a eternidade a criar universos?
O irônico é saber que tudo isto que declarei até agora será ouvido
apenas por mim mesmo. Toda minha história, desde que comecei a contar
sobre o sorvete até estas indagações, tudo isto eu disse só para mim mesmo,
pois não há ninguém mais aqui comigo. Se há alguém mais que ouviu tudo
isso, só pode ser alguém criado por mim mesmo neste meu mundo próprio
e infinito. Você que lê isto, é apenas fruto de minha imaginação?
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Bem, tais indagações ficam para outra hora, pois dentro de poucos
minutos casarei com Cassandra.
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Antônia
Antônia
Não que eu não ame mais Jaqueline – bem, na verdade ainda não tive
tempo de raciocinar se ainda a amo. Mas nunca brigamos e nos damos bem.
Marcamos com antecedência algumas viagens e alguns jantares em bons
restaurantes, onde temos tempo para nós mesmos e conversamos,
geralmente sobre nossos serviços.
Achamos por bem não ter filhos. Assim podemos ter mais tempo e
dinheiro para nossos investimentos. Aliás, investimentos que vão muito
8
bem. Apesar de hoje ser bem sucedido profissional e financeiramente,
continuo sempre estudando e participando de seminários e eventos
internacionais, onde aumento minha rede de contatos e aplicações.
Nos finais de semana Antônia lava e passa sua roupa para usar no
trabalho, limpa a casa que se empoeirou no meio de semana, faz a compra
semanal e vê TV. No domingo vai à igreja onde participa de um grupo de
pessoas solteiras de meia-idade, vê TV e se prepara para recomeçar a
semana de trabalho.
Antônia faz assim há 28 anos. Sente falta de seus irmãos que deixou
no nordeste há muito tempo atrás e de sua mãe que faleceu quando ainda
era adolescente e a grande mágoa de sua vida foi a decepção amorosa que
seu ex-marido deixou ao partir com todo o dinheiro que ela havia poupado
e nunca mais apareceu.
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A travessia
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A Batalha da Humanidade
Agora acredito estar a salvo por algum tempo nesta cidade, da qual
só tive tempo de conhecer uma pequena parte, até que alguma tribo a
encontre, tome suas casas e eu tenha que fugir no meio da noite pela
escuridão da rua antes que me achem, como tantas outras vezes já fui
obrigado a fazer. E, na verdade, o grande objetivo desta minha
peregrinação, desta minha viagem, é um dia encontrar um lugar que esteja
livre desta batalha brutal entre os sobreviventes humanos, poder avistar
alguém ao longe e caminhar a seu encontro com receptividade ao invés de
me esconder ou ao ser surpreendido por alguma pessoa, não mais lhe
alvejar com minha pistola antes que me mate. Pois só a partir de certa
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união, é que poderemos formar uma perspectiva de sobrevivência neste
mundo em que quase nada floresce.
Por anos a vida foi atacada. Tudo o que havia mudou em menos de
uma década. Restara apenas um mundo destruído, tal como está até hoje.
Cidades abandonadas, destroçadas pelas bombas; um ar radioativo para
respirar; climas que tornam certas regiões inabitáveis, seja pelo frio ou pelo
calor excessivo. Mas o pior de tudo, a mais cruel herança que a catástrofe
nos legou foi a batalha constante da humanidade.
Desde que a guerra acabou não se tem mais acesso à alimentação como
antes. Não existe mais o dinheiro, muito menos as lojas de conveniências,
os supermercados, nada. A raça humana regressou ao nível de caçadora,
onde se deve lutar pela comida e lutar para não ser a comida.
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Este incidente me fez caminhar por várias semanas bebendo água da
chuva, devorando insetos, bichos e qualquer fruta que via pelo caminho, até
encontrar uma pequena vila. Lá consegui água em abundância num tanque
e encontrei uma casa que nunca havia sido invadida. Ficava no fim de uma
antiga estrada, já quase totalmente encoberta pelo matagal. Ao arrombar a
porta, encontrei uma sala e cozinha peculiares. A arrumação me fez
lembrar de súbito a ordem que minha mãe mantinha em casa.
Nos meus sonhos pude voltar àquela mesma casa décadas atrás. A
mãe cozinhava um belo assado de carne com seu avental enquanto o
marido que acabara de voltar do trabalho retirava os sapatos em seu quarto.
As crianças brincavam sobre o tapete da sala e assistiam seu desenho
favorito na televisão. Mais tarde, a família completa, unida, sentava-se ao
redor da mesa e oravam, agradecendo o jantar. Após alguns meses tive que
deixar aquela casa e a vila, pois os insetos me começaram a me atormentar
dia e noite. Então acordei e percebi que o sonho se tornara pó por sobre a
mobília. Mas, afinal de contas, mesmo se a grande guerra não tivesse
acontecido, ainda assim a mesma família se tornaria pó e aquele sonho
continuaria perdido para sempre. O fim e o esquecimento são as únicas
verdades perenes para humanidade e mesmo que eu insista em sobreviver
nesse mundo destinado à destruição, sei que todo meu esforço me garantirá
apenas mais alguns anos de vida para então, em algum dia debaixo desse
céu encoberto e sobre essa terra repleta de destruição e morte, me juntar
aos bilhões de esquecidos que já provaram da única experiência de viver.
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Há não muito tempo encontrei uma pessoa com quem pude me
relacionar após muitas décadas. Era uma mulher jovem que havia se
perdido de seu grupo e estava com sua saúde debilitada. A encontrei no
centro da cidade na qual estava passando o inverno e, por estar muito fraca
e doente a levei para a casa que eu havia escolhido como lar temporário.
Não pude entender muito bem o que dizia, pois seu dialeto era uma
variante do antigo inglês. Porém, com o tempo começamos a nos
comunicar melhor. Seu nome era Belunska e deveria ter não mais do que
25 anos de idade. Ela me contou sobre sua tribo e me informou coisas que
muito me espantaram, pois eu não tinha noção de quão brutal e cruel os
humanos haviam se tornado. Com muita naturalidade e com certo orgulho,
disse que seu grupo mantinha confinado, como uma antiga fazenda de
gados, um grupo de humanos capturados, forasteiros e de tribos derrotadas,
que com o passar dos anos iam servindo de alimento para a tribo. Era uma
forma de manter comida estocada.
Mesmo sabendo que a prática do canibalismo havia se espalhado por toda a
Terra, ouvir aquilo me provocou náusea. Estive com Belusnka por cerca de
50 dias, até que se recuperou e tomou novamente sua busca por sua tribo.
Mais uma vez tento dormir com medo de ser morto durante o sono e
com a angústia de ter a mente dividida entre dois mundos, lembrando e
pensando em como, naqueles dias antigos, a humanidade não pôde
perceber o caminho a qual estava traçando, como, se era tão lógica essa
trágica desgraça mundial? Por que não mudaram drasticamente sua política
mesquinha e capitalista que nos levou à destruição? Por que insistiram no
sistema econômico tão frágil que não poderia ter levado a nada, senão a
esse mundo que hoje se destrói? Minhas esperanças de encontrar um
mundo bom, em que as pessoas vivam em união e felizes, mesmo com a
iminente morte, se resumem agora a essas poucas horas de sono.
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Quão cedo é?
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O Disco Voador
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- ‘Ai meu Jesusi! Ajuda nóisi..’ pediu a outra.
E foi assim no dia em que o disco apareceu no céu de São João da Boa
vista: o padre não se lembrou de tocar os sinos do meio-dia e, como não
ousava enfrentar a multidão ávida por uma explicação, ficara dentro da
igreja, rezando e espiando o círculo voador pelas janelas altas; a professora
deixou a aula de ciência e levou os meninos pro pátio coberto, onde era mais
seguro; o doido da praça que vivia nas esquinas gritando palavrões se
ajuizou. Parou lado a lado com o prefeito e discutiram indignados sobre a
aparição. O prefeito de tanto olhar pro céu mal notara que seu interlocutor
era o louco. E vice-versa. Toda a cidade estava nas ruas, na praça, nos
telhados. São João estava parada, esperando algo.
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Em um instante, a incrível e espantosa cena do invasor espacial se
tornara apenas o rotineiro céu azul que queimava com o sol sempre intenso
de São João de Boa vista. E por alguns minutos, o pessoal todo permaneceu
olhando, procurando pelo céu qualquer sinal. Começou o burburinho
indignado do povo que não aceitava que aquilo devesse acabar assim.
- Mas num é possível. Foi embora assim, é? Nem sequer matou o delegado.
- Oxee.. Mas pra que um bicho desse vem até aqui então, se é pra ir embora
avexado?
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Mais uma caminhada
Não se podia acordar tarde, não se podia chegar tarde. Não se podia
atrasar as contas, nem sumir, nem aparecer. Seu corpo não era bem vindo;
seu dinheiro, sim. Caçado constantemente.
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Alice no país das Idiossincrasias
Capitulo um
Alice não entendia porque a irmã tinha que repetir todas as palavras. Não
gostava daquilo, mas queira ou não, a ênfase dada pelas repetições acabava
fazendo-a se apressar. Assim sendo, armou-se de seu Ipod, sem nem ao
menos atualizá-lo, e saiu pela porta acompanhada da irmã.
‘Ora, o dia está relativamente bonito’ pensava, enquanto seguia sua irmã
que, apressada, já ia a dois ou três passos à frente.
Pois bem, chegaram ao parque e cada uma se arranjou da maneira que mais
lhe convinha. A irmã sentada num banquinho típico de jardim abrindo seu
livro e Alice apoiada numa árvore, enquanto se dava conta de que a bateria
de seu Ipod estava chegando ao fim.
‘Oh não, oh não! Em cima da hora!’, dizia em voz alta o coelho, enquanto
apressava o passo. Aquela cena curiosa chamou a atenção de Alice, que
passou a seguir o apressadinho, não sem antes estar certa de que sua irmã
estava interagida demais com a leitura para se dar conta desta escapadela.
Um pensamento rápido veio à mente de Alice, enquanto observava sua
irmã: aquela criatura politicamente correta, vestida de maneira social,
moral e contemporaneamente direita era uma idiota.
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bicho repentinamente parou. Olhou o relógio, praguejou, e entrou por uma
toca cuja entrada tinha exatamente sua altura. Ao chegar ali, o Sr. Coelho já
havia desaparecido, mas a porta da casinha estava aberta. Ora, era uma
casinha! Já não era mais uma toca!
‘Devo entrar por uma porta cuja permissão não me foi concedida?’
perguntava-se Alice - ‘..mas, veja só! Preocupada com uma ridícula regra
de etiqueta! Deve ser culpa desses genes que me impregnam!’
Lá dentro, percebeu que estava num tipo de hall muito peculiar. Hall
porque não tinha nada além de chão, paredes e teto. Peculiar porque não
tinha nada além de chão, paredes e teto. Alice gostou especialmente do
chão. Das paredes e do teto também.
Frustrou-se por não encontrar ali o tal coelho. Mas, eis! Parece que havia
naquele hall peculiar mais do que chão, paredes e teto, e Alice percebeu um
tipo de garrafinha em cima de uma mesinha. Ambos pequeninos, como já
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indica o modo diminutivo de minha escrita na frase anterior (Desculpe-me
o leitor mais sensato, mas devo explicar explicitamente tais detalhes,
levando em conta o tipo geral de leitor que esta estória terá. Acontece que
na conversação diária o modo coloquial distorce um pouco o significado
das palavras. Na utilização do diminutivo, por exemplo. Pois bem,
resumirei nosso bate-papo dentro deste parênteses).
Assim, tomou de uma vez quase todo o líquido, percebendo que era
realmente uma garrafa de Coca-Cola (Neste ponto, a história a qual
estamos nos inspirando segue por um caminho diferente. Você, leitor, sabe
bem: Alice diminui de tamanho, aumenta, chora e cria um mar de lágrimas.
Sinto muito se a partir de agora nossa estória parecer um tanto ilógica e
confusa. Mas não se importe com isso. A idéia principal não é o transcorrer
dos fatos, mas sim as questões morais, idiossincráticas, sociais e filosóficas
com as quais nossa heroína se depara. E é assim que vai ser. Se não lhe
agrada, pare de ler. Não estou interessado em ter muitos leitores. Se
estivesse, faria agora mesmo com que Alice encontrasse, nesse mar de
lágrimas, um marinheiro seminu de porte atlético e desenrolaria um conto
erótico. Mas não é isso que vai acontecer, conforme perceberá se continuar
lendo).
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indiscriminadamente. A cada linha da tabela nutricional, uma lágrima
maior e mais pesada rompia ao chão.
‘Salva?’ - pensou, ao ver que seus heróis não eram exatamente marinheiros
musculosos seminus. Eram três: um assemelhava-se muito a uma coruja,
mas vestido de maneira muito elegante, via-se logo que era francês; outro a
um rato, semblante humilde e conformado, de roupagem muito discreta e
gasta; e o terceiro a um gato, tão elegante quanto a coruja, mas tendo em
vista sua vestimenta, era inglês.
- ‘Ora’, disse o rato, enquanto mirava Alice dos pés à cabeça, ‘não me
parece uma beluga, pois estava se afogando. Deve ser algum tipo de
pintassilgo.’ (É muito sabido que os ratos têm inveja dos pintassilgos e até
se torna irrelevante mencionar isso, mas, tendo em vista a gama variada e
extensa dos leitores, é melhor esclarecer este fato) ‘O joguemos novamente
ao mar! Pois de que vale um pintassilgo? Eles cantam suas ditas belezas,
declamam seus pomposos poemas, e falam do amor inutilmente. Não nos
servem a nada! Matemo-no!’
- ‘Mr. Rato, não seja tão impulsivo’ retrucou o gato inglês, ‘os pintassilgos
são muito úteis, sim, nas nossas refeições, como prato principal, assim
como tua própria espécie. Mas, como conhecedor nato de espécimes, devo
advertir-lhes que isto que pescamos não é uma beluga, muito menos um
pintassilgo. É uma serpente! It’s a Snake!’
- ‘Nada disso, nada disso! Que beluga, que pintassilgo, que serpente?!’
disse enraivecida Alice - ‘Como vocês que nem mesmo podem discernir a
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que espécie pertencem querem me classificar? Pois, são todos animais e se
vestem como humanos! Vê-se logo um erro aqui. ’
- ‘Mademoiselle, por que dizes isto? Não sabes que são os humanos que se
vestem como nós, não nós que vestimos como humanos? Oh peine!’ disse
francamente o Sr. Coruja. (francamente é uma piada, em alusão ao franco-
sotaque do Coruja. Ha-ha)
- ‘Não se importe com ele, Srta. Serpente, o Sr. Coruja pensa ser sempre o
dono da razão, a voz da sabedoria. Com o tempo aprenderá que o melhor é
que suas palavras entrem pelo ouvido esquerdo e saia pelo direito...’
- ‘O que dizes, insolent ?’ gritou o Sr. Coruja ‘não é a toa que sou
considerado símbolo da sabedoria! ‘A coruja de minerva alça seu vôo ao
amanhecer!’ Tua raça felina sempre invejando nossos aguçados olhos do
conhecimento. l'anglais sot.’
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- ‘Eu’ - respondeu de pronto, o rato – ‘Eu sou o maior de todos. E quer
saber o porquê? Porque enquanto eles se fecham nas suas mentes
imaginando coisas abstratas e irreais, eu estou fazendo todos nós
continuarmos vivos em cima deste barquinho. E não me importo se não sei
filosofar, poetar, ou seja lá o que for. Trabalho, como, durmo. Assim vivo,
assim sou. Sei que posso ser comido por uma ave de rapina a qualquer
hora, mas, hora ou outra, todo mundo se vai, não é verdade?’
Como a cumprir tal despretensiosa profecia, irrompeu nos céus uma águia,
de grandiosa envergadura e magnífica imagem. Ao visualizar o rato
trabalhador do alto, iniciou um vertiginoso mergulho em sua direção,
sabendo ter facilmente a seu alcance a janta das crianças.
Capitulo dois
-‘Oh, oh’ pensou Alice. ‘Acho que serei o prato principal desses
bichinhos.’
Logo despertaram, e ao ver Alice, um deles lhe falou, com muita meiguice
típica dos nenês:
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- ‘Olá, moça. Muito bonito seu vestido xadrez. ’
- ‘Obrigada. Sua mãe me deixou aqui para tomar conta de vocês três’
respondeu Alice, tentando salvar sua pele. ‘Mas, como vejo que estão
muito comportadinhos, já vou me retirando. ’
E, antes que tentasse descer pela árvore, um deles lhe imputou um pontapé
no traseiro, que a fez voar pelos ares, caindo no matagal abaixo. Pois, as
crianças costumam tratar melhor sua alimentação do que a seus
responsáveis, e são sempre assim: à primeira impressão parecem meigos,
mas podem ser tão cruéis quanto um terrorista chinês.
Alice se deu conta que caíra num mato muito fechado, e tentou abrir
caminho. Já não tinha mais esperança de encontrar o tal coelhinho que
havia visto no começo da estória. E, enquanto ia refletindo sobre a
crueldade intrínseca das crianças, encontrou um personagem muito
estranho. Era uma lagarta que fumava maconha em cima de um cogumelo.
- ‘Ah, sim. Aceito suas desculpas. Saiba que também não sou oriundo desta
região. Venho da Holanda.’ disse Von Lafaiete, enquanto enrolava seu
baseado.
- ‘Holanda! Que maravilha! Ouvi muito bem a respeito de seu país. Deve
se orgulhar muito de sua nacionalização!’
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Saiba ainda de mais outra coisinha: os indivíduos, durante sua estadia neste
planeta, encontram-se em diversas situações e lugares, dos quais consciente
ou inconscientemente sugam as informações e costumes e criam assim, sua
personalidade e sua intelectualidade.
Imagine agora que você puxe seus MP3s de um único site. Um site que só
tenha certo tipo de música. Vamos supor, que só tenha músicas que estejam
no Top10 da semana. Ora, com certeza você perderá uma grande riqueza
musical!’
- ‘Oh, meu Deus!’ disse Alice, assustada – ‘imagine eu ter que escutar
Simple Plan e RBD pelo resto da vida! Seria um nojo!’
Ainda assustada com tal visão aterradora do inferno, Alice partiu dali,
enquanto Von Lafaiete acendia seu cigarrinho.
Então, por dentre as mais belas orquídeas surge ele, o poeta rouxinol!
Pousa sobre um galhinho seco, faz uma pausa e o silêncio é geral. Todos ao
redor o observam sem um pio. Assim, num momento mágico, o rouxinol
abre seu bico e derrama seu canto no coração de cada ouvinte.
Sua canção é tão harmoniosa que todos entram em contato com seu próprio
coração. Alice pôde ver o amor tão claramente que chorou. Não de tristeza,
nem de alegria, mas, simplesmente, de amor. As flores e plantas também
caíram em prantos, orvalhando-se. E assim continuou o rouxinol, contando
em suas notas tudo que sabia de verdade. E assim se faz um belo músico.
Não de habilidades técnicas, mas de saber mostrar por meio da música a
verdade que ninguém pode ver por outros meios.
Depois desta experiência transcendental, Alice, que agora sentia uma larica
desgraçada, continuou sua peregrinação, e com a ajuda de sua nova amiga
libélula, encontrou uma trilha. Enquanto seguia caminho, disse à libélula,
que vinha voando a seu lado:
- ‘Não sabia que o orvalho surgia dessa maneira. Sempre pensei que fosse
pela umidade relativa do ar. ’
- ‘As flores e as plantas choram os mortos de que são feitas. ’ Depois desta
explicação, a libélula pôs-se a seu próprio caminho, e deixou Alice seguir
em frente.
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Alice finalmente conseguiu sair daquela floresta psicodélica, e viu-se na
entrada de uma grande cidade. Suas ruas eram todas pavimentadas com
pedras, suas casas eram grandes e seus habitantes, peculiares: eram cartas
de baralho.
Capitulo três
- ‘Sr. Estóico, não entendo muito das palavras que dizes. Qual sua
ideologia?’
- ‘Ora, posso perceber com minha visão extra-coelho que não és uma carta
de baralho. Que fazes em meio a esta cidade?’ perguntou-lhe o filósofo,
enquanto ia a caminhar pela calçada.
- ‘Não, não sou uma carta. Estou de passagem pela cidade. Na verdade
estava à procura de um coelho, mas já desisti....’
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- ‘Ah sim, o coelho. Deixe-me explicar minha teoria sobre coelhos.
Acontece que... ’
- ‘Já ouvi sua teoria sobre coelhos’ – interrompeu-lhe Alice – ‘mas de fato
não a entendi. Assim como, imagino, todas as cartas também não a
entendam. ’
- ‘Sei bem disso. Minha filosofia não é para que cartas de baralho a
entendam. ’
- ‘Então por que paras a cidade com teus discursos, e dizes tais palavras
enigmáticas e sem sentido para a população? Que lógica há nisso?’
- ‘E que razão há para a filosofia além da vaidade? Mas isso não diminui a
verdade das minhas palavras. Claro que meu modo de colocá-las aumenta
sua profundidade. Teorias simples ganham aspecto grandioso com as
palavras corretas. Mas não minto ao público. Digo o que penso. Não que eu
ache que mereça tamanha admiração da parte deles, mas, já que me dão,
aceito-a de bom grado e permaneço neste ofício.
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Esquecimento
Eu pensava erradamente.
Mas de tudo que passou, o que guardo com mais fidelidade na mente
( ou seria no coração?) é um sorriso. Já se perde os cabelos que o
emolduravam, a pele e o olhar que o acompanhavam. A voz já se foi há
muito tempo. Mas tal sorriso continua a minha frente, ainda acelerando
meu coração toda vez que retorna, como uma assombração.
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Sé – São Bento
Saio do metrô e deparo com tanta gente aqui fora. Minha mania de
encarar todos os rostos que passam ainda me trará problemas. Mas as
manias são difíceis de deixar. Minhas pernas não conseguem acompanhar
meus olhos, que deslizam por cada olhar, cada face, cada carro, cada
parede.
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Pessoas A e B
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Uma tarde má sucedida de bird-watching
Nada melhor para fugir de uma vida estressante do que uma boa tarde
observando pássaros. Ou não.
De todos os dias em que saí para fotografar, acho que hoje foi o mais
infrutífero. Nem um único passarinho quis dar o ar da graça pra mim.
Ainda por cima me aparece um senhorzinho interessado em comprar o
terreno – meu campo de observação. Tive que ouvir calado que ‘seria bom
se transformassem todo aquele terreno em área residencial’! Um absurdo
dizer isso pra alguém que está com uma câmera fotografando a beleza
natural do lugar.
Acho que por pior que seja uma tarde de bird-watching, sempre se sai
com fotos de alguma coisa. Nem que seja macros de insetinhos ou, pior
ainda, o velho recurso do pôr-do-sol que está quase todo dia lá pedindo pra
ser fotografado e admirado.
Bem, de qualquer maneira, coloco aqui algumas fotos de hoje. Não são
boas, mas são genuinamente o resultado de uma tarde má sucedida de bird-
watching.
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Texto
Não que eu tenha algo contra eles, mas esses textos, muitas vezes
mal formulados geralmente têm sua autoria falsificada! Ora, é óbvio que a
maioria não é de Jabor nem do Veríssimo, e sim de algum insono que quis
ter seu textinho espalhado por aí.
Outro dia tive a surpresa de encontrar um texto falsamente atribuído
ao Veríssimo em que continha como idéia central da conclusão uma frase
retirada de um filme de Sessão da Tarde, o breguíssimo Noiva em Fuga!!
Alguma besteira falando sobre o amor. Imagine a reação do escritor ao ver
seu nome atribuída tal vergonha!
Tenho uma teoria sobre esse fenômeno da dissimulação tão grande de
emails com textos motivacionais. Perceba, geralmente são idéias formadas
que lhe impõe uma maneira de pensar de bases desconhecidas e obrigam
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sua aceitação. Quem quer que tenha escrito tais coisas, seja um insono
maluco ou realmente o Arnaldo Jabor, viveu experiências próprias para
chegar a tal conclusão. Por que aceitar uma idéia pronta ao invés de
racionarmos e construirmos nossas próprias opiniões?
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A última flor do sertão
E foi assim que se deu início à história mais triste já acontecida nesse
sertão. Foi quando se iniciou a fuga de São Pedro da Boa Vista. Metade se
foi, metade ficou. Quem ficou, ficou mesmo era porque já não tinha mais
força pra andar e sabia que ia morrer na estrada. Era velho doente, velha
reumática, criança desnutrida, mulher de barriga. Quem se foi, foi mesmo
porque não tinha coragem de ficar e ver tamanha mortandade e preferia
entrar numa caminhada desesperançada e desafiar a danada da morte. Mas
a verdade é que quem partiu sabia da dificulidade de resistir mais de dois
dias com as marretadas do sol na cabeça, inda mais sem um pingo d’água.
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havia de abandoná-la, não! Ela não o deixaria, ele sabia bem disso. Havia
de ficar ali!
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Então, encontrou a casa de onde vinha o choro interminável. Quanto
mais perto o choro ficava mais forte e mais alto. Uma casinha pequena, as
paredes quebradas e a porta entreaberta. Lá dentro, escuridão. Então parou
à frente da porta e a empurrou com cuidado. Nesse momento o choro
parou. Apolinário também. Não havia mais som algum vindo de dentro da
casinha. Apolinário correu de volta pra casa sem olhar ao redor.
Sentou-se ao lado da mãe, gelada, que já não respirava. E lamentou-se por
ter perdido o seu último momento de vida. Durante a madrugada ouviu
berros de bezerro vindo de fora. Mas esperou até amanhecer para sair de
casa.
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frente, por que conhecia o caminho, as mulheres e os mais velhos iam atrás
dele e os mais moços iam lá atrás.
- Mãe morreu, ficou lá atrás, disse Apolinário.
- Pai é aquele ali da frente, respondeu Cidinha.
- Pra onde ta levando a gente?
- Diz que é pra terra do padim Ciço. Diz que é longe por isso nem falar a
gente pode, que é pra não gastar saliva.
Apolinário se calou, mas ia olhando Cidinha com o olhar de lado.
- Quer água? Cidinha perguntou.
Apolinário balançou a cabeça e Cidinha estendeu a garrafinha de coca-cola
com dois dedos de água. Ele bebeu meio dedo e devolveu.
O grupo parou novamente, na cidade de Passo Raso, já com três pessoas a
menos, que ficaram pelo caminho. No fim da tarde Cidinha dormiu no colo
de Apolinário, que apesar de se esforçar pra permanecer acordado e ficar
olhando aquela beleza toda, adormeceu.
O sol ia fazendo sua curva pelo céu mais azul de que um dia já vira,
e não agüentando mais, Apolinário sentou debaixo de uma árvore seca, que
lhe dava certo frescor na sombra minguada.
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Quando o sono já vinha e seus olhos começaram a fechar, Apolinário viu a
sua frente uma figura qual nunca vira antes, era de beleza tamanha que só
não se comparava com a de Cidinha. Era uma flor amarela, solitária,
debaixo da sombra de uma rocha. Apolinário se levantou, como se
houvesse esquecido tamanho esgotamento, pegou a flor que facilmente se
entregara à mão sua mão, como se soubesse de seu belo destino, e impôs no
coração descarnado de Apolinário ritmo para que recomeçasse seu
caminhar, não mais à procura de sobrevivência, mas de Cidinha.
No meio da tarde, Apolinário e sua flor passaram pelo corpo de Antônio
das Lamparinas e antes do crepúsculo, chegou à cidadezinha de
Ermengardo Quarana. Lá estava o povo de Terra Bonita.
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Os amantes de Teruel
Ele implorou mais uma vez, dizendo que estava morrendo e desejava
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um último beijo. Mas ela novamente negou. Após ouvir isto, DIego não
suportou a dor da separação dele com seu amor e com um suspiro
morreu aos pés de sua amada Isabel.
Quando ela se deu conta que Diego havia morrido, ela tremeu.
Acordou seu marido, dizendo que seu ronco a havia assustado e queria
ouvir uma estória. Ele contou, e no fim, ela contou sua própria história. Ela
contou sobre Diego e como havia caido ao lado da cama.
- "Oh, sua miserável! Por que você não o beijou?!"
- "Para não trair meu marido.."
- "Ah sim, claro.." ele resmungou.." uma mulher elogiável."
Ela andou foi até a frente da Igreja e dessa vez, Isabel fez o que havia
negado na noite anterior e beijou Diego. Mas ao fazer isso, Isabel morreu,
caindo em cima do corpo daquele homem que ela havia amado.
50
Texto 2
Queira ou não, nós somos o que sai de nossas bocas. Então como
definir figuras que só falam merda? Que abrem sua maldita boca apenas
para sonorizar as mais mal escolhidas palavras nas piores ordens possíveis,
formando as menos bem-vindas frases nas horas mais inconvenientes?
Talvez seja o resultado de ser uma criatura impetuosa que fala sem
pensar duas vezes. Ou (pensando bem (Ops...isso é contraditório? (um
parêntesis dentro de um parêntesis sem ser equação matemática é difícil de
se ver ( puxa, quanto mais parêntesis, mais o assunto se perde do inicial))))
seja justamente o resultado de se pensar duas vezes!! Pois tenho conhecido
pessoas que são um perigo quando pensam uma vez. Que eu nunca ouça o
que sai da boca delas ao pensarem duas. E muito menos esteja perto para
ver de que são capazes ao usarem em demasia sua precária massa cinzenta.
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Parapeito
É bem mais fácil pensar quando não se tem uma vida a se preocupar.
E por que se preocupar com a vida se ela não se preocupa
contigo? Ora, se um ajudante de confeiteiro não é bem quisto socialmente,
quanto mais o diretor da bolsa de valores!
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Viva a Monarquia!
Viva a monarquia!
Um grande passo na luta contra a corrupção indiscriminada no nosso
Brasil e a favor de uma melhor distribuição de renda, uma base política
sólida e unida a caminho de um único objetivo traçado pelo rei e seus
conselheiros.
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É um currículo invejável, com certeza e tendo em vista a linhagem de
herdeiros ao trono, seria o mais provável rei – é o que diz a ala direitista
da revolução. Mas a ala esquerdista, prefere que aproveitemos a
oportunidade dessa re-implantação da monarquia para criarmos uma
linhagem totalmente nacionalizada, sem a interferência dessa antiga
marca européia incrustada no coração do Brasil. Sendo assim, a opção
da ala esquerdista da revolução tem como sua escolha para novo rei
brasileiro:
Ela tem a vantagem de já ser conhecida pelo povo com o título de rainha
e ser muito querida pelo público em geral. E outra vantagem, é que de
brecha já nos imputaria também uma nova princesa, sua filha lésbica
Tammy!
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BLÉIN! A fragilidade de nossas vidas...
BLÉIN! Foi o barulho que fez Roberta parar e olhar para trás
enquanto cruzava a esquina da Av. São João com a Aurélia, percebendo o
infeliz acidente causado por um alicate que caiu do alto do elevado Costa e
Silva diretamente à cabeça de uma senhora que tbm passava por ali.
Contemplando por alguns momentos tal acontecimento, Roberta não
continuou andando e nem trombou ao cruzar a esquina com Romualdo, que
pediria perdão e a convidaria para tomar uma Coca, que se transformaria
alguns anos mais tarde na champagne de um grande casamento e uma vida
aparentemente feliz regada de amor e a alegria de dois filhos, Roberto e
Rodrigo que, consequentemente, não morreria naquele acidente de moto
enquanto estivesse indo para o litoral. Acidente, diga-se de passagem, que
só seria causado se Rodrigo não se distraísse com a buzina do caminhão em
suas costas BLÉÉÉIN!...
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Não... Pablo. Juan descobriria que era Gay ao ver o brilho dos olhos de
Pablo BLÉIN! Nasceria uma paixão!
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Capítulo I
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Pois bem. Sentei ao balcão e pedi uma garrafa. Enquanto esperava,
avistei, no canto de bar, aquele mesmo homem que eu havia admirado uns
meses atrás! Sentado na mesma mesa, à meia-luz e a caneca de chopp
como companhia. Olhar fixo e distante. Sua expressão inerte demonstrava
uma profundidade de pensamento e me incitava a uma curiosidade
tremenda. Seu cabelo escuro e a ausência de fios brancos denunciavam a
pouca idade, embora a profundidade estampada em seu rosto fosse típica de
um homem vivido e marcado de experiências de vida. Olhos enterrados
numa face bonita. Se não fosse esse ar melancólico e decaído, seria um
belíssimo homem: bonito cabelo levemente ondulado, olhos claros, lábios
carnudos e traços fortes, nariz bem definido, alto, de bom porte.
Aquilo me deixou ainda mais encafifado. Como é que ele conseguia fugir
pro bar com tanta freqüência? Ele não podia ter esposa, não é possível!
Minha vontade agora era de ir até lá e saber o motivo daquele olhar
profundo. Mas ainda não estava alto o suficiente para puxar conversa com
um estranho tão compenetrado em seu mundo próprio. Tomei mais uma
garrafa e fui.
Puxei uma cadeira e sentei a seu lado com mais uma garrafa e dois
copos, já que seu chopp estava no fim.
- ‘Também brigou com a mulher?’ – perguntei, enquanto sentia o álcool
fazer efeito, me desinibindo e fazendo-me sentir como o mais amigável dos
homens sobre a Terra.
- ‘Ahnn? Não, não...’ – respondeu, enquanto repentinamente saiu de seu
universo, focalizando seu olhar ao objeto mais próximo, a caneca de chopp,
como se quisesse disfarçar sua fuga mental. Com um meio-sorriso
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forçosamente estampado no rosto deu dois últimos goles na bebida e
desceu a caneca vazia sobre a mesa, enquanto eu enchia nossos copos.
Ele agradeceu pela cerveja, mas a princípio não parecia estar aberto
a conversas com bêbados como eu.
- ‘Sabe’ – continuei – ‘É a segunda vez que te vejo aqui. Por que senta
sempre nessa mesa afastada?’
- ‘É uma boa mesa’ – respondeu o estranho, entre um risinho, desta vez,
espontâneo –‘É próxima à janela, onde posso observar a rua e as árvores da
praça balançando pelo vento da noite, além de ser o lugar com melhor
ventilação do bar. ’
- ‘Gosta de ver árvores balançarem?’ – perguntei, intrigado com tal
interesse estranho. Por que gostaria de ver árvores balançando?
- ‘Sim, gosto. É uma forma de se ver o vento, não é?’ E sorriu, enquanto
tomava os primeiros goles da cerveja.
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Depois de mais alguma conversa cujo teor não me recordo bem, visto
minha leve embriaguez, e antes de despedir-nos, perguntei-lhe quando
voltaria ao bar e ele me respondeu dizendo que seria provavelmente na
próxima sexta, sem saber que estava marcando um encontro comigo.
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Carta de um amigo
Caro amigo,
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esperava provocar no minimo uma leve discussao, para que entao pudesse
defender meu ponto de vista a todos ali presentes. Ja sabia inclusive o que
ia dizer. Mas a reacao geral foi nula. Consideraram minha resposta
imerecida
de uma refuta e continuaram a conversar sobre os tais empreendimentos
empresarias. Tu bem sabes que ser ignorado é ainda mais humilhante do
que
ser contestado.
Depois de alguns copos, ousei dar meu primeiro comentario. Nao lembro
bem o que eu disse. Era algo a ver com politica. Como nao sou bem
inteirado
a respeito, minha opiniao dessa vez provocou risos. 'Bem,' pensei, 'pelo
menos dessa vez eles me ouviram' e isso me impulsionou a continuar
falando,
cada vez mais entusiasticamente. Agora, todos na mesa davam sua irrestrita
atencao
a mim. Hoje, quando lembro do rosto deles ao me ouvirem, sei que
estavam se
divertindo com um pobre bebado. Tinha que ver a expressao de
contentamento
e de vitoria na face gorda e rica do velho sentado ao meu lado, pai de
64
minha
inefavel. Claro que, cego pelo alcool, nao pude perceber a real situacao.
Achava sim que tinha finalmente conseguido penetrar naquele sólido
circulo
social. Comecaram entao a me fazer perguntas, e logo me vi no centro
desse circulo. Todos falavam comigo, e a minhas frases provocavam risos
gerais. Agora sei que nao riam comigo. Riam de mim.
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Relatório psicanalítico de um suicida
- A esperar? Creio que não fui bem claro na pergunta. Quero saber qual
sua profissão:
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- O que quis dizer em sua primeira resposta, quando disse que passa os
dias a esperar?
Bom, creio que na realidade passei minha vida toda a esperar. Mas agora
estou à espera de um único momento. O momento de minha morte. E
outrora, desde o dia em que vim ao mundo, estive à espera de outra coisa. É
claro que não nasci esperando o dia de minha morte. Ninguém nasce
pensando em morrer. Essa idéia surgiu concretamente há poucos anos.
Bem, pode lhe parecer estranho, mas a verdade é que nunca soube o que
esperava. Quando criança, nunca me senti completamente satisfeito e feliz.
Mesmo nos momentos de brincadeiras e alegria. Esperava que na
adolescência encontrasse alguma lógica na vida. Porém, a adolescência
passou e tampouco nela encontrei algum fator estimulante. Na verdade, só
encontrei mais decepções e vi-me tornar um ser desanimado. Hoje, como
adulto formado, já desisti de encontrar algo que trouxesse satisfação e
felicidade no viver.
Okay.
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É o último dia lá. Todas as crianças estão reunidas com seus pais para um
tipo de festa. Tem bexigas, doces e salgadinhos em cima de uma mesa. Eu
estou sozinho. Meus pais não chegaram. Estou com fome, mas tenho
vergonha de ir até a mesa. A professora me fez entrar nas brincadeiras, mas
eu não queria. Eu tinha que sentar em cima da bexiga e estoura-la para
ganhar um prêmio. Mas a bexiga não estourou e eu caí no chão e perdi o
prêmio. A professora agora quer que eu morda uma maçã pendurada numa
linha. Mas a maçã é muito grande e minha boca muito pequena. Chorei
enquanto tentava morde-la, mas ninguém percebeu, porque disfarcei.
Novamente não consegui e fui embora. Fui pra trás da escola. Lá tinha um
corredor gostoso. Tinha sombra gelada e não tinha ninguém. Encontrei uma
bexiga estourada na janela e mordi. É gostoso. Lá é bom. Minha mãe agora
chegou, e me pôs ao colo. Mas não me deixa mais morder a bexiga porque
é suja. Apesar de ter perdido os jogos e ter desistido das brincadeiras
ganhei um presente no final. Um brinquedo de plástico. Está escurecendo.
- Muito bem. Agora tente avançar mais alguns meses à frente e me diga o
que está acontecendo.
Acho que não tenho amiguinhos. Mas eu não preciso, porque sei brincar
sozinho. Ah, tem uma menina bonita lá. Ela tem o cabelo preto e um rosto
tão delicado! E ainda por cima um estojo mágico. Gosto de vê-la na aula de
dança. Eu não sei e não gosto de dançar. Mas sou obrigado a fazer a tal
aula. Prefiro desenhar. Tem um menino que senta ao meu lado e cospe
quando fala. Eu tenho nojo dele.
- Vamos agora avançar alguns anos na sua vida. Seus primeiros anos de
escola. O que está acontecendo?
Estou correndo atrás das meninas, por que elas gostam de mim. E eu não
gosto delas. Corro pra puxar o cabelo delas, de raiva. Uma menina loira me
deu muita coisa de presente. Colocou em cima da minha carteira. Tinha
cadernos, figurinhas e brinquedos. Joguei tudo no chão e ela chorou.
Peguei uma colega de sala olhando por dentro de minha bermuda quando
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eu estava sentado, fazendo lição. Tinha um olhar de desejo. Depois desse
dia comecei a usar cueca todos os dias. Tenho sete anos.
Eu gostava de apenas uma. Ela era bonita. Tinha a pele muito branca. Mas
um dia ela apareceu com um namorado. Das outras eu não gostava.
Eram boas. Na verdade, não muito boas. Na época não via muita lógica em
aprender aquelas coisas que não me interessavam. Sabia que depois de um
mês já teria esquecido de tudo. Acho que eles não ensinam bem. Eu aprendi
a não gostar de estudar.
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Foi fácil. Nunca tive dificuldade em conseguir emprego. Agora começava a
trabalhar e conhecer a sociedade adulta. E comecei a perceber que as
pessoas não mudam muito conforme se passa o tempo. Os adultos eram
como aquelas crianças da escola, só que maiores. O sexo ainda era um
ponto importante, mas agora não passavam a mão nas mulheres com tanta
imprudência como antes. E no tempo que tem para si mesmo, ou seja, dois
dias por semana, elas tentavam se divertir. Por certas vezes entrei nesse
jogo, mas não me senti satisfeito. Nem nas diversões, nem no trabalho.
Então parei de me divertir e de trabalhar.
- Durante esse tempo, encontrou alguma mulher que lhe fez sentir o amor?
É sim... encontrei.
Senti alegria e um sentimento totalmente estranho a mim nos dias que tive
minha amada a meu lado. Era como se ela emanasse um calor que aquecia
meu coração e fazia-me sentir vivo de verdade, tal como nunca havia
sentido antes. Todas suas características me agradavam, e senti prazer e até
alegria em certos momentos. Suas mãos, seus olhos, sua voz, quase tudo
nela me agradava.
- Quase tudo?
É... Quase tudo. Infelizmente, ela era uma pessoa, e por isso vítima da
exposição cruel a que o mundo submete. Havia certos aspectos nela que me
desgostavam, pois mostravam as facetas da desgraçada espécie humana. No
entanto, concedia-lhe certa tolerância, logicamente oriunda de meu amor.
Porque o amor faz-nos ser tolerantes.
- Este amor não foi forte o suficiente para lhe salvar a vida?
Não é questão de ser forte ou não. O amor não tem níveis. Tem tipos. Mas
se quer saber, nenhum tipo é capaz de me retirar deste estado de decepção e
profundo tédio, deste caminhar errante e melancólico, e me levar de volta à
procura insistente e inútil da felicidade.
- Não acha ilógico este modo de pensar? Não acha assustador imaginar
que você não existirá mais? Em lugar algum haverá um rastro seu. Eu, da
minha parte, acho imensuravelmente melhor existir, mesmo que seja nas
profundezas mais cruéis do inferno, do que não estar em parte alguma.
Acho muito mais razoável sentir as dores mais profundas do que não poder
sentir nada. Já tentou imaginar este fato? De você não existir?
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- E as pessoas que o amam? Sua família?
Não prestou atenção a que eu disse? Se não existirei mais, nada mais
existirá. Nem pessoas, nem família. Que diferença fará para mim, sendo
que não existirá o mim?
- Não acha que este modo de escape, o suicidio, revela covardia e medo? É
a forma mais fácil de fugir da vida e dos desafios que ela lhe apresenta.
Doutor, sinto lhe dizer que está redondamente enganado. Pois o suicida é o
ser mais valente e digno que pode haver. Tirar a vida de nossos próximos é
muito fácil. Tirar a própria vida é um ato que requer muita reflexão e
coragem. A maior e mais pura forma de coragem! E não é a bem dizer um
modo de escape. Geralmente a idéia do suicídio nao ocorre de uma hora
para outra, não ocorre em um único momento de desespero. Em alguns
casos, como no meu, é um planejamento que leva anos. O suicida não é
aquele que se sentiu pequeno demais neste mundo, mas aquele que evoluiu
sua alma de tal maneira que já não cabe mais neste mundinho.
- Pois bem. Creio que já finalizamos a consulta de hoje. Agradeço por sua
cooperação, Sr. Campos. Por favor, antes de sair, espere que lhe entregue
a receita de seu remédio.
Não hei de concluir este relatório com minha própria análise, pois quero
deixar esta brecha para que as futuras pesquisas possam chegar a um
consenso independente de minhas conclusões.
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De um rapaz extremamente apaixonado
A verdade é que cada vez que fecho os olhos surge a imagem que
faz recordar com tanta vivacidade nossos mais intensos momentos. E se
quer saber, hoje, apesar da tristeza que me mata, eu sorri. Sim, sorri
bastante. Pois enquanto passava por uma dessas esquinas, ouvi uma
música. Uma música que vinha de dentro dum barzinho, dum restaurante,
não lembro bem. Mas era uma música latina que me levou para aquele dia.
Lembra-se? Aquele dia do tango! Haha! Poxa, como foi divertido! Eu que
nunca gostei de dançar! Você me puxou pelo braço: “Dança comigo?” E
como poderia eu recusar? “Acompanhe minhas pernas” você disse. E eu
juro que tentei, apesar de não parecer! Você vestia um vestido preto e seu
cabelo estava amarrado. Lembra-se? A música... Lembro-me perfeitamente
do refrão: “Crei, que tu vida era mina e que tu me querias, como yo te
quiero a mi..” Era assim o refrão. E pela primeira vez eu dancei. E pela
primeira vez percebi como realmente queria que sua vida fosse minha e
vice-e-versa, mais ou menos como dizia a canção, como a dança
sincronizada.
Eu não sei, não sei... Fico tão preso no passado, no que deveria ter
acontecido, no futuro perfeito de nosso imperfeito pretérito que
simplesmente deixo de viver o presente. Também, de que me adianta agora
o presente? Se você quer saber, eu trabalhava e continuava nesta vida
simplesmente para poder te ver mais um dia. Para saber que você existia e
estava ao meu lado a cada momento. E de que me adianta agora
sobreviver? Para gastar o fruto de meu trabalho na sorveteria, talvez? Eu
não gosto muito de sorvetes. Mas eu amava dividir aquele sundae com
você! Ah, lembro que sempre iamos àquela sorveteria com o toldo
amarelo, assim, em cima da calçada. E pegavamos a mesa que ficava mais
de lado, porque era a única em que batiam os raios de sol. Ficavamos um
tempão por lá enquanto nossos sundaes derretiam. Gostavámos de tomar
sorvete derretido! Pelo menos eu gostava, mas acho que nunca perguntei
para você se também achava aquilo gostoso.
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Será que foi isso que fez-nos separar? Será que eu lhe impunha
demais minhas vontades? Mas você realmente nunca foi contra minhas
idéias. Talvez tivesse muito respeito por mim, e não quisesse ser uma
companheira rebelde. Se você não gostava de alguma coisa, deveria ter me
dito! Eu, com certeza, sentiria ainda mais prazer em tomar o sorvete
enquanto ainda estivesse consistente, se fosse sua vontade. Eu teria sentido
mais prazer em fazer sua vontade. Posso jurar que não me sentiria lesado,
não estaria perdendo nada, ao contrário! Deus, devo estar enlouquecendo!
A verdade é que eu deveria ter dito as palavras certas que são tão
importantes nas horas erradas quando você estava se distanciando. Com
certeza, se eu tivesse mais discernimento, mais tato, faria com que tudo
fosse diferente, com atos, palavras, não sei. De alguma forma, com algum
apelo. A verdade é que eu não soube me expressar bem. Não soube tocar
seu coração quando mais precisava. A verdade é que deixei escapar toda
minha vida.
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E hoje me lembro de nossos primeiros dias apaixonados. A verdade
é que desde aquele momento alguma coisa já não ia bem, alguma coisa
começava a se formar contra nós, contra o que imaginávamos que seria
eterno. Alguma coisa que eu nunca entenderei o que era. Mas era um
caroço que crescia em seu coração desde aquele momento. Deve ser isso
que lhe fazia distante tantas vezes. Que lhe fazia vaguear enquanto
estávamos juntos. A verdade é que nunca descobri o que era esse caroço e
nunca consegui desfazê-lo.
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Bipolaridade
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Naturalidade
Uma estimativa: cem por cento das pessoas são movidas pelo sexo.
É possível culpa-los? Ademais, é necessário culpa-los? É culpável tal
situação tipicamente animal?
O mundo tem mudado a todo instante, mas não as pessoas. Veja por
exemplo a Internet. Nada mais funciona sem ela.
Mas por ora continuemos assim: falsidade por todos os lados! Viva a
hipocrisia, enfim! Quanto ao amor: que amor?? Aquilo em que pisaram?
Ah, sim! Aquilo ficou pra trás.
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Um tatu brasileiro
Era uma vez um tatu. Sim, um tatu daqueles com carapaça e focinho,
daqueles bem brasileiros. Esse tatu a princípio não tinha nome, mas
podemos nomeá-lo, talvez com o nome de Agrinaldo.
Sendo assim, era uma vez Agrinaldo, um tatu brasileiro. Tal como
qualquer tatu, adorava cavar buracos e meter-se por entre as terras alheias
construindo tocas e buscando furunfadas com tatus fêmeas. Não era
exatamente um bicho feliz, mas tampouco era um dos tristes.
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cada célula de seu corpo respirar o oxigênio da aventura, da liberdade, da
exultação do ser vivo. Como Armstrong ao pisar na lua; como Colombo ao
avistar a América; como Costeau em regiões abissais, como em 2001 uma
odisséia no espaço, Agrinaldo assumiu um papel quase divinal e respirou
um novo ar, avistou novas luzes, sentiu a pressão atmosférica aliviar seu
corpo e viu.
A estrada.
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Marduque
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cenário: lá no fim da rua, onde o asfalto tocava o horizonte e dava a
impressão de entrar por aquele quadro multicolorido, um ponto começou a
partir em sua direção. A princípio, era pequeno demais para entender o que
era exatamente, mas conforme foi se aproximando, Marduque percebeu a
imagem de um cachorro que caminhava em sua direção, no meio da rua,
firme e constante, em sua direção.
Marduque não havia dito a seu colega, mas estava ansioso para saber
o que o cachorro faria, quando chegasse até ele. Ele tinha certeza que o
sonho voltaria durante a próxima noite. Pensou nisso durante os primeiros
minutos do expediente, e então se distraiu com seus números burocráticos,
tabelas e planilhas e assim ficou até as 18:00. Despediu-se de seus colegas
e de Elias com um breve “até amanhã” e foi para casa, passar por sua rotina
noturna novamente.
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No dia seguinte, Elias se encontrou com Marduque no ponto do café,
pontualmente as 7:45.
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O cão então pulou ao chão, caminhou alguns passos de volta em
direção ao sol, parou, olhou pausadamente para Marduque, e disse:
- Vamos?
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Declaração de Amor
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Peço-lhe que acredite e, se não for assim, que me prove! Estou
disposto a ser provado como um fiel é provado por seu deus. E o que sinto
nada mais é que uma devoção sincera e profunda pelo amor, por ela, por
nós.
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Almir
- Não sei bem. Dizem que Silva foi usado séculos atrás para nomear as
pessoas que moravam nas selvas. Assim como o nome Costa para nomear
os moradores litorâneos.
Também não era singelo por sua aparência. Seu pai era um caboclo
de roça, sua mãe, cafuza. Almir se tornou algo como um típico nordestino
brasileiro: cor de formiga, baixo, rosto truncado, nariz bruto, pescoço rude.
Do ponto de vista de seus conterrâneos, não era feio, tampouco bonito.
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permanece até domingo vestindo trajes femininos. Passeia pela cidade, pelo
mercado, pela pracinha central,vai a igrejas sempre trajado dessa maneira e
adornado por brincos, colares e outros acessórios.
Nas primeiras vezes em que Almir pôs em prática sua mania de fim
de semana, a cidade se embasbacou. Chamavam-no de homossexual,
travesti, bicha, devoto do demônio e outras ofensas. Sua excentricidade
quase o fez perder o tão visado emprego. O padre não queria permitir que
participasse da missa dominical. Sua mãe não se importou. Na realidade,
nunca comentou a respeito. Seu pai não se mostrava feliz com a situação,
mas continuava o tratando da mesma maneira indiferente de sempre.
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Raquel Urbana
Aquele mundo já havia ficado para trás e não a excitava mais. Mas
conhecia o submundo dos entorpecentes, o sangue e a violência gerados
pela química, as mortes banalizadas. Também sabia como grande parte da
população faz parte desse jogo. Um jogo infantil onde todos fingem não
usar, mas sabem que todos usam.
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