A RESPONSABILIDADE
CIVIL DO ESTADO POR
CONDUTA OMISSIVA
João Agnaldo Donizeti Gandini
Diana Paola da Silva Salomão
RESUMO
Afirma que a doutrina e a jurisprudência brasileiras ainda não se pacificaram acerca da natureza da responsabilidade civil do Estado por conduta
omissiva. A divergência gira em torno do questionamento sobre a revogação tácita, ou derrogação, do art. 15 do Código Civil de 1916 (art. 43 do novo
Código Civil), frente ao art. 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988.
Examina dois posicionamentos: um defende a natureza subjetiva da responsabilidade do Estado por conduta omissiva, com base legal no art. 15 do
antigo Código Civil, restando, portanto, como de natureza objetiva apenas a responsabilidade por condutas comissivas. O outro defende a teoria da
responsabilidade objetiva tanto para a conduta comissiva como para a omissiva, aplicando-se, para ambos, a norma do art. 37, § 6º, da Constituição
Federal. Atualmente essa divergência alcança o Poder Judiciário e causa um entrave no curso dos processos, em razão das discussões sobre qual a
natureza jurídica da responsabilidade do Estado por condutas omissivas que geraram danos.
Por fim, traça algumas considerações sobre a responsabilidade civil privada e geral, uma vez que a responsabilidade do Estado é responsabilidade
civil, à qual são aplicados, todavia, princípios peculiares.
PALAVRAS-CHAVE
Omissão; conduta; novo Código Civil; responsabilidade civil – Estado; Constituição Federal; Código de Defesa do Consumidor.
N
vil evoluiu sob o prisma de seu fun- quele que não executou o seu dever2,
os primórdios da civilização, damento, baseando-se o dever de re- ou, ainda, a idéia de fazer com que
a responsabilidade civil funda- parar o dano não somente quando se atribua a alguém, em razão da prá-
va-se na vingança coletiva, houvesse culpa, esta denominada tica de determinado comportamento,
caracterizada pela reação conjunta do “responsabilidade subjetiva”, como um dever3. Juridicamente relevante
grupo contra o agressor, pela ofensa também pela teoria do risco, passan- seria a responsabilidade imposta
a um de seus componentes. O insti- do aquela a ser objetiva, sob a idéia àquele que, com sua conduta comis-
tuto evoluiu para uma reação indivi- de que todo risco deve ser garanti- siva ou omissiva, violou bem juridi-
dual, ou seja, passou da vingança do, independente da existência de camente protegido, gerando para ele
coletiva para a privada, onde os ho- culpa ou dolo do agente causador do uma sanção.
mens faziam justiça pelas próprias dano. Como bem salientou Serpa
mãos, fundamentados na Lei de A respeito, temos os comentá- Lopes: A violação de um direito gera
Talião, conhecida até hoje pela ex- rios de Carlos Roberto Gonçalves: A a responsabilidade em relação ao que
pressão “olho por olho, dente por den- responsabilidade objetiva funda-se a perpetrou. Todo ato executado ou
te”. O poder público, nesse caso, in- num princípio de eqüidade, existente omitido em desobediência a uma nor-
tervinha apenas para ditar “como” e desde o Direito Romano: aquele que ma jurídica, contendo um preceito de
“quando” a vítima poderia ter o direi- lucra com a situação deve responder proibição ou de ordem, representa
to de retaliação, ensejando no pelo risco ou pelas desvantagens dela uma injúria privada ou uma injúria
lesante dano idêntico ao que foi pro- resultantes – ubi emolumentm, ibi pública, conforme a natureza dos in-
duzido. onus; ubi commoda, ibi incommoda: teresses afetados, se individuais ou
No antigo Direito romano, pre- Quem aufere os cômodos (ou lucros), coletivos 4.
valeceu a noção básica do delito, no deve suportar os incômodos (ou ris- A responsabilidade se apre-
qual a vingança privada tornou-se o cos)1. senta sob vários aspectos, sendo ela
fator genético pairado sob a idéia pre- Quanto à indenização, impera de natureza civil, penal ou adminis-
dominante de responsabilidade, não o princípio da responsabilidade trativa. Este estudo se concentra na
se distanciando, com isso, das civili- patrimonial, ou seja, o lesante respon- responsabilidade civil.
zações que o precederam. de com o seu patrimônio pelos pre-
Numa segunda etapa, surgiu a juízos causados a terceiros. Deverá 1.3 CONCEITO DE
idéia da composição voluntária, pre- haver plena e total reparação dos di- RESPONSABILIDADE CIVIL
valecendo o entendimento de que reitos do lesado (restitutio in integrum),
seria mais racional a reparação do até onde suportarem as forças do A responsabilidade civil pode
dano por meio da prestação da poena patrimônio do devedor, ensejando ser conceituada sob um novo enfo-
e outros bens (pagamento de certa uma compensação pelo prejuízo so- que, observado pelo jurista Francis-
quantia em dinheiro, do que cobrar a frido. co Amaral: A expressão responsabi-
pena de Talião. Após essa fase, sur- No Direito brasileiro existiram lidade civil pode compreender-se em
giu a da composição legal, em que o três fases distintas. Na primeira, as sentido amplo e em sentido estrito.
ofensor era punido pelo Estado de Ordenações do Reino sustentavam- Em sentido amplo, tanto significa a
modo muito tímido, como a ruptura se no Direito romano, aplicando-o situação jurídica em que alguém se
de um membro, a fratura de um osso, como subsidiário do Direito pátrio, encontra de ter de indenizar outrem
ofensas ordinárias como violências devido à chamada “Lei da Boa Ra- quanto a própria obrigação decorren-
leves, bofetadas, golpes etc. zão” (Lei de 18 de agosto de 1769). te dessa situação, ou, ainda, o insti-
A evolução do tema só ocor- A segunda fase concentrou-se no tuto jurídico formado pelo conjunto de
reu com a introdução, nos conceitos Código Criminal de 1830, que pro- normas e princípios que disciplinam
jus-romanísticos, da Lex Aquilia de manou com a idéia de “satisfação”, o nascimento, conteúdo e cumprimen-
Damno, que promanou dos tempos ou seja, o ressarcimento do dano, to de tal obrigação. Em sentido estri-
da República e sedimentou a idéia de usado até hoje. Já a terceira fase dis- to, designa o específico dever de in-
reparação pecuniária, em razão do tinguiu a responsabilidade civil da denizar nascido do fato lesivo impu-
valor da res. penal, concentrando a satisfação do tável a determinada pessoa5.
Com relação à culpa, há algu- prejuízo decorrente do delito na legis- A amplitude do conceito de
mas controvérsias entre os autores a lação civil. responsabilidade civil revela dificul-
respeito de suas origens. De um lado, dades em se ater numa só definição,
sustentam que a idéia de culpa era 1.2 CONCEITO DE porque a doutrina tende a unir os con-
estranha à Lei Aquilia; de outro, afir- RESPONSABILIDADE ceitos técnicos e a realidade concre-
mam que esta lei não a negava, de- ta da obrigação de reparar os danos,
fendendo sua presença como elemen- O vocábulo “responsabilidade” independentemente de serem identi-
tar na responsabilidade civil (In Lege originou-se do verbo latino respondere, ficadas à causalidade, à teoria sub-
Aquilia et levissima culpa venit). ou seja, o fato de alguém se constituir jetiva ou à objetiva.
A teoria da responsabilidade se garantidor de algo. Por sua vez, tal O campo da responsabilidade
concretizou por intermédio da doutri- verbo latino teve raízes na palavra civil é amplo, pois não se trata de ins-
na, principalmente a desenvolvida spondeo, também de origem latina, tituto jurídico exclusivo do Direito Ci-
pelos juristas franceses Domat e fórmula pela qual se vinculava, no vil, e está bem inserido no corpo da
Pothier, responsáveis pelo princípio Direito romano, o devedor nos con- Teoria Geral do Direito, daí sofrer na-
da responsabilidade civil e que influ- tratos verbais. turais adaptações conforme aplicado
enciou quase todas as legislações A origem da palavra “respon- no Direito Público ou Privado, porém
fundadas na culpa. sabilidade” não nos auxilia no seu sempre mantendo a sua unidade jurí-
A responsabilidade civil do Es- tal ficar abaixo do padrão normal que ponsabilidade subjetiva, cuja base
tado poderá ser proveniente de duas se costuma exigir. Dessa forma, legal era a aplicação do art. 15 do
situações distintas, a saber: a) de pode-se afirmar que a responsabili- antigo Código Civil18; e outra, susten-
conduta positiva do Estado, isto é, dade estatal por ato omissivo é sem- tada por vários autores, que defende
comissiva, no sentido de que o agente pre decorrente de ato ilícito, porque a teoria da responsabilidade objeti-
público é o causador imediato do havia um dever de agir imposto pela va, aplicando-se, por conseguinte, o
dano; b) de conduta omissiva, em que norma ao Estado que, em decorrên- art. 37, § 6º, da Constituição Federal.
o Estado não atua diretamente na pro- cia da omissão, foi violado.
dução do evento danoso, mas tinha Para ser apurada a responsa- 3.2 A RESPONSABILIDADE ESTATAL
o dever de evitá-lo, como é o caso da bilidade do Estado por conduta SUBJETIVA POR CONDUTA
falta do serviço nas modalidades em omissiva deve-se indagar qual dos OMISSIVA DEFENDIDA POR CELSO
que este não funcionou ou funcionou fatos foi decisivo para configurar o ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO
tardiamente, ou ainda, pela atividade evento danoso e quem estava obri-
que se cria a situação propiciatória gado a evitá-lo. Assim, o Estado res- Para Celso Antônio Bandeira de
do dano porque expôs alguém a ris- ponderá não pelo fato que diretamen- Mello, deve ser aplicada a teoria sub-
co. te gerou o dano, como numa enchen- jetiva à responsabilidade do Estado
Celso Antônio Bandeira de te, por exemplo, mas sim por não ter por conduta omissiva. Para isso, ar-
Mello classifica as várias hipóteses ele praticado conduta suficientemen- gumenta o autor que a palavra “cau-
de comportamento estatal comissivo, te adequada para evitar o dano ou sarem” do art. 37, § 6º, da Constitui-
que lesa juridicamente terceiros; são mitigar seu resultado, quando o fato ção Federal somente abrange os atos
eles: a) comportamentos lícitos: a.1) for notório ou perfeitamente previsí- comissivos, e não os omissivos, afir-
atos jurídicos; a.2) atos materiais; b) vel. mando que estes somente “condi-
comportamentos ilícitos: b.1) atos ju- Primeiramente, importante res- cionam” o evento danoso.
rídicos, por ex.: a decisão de apreen- saltar que até a Constituição de 1946, Comentando o supracitado ar-
der, fora do procedimento ou hipóte- para a responsabilização do Estado tigo constitucional, ensina: De fato, na
ses legais, a edição de jornal ou re- era aplicada a regra do art. 15 do hipótese cogitada, o Estado não é o
vista; b.2) atos materiais, por ex.: o Código Civil de 1916, numa primeira autor do dano. Em rigor, não se pode
espancamento de um prisioneiro, cau- fase, regida por princípios privatís- dizer que o causou. Sua omissão ou
sando-lhe lesões definitivas 17. ticos e, noutra, por princípios publicís- deficiência haveria sido condição do
ticos, fundados na “falta do serviço”. dano, e não causa. Causa é o fato
3 RESPONSABILIDADE CIVIL DO A partir da Constituição Fede- que positivamente gera um resulta-
ESTADO DECORRENTE DE ral de 1946, adotou-se no nosso do. Condição é o evento que não ocor-
CONDUTA OMISSIVA ordenamento jurídico a teoria da res- reu, mas que, se houvera ocorrido,
ponsabilidade objetiva, para a respon- teria impedido o resultado19.
3.1 INTRODUÇÃO sabilização do Estado. Maria Helena Diniz também
Não há dúvidas quanto ao ca- entende que a teoria subjetiva deve-
O Estado poderá causar danos bimento da aplicação da teoria obje- rá ser aplicada aos casos de respon-
aos administrados por ação ou omis- tiva na responsabilidade decorrente sabilidade do Estado por conduta
são. Porém, nos casos de conduta de condutas comissivas, porém dife- omissiva, haja vista ter-se a necessi-
omissiva, há entendimentos diversos rentemente ocorre com relação às dade de ser avaliada a culpa ou o
no sentido de que esta não constitui condutas omissivas, pois surgiu na dolo. Ensina, ainda, que o art. 15 do
fato gerador da responsabilidade ci- doutrina e jurisprudência brasileiras antigo Código Civil foi modificado
vil do Estado, visto que nem toda con- uma polêmica discussão a respeito somente em parte pelo art. 37, § 6º,
duta omissiva retrata uma desídia do de seu cabimento, nos casos de da Constituição Federal20.
Estado em cumprir um dever legal. responsabilização decorrente de con- Corroborando os ensinamentos
Seria o Estado responsável ci- duta omissiva estatal. acima, a ilustre doutrinadora Odília
vilmente quando somente se omitir di- A respeito, há dois posiciona- Ferreira da Luz entende que: Isso não
ante do dever legal de obstar a ocor- mentos: um que segue os argumen- significa, necessariamente, adoção
rência do dano, ou seja, sempre quan- tos de Celso Antônio Bandeira de da tese objetiva com exclusividade,
do o comportamento do órgão esta- Mello, que defende a teoria da res- pois ainda existe a responsabilidade
ABSTRACT