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RESUMO

Atualmente, o termo “utopia” caiu em descrédito, especialmente devido à


proclamação de seu “fim”. Partindo desse panorama geral, investigamos o contexto em
que esse termo foi elaborado e o sentido com o qual foi usado pela primeira vez, ou
seja, remontamos o romance filosófico A utopia de Thomas Morus. Este livro traz um
universo de elementos ambivalentes. Morus deposita sua esperança no Novo Mundo
(em oposição à decadente Europa), critica o não envolvimento do filósofo na política, o
acúmulo de dinheiro, defende a inclusão de mulheres no sacerdócio, a liberdade
religiosa, a educação para todos e em língua nacional, a eleição não apenas de
representantes políticos, mas também dos sacerdotes. No entanto, na idealizada ilha de
Utopia, ainda existem escravos, a educação é de responsabilidade dos padres, o seu
progresso tem como gênese o contato com os europeus e o cristianismo é o ideal de
religião perfeita. Longe de avaliá-las em si mesmas, essas ambivalências surgem de um
profundo diálogo de Morus com seu tempo histórico. As utopias, como expressão de
subjetividades históricas, não são equivalentes, pois o anúncio de um lugar que ainda
não é, mas pode ser, sempre parte de uma leitura ética da realidade. Desta forma, as
utopias são, explícita ou implicitamente fontes inspiradoras de diversas práticas sociais.
Um mundo sem utopias é um mundo sem o humano. Assim, o fim das utopias é mais
uma utopia. Nas palavras de Vázquez, “utopia do fim da utopia”, utopia negativa,
impossível e irrealizável.

Palavras-Chaves: Utopia, Ética, Filosofia, Thomas Morus

ABSTRACT

Nowadays the word utopia dropped in discredit, specially due to the


announcement of its death. Considering this, we investigate the context this word was
created and the meaning it was used for the first time. For this reason, we analyze the
philosophic novel Utopia by Thomas Morus. There are a plenty of ambivalent elements
in this book. Morus has hope in New World (in opposition to the declining Europe),
criticizes the philosopher’s not-involvement in politics, money accumulation, he
defends the women’ inclusion in priesthood, religious freedom, education for everyone
in national language, politicians’ and priests’ election. However there are slaves in
Utopia island, education is priests’ responsibility, progress derivates from the contact
with European people and Christianity is the ideal of perfect religion. We do not intend
to analyze theses elements in themselves, we understand them as decurrent from the
dialog between Morus and his own time. As expression of historical subjectivity,
utopias are not equivalent, because the indication of a place that is not still but it may be
always departs from an ethics lecture of existing reality. Utopias are inspirations for
different social practices. A world without utopia is a world without the human. So
utopia’s death is also a utopia. In Vázquez’s words, “utopia of utopia’s death”, negative,
impossible and unrealizable utopia.

Key Words: Utopia, Ethics, Philosophy, Thomas Morus

Toda utopia é determinada, por seu conteúdo e orientação, pela


sociedade que ela repudia; cada uma das suas contra-imagens
histórico-humanas se refere a um determinado fenômeno do hic
et nunc histórico-social. Lukács
O presente texto compõe um estudo mais amplo cujo objetivo é investigar as
apostas, construídas historicamente, em relação à ciência e à tecnologia, especialmente,
aquelas que, a partir da modernidade, assumiram a forma de utopias e antiutopias. Um
estudo dessa natureza pode parecer paradoxal quando ainda ecoam os anúncios de “fim
da história” e “fim das utopias”. Que sentido teria estudar utopias e/ou antiutopias nesse
contexto? Não seria uma tarefa extemporânea e demodée? Ou representa algo próximo
do que significa “escovar a história a contrapelo”, no dizer de Walter Benjamin?
Nessa proposta, também nos defrontamos com um obstáculo semântico: o que é
utopia? Em termos etimológicos, utopia vem do grego ou que é uma partícula de
negação, e topos que é lugar. Literalmente, o termo significa “lugar nenhum”. Já no
dicionário de língua portuguesa, esse termo indica um projeto irrealizável, uma quimera.
Ora, esse sentido nos joga agora num duplo problema: além de parecer “extemporâneo”
nesse clima de “fim das utopias”, o nosso objeto de investigação remete ao que não está
em lugar nenhum, a sonhos irrealizáveis.
Por que homens e mulheres despenderam seu tempo em imaginar realidades
inexistentes e irrealizáveis? Por que eles sonharam situações que não se encontram em
nenhum lugar e nunca se encontrarão? Nosso estudo parece, cada vez mais, paradoxal,
pois, afinal, que serventia ele teria?
Em meio a tantos questionamentos, é importante reconhecer que a utopia tem
sua história (Vázquez, 2001) e, por essa razão, é prudente investigar o contexto em que
esse termo foi elaborado e o sentido com o qual foi usado pela primeira vez. Tendo em
vista esse objetivo, o presente artigo remonta o romance filosófico A utopia, publicado
em 1516, por Thomas Morus (1478-1535). Antes de abordar diretamente o conteúdo
desse livro, apresentamos algumas informações acerca da vida de seu autor e de seu
tempo histórico. O objetivo não é apenas oferecer um “em torno” que facilite a
compreensão do livro, mas ter a possibilidade de captar a relação entre a projeção
utópica de Morus e o seu posicionamento ético em face do contexto social do momento.
1 THOMAS MORUS: SER PARTICULAR NA UNIVERSALIDADE DE
UM TEMPO

Segundo Corvisier (1983), o humanismo renascentista foi introduzido na


Inglaterra com um certo atraso por intermédio de estudiosos que se demoraram na Itália.
Mas foi Thomas Morus o principal humanista inglês; é ao redor do governo absolutista
de Henrique VIII que se deu sua reflexão filosófica e sua intervenção política (como
conselheiro real e chanceler). Não é por acaso que Morus se refira a este monarca, no
início d’A utopia, como “o invencível rei da Inglaterra”, “príncipe de virtudes
incomparáveis”.
Para compreender melhor algumas idéias de Morus, é importante lembrar que o
Renascimento representou, em termos filosóficos, uma reação à filosofia escolástica.
Por sua vez, essa reação desencadeou um afluxo de idéias diversas, inclusive no âmbito
da religião cristã. Em virtude do poder que exercia a Igreja católica e dos abusos que
cometia (venda de indulgências, veneração de relíquias sagradas, controle de terras,
acúmulo de riquezas, cobrança de impostos a vários reinos...), desenvolveu-se a
“Renascença cristã”, movimento que teve origem, segundo Burns (1986), na ação de um
grupo de “homens piedosos” que mantinham escolas nos Países Baixos e na Alemanha
Ocidental. Esse movimento foi chamado de “Irmãos da Vida Comum” e tinha como
objetivo “...propagar uma religião simples de piedade prática, liberta do dogmatismo e
do ritual da igreja organizada” (Burns, 1986, p. 442). O intuito era fazer a Igreja
retornar a sua organização primitiva e erigir o ideal de imitação da vida de Cristo,
fazendo da Bíblia o fundamento único da crença.
De acordo com Ronan (1990, p. 64), esse grupo se empenhava na educação de
uma elite cristã a partir do novo aprendizado da Renascença. Por volta de 1500, esse
movimento se associou aos ideais humanistas e recebeu o apoio de vários escritores e
filósofos cristãos, como Erasmo e Thomas Morus. Diante da Reforma Protestante, a
maioria dos humanistas cristãos da época permaneceu submissa à Igreja, por acreditar
numa reforma sem necessidade de ruptura: “Inúmeros humanistas confiavam poder
provocar a reforma esperada retendo Lutero na Igreja” (Corvisier, 1983, p. 70).
Apesar de defensor da tolerância religiosa, Morus não aprovou a posição de
Lutero e dos protestantes, ele primava pela unidade da Igreja; de acordo com Pessanha
(1997, p. 9), Thomas Morus justificou a erradicação das heresias como medida para
manter a paz e a segurança do Estado: “Como chanceler, no entanto, jamais concordou
em perseguir os adeptos da Reforma, preferindo tentar convertê-los pela razão”.
A reforma religiosa teve um caráter peculiar na Inglaterra. A igreja inglesa não
tinha tradições de autonomia e estava obrigada a pagar impostos pesados à Santa Sé.
Havia uma dupla insatisfação dos ingleses: com o poder papal e com os rumos da
Reforma Protestante. No entanto, o papado buscava controlar essa situação que, a rigor,
tornou-se insuportável com o pedido de Henrique VIII ao papa Clemente VII para
anular seu casamento. Enquanto Clemente VII criava situações para adiar sua decisão,
Henrique VIII forçou, em 1531, a assembléia do clero a reconhecê-lo como protetor da
igreja inglesa; persuadiu o Parlamento a decretar uma série de leis transferindo os
impostos pagos ao papa para o tesouro real. Em 1534, tornou-se chefe supremo da
igreja da Inglaterra. Os bens da igreja foram vendidos e a nomeação de bispos passou a
ser uma prerrogativa real.
As decisões de Henrique VIII, segundo Corvisier (1983), não encontraram
resistência por parte do Parlamento e quase nenhuma por parte do clero. Morus foi uma
das exceções. O filósofo inglês pagou com a própria vida a defesa de que nenhum braço
secular poderia ditar as normas religiosas: foi decapitado em 1535. Nesse aspecto,
Morus esteve a contra-mão de seu tempo, pois, nos anos que se seguiram, os monarcas
passaram a arrogar para si o poder divino e, especialmente a partir da Reforma
Protestante, as perseguições religiosas multiplicaram-se.

2 NOS MEANDROS D’A UTOPIA

O subtítulo desse livro nos sugere seu conteúdo: “sobre a melhor constituição de
uma república e a nova ilha de Utopia”. De imediato, tem-se a impressão que o
humanista inglês se aproxima do esforço de Platão que, indignado com a condenação de
Sócrates, denuncia a injustiça da polis e idealiza, em A república, uma cidade
reformada, perfeita e feliz. Como veremos adiante, a suspeita da influência platônica
n’A utopia será confirmada para além do que sugere o subtítulo.
Nas primeiras páginas, Morus explicita que seu objetivo é narrar o relato de
Rafael de Hitlodeu sobre os costumes, as leis e as instituições do povo de Utopia, ilha
situada em algum lugar do Novo Mundo. Na verdade, Morus cria um relato imaginário
sobre o modo de vida dos utopianos e o atribui ao personagem fictício Rafael, que
supostamente lá esteve por cinco anos. No romance, os ouvintes de tal relato são o
próprio Morus e Pedro de Giles. Nesse ponto, já nos surge uma indagação: por que
Morus situou a Utopia no Novo Mundo? Não há razões explícitas para essa escolha,
porém, há um jogo de palavras bastante interessante: o continente Americano aparece
como o “Novo Mundo” em oposição ao velho continente europeu. Antes das
navegações e descobertas marítimas iniciadas no século XV, o Novo Mundo era, em
relação à Europa, “lugar nenhum”. As metáforas sugerem que a utopia relaciona-se
com o novo, ou seja, com aquilo que é “lugar nenhum”, mas se torna “algum lugar”.
Mas “algum lugar” pode ser um “lugar qualquer”? O trocadilho apresentado por Logan
e Adams (1993) entre utopia (lugar nenhum) e eutopia (lugar feliz) nos sugere não um
“lugar qualquer”, mas um “lugar feliz e afortunado”. Nas palavras de Morus (1997, p.
94), “...não existe em parte alguma república mais feliz...” que na ilha de Utopia. Em
termos históricos, essa interpretação se torna plausível quando lembramos que um dos
imaginários criados sobre o “Novo Mundo”, no século XVI, foi de que ele se opunha a
uma Europa decadente, apresentando-se como uma espécie de “paraíso”; seus
habitantes – os índios – eram simples, pobres, despudorados e não haviam sido tocados
pelo “pecado original”. A sua “descoberta” era a possibilidade de constituição de um
mundo utópico cristão, caminho do qual a Europa se desviara (Cf. Dussel, 1993).

2.1 Da Intervenção Política do Filósofo e das Causas do Roubo


Morus aborda dois assuntos polêmicos na primeira parte do livro: a conveniência
ou não da participação do filósofo no conselho de príncipes e a punição aplicada a
ladrões na Inglaterra.
No livro, Pedro Giles e Morus consideram que, devido a sua sabedoria, Rafael
poderia proporcionar aos príncipes ensinamentos sólidos e conselhos preciosos. Rafael
reage: ele não pretende ser “escravo de príncipes”, ter riquezas e poderes; além disso,
não acredita que seus conselhos interessem à maioria dos príncipes, preocupados apenas
com a guerra, com a arte da cavalaria ou com o próprio enriquecimento. Morus insiste,
pois acredita que a sabedoria poderia ser aplicada na orientação dos negócios públicos e
do bem-comum. Tendo como inspiração o ideal platônico de que a felicidade só será
alcançada quando filósofos forem reis e reis se tornarem filósofos, o humanista inglês
lamenta: “Como está longe de nós essa felicidade quando os filósofos nem ao menos se
dignam a assistir os reis com os seus conselhos!” (Morus, 1997, p. 40).
Como forma de endossar sua posição contrária à de Morus, Rafael introduz, na
conversa, o tema da pena de morte aplicada a ladrões na Inglaterra. Para orientar a
compreensão do tratamento desse assunto, lembramos que, na Inglaterra, a pena de
morte era imposta indistintamente tanto a ladrões como a assassinos.
A existência dessa punição não fez, segundo Rafael, diminuir o número de
ladrões. Abrem-se, nesse momento do relato, as concordâncias entre
os dialogantes sobre as causas do roubo. Eles criticam o estilo de vida da nobreza
européia e denunciam uma situação que acompanhou o início da produção industrial
têxtil na Inglaterra: a expulsão de agricultores do campo. Morus explica: os rebanhos de
carneiro são inumeráveis, “...devoram mesmo os homens e despovoam os campos, as
casas, as aldeias” (1997, p. 29). Espaços aráveis se convertem em pastagens. Os
agricultores são escurraçados de casa e lançados numa “vagabundagem forçada”;
roubam para sobreviver. As leis deveriam, segundo o filósofo inglês, proibir os abusos
que forçam as pessoas a viverem essa situação. Nesse contexto, um bom rei deve prezar
mais pela riqueza do povo que pela sua, pois “A dignidade real não consiste em reinar
sobre mendigos, mas sobre homens ricos e felizes” (1997, p. 45). Um governo justo não
permite que a um crime seja aplicado um castigo injusto e desproporcional.
Rafael acredita que aconselhar um monarca nessa direção seria como falar a um
surdo. Morus reconhece que, por mais difícil que seja, o filósofo não deve abandonar a
causa pública: “O piloto não abandona o navio diante da tempestade porque não pode
domar o vento” (1997, p. 47). Se não se consegue instaurar o bem, deve-se tentar
diminuir a intensidade do mal.
Esse diálogo permanece inconcluso, mas as denúncias que ele traz – a violência
que marcou o florescimento da manufatura de lã na Inglaterra e a injusta legislação
inglesa – tornaram-se clássicas e foram recuperadas por Marx (1985a), em O capital,
para mostrar os métodos nada idílicos da acumulação capitalista primitiva.
Em relação à primeira parte do livro, já nos é possível reconhecer que, por meio
de um relato imaginário, Morus se posicionou em face de sérios problemas que
acometiam seu tempo. Mas não apenas isso. Ele acreditava que, como filósofo, tinha um
compromisso com o bem-comum e, portanto, o dever de intervir politicamente junto ao
rei, mesmo que fosse apenas para minimizar esses males. Se a apresentação dos
argumentos de Rafael contra o envolvimento político do filósofo, assim como o caráter
não conclusivo desse debate, pode sugerir que Morus ainda não tinha plena convicção
de suas idéias quando da elaboração d’A utopia, isso desaparece no ano imediatamente
posterior a sua publicação, quando o humanista inglês aceita participar do Conselho de
Henrique VIII.

2.2 Do Modo de Viver dos Utopianos

...quanto mais os costumes estrangeiros são opostos aos nossos,


menos estamos dispostos a acreditar neles. Morus (1997, p. 81)

Na caracterização que faz da vida na Utopia, Morus oferece informações


detalhadas sobre essa ilha, assim como aborda temas bastante diversos. Não nos é
possível, nem é nosso objetivo, reproduzir todas as informações e temas abordados.
Nesse item, procuramos destacar alguns pontos que consideramos ser mais ilustrativos
da leitura ética da qual Morus parte para propor sua utopia.
Em seu relato, Rafael afirma que os utopianos põem em prática as teorias que
Platão expressa n’A república. Na Utopia, por exemplo, a propriedade é comum; não
falta coisa nenhuma a ninguém, pois a riqueza é igualmente repartida. Em outros
lugares, e Rafael refere-se à própria Inglaterra, as leis só servem para corroborar “o
princípio do teu e do meu”. O único meio de distribuir os bens com igualdade e justiça e
de fazer a felicidade do gênero humano é a abolição da propriedade privada. Por isso, na
república utopiana, vigora o princípio de posse comum. Ocorre aí um entrelaçamento
entre o bem particular e o público: “...todo mundo se ocupa seriamente da causa pública,
pois o bem particular realmente se confunde com o bem geral.” (Morus, 1997, p. 130).
A defesa da abolição da propriedade privada feita por Rafael parte de uma
análise da desigualdade reinante em sua época. Os sistemas republicanos conhecidos,
afirma Rafael, não passam de uma conspiração dos ricos a gerir do melhor modo os
seus negócios sob o título pomposo de república. Ele pergunta: é justo que um nobre,
um ouvires, um usuário, um homem que não produz senão objetos de luxo, inúteis ao
Estado, levem uma vida caprichosa e esplêndida por entre a ociosidade e ocupações
frívolas, enquanto um trabalhador, um carreteiro, um artesão, um lavrador vivam na
negra miséria, mal podendo alimentar-se?
Na Utopia, a avareza é impossível, porque o dinheiro não serve para nada. Os
utopianos acreditam que o dinheiro é o nervo da guerra. O ouro e a prata também não
têm o valor que lhes é comumente atribuído. A raridade desses metais indica não sua
valorização, mas sua inutilidade. Diferentemente do continente europeu onde o ouro e a
prata são adorados como deuses, esses metais são destinados aos usos mais baixos. Com
eles, os utopianos fabricam urinóis, cadeias e correntes para os escravos e marcas de
desonra para os condenados que cometem crimes infames.
O posicionamento de Rafael sobre a propriedade privada e sobre os metais
preciosos não deixam de ser surpreendentes se considerarmos que, com as viagens
ultramarinas iniciadas no século XV, as reservas de metais preciosos aumentaram
assustadoramente na Europa, fato que favoreceu a revolução comercial. A própria
doutrina mercantilista vigente preconizava que a prosperidade de uma nação deveria ser
medida pela sua reserva de ouro e prata. Desta forma, os costumes utopianos caminham
na direção oposta do Velho Mundo.
A agricultura é a atividade da qual nenhum utopiano tem o direito de se isentar,
sendo aprendida desde a infância, inclusive na escola. Essa aprendizagem é tanto
teórica, como prática. As escolas ensinam a teoria, e a prática é feita nos campos. Além
do trabalho na agricultura, todos devem ter um ofício pelo menos (ferreiro, pedreiro,
carpinteiro, tecelão...). As mulheres realizam trabalhos menos penosos, trabalhando a lã
e o linho, preparando e servindo as refeições. Geralmente, as profissões são herdadas de
pai para filho. Mas, se alguém sentir aptidão ou for atraído por outro ofício, poderá faze-
lo, o que implica fazer parte de uma família que exerce esse ofício.
Os utopianos possuem uma jornada de trabalho de apenas seis horas. Ao
contrário do que se pode pensar, argumenta Rafael, as seis horas de trabalho por dia são
não apenas suficientes para suprir as necessidades de consumo público, como produzem
para além do necessário. É importante lembrar que Morus escreve em um momento em
que os estatutos ingleses de trabalho que vigoravam seguiam a tendência de prolongar a
jornada de trabalho (Cf. Marx, 1985b, p. 260-345). Se as pessoas ociosas existentes na
Europa (“padres e religiosos vagabundos”, “ricos proprietários”...) trabalhassem,
assevera Rafael, a produção aumentaria e sobraria mais tempo para os “prazeres da
vida”.
Na Utopia, todos trabalham, com exceção de aproximadamente quinhentas
pessoas, dentre elas os jovens recomendados ao estudo das ciências e das artes, por
apresentarem aptidões e vocação científica desde a infância. Mas se um deles não
satisfaz à esperança pública, ele é transferido para a “classe dos operários”. Pode
ocorrer um movimento inverso, ou seja, se um operário adquirir uma instrução
adequada, ele “...fica isento do trabalho mecânico e sobe às classes dos letrados”
(Morus, 1997, p. 70).
A felicidade é o objetivo das instituições sociais em Utopia. Apesar de poucos se
dedicarem integralmente à “cultura do espírito”, a educação é um direito de todas as
crianças utopianas. Além disso, a grande massa de homens e mulheres dedica seus
momentos de repouso e liberdades às atividades intelectuais. Ao satisfazer as
necessidades individuais e sociais, busca-se possibilitar a todos “...o maior tempo
possível para libertar-se da servidão do corpo, cultivar livremente o espírito,
desenvolvendo suas faculdades intelectuais pelo estudo das ciências e das letras. É neste
desenvolvimento completo que eles põem a verdadeira felicidade” (Morus, 1997, p. 71).
Sobre o ensino das ciências, Rafael informa que ocorre na própria língua dos
utopianos. Esse dado pode passar desapercebido, ou mesmo incompreensível se
esquecermos que Morus escreve em um momento de progresso das línguas nacionais
(Cf. Corvisier, 1983). Para explicar o grande interesse dos ilhéus pelas letras e ciências,
Rafael apresenta um argumento revelador da mudança que se operava na concepção de
conhecimento de sua época: “Nas idéias utopianas, o Criador [...] expõe sua máquina do
mundo aos olhos do homem, único ser capaz de compreender esta bela imensidade.
Deus olha com amor aquele que admira essa grande obra e procura descobrir suas molas
e leis...” (Morus, 1997, p. 96). Pode-se observar aqui um embrião de um deslocamento
que será fundamental para a gênese da ciência moderna no século XVII: de uma posição
passiva de esperar a revelação divina, homens e mulheres passam ao papel de desvendar
a natureza[4], ou seja, tornam-se sujeitos do conhecimento.
Por mais paradoxal que se possa pensar, na Utopia, existem escravos,
responsáveis pelos trabalhos mais duros. Eles são prisioneiros de guerra capturados com
armas na mão, condenados à morte em outras nações, trabalhadores pobres de regiões
vizinhas que se oferecem voluntariamente para trabalhar, utopianos que cometerem
grandes crimes... Dentre eles, os mais miseráveis, exemplo de “pior degradação”, são os
índios, pois “Com efeito eles receberam todos os germens da virtude; aprenderam a ser
felizes e bons, e, no entanto, abraçaram o crime” (Morus, 1997, p. 99). Nesse ponto,
Morus expressa uma proximidade do ideal do colonizador europeu em relação aos
povos autóctones do Novo Mundo.[5]
Na Utopia, todos os cargos políticos, inclusive o príncipe e os magistrados, são
eleitos. Os padres também são eleitos e, entre eles, podem existir mulheres. Os
sacerdotes são os educadores da infância e da juventude, “para quem os primeiros
cuidados são para o ensino da moral e da virtude de preferência ao das ciências e das
letras” (Morus, 1997, p. 126).
Na ilha idealizada, há liberdade de expressão religiosa, apesar de o ideal de
religião perfeita ser o cristianismo. Todos os cultos convergem para a adoração da
“natureza divina”, e isto é significativo, como expressão da religiosidade natural do
panteísmo típico do Renascimento. O Estado não impõe nenhum credo e assegura a
tolerância religiosa, mas ela é limitada. Os materialistas, por exemplo, não são
considerados homens, tampouco cidadãos e, com efeito, não podem concorrer aos
cargos públicos e só podem sustentar seus princípios em particular. Há esperança de que
seu delírio ceda à razão.
Os utopianos valorizam os prazeres físicos, embora julguem superiores os
prazeres do espírito. Fogem dos prazeres a que se seguem dores mais vivas do que o
gozo que tenha proporcionado. Praticar virtudes severas, renunciar aos prazeres da vida,
sofrer voluntariamente a dor e nada esperar depois da morte em recompensa às
mortificações da terra seria loucura para os utopianos. Em última análise, reduzem todas
as ações e todas as virtudes à finalidade do prazer.
Morus dá a essa ética epicurista feições platônicas (apesar de cristianizadas),
pois foi Platão o seu filósofo favorito. Como nos lembra Corbisier (1988, p. 288), “...o
que ressurge no Renascimento, especialmente na Itália, em Florença, no que se refere à
filosofia, é o platonismo” e, acrescenta, “o platonismo que influenciou os ‘utopistas’,
Thomas Morus, Francis Bacon e Tomasio de Campanela, foi o platonismo político”.
É Platão o grande filósofo d’A Utopia. Platão é citado quatro vezes somente na
primeira parte do livro. No entanto, essa influência precisa ser vista com cuidado, pois,
como afirma Vázquez (2001), as utopias modernas, das quais Morus é o precursor,
antecipam uma vida melhor que é possível e realizável; já a sociedade ideal platônica
encontra-se fora do tempo (no plano da idealidade) e não pode realizar-se no “mundo
sensível”.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No final do livro, Morus afirma que, na república de Utopia, há vários “absurdos


nas leis e costumes”. O humanista inglês ficou transtornado com a narrativa de Rafael
de Hitlodeu. Por isso, declara: “...esta comunidade destrói radicalmente toda nobreza e
magnificência, todo esplendor e majestade – coisas que, aos olhos da opinião pública,
fazem a honra e o verdadeiro ornamento de um Estado” (1997, p. 134).
Morus nos deixa várias dúvidas: as palavras que brotaram da boca de Rafael são
convergentes com as suas próprias idéias? No início do livro, o Morus-personagem se
posiciona contra a existência da propriedade comum; para ele, a prosperidade não existe
em comunidade de bens, pois o cuidado com o próprio ganho motiva o trabalho. Rafael
retruca dizendo que se ele conhecesse a Utopia mudaria de opinião. Ao término do
livro, não sabemos se o inglês foi convencido; ele apenas conclui genericamente: “...de
um lado não posso concordar com tudo o que disse esse homem [...], de outro lado
confesso sem dificuldade que há entre os utopianos uma quantidade de coisas que eu
aspiro ver estabelecidas em nossas cidades. Aspiro, mais do que espero” (Morus, 1997,
p. 134). Do que se discorda? Do sistema de fazer guerras, do culto, a religião e várias
outras instituições, responde Morus. Quais são suas aspirações? Infelizmente, isso não é
explicitado no livro.
Além da concordância ou não com os argumentos de Rafael, podemos ainda
perguntar se existe alguma fronteira entre o Morus-personagem e o Morus-autor do
livro. O Morus-autor retrata fielmente a si na figura do Morus-personagem? Até que
ponto não é o personagem de Hitlodeu que é o fiador das idéias do Morus-autor,
restando ao Morus-personagem ser o motor dos diálogos ou mesmo encarnar, em alguns
momentos, desconfianças e dúvidas que compõem o imaginário social de seu tempo
diante de um relato tão espetacular?
Outro elemento instingante refere-se ao universo de elementos ambivalentes no
romance. Morus deposita sua esperança no Novo Mundo (em oposição à decadente
Europa), critica o não envolvimento do filósofo na política, o acúmulo de dinheiro,
defende a inclusão de mulheres no sacerdócio, a liberdade religiosa, a educação para
todos e em língua nacional, a eleição não apenas de representantes políticos, mas
também dos sacerdotes. No entanto, na idealizada ilha de Utopia, ainda existem
escravos, a educação é de responsabilidade dos padres, o progresso científico tem como
gênese o contato com os europeus e o cristianismo é o ideal de religião perfeita. Longe
de avaliá-las em si mesmas, essas ambivalências surgem de um profundo diálogo de
Morus com seu tempo histórico, eivado de compassos e descompassos.
Para Pessanha (1997, p. 9), os utopianos “...têm o governo que Thomas Morus e
os humanistas gostariam de ver adotado na Europa. Mediante sua apresentação como
uma sociedade imaginária, Morus se permitiu criticar os regimes políticos existentes,
sem correr perigo de censura”. Desta forma, o relato sobre o modo de vida na Utopia
expressa o desejo de uma reforma social. Por essa razão, Vázquez (2001) considera que
o futuro é o tempo da utopia. Em Morus, esse desejo toma a forma de uma sociedade
racionalmente planejada, tendo como inspiração o platonismo político, a busca do
prazer, harmonizados com os preceitos morais cristãos, assim como a aprendizagem de
técnicas e conhecimentos científicos.
Porém, o seu ponto de partida é uma análise rigorosa do presente, ou seja, o
anúncio de uma sociedade ideal, que não é “lugar nenhum”, mas pode vir a ser “algum
lugar”, implica uma reflexão crítica e ética sobre a realidade vigente: “A utopia vê com
um olho no futuro e outro no presente” (Vázquez, 2001, p. 355). Essa reflexão não
apenas se esforça por identificar os problemas sociais, mas também por captar as
tendências e alternativas existentes que podem ser potencializadas e efetivadas mediante
a ação humana. Quando não se levam em consideração as possibilidades geradas pela
realidade, facilmente se cai em projetos desejáveis, mas irrealizáveis. Nesse caso, a
utopia ganha um sentido negativo de utopismo: por não atender às circunstâncias e
condições necessárias a sua realização, o projeto utópico apenas alimenta uma ação
fadada ao fracasso, um voluntarismo cego.
O desejo de reformar a vida política, social e religiosa dos europeus do século
XVI fez d’A utopia uma matriz para outras tentativas de se retratar uma sociedade ideal,
como em A Nova Atlântica, de Francis Bacon (1561-1626). Ao avaliar o alcance desse
livro, podemos ainda pensar no seu resgate pelos socialistas utópicos do século XIX, a
referência que exerceu na construção de antiutopias ou desutopias que tanto inspiram o
medo do futuro, como Admirável mundo novo, de Huxley, e 1984, de Orwell.
Também lembramos que discursos utópicos vincularam-se a perspectivas
totalitárias e antidemocráticas, o que sugere que as várias utopias não são equivalentes.
É prudente conhecermos a leitura ética da realidade da qual parte uma utopia e
que lugar é esse que ainda não é, mas que ela anuncia que será. Em outras palavras,
“Não existe utopia pura, à margem da visão crítica e dos valores que a orientam, caso se
aspire a realizar na alternativa social a realidade criticada. Neste sentido, toda utopia
supõe ou traz entranhada certa ideologia” (Vázquez, 2001, p. 363).
Por fim, cabe-nos perguntar se estamos num tempo em que as utopias possuem
um atestado de óbito. Será, como nos canta Vezzoni em seus versos, que um mundo
novo, encalhado em algum lugar dessa estrada, o tempo esqueceu? As utopias inspiram
determinadas práticas ao conclamar a transformação de um presente que se coloca como
injusto; são formas de homens e mulheres exercerem sua insatisfação, seu poder criativo
e transformador. Um mundo sem utopias é um mundo sem o humano, encarcerado num
presente contínuo. Assim, o fim das utopias nos aparece como mais uma utopia. Nas
palavras de Vázquez (2001), “utopia do fim da utopia”, utopia negativa, impossível e
irrealizável.

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