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A DOUTRINA HUSSERLIANA DA CONSCIÊNCIA

Um estudo a partir das Investigações Lógicas (Vª) e das Meditações Cartesianas (Vª)

Everaldo Cescon1

RESUMO: Apresentação e discussão de três conceitos de consciência apresentados por Husserl, a partir da
análise da Quinta das Logische Untersuchungen e da Quinta das Cartesianische Meditationen. Nomeadamente:
a) a consciência como unidade fenomenológica real total do eu empírico, no fluxo temporal; b) a consciência
como autoconsciência, como a percepção interna das próprias vivências psíquicas; c) a consciência como
vivência intencional ou ato psíquico. Também se analisa como Husserl foge ao solipsismo transcendental elaborando o conceito de alter ego,
ou seja, de um segundo ego que, mesmo remetendo ao sujeito no que se refere ao seu sentido, acaba tendo uma
existência objetiva no mundo real. Husserl aborda o problema da experiência do outro e, assim, apresenta uma
teoria transcendental da experiência do outro, simultaneamente a uma teoria transcendental do mundo objetivo e
uma teoria transcendental do eu primordial.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia Contemporânea, Fenomenologia, Filosofia da Mente, Husserl,
Consciência

ABSTRACT: Presentation and discussion of three concepts of consciousness presented by Husserl, starting
from the analysis of the 5th of the Logische Untersuchungen and the 5th of the Cartesianische Meditationen.
Nominally: a) the consciousness as phenomenological total real unity of the empirical Self, in the time flow; b)
the consciousness as auto-consciousness, as the internal perception of the proper psychic experiences; c) the
consciousness as intentional experience or psychic act. It is also analyzed the way how Husserl rejects the
transcendental solipsism formulating the concept of alter ego, in other words, of a second ego that, even
remitting to the subject as far as its sense is concerned, it has an objective existence in the real world. Husserl
approaches the problem of the experience of the other and, thus, presents a transcendental theory of the
experience of the other, simultaneously to a transcendental theory of the objective world and a transcendental
theory of the primordial Self.
KEY-WORDS: Contemporary Philosophy, Phenomenology, Philosophy of Mind, Husserl, Consciousness

Introdução

Por muito tempo a consciência ficou sendo a terra de ninguém.


Os psicanalistas, sob a liderança de Sigmund Freud, desde o início do século XX,
enfatizaram os processos mentais inconscientes, considerando a consciência como mero teatro
de um script escrito em outro lugar. Preocupados com a compreensão e a cura das doenças
mentais, julgaram estar no inconsciente a primeira fonte de conflitos e desordens mentais.2
Os comportalmentalistas mantiveram uma atitude cética diante da consciência, que
não passava de uma câmara obscura. Liderados por John B. Watson, seu interesse inicial era a
experimentação com animais, que, sendo objetiva, eliminava a subjetividade dos estudos da

1 Pós-doutorando em Filosofia, Universidade de Lisboa. Orientador Prof. Dr. Pedro M. S. Alves. Bolsista
Fundação para a Ciência e Tecnologia, Portugal. Doutor em Teologia, Pontifícia Universidade Gregoriana, Itália.
Professor de Filosofia, Universidade de Caxias do Sul, Brasil.
2 Cf. Sperling, A. P.; Martin, K. Introdução à psicologia. São Paulo: Cengage Learning, 2003.
consciência, dos relatos introspectivos e das associações livres do inconsciente.3
Os cognitivistas estão interessados em saber como a mente estrutura ou organiza as
experiências - influência da Gestalt, que ressaltava, assim como Piaget, uma tendência inata
da mente de organizar a experiência consciente (as sensações e as percepções) em unidades e
padrões de significado. A mente dá forma e coerência à experiência mental. Durante as
décadas 60 e 70 do século XX, o cognitivismo assumiu a doutrina do computacionalismo que
pode ser resumida em três teses: 1) o cérebro é comparável a um computador digital; 2) a
mente é comparável a um programa computacional; e 3) as operações do cérebro podem ser
simuladas em um computador digital.
No entanto, nos últimos anos, segundo Bruner,4 o cognitivismo abandonou o
computacionalismo e passou a dar ênfase a aspectos que considerava esquecidos pela
revolução cognitiva, defendendo que originalmente era o significado, e não o processamento
de informações, o objeto central deste movimento. A questão da natureza da consciência
começou a ocupar o lugar central nas pesquisas em Filosofia da Mente e em Ciência da
Cognição, do qual os estudos de Jackendoff,5 Calvin,6 Dennett7 e Flanagan8 são marcos. O
notável desenvolvimento das neurociências alimentou a convicção de poder penetrar
facilmente na mente utilizando os mesmos instrumentos ou modalidades de investigação que
geraram tanto sucesso nas ciências físicas. Porém, uma compreensão autêntica da mente
continua sendo um objetivo distante. Se é verdade que numerosas experiências indicam uma
estreita correlação entre os nossos estados mentais e as atividades observadas em algumas
regiões cerebrais, também é verdade que tal correlação não nos diz substancialmente nada
acerca da relação causal existente entre os dois domínios de fenômenos.9 A correlação não
consegue explicar como de um conjunto de processos que acontecem impessoalmente dentro
dos neurônios cerebrais seguindo leis físicas se chegue a experiências subjetivas vividas em
primeira pessoa por um determinado indivíduo.
Embora muitos cientistas mantenham a convicção de que o computador seja um bom
modelo da mente humana, não podem ignorar as problemáticas referentes principalmente a
algumas características da consciência, como a subjetividade da experiência e a liberdade

3 Cf. Ibidem.
4 Cf. Bruner, J. Atos de Significação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
5 Jackendoff, R. Consciousness and the computational mind. Cambridge, MA: MIT Press, 1987.
6 Calvin, W.H. The cerebral symphony. New York: Bantam Books, 1990.
7 Dennett, D. Consciousness explained. Boston: Little; Brown, 1991.
8 Flanagan, O. Consciousness reconsidered. Cambridge, MA: MIT Press, 1992.
9 David Chalmers chama a este de “o problema difícil” [hard problem: “Why is all this processing accompanied
by an experienced inner life?” (1996, p. xii)] desqualificando as tentativas de explicação funcional (easy
problems). The conscious mind. New York: Oxford University Press, 1996.
implícita no conceito de vontade consciente, contrapostas à objetividade e à impessoalidade
dos processos computacionais. A questão que se coloca é a seguinte: por que o desempenho
destas funções é acompanhado por experiências? Como e porque surge a experiência no
decorrer do processamento de informação?10
Diante de uma insatisfação crescente por tal modelo, percebe-se a falta de uma
alternativa capaz de se inserir coerentemente no atual paradigma científico. Provavelmente
este seja o motivo pelo qual, enquanto as pesquisas experimentais no campo neurofisiológico
continuam acumulando dados acerca da relação mente-cérebro, os cientistas teóricos parecem
andar em círculos, fazendo retoques marginais, introduzindo conceitos ou distinções ad hoc
em concepções insatisfatórias, alimentando um debate que parece estéril.11
À exceção de alguns casos, como o do físico Roger Penrose,12 a maioria dos cientistas
não parece admitir a possibilidade de que as dificuldades encontradas, ao invés de serem
devidas à extraordinária complexidade do cérebro humano em relação aos ainda limitados
conhecimentos e instrumentos disponíveis, possam advir do fato de ter adotado um quadro de
referência inadequado. Segundo Silva Filho,13 a maioria dos filósofos contemporâneos
compartilha uma visão naturalista do mundo que provê uma crítica devastadora ao
mentalismo e ao dualismo que dominaram as filosofias do conhecimento e da subjetividade
na modernidade. Nesta perspectiva, segundo ele, a pergunta sobre “qual o lugar que a mente
ocupa no mundo” envolve duas coisas: de um lado, o mundo do qual se fala é
necessariamente o mundo físico; do outro, ou a mente deve ser entendida no quadro
referencial14 ou o conceito de mental não passaria de um erro categorial, um mito, uma ilusão
ou simplesmente um mistério.
10 As alternativas mais freqüentes frente a tais dificuldades são essencialmente duas: 1) tendência a diminuir a
importância dos fenômenos conscientes no interior do processo de adaptação do organismo ao ambiente, que
chega em certos casos a considerar a consciência como um mero epifenômeno, sem qualquer função na
determinação e no controle do comportamento; 2) uso da noção de “emergência”, segundo a quela níveis muito
elevados de complexidade estrutural ou funcional dariam origem a características e capacidades totalmente
novas, não previsíveis e não explicáveis com base em leis válidas nos níveis inferiores.
11 Segundo Plínio Junqueira Smith, em Do começo da filosofia e outros ensaios, São Paulo: Discurso, 2005, não
somente não chegamos à verdade, como também não nos aproximamos dela. Tal se deve às dificuldades
inerentes ao assunto. “[…] talvez não seja exagero dizer que não somente existe uma falta de consenso, quanto
de uma perspectiva de consenso”. (p. 288). Smith considera que a raiz desta situação de conflito é a aceitação
por parte dos participantes no debate de certas dicotomias tais como mente-corpo e primeira (conhecimento dos
próprios estados mentais) e terceira pessoa (conhecimento dos estados mentais dos outros). Tal distinção,
segundo ele, não reflete a realidade humana, é arbitrário e improcedente. A solução por ele proposta começaria
por um profundo questionamento acerca dos próprios termos do debate.
12 Cf. Roger Penrose, Shadows of the mind: a search for the missing science of consciousness. Oxford: Oxford
University Press, 1994. Nesta obra, o autor afirma que as leis físicas atualmente disponíveis são insuficientes
para explicar certas características e propriedades da mente humana.
13 Cf. Waldomiro José da Silva Filho, Ceticismo e filosofia cética da mente, Sképsis – Revista de Filosofia, São
Paulo, ano 1, n. 1, p. 142-148, 2007, p.145.
14 Segundo Chalmers, deve-se ampliar o conceito de mundo natural para tornar possível uma teoria naturalista
da consciência. The conscious mind. New York: Oxford University Press, 1996.
Talvez seja prematuro pretender uma mudança drástica de rota. Contudo, poder-se-ia
começar promovendo uma “volta às coisas mesmas”, buscando uma recondução do conceito
de consciência, um conceito que foi vítima, desde o início, de uma grande confusão
semântica, que ainda perdura.
É neste sentido que acreditamos ser de grande valia retomar as investigações de
Edmund Husserl acerca da consciência. Tomar-se-á por base a Quinta Investigação lógica,
intitulada “Sobre vivências intencionais e seus ‘conteúdos’”,15 a qual é o horizonte operativo
em que Husserl começa a analisar o problema da consciência e das vivências intencionais, em
relação às problemáticas tratadas por ele precedentemente, e a Quinta Meditação cartesiana,
intitulada “Determinação do domínio transcendental como 'intersubjetividade monalológica'”,
a qual é a exposição de uma teoria fenomenológica da intersubjetividade.16
Na temática “consciencial”, segundo a qual a consciência deve ser livre de prejuízos
matemáticos e científico-naturais e deve estar em condições de unificar todas as esferas
culturais e todos os modos de consciência (percepcionar, pensar, recordar, simbolizar, amar,
querer…), a obra de Husserl se conecta à tradição neokantiana, como conseqüência do
desenvolvimento do positivismo na Alemanha.
O principal alvo da crítica de Husserl é a impostação empirista e psicologista da
Lógica e, em geral, da Teoria do Conhecimento.17 A análise fenomenológica da consciência
parte do pressuposto de que todas as formas de apriorismo idealista, assim como todas as
formas reducionistas de empirismo, já tiveram o seu tempo.
Husserl desenvolveu a temática usando o método fenomenológico-transcendental. Ele
realiza uma diferenciação psicológico-descritiva dos vários conceitos de consciência, em

15 Husserl, E. Investigações lógicas. Segundo volume, Parte I: Investigações para a Fenomenologia e a Teoria
do Conhecimento. De acordo com o texto de Husserliana XIX/1, editado por Úrsula Panzer. Trad. de Pedro M.
S. Alves e Carlos Aurélio Morujão. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007. Doravante
Hua XIX/1: Logische Untersuchungen. Ergänzungsband. Erster Teil. Entwürfe zur Umarbeitung der VI.
Untersuchung und zur Vorrede für die Neuafulage der Logischen Untersuchungen (Sommer 1913).
Hrsg. von Ullrich Melle. 2002, liv + 442 pp. A indicação das páginas segue a Husserliana.
16 Husserl, E. Meditações cartesianas. Quinta. 2.ed. Porto: Rés, [1986?]. p. 115-198. De acordo com o texto de
Husserliana I: Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge. Hrsg. und eingeleitet von Stephan Strasser.
Nachdruck der 2. verb. Auflage. 1991. xxii + 260 pp. Doravante apenas MC.
17 O psicologismo em geral considera os pensamentos como meros "eventos mentais" e, conseqüentemente,
como o biologismo, interpreta a lógica como um ramo da psicologia. Disto deriva que a impossibilidade de
admitir proposições contraditórias não deriva da validade em si do princípio de não contradição, mas sim de um
dado de fato: a nossa mente é feita de um modo que a impede de pensar contraditoriamente. Se nós temos uma
certa concepção do mundo, uma certa lógica e, portanto, uma certa idéia de razão, isto depende da nossa
constituição psíquica, que poderia ser diferente e, em tal caso, nos faria viver num outro mundo. O psicologismo
é considerado por Husserl uma variante do naturalismo, afim ao biologismo, que interpreta as leis lógicas como
leis do funcionamento do cérebro. Com base nisso se poderia argumentar que a lógica aristotélica deriva de uma
certa estrutura do cérebro e que com a mudança da massa cerebral, por conseqüência dos processos evolutivos,
mudaria também a nossa lógica. Cf. Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2008. Disponível em:
<URL: http://www.infopedia.pt/psicologismo>. Data de acesso: 03Abr.08.
perspectiva analítico-essencial,18 fundindo-os uns nos outros, desdobrando os conceitos
implicados a fim de delimitar o seu campo específico.
Na “Introdução” à Quinta Investigação, o pai da fenomenologia indica que, muitas
vezes, se define consciência como “uma expressão abrangente para atos psíquicos de todo
tipo”.19 Definir a essência fenomenológica de tais atos é tarefa relacionada à separação entre
fenômenos psíquicos e físicos operada por Descartes no século XVII, delimitação surgida
precisamente para circunscrever o domínio psicológico. Assim, definir a essência de ato, na
qual se deve distinguir caráter ou qualidade e conteúdo, assume uma centralidade.
Discutiremos, portanto, três conceitos de “consciência” apresentados por Husserl, a
partir de vivência (Erlebniss): a) “consciência como unidade fenomenológica real total do eu
empírico, enquanto entrelaçamento das vivências psíquicas na unidade da corrente de
vivências” (ao qual corresponde uma teoria do fluxo ou dos horizontes temporais - § 2); b)
consciência como autoconsciência, “o interno dar-se conta das vivências psíquicas próprias”,
ou a “percepção ‘interna’ que acompanha as vivências atualmente presentes” (ao qual
corresponde uma teoria das fases do ato intencional e de temporalidade - § 5); c) “consciência
como vivência intencional” ou ato psíquico, ou melhor, como consciência de objeto (ao qual
corresponde uma teoria da intencionalidade - § 9 e seguintes). Noutro texto, Husserl afirmou
o seguinte: "é a intencionalidade que caracteriza a consciência no sentido pleno e que, ao
mesmo tempo, permite considerar o fluxo da vivência como fluxo consciente e como unidade
de uma consciência".20
P aralelamente, partindo da Quinta Meditação cartesiana, abordaremos a questão da
intersubjetividade (“esfera intermonádica”). Analisaremos como Husserl escapa ao

18 Atualmente a expressão “filosofia da mente” é utilizada em contexto anglo-americano para designar


importantes estudos analíticos interdisciplinares sobre as operações mentais que se distanciam da perspectiva
analítico-essencial de Husserl. Para exemplificar, basta olhar para o “naturalismo biológico” de John R. Searle,
para o “funcionalismo computacional” do “primeiro” Hilary Putnam, ou ainda para o funcionalismo da nova
geração, batizado por Daniel Dennett justamente de “heterofenomenológico”. Dennett, Daniel C. Sweet Dreams:
Philosophical Obstacles to a Science of Consciousness. Cambridge, MA, USA: The MIT Press, 2005. 199p. Tais
“ilusões” são, para Dennett, a identidade individual (via individuationis) e a capacidade introspectiva da
consciência, às quais ele contrapõe a estrutura “real” do sistema cerebral e a negação dos conteúdos conscientes.
Este ponto de vista naturalista ou “heterofenomenológico” seria o único em condições de definir a consciência
sem recorrer às “extravagâncias” da metafísica. Neste horizonte, a filosofia da mente resulta entrelaçada com a
psicologia e limítrofe com uma gama de outras disciplinas tais como a neurobiologia, as ciências cognitivas, a
inteligência artificial, a lingüística, a teoria da ação, a pragmática, a teoria da identidade subjetiva. Justamente a
estreita conexão com as ciências cognitivas deu o impulso inicial à reflexão sobre o “primado da
intencionalidade” da mente, considerada originária em relação à linguagem e à questão do significado.
19 Hua XIX/1, V, Introdução, p. 353.
20 Husserl. Ideen I, § 84, p. 203. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie.
Erstes Buch: Allgemeine Einführung in die reine Phänomenologie. In zwei Bänder. 1. Halbband: Text der 1.-3.
Auflage; 2. Halbband: Ergänzende Texte (1912 - 1929). Neu hrsg. von Karl Schuhmann. Nachdruck. 1976. lvii +
706 pp. Idéias I não constitui obra de estudo. Esta citação foi retirada da obra de Júlio Fragata, A Fenomenologia
de Husserl como Fundamento da Filosofia, Braga: Livraria Cruz, 1983.
solipsismo. Como é que tenho consciência do que eu sou e, ao mesmo tempo, como é que
tenho consciência de outro eu? Em síntese, tenho consciência do outro enquanto meu
analogon. E tenho consciência do eu por meio de um processo de supressão, de amputação
do que pertence à esfera do outro, isto é, das individualidades objetivas (coisas) que me são
externas e dos “outros eus”. Por meio de uma abstração metodológica (e não pela “dúvida
metodológica” de Descartes), chega-se ao “mundo primordial”.

1 Consciência enquanto unidade real-fenomenológica das vivências do eu

A primeira análise de Husserl tem por objeto a consciência como unidade real-
fenomenológica das vivências do eu. Comecemos, então, explicitando o que sejam, segundo
Husserl, “vivências”.
Na atitude natural, temos experiências que começam a nível perceptivo. Se isolarmos
essencialmente o nosso modo de viver esta experiência, pondo entre parênteses todos os
elementos contingentes, ficaremos com o puro percepcionar como ato de vivência, ou melhor,
como ato que é possível que todos vivam. Tomar o ato na sua pureza quer dizer examiná-lo
em si mesmo como ato vivido, como “elemento integrante de uma unidade de consciência na
corrente de consciência fenomenologicamente unitária de um eu empírico”. 21 Em outras
palavras, é um ato psíquico.22
A vivência perceptiva, tal como outras vivências que podem ser isoladas na análise
fenomenológica, por exemplo a vivência rememorativa, a vivência imaginativa e a vivência
judicativa, se apresenta como uma vivência caracterizada pela “intencionalidade”, pelo ser
consciência de, portanto, pelo estar dirigida intencionalmente a algo, que pode ser imanente
(no caso de a coisa à qual estar dirigida ser a própria percepção interna) ou transcendente (no
caso de estar dirigida a coisas externas). Significa que a Erlebnis fenomenológica não se
refere à relação factual entre um evento psíquico e um objeto, ou seja, à relação “existente” na
realidade objetiva, mas sim à sua essência. Portanto, Husserl distingue o conceito de Erlebnis
do conceito de “experiência vivida”, onde ocorre comumente um entrelaçamento entre
conteúdos objetivo-mundanos e conteúdos psíquicos.
Podemos distinguir duas modalidades de vivências intencionais: as proposicionais e as
não-proposicionais. As proposicionais são aquelas em que a palavra algo não se refere
propriamente ao objeto, mas a fatos que podem ser expressos por frases do tipo "que isto".
21 Hua XIX/1, V, § 4, p. 364.
22 Atos psíquicos são “atividades da consciência”, “relação da consciência com um conteúdo (objeto)”. Envolve, portanto, uma fenomenologia das representações, pois, como Husserl afirma,
partindo de Brentano, “cada ato ou é uma representação ou tem representações por base”. (Hua XIX/1, V, Introdução, p. 354).
Porém, há casos de vivências intencionais em que o objeto só pode ser expresso por termos
singulares, que designam objetos. Por exemplo, amar, admirar. Ora, é uma tese fundamental
da fenomenologia que essas formas de consciência não-proposicionais não necessitam da
mediação lingüística, pois pressupõem uma relação sujeito-objeto livre de qualquer mediação
lingüística.
Para a Psicologia moderna, “vivência” é uma ocorrência real que, mudando de
momento para momento, em múltiplas ligações e interpenetrações, faz a unidade real de
consciência do respectivo indivíduo psíquico. Neste sentido, são “vivências” as percepções, as
representações da fantasia e as representações de imagem, os atos do pensamento conceitual,
as suposições e dúvidas, as alegrias e as dores, as esperanças e os temores, os desejos e as
volições, e coisas semelhantes. Mas de pouco importa se tais são objeto de percepção
“interna” ou não. O que importa é que elas sejam conteúdo real23 da consciência.
No caso de uma percepção, por exemplo, a existência real das “determinidades
singulares”, extra mentis, daquilo que é perceptivamente visado não afeta o caráter interno do
“vivido”. Aquilo que é percepcionado não é vivido, nem está na consciência. A “vivência”
corresponde ao que do aparecente é vivido e não à coisa em sua ipseidade, contribuindo para a
tessitura da consciência. Assim, o mundo objetivo externo não faz parte da consciência, mas
contribui para a sua construção. Diferentemente de Kant que identifica o aparecente ao
fenomênico, Husserl identifica o aparecente ao vivido. Husserl transforma a estrutura diádica
kantiana numa estrutura tetrádica, ou seja, o númeno (a coisa em si) e o fenômeno (aquilo que
aparece), agora se tornam: o objeto que é visado (dado numa síntese de identificação, um
mero produto lógico); o objeto tal como é visado (modos de intenção); o ato de visar; e as
vivências. Tal ponderação fica ainda mais evidente quando Husserl afirma que “a vivência
não é, ela própria, aquilo que 'nela' está intencionalmente presente”.24
Como parte do mundo fenomênico, podemos naturalmente aparecer-nos a nós
próprios, tornando-nos objeto fenomênico. É uma relação entre duas coisas aparecentes. No
23 Real (as coisas, os objetos) opõe-se a ideal;(objetos pensados, matemáticos, por exemplo) ao passo que reell
(atos ingredientes da intencionalidade) opõe-se a ideell (objetos visados, que estão na mente enquanto visados,
mas não realmente).
24 Cf. Hua XIX/1, V, § 2, p. 360. É bom registrar que o postulado kantiano da “coisa em si” (númeno) quer
significar uma realidade independente do sujeito cognoscente. A Teoria do Conhecimento denomina esta
concepção de “realismo ontológico”. A fenomenologia, sob pena de filiar-se ao Idealismo (conceber a realidade
como fruto do pensamento) ou ao Solipsismo (concebe que a única coisa existente no mundo é o eu), não pode
negar este realismo, como o fazem outros filósofos (p. e., Thomas Kuhn, o qual, no posfácio de sua obra A
estrutura das revoluções científicas (Trad. de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira, São Paulo: Perspectiva,
2001), rejeita textualmente a categoria ontológica “mundo em si”). Não se pode acusar a fenomenologia de
“irrealismo ontológico”, pois passa à margem da categoria kantiana. Husserl não nega a relação do fenômeno
com o mundo exterior, mas prescinde desta relação, suspendendo o juízo em relação a ele para chegar ao
fenômeno puro. Decididamente, a fenomenologia não é fenomenismo, no sentido de que tudo o que existe se
reduza a um fenômeno da consciência.
entanto, tal conteúdo de consciência não tem absolutamente nada a ver com “a consciência no
sentido da unidade dos conteúdos de consciência (a consistência fenomenológica do eu
empírico). É uma vivência singular com a complexão das vivências”.25
Até agora se falou das vivências intencionais. Entretanto, como bem observa Ales
Bello,26 nem todas as vivências são intencionais. Há também aquelas chamadas por Husserl de
“momentos efetivos presentes no fluxo das vivências” que não possuem o caráter da
intencionalidade, isto é, de ser consciência de alguma coisa. Se se percepciona uma folha
branca, o branco da folha não é consciência de alguma coisa, mesmo se apresentando como
latore, isto é, como portador de intencionalidade enquanto conteúdo que presenta o branco da
folha.
Tudo o que foi dito até agora sobre as vivências só foi possível graças a uma vivência
particular e especificamente humana, a vivência da reflexão, pela qual toda vivência pode se
tornar objeto de uma percepção interna e objeto de uma reflexão teorética ou avaliativa. As
vivências espelham todas as operações, todas as experiências, toda a constituição do sujeito
humano e da realidade natural, mas as conexões de sentido só acontecem entre as próprias
vivências: o ser como realidade e o ser como consciência estão correlacionados, mas distintos.
Os diferentes tipos de vivência encontram-se na unidade de uma corrente de vivências,
à qual Husserl denomina consciência. A consciência é para Husserl, nesse sentido, um
movimento permanente de fenômeno. Tudo encontra seu lugar na unidade dessa corrente que
é o "fenômeno originário". Toda vivência, ultrapassa-se necessariamente a si mesma na
direção de outras vivências que constituem, em sua inter-relacionalidade, uma unidade.
Mas de onde vem, então, a “unidade de consciência real”? Tal unidade é dada pelas
próprias propriedades fenomênicas unidas, “unidade que se funda na própria consistência do
seu conteúdo”.27 Significa dizer que “o eu fenomenológico reduzido não é nada de peculiar
que paire sobre as múltiplas vivências, mas é simplesmente idêntico à própria unidade de
ligação dessas vivências”. Não carece de um “princípio egológico próprio” como contentor ou
recipiente,28 ou um centro no cérebro em direção ao qual todos os sinais convergem dando
lugar ao fenômeno da consciência. Dennett29 chama esta última concepção de “Modelo do
Teatro Cartesiano” porque remontaria, precisamente, a Descartes. Definitivamente, não existe
um lugar central, um “Teatro Cartesiano” para onde “tudo converge” para ser examinado por

25 Ibidem, p. 360.
26 Ales Bello, A. Husserl interprete di Kant. Dialeghestai. Rivista telematica di filosofia. Roma, Ano 7, jul.
2005. Disponível em: http://mondodomani.org/dialegesthai/aab02.htm Acessado em: 07maio2008.
27 Hua XIX/1, V, § 3, p. 362.
28 Hua XIX/1, V, § 4, p. 364.
29 Cf. Dennett, D. Consciousness explained. Boston: Little, 1991.
um observador privilegiado.
Ao mesmo tempo em que se percepciona uma alteração contínua de conteúdos, o eu
percepciona uma unidade de coexistência que passa de ponto temporal a ponto temporal; é
“unidade de alteração”. Ocorre um “fluxo de consciência” sem a diluição do eu
fenomenológico. Em tal fluxo, a consciência exige “constante persistência ou constante
alteração de pelo menos um momento, essencial para a unidade do todo”.30
Em suma, a unidade de consciência real provém do tempo “que pertence de modo
imanente à forma de apresentação do fluxo de consciência, enquanto unidade que aparece
temporalmente”. Modernamente, fala-se acerca da duração do processamento de informações
como um elemento central da consciência, com grande ênfase na temporalidade dos processos
cognitivos. A consciência não é um recipiente no qual estariam as vivências, mas é percebida
como um “fluxo”. “Cada fase atual do fluxo de consciência, portanto nela se apresenta todo
um horizonte temporal do fluxo, possui uma forma que abarca todo o seu conteúdo, que
permanece continuamente idêntica, enquanto o conteúdo se altera constantemente”.31 Logo,
sem alteração, sem fluxo de conteúdo, também não haveria consciência. Sem persistência,
também não haveria consciência. Seria como se o eu empírico perde-se a sua identidade,
perde-se a sua anima, o seu espírito vivificador.
A expressão “conteúdos” remete justamente a uma “unidade englobante” que os
possui. Em sentido comum poderia referir-se a algo que pairasse sobre as múltiplas vivências,
como um “princípio egológico” portador de todos os conteúdos, mas não no sentido da
psicologia descritiva, para a qual o ponto de referência é o todo, é a “unidade de consciência
real”, é a “soma total das 'vivências' presentes”, que constitui o “eu fenomenológico” ou
consciência. “O 'eu fenomenológico' [...] é simplesmente idêntico à própria unidade de ligação
dessas vivências”.32
Como se dá a consciência-de-consciência, isto é, como se dá o estado normal de
consciência? Pode-se dizer que, para Husserl, a esfera da atualidade das vivências,
considerando que há também Erlebnisse cuja consciência se move do modo atual ao inatual e
viceversa. A consciência abraça as Erlebnisse que são atuais, mesmo que a consciência nunca
possa consistir de puras atualidades. As atuais estão em contraste com as inatuais por estarem
na evidência do cogito - “eu tenho consciência de alguma coisa” -, enquanto as inatuais
constituem o halo de consciência de modo que as cogitationes estejam circundadas por
inatualidades. Atualidades e inatualidades estão sempre expostas a uma fluidificação
30 Hua XIX/1, V, § 6, p. 369.
31 Hua XIX/1, V, § 6, p. 369.
32 Hua XIX/1, V, § 4, p. 364.
consciencial de ascensão e descensão, que se articula constantemente na forma da contínua
consciência interna do tempo, no qual cada vivência seguinte mantém o resultado da vivência
que a precedeu e acrescenta novo material para a vivência futura. Quando podemos captar
uma vivência de modo mais nítido (atual), então, naquele momento, estamos diante de um
estado bem definido da consciência. Mas não significa que seja um estado ordinário da
consciência. Antes pelo contrário, a tranqüila ordinariedade se torna descontínua. A corrente
contínua das vivências se bloqueia. A algo que oferece características homogêneas de duração
como a consciência vivida, se opõem estados de consciência tais a ponto de perturbar o fluxo
da vida interior do sujeito e que nos permitem captá-lo por meio de uma ressonância entre
aquele estado particular e algo dentro de nós ao qual aquele mesmo estado remete.
Segundo outros filósofos e estudiosos do tema, tais como Bernet, Kern e Marbach,33 o
fluxo da conciência de que fala Husserl põe em evidência a característica da conciência a
imergir-se no tempo, ou seja, a sua capacidade de se encontrar em diferentes dimensões
durante o ato cognoscitivo da realidade. O fluxo de conciência não tem, portanto,
propriedades espaciais e a sua atividade ocorre na corrente de temporalidade imanente.
Segundo Husserl, a conciência, no tempo, segue duas dimensões: uma direção objetiva, ou
seja, tem a possibilidade de captar um objeto temporal; e uma subjetiva, como fluxo de
conciência, que é continuum personale das experiências vividas. Este continuum da
conciência se constitui de uma retenção, de uma atualidade potencial presente e de protensão.
Para Husserl, na retenção os acontecimentos cotidianos são retidos na forma de
passado e na protensão o existente humano antecipa os acontecimentos; contudo, esta
antecipação é sempre feita a partir do momento presente. Assim, o passado é retido como
passado no presente e o futuro é antecipado como futuro, também a partir do presente.
Poderíamos dizer que o presente é uma síntese do que é retido e do que é antecipado.
Conforme o antecipado passa, é retido como passado. Portanto, é através do tempo que se dá a
unificação das vivências que o eu tem do mundo. E é a partir do tempo que se constitui a
subjetividade do eu transcendental.34
Em suma, analisando a própria vida de consciência, portanto, o ego capta a si mesmo
sob dois aspectos: 1) como corrente ou fluxo das vivências; e 2) como “eu” estável e
permanente, pólo idêntico deste fluxo, ao qual todos os momentos de consciência fazem
referência.
33 Bernet, R.; Kern, I.; Marbach, E.. Edmund Husserl. Bologna: Il Mulino, 1989.
34 Husserl, E. Lições para uma fenomenologia da consciência íntima do tempo. Trad. e notas de Pedro M. S.
Alves. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1994. Cf. Belibio, E. A Fenomenologia do tempo em
Heidegger e Husserl. Analecta, Guarapuava, vol. 6, n. 2, p. 77-83, jul./dez. 2005. Disponível em:
http://www.unicentro.br/editora/revistas/analecta/v6n2/06%20Artigo.pdf. Acessado em: 13Maio2008.
A partir das considerações de Husserl sobre o fluxo de consciência, sobre a
“consciência de” em relação à realidade natural, Searle, já em A redescoberta da mente,35
postulará a hipótese de que também a consciência é uma propriedade biológica do cérebro dos
seres humanos, determinada por processos neurobiológicos, ou seja, como parte integrante da
ordem biológica, ao invés de restringir-se, como fez Husserl, na relação entre a consciência
intencional e o objeto.
Cabe ainda perguntar-se se acima de cada consciência, no fluxo, não reine ainda a
consciência última, enquanto intencionalidade última que não pode jamais ser objeto de
atenção, ou seja, chegar à consciência.
Se em 1901 a divisão brentaniana de todos os fenômenos em físicos ou psíquicos era
considerada por Husserl como uma das mais notáveis e filosoficamente importantes – o que
circunscrevia a consciência à realidade “psíquica” – já em 1906 ele protestará contra a idéia
oriunda do “pensamento natural” de que todo e qualquer dado ou é físico ou é psíquico. A
partir de então, Husserl reconhecerá que “a consciência não é nenhuma vivência psíquica,
nenhum entrelaçamento de vivências psíquicas, nenhuma coisa, nenhum anexo (estado,
atividade) em um objeto natural”.36 Com a evolução do pensamento husserliano, a idéia da
consciência como representação, idéia racionalista, se tornará superada e proscrita.

2 Consciência enquanto autoconsciência ou percepção “interna” das próprias


vivências psíquicas

O segundo conceito de consciência apresentado por Husserl nasce da oposição entre a


percepção dos objetos e a percepção imanente que a consciência tem de si mesma. Neste
sentido, consciência é a “percepção 'interna' que acompanha as vivências atualmente presentes
[...] e que lhes deve estar referida enquanto elas são os seus objetos”.37
“Interna” aqui não está em oposição a “externa”, indicando objetos. Neste sentido, as
percepções sempre são internas. “Interna” quer apenas indicar o caráter do objeto de
percepção, neste caso as próprias vivências. Até porque “nenhum corpo é internamente
percepcionável, não porque seja 'físico', mas antes porque, por exemplo, a forma espacial
tridimensional não é susceptível de ser adequadamente intuída por nenhuma consciência”.38

35 John Searle, The rediscovery of the mind. Cambridge, MA: The MIT Press, 1992. (Trad. port.: A
redescoberta da mente. Trad. Ana André; Rev. Maria José Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. 304p).
36 Husserl, Manuscrito A I 36, p. 193 a (1920). Apud Moura, C. A. de. Husserl: significação e fenómeno.
doispontos, Curitiba, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril 2006, p. 45.
37 Hua XIX/1, V, § 5, p. 365.
38 Hua XIX/1, V, § 7, p. 370.
Uma percepção interna é uma percepção “adequada”: é uma percepção na qual o
objeto está presente em ipseidade (em carne e osso); é uma percepção na qual o objeto é
captado naquilo que ele mesmo é; é uma percepção na qual o objeto está incluído no próprio
percepcionar. Neste sentido, a percepção “adequada” é unicamente a interna, a percepção das
próprias vivências, daquilo que é internamente percepcionado.
Aqui, deve-se evitar o equívoco de interpretar a percepção interna como um saber. Se
assim fosse, alerta Husserl, incorreríamos na “regressão ao infinito” que decorre do fato de a
percepção interna tornar-se novamente uma vivência, que careceria de nova percepção, e
assim sucessivamente. Deixa-se tal problema de lado, visto não ser fenomenologicamente
verificado.
Em Einleitung in die Psychologie nach kritischer Methode,39 Natorp apresenta uma objeção à idéia de que o eu puro seja o “centro
de referência subjetivo” de todos os conteúdos, chamado por Husserl também de consciencialidade. A consciencialidade, segundo o pai da fenomenologia, é a

relação que o eu tem com os seus conteúdos. Para Natorp, no entanto, o eu está referido aos conteúdos enquanto estes lhe estão conscientemente dados,
mas ele, por sua vez, não está relacionado aos conteúdos da mesma forma, isto é, o eu não está “conscientemente dado” aos conteúdos. Esta relação singular faz

do eu puro o “centro de referência subjetivo”. Por isso, segundo ele, não poderíamos descrevê-lo, porque tudo o que dele poderíamos dizer, o
diríamos como conteúdo da consciência e o eu puro não pode se tornar conteúdo nem em nada é semelhante a tudo o que, de algum modo, pode ser um conteúdo

,
de consciência. Uma vez que o sujeito se torna objeto deixa de ser sujeito. Seria como admitir a possibilidade de ser sujeito e objeto contemporaneamente.

Para Husserl, entretanto, o eu centro de referência e a relação do eu com um conteúdo podem ser objeto da consciência, podem ser objetivamente

dados à consciência, enquanto expressamente notados. Assim, as vivências podem ser dadas simultaneamente com a consciência: “o eu a si próprio aparece, tem

40
de si próprio consciência e especialmente percepção”. O eu se auto-pertence.
Para Sartre, a consciencialidade incide, conseqüentemente, num ser-para-si. Se de um
lado a consciência é sempre consciência de alguma coisa (é consciência intencional), do outro
lado ela é também autoconsciência, ou seja, consciência de ser consciência de alguma coisa.
De acordo com o filósofo francês, a consciência de si mesma é uma condição necessária para
que uma consciência cognoscente seja consciência do seu objeto.41 Ela é consciência “para-
si”. Entretanto, a consciência de si mesmos nunca é uma consciência de tipo reflexo, ou seja,
uma consciência “posicional”,42 mas é uma consciência substancialmente irreflexa, não
plenamente consciente. A irreflexividade da autoconsciência é indicada por Sartre com a
expressão “consciência-(de)-si”, na qual o “(de)” possui a função de exprimir a não

39 Einleitung in die Psychologie nach kritischer Methode (“Introdução à psicologia segundo o método crítico”), obra de Paul
Natorp, à qual Husserl se refere, publicada em Friburgo, em 1888.
40 Hua XIX/1, V, § 8, p. 372-375.
41 Cf. Sartre, J. P. L’être et le néant. 41.ed. Paris: Gallimard, 1953. 722p.
42 Eu tenho consciência “posicional” de alguma coisa quando tenho plena consciência do que tenho consciência.
Em tal sentido, é posicional a consciência que eu tenho dos entes externos a mim (por exemplo, tenho uma
consciência posicional da mesa que estou vendo agora). De mim mesmo, como cogito, tenho pelo contrário uma
consciência imediata, irreflexa.
posicionalidade da consciência de ser consciência.

3 Consciência intencional

O mundo, objeto de consciência, enquanto a ela correlacionado, não deve ser


considerado de modo ingênuo, naturalista, como existente em si, existente fora e
independentemente da consciência, mas sim como “fenômeno”, no seu “aparecer” à própria
consciência, ou seja, a inegável manifestação do mundo dentro da consciência do homem.
Assim, a atitude fenomenológica tem como premissa que “se ponha entre parênteses” a
consideração ingênua da existência física dos objetos e dos seus modos físicos de existência,
como são “imediatamente” captados. O que acontece com a epoché.43 A atitude
fenomenológica destaca o aspecto “ativo” da própria consciência, o seu “referir-se” às coisas,
o que implica, evidentemente, que a consciência “se divida”, “se duplique”, se torne
“consciência observante”, de modo analítico-descritivo, dos atos que ela mesma realiza de
modo irreflexo.
A atitude natural pode ser resumida na “tese do mundo”, isto é, na posição da
existência de um mundo em si. Para Husserl não é preciso sequer duvidar deste juízo, mas sim
“pô-lo entre parênteses”. Portanto, é preciso “suspender o juízo”. Agora, podemos substituir a
tentativa cartesiana de uma dúvida universal pela universal epoché. O mundo natural inteiro é
posto entre parênteses. Entretanto, fazendo isto eu não nego este mundo, como se fosse um
sofista, não o ponho em dúvida, como se fosse um cético, mas exercito a epoché
fenomenológica, isto é, eu não assumo o mundo que me é constantemente já dado enquanto
ser, como faço, diretamente, na vida prático-natural, mas também nas ciências positivas.
Evidentemente, pondo entre parênteses o mundo, pomos entre parênteses também a
nós mesmos, que fazemos parte deste mundo. Então, o que se nos revela ser o nosso “eu”? O
sedimento originário, aquilo que permanece do mundo na consciência, depois que se retirou
toda reflexão teórica e científica que exceda a visão imediata das coisas é, para Husserl,
“puras experiências vividas”; ou, pode-se dizer também, o fluxo das experiências vividas no
qual a consciência se relaciona com o mundo.

43 A palavra grega epoché teve o emprego inicial com os céticos em sua postura de nada aceitar e nada refutar;
assim é a “suspensão do juízo” em Pirro: nada se afirma; nada se nega. Com Husserl o termo ganha um novo
sentido e é empregado como “contemplação desinteressada”: as ciências em geral se “interessam” pelo mundo, o
que as impede de contemplá-lo, captando a sua essência. Por meio da epoché fenomenológica tudo o que é
informado pelos sentidos é reduzido a uma experiência de consciência, que consiste em estar consciente de algo.
Requer a suspensão das teorias, atitudes, crenças, para concentrar-se exclusivamente na experiência em foco,
tornando possível a intuição da “coisa mesma”.
Mas qual é a estrutura fundamental da relação consciência-mundo? Husserl diz,
retomando um conceito de Brentano que, por sua vez, o retomara dos Escolásticos medievais:
a “intencionalidade”.
A Escolástica utilizou a palavra intencionalidade para indicar o caráter representativo
do objeto imanente em relação ao objeto exterior e, portanto, para designar a consciência
como tendo um sentido relativamente a esse objeto. O termo “intenção” (do latim intentio) foi
fixado pela primeira vez no texto latino por Avicena e retomado, depois, pelos escolásticos
(Alberto Magno, Tomás de Aquino, Duns Scoto e outros). Significa, originariamente, o
mesmo que “conceito”, assumindo o sentido de “mental” ou “conceitual”. Portanto, os
escolásticos definiram conceito como intentio enquanto nele se exprime um in alium tendere,
isto é, uma referência a algo objetivo.
O conceito de intencionalidade foi retomado, posteriormente, por Brentano que o
tornou característica distintiva de todos os fenômenos psíquicos, contrapostos àqueles físicos.
Intencionalidade significa para Brentano relação ao conteúdo ou direção ao objeto. Assim,
todo fenômeno psíquico se distingue por ser uma “consciência de alguma coisa”.
Brentano44, citado por Husserl nas suas Investigações Lógicas, afirmou:

Todo e qualquer fenómeno psíquico é caracterizado pelo que os escolásticos da


Idade Média denominavam como inexistência intencional (ou também mental) de
um objecto e que nós, se bem que com expressões não completamente inequívocas,
poderíamos denominar como a referência a um conteúdo, a direcção para um
objecto (pelo qual não se deve entender uma realidade) ou a objectividade
imanente.45

Entretanto, a concepção husserliana da intencionalidade se diferencia daquela


brentaniana em diversos pontos. Primeiramente, Husserl não atribui um significado
intencional a todos os fenômenos psíquicos e não considera a intencionalidade um elemento
real e objetivo para a distinção entre o psíquico e o físico. Nem todas as vivências são
intencionais, como já vimos. A intencionalidade é, antes, segundo Husserl, o caráter a priori
da essência fenomenológica da consciência, a típica e invariável estrutura da vivência. Se nós
nos elevarmos mediante a epoché e a redução fenomenológica à consideração da
intencionalidade da vivência, notaremos, em primeiro lugar, que na própria vivência há
componentes imanentes, evidentes e imediatos, mas não intencionais: para Husserl são as
impressões sensíveis que servem de matéria à intencionalidade, mas que não são, por sua vez,
intencionais. 46
44 Ver a obra de F. Brentano, Psicologia sob o ponto de vista empírico, trad. espanhola, Madrid: Revista
Ocidente.
45 Hua XIX/1, V, § 10, p. 380.
46 Hua XIX/1, V, § 10, p. 382.
Em segundo lugar, percebemos que o objeto não é imanente à intencionalidade.
Husserl critica a tese brentaniana segundo a qual a intencionalidade contém imanentemente
um objeto como representação psíquica do objeto real. Pelo contrário, o objeto é
transcendente à intencionalidade e se manifesta na própria intencionalidade somente como
componente não-real, isto é, como significado, sentido. Não-real significa ideal; reais são os
atos subjetivos, componentes da intencionalidade que se correlacionam à intuição desta
idealidade.
Para Brentano, os objetos percepcionados, fantasiados, julgados, desejados, etc.
“entram na consciência”, “são recebidos na consciência” ou, inversamente, “a consciência”
entra em relação com eles. De tal tese, Husserl aponta duas possíveis más interpretações: 1)
que se trataria de uma relação real pertencente ao conteúdo real da vivência; 2) que se trataria
de uma relação entre duas coisas encontradas na consciência, de acordo com a expressão
escolástica “inexistência intencional”.
A intencionalidade da consciência não significa uma referência real ou um processo
real que tenha lugar entre a consciência por um lado e a coisa consciente por outro. Nem
tampouco consiste numa relação entre duas coisas que se encontram da mesma maneira,
realmente, na consciência, um estado psíquico e um objeto intencional, dois conteúdos da
consciência encaixados um no outro. Só uma coisa é presente: a vivência intencional,47 cujo
carácter descritivo essencial é precisamente a intenção em questão. Segundo a sua
particularização especial, é ela que constitui completa e exclusivamente o representar, o
ajuizar, etc., deste objecto. Se esta vivência está presente, então a “relação intencional com
um objecto” está eo ipso – tal reside, sublinho, na sua própria essência – consumada, um
objecto está eo ipso “intencionalmente presente”, pois uma coisa e outra querem dizer
precisamente o mesmo.48
A “inexistência mental ou intencional”, assumida por Brentano no sentido original de
“existência in mentis”, deve ser entendida no sentido de existente em intenção, mas não
existente naturalmente na mente, em ipseidade (carne e osso). Husserl evidenciou que as
vivências intencionais se referem de vários modos a objetos representados, mas o “objeto é
nelas ‘visado’, é ‘tido em vista’”.49 Entretanto, não significa que haja duas coisas presentes na
vivência: o objeto e a vivência intencional. O que há é a vivência intencional de um objeto,
visá-lo é uma vivência, até porque o objeto pode absolutamente não existir extra mentis.50 O
47 Cf. Hua XIX/1, V, § 11, p. 385.
48 Cf. Hua XIX/1, V, § 11, p. 386.
49 Cf. Ibidem, p. 386.
50 Como exemplo pode-se tomar a própria ilustração realizada por Husserl a partir do deus Júpiter. Se me
represento Júpiter, o objeto representado tem “inexistência mental”. Significa que tenho uma certa vivência de
significativo aqui é que, do ponto de vista fenomenológico, a existência ou não do objeto não
muda a situação: “Para a consciência, o dado é essencialmente idêntico, quer o objeto
representado exista, quer seja ficcionado, quer seja mesmo um contra-senso”.51 Em suma,
Husserl adota a expressão “objeto intencional” porque, com ela, indica uma forma de
representação que é real na vivência sem que tal indique uma existência natural extra mentis
dos objetos intencionados. Os objetos intencionais sempre existem na consciência enquanto
visados. A consciência pode, portanto, pronunciar-se sobre este ser segundo a maneira como
ele se apresenta, elucidando o modo pelo qual ela o visa. Para isto, não tem necessidade de
sair de si própria – tarefa contraditória com a qual esbarrava qualquer teoria do conhecimento
e que a inclinava quer ao idealismo, quer ao ceticismo – mas somente de proceder ao exame
destes modos de intenção.
A consciência se mostra consciência de objetos constituídos no próprio ato
cognoscente. Entretanto, apesar da palavra “fenômeno” designar o que aparece, ela é usada
preferencialmente para designar o próprio aparecer, isto é, o fenômeno da consciência ou,
usando o que Husserl considerava uma “expressão grosseiramente psicológica”, o fenômeno
subjetivo. Em virtude deste uso ambíguo, a palavra “fenômeno” favorece a formação de
equívocos, pois o próprio aparecer torna-se objeto de investigação, ou seja, o próprio sujeito
do conhecimento é investigado na sua estrutura comportamental, em virtude da correlação
essencial entre o seu aparecer e o que aparece. Trata-se, no caso, de uma relação
interdependente entre o aparecer e o que aparece, entre o sujeito do conhecimento e o mundo
conhecido, entre a consciência que conhece e o mundo ou objeto que aparece ou se mostra
cognoscível. Portanto, não existe uma consciência em si, um ser em si, pois a consciência só
se apreende como “relação”, isto é, ela existe enquanto relação de eventos vivos e
concatenados: a consciência é sempre consciência de um ser-no-mundo, portanto, um
“existencial concreto”.
De modo algum devemos compreender tratar-se de uma espécie de consciência em si.
A consciência é apenas consciência humana, isto é, um modo de ser-no-mundo, portanto, um
existir fenomenal. Por outro lado, a consciência consiste justamente em ser aquilo que
transcende e, como tal, não deve ser confundida com os entes em estado natural. A
consciência, no caso, não é mais aquela figura associada ao “sujeito transcendental” de Kant,
e sim muito mais o próprio ser-do-homem-no-mundo, o que descortina uma perspectiva

representação que, na minha consciência, se consuma um representar-o-deus-Júpiter sem encontrar aí


“naturalmente” algo como o deus Júpiter. Mesmo que ele não seja algo extra mentem. Cf. Hua XIX/1, V, § 11, p.
387.
51 Hua XIX/1, V, § 10, p. 387.
completamente “nova” para a filosofia transcendental.
Dizer que a consciência é essencialmente intencional significa afirmar que ela remete
a algo diferente de si, que tende sempre em direção a um conteúdo que, de alguma forma, é o
seu oposto. O ato de consciência, portanto, não é pensável e analisável senão em relação com
o objeto, e o próprio objeto não é pensável e analisável senão em relação com o sujeito, com a
consciência.
Gnosiologicamente, o estudo da consciência se dá em duas direções interconectadas: a
primeira se refere aos modos do cogitatum, ou seja do objeto intencional, ao qual Husserl
chama também noema, por exemplo “o percebido”, “o recordado”, “o imaginado”, etc.
(descrição noemática); a segunda é dirigida aos modos de ser do próprio cogito, ou seja da
noese, por exemplo “o perceber”, “o recordar”, “o imaginar”, etc. (descrição noética). A
descrição noética, ou seja, dos modos de consciência, mostra que a forma originária da
consciência é a “síntese”, a qual representa uma coesão inseparável que unifica os momentos
conscienciais uns aos outros, através do ato fundamental da “identificação”. A síntese se
articula constantemente na forma da contínua consciência interna do tempo, no qual cada
vivência seguinte mantém o resultado da vivência que a precedeu e acrescenta novo material
para a vivência futura. Toda a vida subjetiva se insere numa dimensão “temporal” mais
ampla, em conformidade à qual as estruturas conscienciais se constituem num processo
continuamente fluente.
Partindo de uma determinada concepção da consciência, Husserl pretendeu liberar a
filosofia de todas aquelas tendências – empirismo, positivismo, subjetivismo, psicologismo –
que põem as bases do conhecimento na relação de um eu com a realidade externa e
transcendente da natureza. O ponto de vista intencional considera um absurdo o pressuposto
teórico de que o eu e o mundo objetivo devam entrar em relação no ato cognoscitivo,
subsistindo já como eu e como realidade objetiva antes de entrar nesta relação.
Para Husserl, o objeto intencional implica os atos constitutivos da consciência que
conferem o sentido, mas não é dissolvido na realidade absoluta do sujeito. O objeto é
simplesmente aquilo que tem um sentido em virtude da atividade constitutiva do eu, ou seja,
um noema em relação à noese, isto é, um conjunto de atos da consciência, a qual, em virtude
da estrutura e da forma dos seus atos, condiciona a estrutura e a maneira na qual o correlato da
consciência é dado.
Também não devemos supor que a consciência exista como substância, possuindo,
entre outros atributos, a intencionalidade que lhe permitiria entrar em contato com uma outra
realidade a seu lado. A consciência consiste na intencionalidade. A substância desta é o seu
transcender-se, o seu referir-se a… Com tal, Husserl pode demonstrar que o sujeito não é uma
coisa que exista primeiro e em seguida se reporte ao objeto. A relação sujeito-objeto constitui
o fenômeno verdadeiramente primeiro e é nele que os chamados objetos se dão. A essência
mesma da consciência é visar outra coisa diferente dela; nisso reside a sua vida própria. A
concepção husserliana põe no coração do ser da consciência o contato com o mundo. Na
Quinta Investigação Husserl assevera que a substancialidade da consciência é a
intencionalidade. Por isso opõe-se à idéia do eu como substância da consciência, no receio de
se poder interpretar a intencionalidade como um acidente desse eu substância.52
Afastadas as controvérsias, Husserl abandonará definitivamente a expressão
“fenômeno psíquico” e assumirá a expressão “vivência intencional”, ou simplesmente “ato”.
Por “ato” não se entenda a idéia de atividade, mas um modo específico de algo ser,
dependendo do modo como se repara nele. Ou seja, diferentes modos implicam diferentes
atos. Por outro lado, diversos atos podem percepcionar o mesmo e, no entanto, sentir coisas
totalmente diferentes. O ser de algo é a consciência que tenho dele, o que significa que o
conteúdo sentido é diferente do ser do objeto percepcionado. Nesse sentido, a minha
consciência é constitutiva. A consciência que tenho do objeto é a apreensão que tenho dele.
Por fim, a apreensão não se reduz a um afluxo de novas sensações; depende das disposições
sedimentadas das vivências anteriores.
Portanto, a consciência não é algo em si, estático. É, antes, algo dinâmico, que avança
à medida que vai incorporando novas apreensões. Contemporaneamente, é algo que
permanece, no próprio fluxo de sedimentação das vivências anteriores. Significa dizer que,
mesmo se diferentes atos percepcionarem o mesmo, no entanto, poderão sentir coisas
diferentes. Assim, fica definitivamente evidenciado que uma coisa é a consciência de algo e
outra é o objeto natural real; uma coisa é a vivência intencional que se tem de algo e outra é o
objeto em si.
Mas disso decorre outra dificuldade: que está na base da consciência de identidade
(ato que consiste na designação de identidade) que tenho de um objeto percepcionado, mesmo
tomado em diferentes apreensões? Para contornar a dificuldade, Husserl introduz a distinção
entre “conteúdo de percepção”, sensações apresentadoras, e intenção apreensora. O conteúdo
provém das sensações que apresentam o objeto percepcionado e a intenção, em visando algo,
atribui identidade ao objeto percepcionado.
E a modificação, em que consiste? Consiste, segundo Husserl, nos “caracteres
intencionais” da vivência respectiva. Afirma ele: “Suponhamos, por exemplo, que certas

52 Cf. Hua XIX/1, V, § 8, p. 372-376.


figuras ou arabescos atuaram sobre nós, de início, de um modo puramente estético e que,
subitamente, faz-se luz e compreendemos que pode tratar-se de símbolos ou de signos
verbais”.53 O que mudou? Mudaram simplesmente os caracteres intencionais segundo os quais
um determinado conteúdo foi apreendido. Para a fenomenologia, a diferença é devida ao
caráter descritivo e não a supostas estruturas transcendentais ocultas, ou a processos
fisiológicos. Dessa forma, Husserl parece tanto se distanciar da tradição kantiana, quanto
refutar o psicologismo. Para o fenomenólogo, a modificação não reside na sensação, muito
menos no objeto; a modificação reside, sim, na apercepção, na vivência das sensações.
Husserl também ressalta a função desempenhada pela atenção como fator de destaque
de caracteres de ato influenciando, assim, essencialmente a estrutura fenomenológica dos atos
compostos. A atenção é uma função distintiva, que pertence aos atos no sentido de vivências
intencionais. Os objetos de atenção são objetos de percepção, de recordação, de expectativa
ou também estados-de-coisas de uma ponderação científica, etc… Considerando que
percepção é “um ato em que o conteúdo se torna objeto para nós”, é objeto intencional aquilo
de que, em cada caso, estamos ou podemos estar conscientes. Também deduz-se que só se
pode falar de atenção quando “temos na consciência” aquilo ao qual estamos atentos, pois não
é notado aquilo que não é “conteúdo de consciência”.54
Ao que parece, a relação intencional é suficiente para delimitar os “fenômenos
psíquicos”, mas no caso dos sentimentos deve-se distinguir as “sensações de sentimento”, que
são conteúdos apresentantes ou objetos de intenções, dos sentimentos, que são vivências
intencionais. As primeiras são fenômenos físicos e apresentam objetos; os segundos são
fenômenos psíquicos e têm uma relação com uma representação.
Se, entretanto, investigarmos a consciência do ponto de vista da noese, ou seja, dos
atos de consciência, devemos considerar uma distinção fenomenológica fundamental, a de que
estes contêm partes distinguíveis: conteúdo real e conteúdo intencional. Por “conteúdo real
fenomenológico de um ato”, Husserl entende “a totalidade englobante das suas partes, […] a
totalidade englobante das vivências parciais de que ele é realmente constituído” (a análise
desta dimensão cabe à psicologia descritiva). É o conceito mais geral de conteúdo, válido em
todos os domínios. De “conteúdo intencional”,55 Husserl distingue, na peculiaridade das
vivências intencionais, três aspectos: 1) “objeto intencional do ato”; 2) “matéria intencional”
(em oposição à sua qualidade) e; 3) “essência intencional.56

53 Hua XIX/1, V, § 14, p. 398.


54 Cf. Hua XIX/1, V, § 19, p. 423, 424.
55 Cf. Hua XIX/1, V, § 18, p. 417-429.
56 Cf. Hua XIX/1, V, § 16, p. 412, 413, grifo do Autor.
Em relação ao conteúdo intencional, entendido como objeto intencional, deve-se
primeiramente distinguir “o objeto, tal como é intencionado, e pura e simplesmente o objeto,
que é intencionado”. Ou seja, um mesmo objeto pode ser intencionado de diversos modos.
Husserl usa como exemplo o Imperador da Alemanha. Aqui, o objeto é intencionado
enquanto imperador e precisamente o da Alemanha. Mas o mesmo é o filho do Imperador
Frederico III, o neto da Rainha Vitória, etc. Um é o objeto intencionado, mas diversas são as
intenções.57
Em relação ao conteúdo intencional, entendido como matéria intencional do ato, deve-
se distingui-la da qualidade de um ato. Por qualidade, Husserl entende aquilo que “caracteriza
o ato, por exemplo, como representação ou juízo”, “determina apenas se aquilo de que, de um
modo determinado, já ‘fazemos uma representação’, está intencionalmente presente enquanto
desejado, questionado, judicativamente posto, e coisas semelhantes”.58 Já por matéria, o pai da
fenomenologia entende aquilo que ao ato “confere a direção determinada para algo objetivo,
que faz, portanto, por exemplo, com que a representação represente precisamente isto e nada
diferente”; “confere a direção para precisamente este objeto e nenhum outro”.59 A matéria
determina o objeto que o ato visa, mas também o modo como ele o visa, ou seja, o “enquanto
que ele o apreende”.60
O conteúdo como matéria é uma componente da vivência – ato que esta última pode
ter em comum com atos de qualidade completamente diferente; a matéria não se limita a fazer
com que o ato apreenda a objetualidade, mas determina de que modo ele a apreende. A
matéria é aquilo que distingue um juízo de um outro juízo, é “aquilo que confere ao ato a sua
referência determinada ao objeto”.
Por fim, por essência intencional do ato entenda-se a unidade de matéria e qualidade
do ato, que, entretanto, constitui apenas uma parte do ato completo. A essência intencional é a
identidade do ato. Mas diga-se que ter a mesma representação, representar o mesmo objeto,
não significa identidade individual dos atos.61 “Duas representações são, na essência, a
mesma quando, com base em cada uma delas, considerando cada uma puramente por si
própria, se pode asserir sobre a coisa representada precisamente o mesmo e nada mais”.62 A
identidade, portanto, reside na significação idêntica.

57 Cf. Hua XIX/1, V, § 17, p. 414-415, grifo do Autor.


58 Hua XIX/1, V, § 20, p. 428, 430, grifo do Autor.
59 Hua XIX/1, V, § 20, p. 429.
60 Hua XIX/1, V, § 20, p. 430, grifo do Autor.
61 Ambos podemos nos representar o mesmo objeto, a Ilha de Páscoa, por exemplo, mas nossas representações
do objeto Ilha de Páscoa serão diferentes.
62 Hua XIX/1, V, § 21, p. 433, grifo do Autor.
Os atos podem ser simples ou compostos, fundantes ou fundados. Atos simples têm
uma relação intencional particular, cada um tem o seu objeto unitário e o seu modo de se lhe
referir. Mas os atos simples podem se combinar num ato global tornando-se, assim, parciais.
O ato global ou composto não é um encadeamento de outros atos parciais, mas um tipo tal que
a intencionalidade total é precisamente uma intencionalidade total na qual se incorporam as
intenções dos atos parciais. Os atos parciais (juízo, suposição, dúvida, questão, desejo, atos da
vontade, etc…) podem se combinar de múltiplas formas para constituírem um ato global. Na
combinação, fundante sempre será o ato que determina o conteúdo do ato fundado. Por
exemplo, a partir da verificação de um estado-de-coisas, pode sobrevir uma alegria. Nesse
sentido, o juízo acerca de um estado-de-coisas é ato fundante da alegria acerca do estado-de-
coisas.63

4 O Ego e a experiência de outro64

As Meditações cartesianas, editadas em 1931 em língua francesa e só em 1950 em


alemão, são uma reelaboração dos Discursos parisienses, ou seja, das conferências que
Husserl realizou em Paris em 1929. Nas cinco meditações, Husserl retoma a pretensão
cartesiana, manifestada por Descartes na sua obra Meditationes de prima philosophia (1641),
de elaborar uma nova ciência universal dotada de fundamento absoluto, ou seja, imune a
qualquer objeção de caráter cético. A nova ciência deverá fundar-se na evidência, isto é, na
experiência direta do ente, daquilo que existe. Esta evidência é representada pelo ego puro ou
transcendental, cuja descoberta é o fruto da reviravolta subjetiva iniciada pela obra cartesiana.

Husserl reafirma que a epoché não modifica em nada a intencionalidade da


consciência. O dado originário e indubitável permanece sendo o fato de que o objeto está
presente à consciência e não é uma parte sua. E visto que tudo o que é dado é dado à
consciência, este é constituído no seu ser pela consciência que se torna, porém, enquanto pura,
a única realidade originária, enquanto o mundo depende dela geneticamente como produto da
sua constituição (não construção) a partir dos atos da sua intencionalidade. Assim, o pai da
fenomenologia postula um Idealismo Transcendental65 enquanto defende a anterioridade e a
63 Cf. Hua XIX/1, V, § 18, p. 418.
64 P. Ricoeur, em seu texto “La cinquème méditation cartésienne” (À L’école de la phénoménologie. Paris: Vrin,
1986, p. 196-225) indica que a extensão da quinta meditação cartesiana de Husserl (tão longa quanto as quatro
demais meditações juntas) atesta a importância da experiência do outro na Fenomenologia de Husserl. É a “pedra
de toque” da Fenomenologia transcendental.
65 Sobre o Idealismo Transcendental, veja-se Ideen I, § 41 em Hua I. Fica por verificar se constituição
signifique a criatividade da consciência ou modo, condição na qual a consciência apreende um objeto como tal.
Cf. Pancaldi, M.; Trombino, M.; Villani, M. Atlante della filosofia: gli autori e le scuole, le parole, le opere.
originariedade da consciência. A auto-evidência se mantém independentemente da
experiência do mundo, que é apenas uma possibilidade. Entretanto, também acaba expondo-se
ao “solipsismo transcendental”,66 ou seja, à impossibilidade de conceber algo verdadeiro
existente fora do próprio sujeito. A objeção, segundo Ricoeur, é o resultado lógico da redução
realizada na quarta meditação: tudo é incorporado à via intencional do ego concreto; o sentido
do mundo acaba sendo unicamente a explicitação do ego, a exegese da sua vida concreta. O
monadismo absorve toda a alteridade em mim mesmo: “… todo sentido nasce dentro de (in) e
a partir de (aus) mim”.67
Husserl só sairá do solipsismo elaborando o importante conceito de alter ego, ou seja,
de um segundo ego que, mesmo remetendo ao sujeito no que se refere ao seu sentido, acaba
tendo uma existência objetiva no mundo real. Portanto, a partir do ego mônada se desenvolve
a possibilidade de pensar e conhecer os outros sujeitos, os quais vão, enfim, formar a
“comunidade intermonádica”, a partir da qual resultará o mundo objetivo. A experiência de
um mundo é obra de um ego inserido na consciência de uma comunidade de sujeitos em
consciência recíproca da harmonia dos seus fluxos de experiência. Ele busca, assim, numa
filosofia da intersubjetividade, o fundamento superior da objetividade que Descartes
encontrou na veracidade divina.
Na quinta das suas Meditações Cartesianas, Husserl aborda o problema da experiência
do outro como objeção ao solipsismo e, assim, apresenta uma teoria transcendental da
experiência do outro. Pensamos que, ao fazer tal, o Autor também apresenta,
conseqüentemente, uma teoria transcendental do mundo objetivo e uma teoria transcendental
do eu primordial, pois não tem sentido falar de um ego destituído da experiência de um alter
ego e de um mundo natural como estrato subjacente. Vale entretanto lembrar, como observa
Pedro M. S. Alves, que o intento da Fenomenologia não é indicar provas da existência de um
outro sujeito, ou do mundo em geral, mas “explicitar o sentido dos actos intencionais em que
um outro sujeito é visado e posto como existente”.68
Milão: Hoelpli, 2006. 648p. Disponível parcialmente em: http://books.google.com.br/books?hl=pt-
BR&id=KwNdfj_QwPAC&dq=trombino+atlante+della+filosofia&printsec=frontcover&source=web&ots=dLC-
9wSTPv&sig=m6pC3_j9j-fPpQzEk2O6Eld-ibo#PPP5,M1 Acessado em: 09Maio2008.
66 O solipsismo, dificuldade na qual a filosofia caiu, especialmente a partir de Descartes, ao ter realizado a
separação entre corpo e mente (corpus e mens), consiste na incapacidade de estabelecer relação direta entre os
estados de experiência interiores e pessoais e o conhecimento objetivo de algo para além deles, ou seja, do
mundo e do outro.
67 “… tout sens naisse dans (in) et à partir de (aus) moi”. Ricoeur, P. La cinquème méditation cartésienne. À
L’école de la phénoménologie. Paris: Vrin, 1986, p. 198.
68 Em seu estudo “Empatia e ser para outrem”, publicado na revista Phainomenon, Pedro M. S. Alves parte do
significado da experiência de um alter ego para analisar os conceitos de ser-para-outrem e de empatia para Sartre
e para Husserl. Para tal, vale-se especialmente da quinta das Meditações cartesianas de Husserl e de A
transcendência do ego (1936) e O ser e o nada (1943). Alves, P. M. S. Empatia e ser para outrem: Husserl e
Sartre perante o problema da intersubjectividade. Phainomenon: revista de fenomenologia, Lisboa, n. 12, p. 123-
Pela epoché fenomenológica, reduzo-me aos meus “estados de consciência puros”. No
entanto, os “outros” não são simples representações em mim. Abstraindo do problema dos
“cérebros numa cuba” de Hilary Putnam,69 também exemplificado na série de filmes Matrix,
os “outros” estão para além de mim. Como é possível, então, estabelecer uma relação entre os
estados de consciência e o que está para além deles?

Husserl afirma que “sobre o fundo do nosso eu transcendental se afirma e se manifesta


o alter ego”.70 Contudo, como o propõe Alves: “Como é possível uma doutrina da
constituição do alter ego como um ser para si, se constituir significa reenviar esse ‘para si’ ao
para mim da minha experiência?”71 Logo, à pergunta como o sentido do alter ego se forma
em mim, dever-se-ia contrapor esta outra: como o sentido do ego se forma em mim a partir do
sentido do alter ego? Nossa tese é de que perceber a si mesmo como um ego é indissociável
de perceber um alter ego. Se é verdade, como afirma Ricoeur, que o outro é apenas um
sentido logicamente secundário, porque constituído em mim e a partir de mim, também é
logicamente verdade que não posso dissociar o sentido de ego do sentido de alter ego.72
Invertendo a interpretação sartreana assuntada por Alves,73 poderíamos dizer que o problema
da autoconsciência deve ser formulado e tratado no horizonte do problema da alteridade.
O outro é percebido como correlativo do meu cogito. É percebido como regendo
psiquicamente o corpo fisiológico que lhe pertence, como sujeito para o mundo “no” qual
está, e, por isso mesmo, como alguém “que tem experiência de mim como eu tenho a
experiência do mundo e, nele, dos “outros”.74 Logo, da mesma forma como a consciência, em
intencionalidade, é constitutiva de…, a consciência do outro (pressuposta como análoga à
minha) é-me constituinte. Não me constitui, pois equivaleria a afirmar que me constitui nele,
mas sim é-me constituinte, pois me constitui em mim mesmo. Assim, é preciso analisar e
descrever as estruturas intencionais nas quais a existência dos outros “se constitui” para mim
no conteúdo que “preenche” as suas intenções e eu mesmo me constituo no espaço de tal
“preenchimento”.
O que é meu? Pertence-me, primeiramente, o meu ser concreto na qualidade de

146, 2006, p. 125. Conforme também p. 127-128.


69 Putnam, H. Reason, truth, and history. Cap. 1: Brains in a vat. Cambridge: Cambridge University Press,
1981, p. 1-21. Disponível em: http://www.cavehill.uwi.edu/bnccde/PH29A/putnam.html Acessado em:
14Maio2008.
70 MC, § 42, p. 116.
71 Alves, P. M. S. Empatia e ser para outrem: Husserl e Sartre perante o problema da intersubjectividade.
Phainomenon: revista de fenomenologia, Lisboa, n. 12, p. 123-146, 2006, p. 124.
72 Cf. Ricoeur, P. La cinquème méditation cartésienne. À L’école de la phénoménologie. Paris: Vrin, 1986, p.
202.
73 Cf. Ibidem, p. 129.
74 MC, § 43, p. 117.
“mônada”. A seguir, a esfera da intencionalidade. Nela, segundo Husserl, tenho experiência
do outro numa operação de transposição por analogia. Por outro lado, a experiência do outro é
acaba sendo uma oportunidade para a consciência de mim mesmo. Ao contrário da tese
husserliana, a intuição fundamental de Sartre é de que o outro é mediador para a minha
própria autoconsciência. Adquiro consciência de mim mesmo por meio da consciência de meu
devir-objeto para outrem.75
Se realizarmos a redução de tudo o que é “estranho” ao eu, permaneceremos na esfera
de pertença do “eu próprio”, àquilo que me é próprio como resíduo de uma epoché que retire
do “mundo” tudo o que me é estranho. O “resíduo” de tal abstração é a “natureza que me
pertence”. Primeiramente, o meu corpo orgânico (Leib), que se distingue dos demais corpos
precisamente por ser orgânico, por ser “o único corpo de que eu disponho de uma maneira
imediata assim como de cada um dos seus órgãos”.76 A seguir, pela atividade perceptiva,
tenho (ou posso ter) “a experiência de qualquer ‘natureza’”, inclusive do meu próprio corpo.
O “resíduo” é, segundo Husserl, “um eu psico-físico com corpo, alma e eu pessoal, integrado
nesta natureza graças ao seu corpo”.77 Assim, Husserl pretende superar o dualismo: a esfera de
pertença é uma “unidade psico-física”, mas que se percebe em dualidade de corpo (orgânico)
e alma (consciência).
Entretanto, o mundo, existente para mim enquanto objeto das minhas “intenções”, é
inerente ao meu ser psíquico. O mundo das entidades objetivas em geral, e inclusive o meu
corpo enquanto me percebo a mim próprio como um ser do mundo, é inerente à minha
consciência como objeto das intenções do ego transcendental.
A esfera de pertença ou ego é, antes mesmo de qualquer determinação, percebida
como um “horizonte”. Sem me objetivar, dou-me conta de sempre ter estado aí numa intuição
original. No dizer de Husserl: “Sou-me presente com um horizonte aberto e infinito das
propriedades internas ainda não-descobertas”.78 Sou-me “antecipadamente presente”.
Portanto, pode-se dizer que a consciência é a própria apercepção da presencialidade. É auto-
presencialidade e auto-pertença, antes de qualquer explicitação e determinação.
A explicitação da percepção de si próprio, do meu ego concreto, se dá “sob a forma de
uma infinidade aberta da corrente da consciência, infinidade de todas as minhas

75 Alves, P. M. S. Empatia e ser para outrem: Husserl e Sartre perante o problema da intersubjectividade.
Phainomenon: revista de fenomenologia, Lisboa, n. 12, p. 123-146, 2006, p. 135.
76 Ao que parece, Husserl descreve a “esfera de pertença” partindo de um ego transcendental que percebe “ter
um corpo”. MC, § 44, p. 124.
77 MC, § 44, p. 125.
78 MC, § 46, p. 130.
propriedades”:79 em primeiro lugar, das propriedades atuais (percepção daquilo que se efetua
no presente); em segundo, das propriedades possíveis (futuro); o passado é descortinado
apenas na recordação. Esta explicitação da corrente de consciência (presente e, a partir dele,
futuro e passado) faz parte da evidência apodítica de como eu me percebo a mim mesmo
transcendentalmente. Isto significa duas coisas: 1) o que “eu sou” estende-se na explicitação
da corrente da consciência temporal; 2) a consciência é a explicitação da temporalidade.
No parágrafo 48, Husserl declara que se pode estabelecer uma distinção entre “os
modos de consciência que me pertencem” e “os modos da minha consciência de mim
próprio”,80 a partir da oposição que se pode realizar entre o ser que me é próprio e qualquer
outra coisa.
O ego próprio, o Si aí implicado, constituído no interior da esfera da minha pertença
primordial, surge como unidade psico-física, como um eu pessoa, mas também como um
“sujeito de uma vida intencional concreta, sujeito de uma esfera psíquica que se refere a ela
própria e ao ‘mundo’”.81 A consciência, neste sentido, é a esfera psíquica auto-referida, mas
também referida ao “mundo” apercebido como alter, como estranho. O “mundo” e o “outro”
integram-me enquanto os percebo num “acoplamento original”, mas em nenhum momento o
eu psico-físico primordial se confunde, quer me viro “ativamente” para mim ou não. O
“outro” aparece fenomenologicamente como uma alteração, uma modificação do “meu” eu;
entretanto, o “eu” só adquire a característica de ser “meu” graças ao acoplamento que os opõe.
Numa palavra, a consciência é “minha” por se opor ao “outro”. 82 Assim, cada compreensão de
outrem que efetuo cria novas possibilidades de compreensão e, dialeticamente, cada
compreensão efetuada desvenda a nossa própria vivência psíquica na sua semelhança e na sua
diversidade. Poder-se-ia mesmo dizer que as potencialidades do eu se concretizam em
acoplamentos e que estes, por sua vez, tornam possíveis novas potencialidades.83
Considerando que o meu ego só pode ser um ego que possui experiências do mundo se
estiver em relação com outros ego, seus semelhantes, se for membro de uma sociedade de
mônadas, os atos intencionais só são possíveis numa comunidade intermonádica. 84 Trago em
79 Ibidem.
80 MC, § 48, p. 134.
81 MC, § 50, p. 141.
82 Cf. MC, § 52, p. 147.
83 Cf. MC, § 54, p. 153.
84 Mas como se dá o estabelecimento da comunidade das mônadas? Primeiramente se dá na percepção do ser
comum da “Natureza”: o corpo do “outro” é inseparável de mim próprio enquanto é o “elemento determinante
do meu ser próprio”. O corpo do outro tem uma função co-apresentativa, isto é, tenho consciência de outrem
porque ele se revela num illic (ali) absoluto. Este illic é inseparável do hic (aqui) absoluto. É a existência do
corpo dado a mim como illic que me permite percepcionar o meu corpo como hic, como “corpo central”, “ponto
zero”. (Cf. MC, § 55, p. 156-157). A Natureza, então, é constituída como identidade das multiplicidades. Esta
estrutura é-me dada originalmente como pertença. A co-apresentação estabelece uma identidade entre a minha
mim estruturas que implicam a co-existência de outras mônadas.85
Ao explicitar o que me é próprio, aquilo que me pertence, acabo compreendendo no
“próprio” o “não-próprio”. Por analogia, o “não-próprio” adquire o seu sentido. Ainda que
permaneça como verdadeiro que tudo o que existe para mim só pode extrair o seu sentido
existencial de mim, o solipsismo é dissipado.86
A consciência de mim próprio só é possível graças a esta “comunhão espiritual com o
ser”.87 É a penetração intencional de outrem na minha esfera primordial. A existência de uma
mônada constituída em mim como estranha estabelecendo uma comunidade em mim, mônada
primordial, a partir da qual o mundo objetivo é estabelecido.

natureza primordial e a natureza representada pelos outros. Secundariamente, o estabelecimento da comunidade


das mônadas se dá na percepção do outro como um corpo constituído no interior da minha esfera primordial.
Constituo em mim um outro eu, na minha mônada uma outra mônada graças à verificação concordante da
constituição aperceptiva (Cf. MC, § 55, p. 160). A verificação concordante estabelece a normalidade e, a partir
dela, as anomalias e, inclusive, a animalidade. Progressivamente, todo o mundo da objetividade é constituído.
85 Cf. MC, § 60, p. 176.
86 Cf. MC, § 60, p. 189.
87 MC, § 56, p. 164.

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