Um estudo a partir das Investigações Lógicas (Vª) e das Meditações Cartesianas (Vª)
Everaldo Cescon1
RESUMO: Apresentação e discussão de três conceitos de consciência apresentados por Husserl, a partir da
análise da Quinta das Logische Untersuchungen e da Quinta das Cartesianische Meditationen. Nomeadamente:
a) a consciência como unidade fenomenológica real total do eu empírico, no fluxo temporal; b) a consciência
como autoconsciência, como a percepção interna das próprias vivências psíquicas; c) a consciência como
vivência intencional ou ato psíquico. Também se analisa como Husserl foge ao solipsismo transcendental elaborando o conceito de alter ego,
ou seja, de um segundo ego que, mesmo remetendo ao sujeito no que se refere ao seu sentido, acaba tendo uma
existência objetiva no mundo real. Husserl aborda o problema da experiência do outro e, assim, apresenta uma
teoria transcendental da experiência do outro, simultaneamente a uma teoria transcendental do mundo objetivo e
uma teoria transcendental do eu primordial.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia Contemporânea, Fenomenologia, Filosofia da Mente, Husserl,
Consciência
ABSTRACT: Presentation and discussion of three concepts of consciousness presented by Husserl, starting
from the analysis of the 5th of the Logische Untersuchungen and the 5th of the Cartesianische Meditationen.
Nominally: a) the consciousness as phenomenological total real unity of the empirical Self, in the time flow; b)
the consciousness as auto-consciousness, as the internal perception of the proper psychic experiences; c) the
consciousness as intentional experience or psychic act. It is also analyzed the way how Husserl rejects the
transcendental solipsism formulating the concept of alter ego, in other words, of a second ego that, even
remitting to the subject as far as its sense is concerned, it has an objective existence in the real world. Husserl
approaches the problem of the experience of the other and, thus, presents a transcendental theory of the
experience of the other, simultaneously to a transcendental theory of the objective world and a transcendental
theory of the primordial Self.
KEY-WORDS: Contemporary Philosophy, Phenomenology, Philosophy of Mind, Husserl, Consciousness
Introdução
1 Pós-doutorando em Filosofia, Universidade de Lisboa. Orientador Prof. Dr. Pedro M. S. Alves. Bolsista
Fundação para a Ciência e Tecnologia, Portugal. Doutor em Teologia, Pontifícia Universidade Gregoriana, Itália.
Professor de Filosofia, Universidade de Caxias do Sul, Brasil.
2 Cf. Sperling, A. P.; Martin, K. Introdução à psicologia. São Paulo: Cengage Learning, 2003.
consciência, dos relatos introspectivos e das associações livres do inconsciente.3
Os cognitivistas estão interessados em saber como a mente estrutura ou organiza as
experiências - influência da Gestalt, que ressaltava, assim como Piaget, uma tendência inata
da mente de organizar a experiência consciente (as sensações e as percepções) em unidades e
padrões de significado. A mente dá forma e coerência à experiência mental. Durante as
décadas 60 e 70 do século XX, o cognitivismo assumiu a doutrina do computacionalismo que
pode ser resumida em três teses: 1) o cérebro é comparável a um computador digital; 2) a
mente é comparável a um programa computacional; e 3) as operações do cérebro podem ser
simuladas em um computador digital.
No entanto, nos últimos anos, segundo Bruner,4 o cognitivismo abandonou o
computacionalismo e passou a dar ênfase a aspectos que considerava esquecidos pela
revolução cognitiva, defendendo que originalmente era o significado, e não o processamento
de informações, o objeto central deste movimento. A questão da natureza da consciência
começou a ocupar o lugar central nas pesquisas em Filosofia da Mente e em Ciência da
Cognição, do qual os estudos de Jackendoff,5 Calvin,6 Dennett7 e Flanagan8 são marcos. O
notável desenvolvimento das neurociências alimentou a convicção de poder penetrar
facilmente na mente utilizando os mesmos instrumentos ou modalidades de investigação que
geraram tanto sucesso nas ciências físicas. Porém, uma compreensão autêntica da mente
continua sendo um objetivo distante. Se é verdade que numerosas experiências indicam uma
estreita correlação entre os nossos estados mentais e as atividades observadas em algumas
regiões cerebrais, também é verdade que tal correlação não nos diz substancialmente nada
acerca da relação causal existente entre os dois domínios de fenômenos.9 A correlação não
consegue explicar como de um conjunto de processos que acontecem impessoalmente dentro
dos neurônios cerebrais seguindo leis físicas se chegue a experiências subjetivas vividas em
primeira pessoa por um determinado indivíduo.
Embora muitos cientistas mantenham a convicção de que o computador seja um bom
modelo da mente humana, não podem ignorar as problemáticas referentes principalmente a
algumas características da consciência, como a subjetividade da experiência e a liberdade
3 Cf. Ibidem.
4 Cf. Bruner, J. Atos de Significação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
5 Jackendoff, R. Consciousness and the computational mind. Cambridge, MA: MIT Press, 1987.
6 Calvin, W.H. The cerebral symphony. New York: Bantam Books, 1990.
7 Dennett, D. Consciousness explained. Boston: Little; Brown, 1991.
8 Flanagan, O. Consciousness reconsidered. Cambridge, MA: MIT Press, 1992.
9 David Chalmers chama a este de “o problema difícil” [hard problem: “Why is all this processing accompanied
by an experienced inner life?” (1996, p. xii)] desqualificando as tentativas de explicação funcional (easy
problems). The conscious mind. New York: Oxford University Press, 1996.
implícita no conceito de vontade consciente, contrapostas à objetividade e à impessoalidade
dos processos computacionais. A questão que se coloca é a seguinte: por que o desempenho
destas funções é acompanhado por experiências? Como e porque surge a experiência no
decorrer do processamento de informação?10
Diante de uma insatisfação crescente por tal modelo, percebe-se a falta de uma
alternativa capaz de se inserir coerentemente no atual paradigma científico. Provavelmente
este seja o motivo pelo qual, enquanto as pesquisas experimentais no campo neurofisiológico
continuam acumulando dados acerca da relação mente-cérebro, os cientistas teóricos parecem
andar em círculos, fazendo retoques marginais, introduzindo conceitos ou distinções ad hoc
em concepções insatisfatórias, alimentando um debate que parece estéril.11
À exceção de alguns casos, como o do físico Roger Penrose,12 a maioria dos cientistas
não parece admitir a possibilidade de que as dificuldades encontradas, ao invés de serem
devidas à extraordinária complexidade do cérebro humano em relação aos ainda limitados
conhecimentos e instrumentos disponíveis, possam advir do fato de ter adotado um quadro de
referência inadequado. Segundo Silva Filho,13 a maioria dos filósofos contemporâneos
compartilha uma visão naturalista do mundo que provê uma crítica devastadora ao
mentalismo e ao dualismo que dominaram as filosofias do conhecimento e da subjetividade
na modernidade. Nesta perspectiva, segundo ele, a pergunta sobre “qual o lugar que a mente
ocupa no mundo” envolve duas coisas: de um lado, o mundo do qual se fala é
necessariamente o mundo físico; do outro, ou a mente deve ser entendida no quadro
referencial14 ou o conceito de mental não passaria de um erro categorial, um mito, uma ilusão
ou simplesmente um mistério.
10 As alternativas mais freqüentes frente a tais dificuldades são essencialmente duas: 1) tendência a diminuir a
importância dos fenômenos conscientes no interior do processo de adaptação do organismo ao ambiente, que
chega em certos casos a considerar a consciência como um mero epifenômeno, sem qualquer função na
determinação e no controle do comportamento; 2) uso da noção de “emergência”, segundo a quela níveis muito
elevados de complexidade estrutural ou funcional dariam origem a características e capacidades totalmente
novas, não previsíveis e não explicáveis com base em leis válidas nos níveis inferiores.
11 Segundo Plínio Junqueira Smith, em Do começo da filosofia e outros ensaios, São Paulo: Discurso, 2005, não
somente não chegamos à verdade, como também não nos aproximamos dela. Tal se deve às dificuldades
inerentes ao assunto. “[…] talvez não seja exagero dizer que não somente existe uma falta de consenso, quanto
de uma perspectiva de consenso”. (p. 288). Smith considera que a raiz desta situação de conflito é a aceitação
por parte dos participantes no debate de certas dicotomias tais como mente-corpo e primeira (conhecimento dos
próprios estados mentais) e terceira pessoa (conhecimento dos estados mentais dos outros). Tal distinção,
segundo ele, não reflete a realidade humana, é arbitrário e improcedente. A solução por ele proposta começaria
por um profundo questionamento acerca dos próprios termos do debate.
12 Cf. Roger Penrose, Shadows of the mind: a search for the missing science of consciousness. Oxford: Oxford
University Press, 1994. Nesta obra, o autor afirma que as leis físicas atualmente disponíveis são insuficientes
para explicar certas características e propriedades da mente humana.
13 Cf. Waldomiro José da Silva Filho, Ceticismo e filosofia cética da mente, Sképsis – Revista de Filosofia, São
Paulo, ano 1, n. 1, p. 142-148, 2007, p.145.
14 Segundo Chalmers, deve-se ampliar o conceito de mundo natural para tornar possível uma teoria naturalista
da consciência. The conscious mind. New York: Oxford University Press, 1996.
Talvez seja prematuro pretender uma mudança drástica de rota. Contudo, poder-se-ia
começar promovendo uma “volta às coisas mesmas”, buscando uma recondução do conceito
de consciência, um conceito que foi vítima, desde o início, de uma grande confusão
semântica, que ainda perdura.
É neste sentido que acreditamos ser de grande valia retomar as investigações de
Edmund Husserl acerca da consciência. Tomar-se-á por base a Quinta Investigação lógica,
intitulada “Sobre vivências intencionais e seus ‘conteúdos’”,15 a qual é o horizonte operativo
em que Husserl começa a analisar o problema da consciência e das vivências intencionais, em
relação às problemáticas tratadas por ele precedentemente, e a Quinta Meditação cartesiana,
intitulada “Determinação do domínio transcendental como 'intersubjetividade monalológica'”,
a qual é a exposição de uma teoria fenomenológica da intersubjetividade.16
Na temática “consciencial”, segundo a qual a consciência deve ser livre de prejuízos
matemáticos e científico-naturais e deve estar em condições de unificar todas as esferas
culturais e todos os modos de consciência (percepcionar, pensar, recordar, simbolizar, amar,
querer…), a obra de Husserl se conecta à tradição neokantiana, como conseqüência do
desenvolvimento do positivismo na Alemanha.
O principal alvo da crítica de Husserl é a impostação empirista e psicologista da
Lógica e, em geral, da Teoria do Conhecimento.17 A análise fenomenológica da consciência
parte do pressuposto de que todas as formas de apriorismo idealista, assim como todas as
formas reducionistas de empirismo, já tiveram o seu tempo.
Husserl desenvolveu a temática usando o método fenomenológico-transcendental. Ele
realiza uma diferenciação psicológico-descritiva dos vários conceitos de consciência, em
15 Husserl, E. Investigações lógicas. Segundo volume, Parte I: Investigações para a Fenomenologia e a Teoria
do Conhecimento. De acordo com o texto de Husserliana XIX/1, editado por Úrsula Panzer. Trad. de Pedro M.
S. Alves e Carlos Aurélio Morujão. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007. Doravante
Hua XIX/1: Logische Untersuchungen. Ergänzungsband. Erster Teil. Entwürfe zur Umarbeitung der VI.
Untersuchung und zur Vorrede für die Neuafulage der Logischen Untersuchungen (Sommer 1913).
Hrsg. von Ullrich Melle. 2002, liv + 442 pp. A indicação das páginas segue a Husserliana.
16 Husserl, E. Meditações cartesianas. Quinta. 2.ed. Porto: Rés, [1986?]. p. 115-198. De acordo com o texto de
Husserliana I: Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge. Hrsg. und eingeleitet von Stephan Strasser.
Nachdruck der 2. verb. Auflage. 1991. xxii + 260 pp. Doravante apenas MC.
17 O psicologismo em geral considera os pensamentos como meros "eventos mentais" e, conseqüentemente,
como o biologismo, interpreta a lógica como um ramo da psicologia. Disto deriva que a impossibilidade de
admitir proposições contraditórias não deriva da validade em si do princípio de não contradição, mas sim de um
dado de fato: a nossa mente é feita de um modo que a impede de pensar contraditoriamente. Se nós temos uma
certa concepção do mundo, uma certa lógica e, portanto, uma certa idéia de razão, isto depende da nossa
constituição psíquica, que poderia ser diferente e, em tal caso, nos faria viver num outro mundo. O psicologismo
é considerado por Husserl uma variante do naturalismo, afim ao biologismo, que interpreta as leis lógicas como
leis do funcionamento do cérebro. Com base nisso se poderia argumentar que a lógica aristotélica deriva de uma
certa estrutura do cérebro e que com a mudança da massa cerebral, por conseqüência dos processos evolutivos,
mudaria também a nossa lógica. Cf. Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2008. Disponível em:
<URL: http://www.infopedia.pt/psicologismo>. Data de acesso: 03Abr.08.
perspectiva analítico-essencial,18 fundindo-os uns nos outros, desdobrando os conceitos
implicados a fim de delimitar o seu campo específico.
Na “Introdução” à Quinta Investigação, o pai da fenomenologia indica que, muitas
vezes, se define consciência como “uma expressão abrangente para atos psíquicos de todo
tipo”.19 Definir a essência fenomenológica de tais atos é tarefa relacionada à separação entre
fenômenos psíquicos e físicos operada por Descartes no século XVII, delimitação surgida
precisamente para circunscrever o domínio psicológico. Assim, definir a essência de ato, na
qual se deve distinguir caráter ou qualidade e conteúdo, assume uma centralidade.
Discutiremos, portanto, três conceitos de “consciência” apresentados por Husserl, a
partir de vivência (Erlebniss): a) “consciência como unidade fenomenológica real total do eu
empírico, enquanto entrelaçamento das vivências psíquicas na unidade da corrente de
vivências” (ao qual corresponde uma teoria do fluxo ou dos horizontes temporais - § 2); b)
consciência como autoconsciência, “o interno dar-se conta das vivências psíquicas próprias”,
ou a “percepção ‘interna’ que acompanha as vivências atualmente presentes” (ao qual
corresponde uma teoria das fases do ato intencional e de temporalidade - § 5); c) “consciência
como vivência intencional” ou ato psíquico, ou melhor, como consciência de objeto (ao qual
corresponde uma teoria da intencionalidade - § 9 e seguintes). Noutro texto, Husserl afirmou
o seguinte: "é a intencionalidade que caracteriza a consciência no sentido pleno e que, ao
mesmo tempo, permite considerar o fluxo da vivência como fluxo consciente e como unidade
de uma consciência".20
P aralelamente, partindo da Quinta Meditação cartesiana, abordaremos a questão da
intersubjetividade (“esfera intermonádica”). Analisaremos como Husserl escapa ao
A primeira análise de Husserl tem por objeto a consciência como unidade real-
fenomenológica das vivências do eu. Comecemos, então, explicitando o que sejam, segundo
Husserl, “vivências”.
Na atitude natural, temos experiências que começam a nível perceptivo. Se isolarmos
essencialmente o nosso modo de viver esta experiência, pondo entre parênteses todos os
elementos contingentes, ficaremos com o puro percepcionar como ato de vivência, ou melhor,
como ato que é possível que todos vivam. Tomar o ato na sua pureza quer dizer examiná-lo
em si mesmo como ato vivido, como “elemento integrante de uma unidade de consciência na
corrente de consciência fenomenologicamente unitária de um eu empírico”. 21 Em outras
palavras, é um ato psíquico.22
A vivência perceptiva, tal como outras vivências que podem ser isoladas na análise
fenomenológica, por exemplo a vivência rememorativa, a vivência imaginativa e a vivência
judicativa, se apresenta como uma vivência caracterizada pela “intencionalidade”, pelo ser
consciência de, portanto, pelo estar dirigida intencionalmente a algo, que pode ser imanente
(no caso de a coisa à qual estar dirigida ser a própria percepção interna) ou transcendente (no
caso de estar dirigida a coisas externas). Significa que a Erlebnis fenomenológica não se
refere à relação factual entre um evento psíquico e um objeto, ou seja, à relação “existente” na
realidade objetiva, mas sim à sua essência. Portanto, Husserl distingue o conceito de Erlebnis
do conceito de “experiência vivida”, onde ocorre comumente um entrelaçamento entre
conteúdos objetivo-mundanos e conteúdos psíquicos.
Podemos distinguir duas modalidades de vivências intencionais: as proposicionais e as
não-proposicionais. As proposicionais são aquelas em que a palavra algo não se refere
propriamente ao objeto, mas a fatos que podem ser expressos por frases do tipo "que isto".
21 Hua XIX/1, V, § 4, p. 364.
22 Atos psíquicos são “atividades da consciência”, “relação da consciência com um conteúdo (objeto)”. Envolve, portanto, uma fenomenologia das representações, pois, como Husserl afirma,
partindo de Brentano, “cada ato ou é uma representação ou tem representações por base”. (Hua XIX/1, V, Introdução, p. 354).
Porém, há casos de vivências intencionais em que o objeto só pode ser expresso por termos
singulares, que designam objetos. Por exemplo, amar, admirar. Ora, é uma tese fundamental
da fenomenologia que essas formas de consciência não-proposicionais não necessitam da
mediação lingüística, pois pressupõem uma relação sujeito-objeto livre de qualquer mediação
lingüística.
Para a Psicologia moderna, “vivência” é uma ocorrência real que, mudando de
momento para momento, em múltiplas ligações e interpenetrações, faz a unidade real de
consciência do respectivo indivíduo psíquico. Neste sentido, são “vivências” as percepções, as
representações da fantasia e as representações de imagem, os atos do pensamento conceitual,
as suposições e dúvidas, as alegrias e as dores, as esperanças e os temores, os desejos e as
volições, e coisas semelhantes. Mas de pouco importa se tais são objeto de percepção
“interna” ou não. O que importa é que elas sejam conteúdo real23 da consciência.
No caso de uma percepção, por exemplo, a existência real das “determinidades
singulares”, extra mentis, daquilo que é perceptivamente visado não afeta o caráter interno do
“vivido”. Aquilo que é percepcionado não é vivido, nem está na consciência. A “vivência”
corresponde ao que do aparecente é vivido e não à coisa em sua ipseidade, contribuindo para a
tessitura da consciência. Assim, o mundo objetivo externo não faz parte da consciência, mas
contribui para a sua construção. Diferentemente de Kant que identifica o aparecente ao
fenomênico, Husserl identifica o aparecente ao vivido. Husserl transforma a estrutura diádica
kantiana numa estrutura tetrádica, ou seja, o númeno (a coisa em si) e o fenômeno (aquilo que
aparece), agora se tornam: o objeto que é visado (dado numa síntese de identificação, um
mero produto lógico); o objeto tal como é visado (modos de intenção); o ato de visar; e as
vivências. Tal ponderação fica ainda mais evidente quando Husserl afirma que “a vivência
não é, ela própria, aquilo que 'nela' está intencionalmente presente”.24
Como parte do mundo fenomênico, podemos naturalmente aparecer-nos a nós
próprios, tornando-nos objeto fenomênico. É uma relação entre duas coisas aparecentes. No
23 Real (as coisas, os objetos) opõe-se a ideal;(objetos pensados, matemáticos, por exemplo) ao passo que reell
(atos ingredientes da intencionalidade) opõe-se a ideell (objetos visados, que estão na mente enquanto visados,
mas não realmente).
24 Cf. Hua XIX/1, V, § 2, p. 360. É bom registrar que o postulado kantiano da “coisa em si” (númeno) quer
significar uma realidade independente do sujeito cognoscente. A Teoria do Conhecimento denomina esta
concepção de “realismo ontológico”. A fenomenologia, sob pena de filiar-se ao Idealismo (conceber a realidade
como fruto do pensamento) ou ao Solipsismo (concebe que a única coisa existente no mundo é o eu), não pode
negar este realismo, como o fazem outros filósofos (p. e., Thomas Kuhn, o qual, no posfácio de sua obra A
estrutura das revoluções científicas (Trad. de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira, São Paulo: Perspectiva,
2001), rejeita textualmente a categoria ontológica “mundo em si”). Não se pode acusar a fenomenologia de
“irrealismo ontológico”, pois passa à margem da categoria kantiana. Husserl não nega a relação do fenômeno
com o mundo exterior, mas prescinde desta relação, suspendendo o juízo em relação a ele para chegar ao
fenômeno puro. Decididamente, a fenomenologia não é fenomenismo, no sentido de que tudo o que existe se
reduza a um fenômeno da consciência.
entanto, tal conteúdo de consciência não tem absolutamente nada a ver com “a consciência no
sentido da unidade dos conteúdos de consciência (a consistência fenomenológica do eu
empírico). É uma vivência singular com a complexão das vivências”.25
Até agora se falou das vivências intencionais. Entretanto, como bem observa Ales
Bello,26 nem todas as vivências são intencionais. Há também aquelas chamadas por Husserl de
“momentos efetivos presentes no fluxo das vivências” que não possuem o caráter da
intencionalidade, isto é, de ser consciência de alguma coisa. Se se percepciona uma folha
branca, o branco da folha não é consciência de alguma coisa, mesmo se apresentando como
latore, isto é, como portador de intencionalidade enquanto conteúdo que presenta o branco da
folha.
Tudo o que foi dito até agora sobre as vivências só foi possível graças a uma vivência
particular e especificamente humana, a vivência da reflexão, pela qual toda vivência pode se
tornar objeto de uma percepção interna e objeto de uma reflexão teorética ou avaliativa. As
vivências espelham todas as operações, todas as experiências, toda a constituição do sujeito
humano e da realidade natural, mas as conexões de sentido só acontecem entre as próprias
vivências: o ser como realidade e o ser como consciência estão correlacionados, mas distintos.
Os diferentes tipos de vivência encontram-se na unidade de uma corrente de vivências,
à qual Husserl denomina consciência. A consciência é para Husserl, nesse sentido, um
movimento permanente de fenômeno. Tudo encontra seu lugar na unidade dessa corrente que
é o "fenômeno originário". Toda vivência, ultrapassa-se necessariamente a si mesma na
direção de outras vivências que constituem, em sua inter-relacionalidade, uma unidade.
Mas de onde vem, então, a “unidade de consciência real”? Tal unidade é dada pelas
próprias propriedades fenomênicas unidas, “unidade que se funda na própria consistência do
seu conteúdo”.27 Significa dizer que “o eu fenomenológico reduzido não é nada de peculiar
que paire sobre as múltiplas vivências, mas é simplesmente idêntico à própria unidade de
ligação dessas vivências”. Não carece de um “princípio egológico próprio” como contentor ou
recipiente,28 ou um centro no cérebro em direção ao qual todos os sinais convergem dando
lugar ao fenômeno da consciência. Dennett29 chama esta última concepção de “Modelo do
Teatro Cartesiano” porque remontaria, precisamente, a Descartes. Definitivamente, não existe
um lugar central, um “Teatro Cartesiano” para onde “tudo converge” para ser examinado por
25 Ibidem, p. 360.
26 Ales Bello, A. Husserl interprete di Kant. Dialeghestai. Rivista telematica di filosofia. Roma, Ano 7, jul.
2005. Disponível em: http://mondodomani.org/dialegesthai/aab02.htm Acessado em: 07maio2008.
27 Hua XIX/1, V, § 3, p. 362.
28 Hua XIX/1, V, § 4, p. 364.
29 Cf. Dennett, D. Consciousness explained. Boston: Little, 1991.
um observador privilegiado.
Ao mesmo tempo em que se percepciona uma alteração contínua de conteúdos, o eu
percepciona uma unidade de coexistência que passa de ponto temporal a ponto temporal; é
“unidade de alteração”. Ocorre um “fluxo de consciência” sem a diluição do eu
fenomenológico. Em tal fluxo, a consciência exige “constante persistência ou constante
alteração de pelo menos um momento, essencial para a unidade do todo”.30
Em suma, a unidade de consciência real provém do tempo “que pertence de modo
imanente à forma de apresentação do fluxo de consciência, enquanto unidade que aparece
temporalmente”. Modernamente, fala-se acerca da duração do processamento de informações
como um elemento central da consciência, com grande ênfase na temporalidade dos processos
cognitivos. A consciência não é um recipiente no qual estariam as vivências, mas é percebida
como um “fluxo”. “Cada fase atual do fluxo de consciência, portanto nela se apresenta todo
um horizonte temporal do fluxo, possui uma forma que abarca todo o seu conteúdo, que
permanece continuamente idêntica, enquanto o conteúdo se altera constantemente”.31 Logo,
sem alteração, sem fluxo de conteúdo, também não haveria consciência. Sem persistência,
também não haveria consciência. Seria como se o eu empírico perde-se a sua identidade,
perde-se a sua anima, o seu espírito vivificador.
A expressão “conteúdos” remete justamente a uma “unidade englobante” que os
possui. Em sentido comum poderia referir-se a algo que pairasse sobre as múltiplas vivências,
como um “princípio egológico” portador de todos os conteúdos, mas não no sentido da
psicologia descritiva, para a qual o ponto de referência é o todo, é a “unidade de consciência
real”, é a “soma total das 'vivências' presentes”, que constitui o “eu fenomenológico” ou
consciência. “O 'eu fenomenológico' [...] é simplesmente idêntico à própria unidade de ligação
dessas vivências”.32
Como se dá a consciência-de-consciência, isto é, como se dá o estado normal de
consciência? Pode-se dizer que, para Husserl, a esfera da atualidade das vivências,
considerando que há também Erlebnisse cuja consciência se move do modo atual ao inatual e
viceversa. A consciência abraça as Erlebnisse que são atuais, mesmo que a consciência nunca
possa consistir de puras atualidades. As atuais estão em contraste com as inatuais por estarem
na evidência do cogito - “eu tenho consciência de alguma coisa” -, enquanto as inatuais
constituem o halo de consciência de modo que as cogitationes estejam circundadas por
inatualidades. Atualidades e inatualidades estão sempre expostas a uma fluidificação
30 Hua XIX/1, V, § 6, p. 369.
31 Hua XIX/1, V, § 6, p. 369.
32 Hua XIX/1, V, § 4, p. 364.
consciencial de ascensão e descensão, que se articula constantemente na forma da contínua
consciência interna do tempo, no qual cada vivência seguinte mantém o resultado da vivência
que a precedeu e acrescenta novo material para a vivência futura. Quando podemos captar
uma vivência de modo mais nítido (atual), então, naquele momento, estamos diante de um
estado bem definido da consciência. Mas não significa que seja um estado ordinário da
consciência. Antes pelo contrário, a tranqüila ordinariedade se torna descontínua. A corrente
contínua das vivências se bloqueia. A algo que oferece características homogêneas de duração
como a consciência vivida, se opõem estados de consciência tais a ponto de perturbar o fluxo
da vida interior do sujeito e que nos permitem captá-lo por meio de uma ressonância entre
aquele estado particular e algo dentro de nós ao qual aquele mesmo estado remete.
Segundo outros filósofos e estudiosos do tema, tais como Bernet, Kern e Marbach,33 o
fluxo da conciência de que fala Husserl põe em evidência a característica da conciência a
imergir-se no tempo, ou seja, a sua capacidade de se encontrar em diferentes dimensões
durante o ato cognoscitivo da realidade. O fluxo de conciência não tem, portanto,
propriedades espaciais e a sua atividade ocorre na corrente de temporalidade imanente.
Segundo Husserl, a conciência, no tempo, segue duas dimensões: uma direção objetiva, ou
seja, tem a possibilidade de captar um objeto temporal; e uma subjetiva, como fluxo de
conciência, que é continuum personale das experiências vividas. Este continuum da
conciência se constitui de uma retenção, de uma atualidade potencial presente e de protensão.
Para Husserl, na retenção os acontecimentos cotidianos são retidos na forma de
passado e na protensão o existente humano antecipa os acontecimentos; contudo, esta
antecipação é sempre feita a partir do momento presente. Assim, o passado é retido como
passado no presente e o futuro é antecipado como futuro, também a partir do presente.
Poderíamos dizer que o presente é uma síntese do que é retido e do que é antecipado.
Conforme o antecipado passa, é retido como passado. Portanto, é através do tempo que se dá a
unificação das vivências que o eu tem do mundo. E é a partir do tempo que se constitui a
subjetividade do eu transcendental.34
Em suma, analisando a própria vida de consciência, portanto, o ego capta a si mesmo
sob dois aspectos: 1) como corrente ou fluxo das vivências; e 2) como “eu” estável e
permanente, pólo idêntico deste fluxo, ao qual todos os momentos de consciência fazem
referência.
33 Bernet, R.; Kern, I.; Marbach, E.. Edmund Husserl. Bologna: Il Mulino, 1989.
34 Husserl, E. Lições para uma fenomenologia da consciência íntima do tempo. Trad. e notas de Pedro M. S.
Alves. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1994. Cf. Belibio, E. A Fenomenologia do tempo em
Heidegger e Husserl. Analecta, Guarapuava, vol. 6, n. 2, p. 77-83, jul./dez. 2005. Disponível em:
http://www.unicentro.br/editora/revistas/analecta/v6n2/06%20Artigo.pdf. Acessado em: 13Maio2008.
A partir das considerações de Husserl sobre o fluxo de consciência, sobre a
“consciência de” em relação à realidade natural, Searle, já em A redescoberta da mente,35
postulará a hipótese de que também a consciência é uma propriedade biológica do cérebro dos
seres humanos, determinada por processos neurobiológicos, ou seja, como parte integrante da
ordem biológica, ao invés de restringir-se, como fez Husserl, na relação entre a consciência
intencional e o objeto.
Cabe ainda perguntar-se se acima de cada consciência, no fluxo, não reine ainda a
consciência última, enquanto intencionalidade última que não pode jamais ser objeto de
atenção, ou seja, chegar à consciência.
Se em 1901 a divisão brentaniana de todos os fenômenos em físicos ou psíquicos era
considerada por Husserl como uma das mais notáveis e filosoficamente importantes – o que
circunscrevia a consciência à realidade “psíquica” – já em 1906 ele protestará contra a idéia
oriunda do “pensamento natural” de que todo e qualquer dado ou é físico ou é psíquico. A
partir de então, Husserl reconhecerá que “a consciência não é nenhuma vivência psíquica,
nenhum entrelaçamento de vivências psíquicas, nenhuma coisa, nenhum anexo (estado,
atividade) em um objeto natural”.36 Com a evolução do pensamento husserliano, a idéia da
consciência como representação, idéia racionalista, se tornará superada e proscrita.
35 John Searle, The rediscovery of the mind. Cambridge, MA: The MIT Press, 1992. (Trad. port.: A
redescoberta da mente. Trad. Ana André; Rev. Maria José Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. 304p).
36 Husserl, Manuscrito A I 36, p. 193 a (1920). Apud Moura, C. A. de. Husserl: significação e fenómeno.
doispontos, Curitiba, vol. 3, n. 1, p.37-61, abril 2006, p. 45.
37 Hua XIX/1, V, § 5, p. 365.
38 Hua XIX/1, V, § 7, p. 370.
Uma percepção interna é uma percepção “adequada”: é uma percepção na qual o
objeto está presente em ipseidade (em carne e osso); é uma percepção na qual o objeto é
captado naquilo que ele mesmo é; é uma percepção na qual o objeto está incluído no próprio
percepcionar. Neste sentido, a percepção “adequada” é unicamente a interna, a percepção das
próprias vivências, daquilo que é internamente percepcionado.
Aqui, deve-se evitar o equívoco de interpretar a percepção interna como um saber. Se
assim fosse, alerta Husserl, incorreríamos na “regressão ao infinito” que decorre do fato de a
percepção interna tornar-se novamente uma vivência, que careceria de nova percepção, e
assim sucessivamente. Deixa-se tal problema de lado, visto não ser fenomenologicamente
verificado.
Em Einleitung in die Psychologie nach kritischer Methode,39 Natorp apresenta uma objeção à idéia de que o eu puro seja o “centro
de referência subjetivo” de todos os conteúdos, chamado por Husserl também de consciencialidade. A consciencialidade, segundo o pai da fenomenologia, é a
relação que o eu tem com os seus conteúdos. Para Natorp, no entanto, o eu está referido aos conteúdos enquanto estes lhe estão conscientemente dados,
mas ele, por sua vez, não está relacionado aos conteúdos da mesma forma, isto é, o eu não está “conscientemente dado” aos conteúdos. Esta relação singular faz
do eu puro o “centro de referência subjetivo”. Por isso, segundo ele, não poderíamos descrevê-lo, porque tudo o que dele poderíamos dizer, o
diríamos como conteúdo da consciência e o eu puro não pode se tornar conteúdo nem em nada é semelhante a tudo o que, de algum modo, pode ser um conteúdo
,
de consciência. Uma vez que o sujeito se torna objeto deixa de ser sujeito. Seria como admitir a possibilidade de ser sujeito e objeto contemporaneamente.
Para Husserl, entretanto, o eu centro de referência e a relação do eu com um conteúdo podem ser objeto da consciência, podem ser objetivamente
dados à consciência, enquanto expressamente notados. Assim, as vivências podem ser dadas simultaneamente com a consciência: “o eu a si próprio aparece, tem
40
de si próprio consciência e especialmente percepção”. O eu se auto-pertence.
Para Sartre, a consciencialidade incide, conseqüentemente, num ser-para-si. Se de um
lado a consciência é sempre consciência de alguma coisa (é consciência intencional), do outro
lado ela é também autoconsciência, ou seja, consciência de ser consciência de alguma coisa.
De acordo com o filósofo francês, a consciência de si mesma é uma condição necessária para
que uma consciência cognoscente seja consciência do seu objeto.41 Ela é consciência “para-
si”. Entretanto, a consciência de si mesmos nunca é uma consciência de tipo reflexo, ou seja,
uma consciência “posicional”,42 mas é uma consciência substancialmente irreflexa, não
plenamente consciente. A irreflexividade da autoconsciência é indicada por Sartre com a
expressão “consciência-(de)-si”, na qual o “(de)” possui a função de exprimir a não
39 Einleitung in die Psychologie nach kritischer Methode (“Introdução à psicologia segundo o método crítico”), obra de Paul
Natorp, à qual Husserl se refere, publicada em Friburgo, em 1888.
40 Hua XIX/1, V, § 8, p. 372-375.
41 Cf. Sartre, J. P. L’être et le néant. 41.ed. Paris: Gallimard, 1953. 722p.
42 Eu tenho consciência “posicional” de alguma coisa quando tenho plena consciência do que tenho consciência.
Em tal sentido, é posicional a consciência que eu tenho dos entes externos a mim (por exemplo, tenho uma
consciência posicional da mesa que estou vendo agora). De mim mesmo, como cogito, tenho pelo contrário uma
consciência imediata, irreflexa.
posicionalidade da consciência de ser consciência.
3 Consciência intencional
43 A palavra grega epoché teve o emprego inicial com os céticos em sua postura de nada aceitar e nada refutar;
assim é a “suspensão do juízo” em Pirro: nada se afirma; nada se nega. Com Husserl o termo ganha um novo
sentido e é empregado como “contemplação desinteressada”: as ciências em geral se “interessam” pelo mundo, o
que as impede de contemplá-lo, captando a sua essência. Por meio da epoché fenomenológica tudo o que é
informado pelos sentidos é reduzido a uma experiência de consciência, que consiste em estar consciente de algo.
Requer a suspensão das teorias, atitudes, crenças, para concentrar-se exclusivamente na experiência em foco,
tornando possível a intuição da “coisa mesma”.
Mas qual é a estrutura fundamental da relação consciência-mundo? Husserl diz,
retomando um conceito de Brentano que, por sua vez, o retomara dos Escolásticos medievais:
a “intencionalidade”.
A Escolástica utilizou a palavra intencionalidade para indicar o caráter representativo
do objeto imanente em relação ao objeto exterior e, portanto, para designar a consciência
como tendo um sentido relativamente a esse objeto. O termo “intenção” (do latim intentio) foi
fixado pela primeira vez no texto latino por Avicena e retomado, depois, pelos escolásticos
(Alberto Magno, Tomás de Aquino, Duns Scoto e outros). Significa, originariamente, o
mesmo que “conceito”, assumindo o sentido de “mental” ou “conceitual”. Portanto, os
escolásticos definiram conceito como intentio enquanto nele se exprime um in alium tendere,
isto é, uma referência a algo objetivo.
O conceito de intencionalidade foi retomado, posteriormente, por Brentano que o
tornou característica distintiva de todos os fenômenos psíquicos, contrapostos àqueles físicos.
Intencionalidade significa para Brentano relação ao conteúdo ou direção ao objeto. Assim,
todo fenômeno psíquico se distingue por ser uma “consciência de alguma coisa”.
Brentano44, citado por Husserl nas suas Investigações Lógicas, afirmou:
75 Alves, P. M. S. Empatia e ser para outrem: Husserl e Sartre perante o problema da intersubjectividade.
Phainomenon: revista de fenomenologia, Lisboa, n. 12, p. 123-146, 2006, p. 135.
76 Ao que parece, Husserl descreve a “esfera de pertença” partindo de um ego transcendental que percebe “ter
um corpo”. MC, § 44, p. 124.
77 MC, § 44, p. 125.
78 MC, § 46, p. 130.
propriedades”:79 em primeiro lugar, das propriedades atuais (percepção daquilo que se efetua
no presente); em segundo, das propriedades possíveis (futuro); o passado é descortinado
apenas na recordação. Esta explicitação da corrente de consciência (presente e, a partir dele,
futuro e passado) faz parte da evidência apodítica de como eu me percebo a mim mesmo
transcendentalmente. Isto significa duas coisas: 1) o que “eu sou” estende-se na explicitação
da corrente da consciência temporal; 2) a consciência é a explicitação da temporalidade.
No parágrafo 48, Husserl declara que se pode estabelecer uma distinção entre “os
modos de consciência que me pertencem” e “os modos da minha consciência de mim
próprio”,80 a partir da oposição que se pode realizar entre o ser que me é próprio e qualquer
outra coisa.
O ego próprio, o Si aí implicado, constituído no interior da esfera da minha pertença
primordial, surge como unidade psico-física, como um eu pessoa, mas também como um
“sujeito de uma vida intencional concreta, sujeito de uma esfera psíquica que se refere a ela
própria e ao ‘mundo’”.81 A consciência, neste sentido, é a esfera psíquica auto-referida, mas
também referida ao “mundo” apercebido como alter, como estranho. O “mundo” e o “outro”
integram-me enquanto os percebo num “acoplamento original”, mas em nenhum momento o
eu psico-físico primordial se confunde, quer me viro “ativamente” para mim ou não. O
“outro” aparece fenomenologicamente como uma alteração, uma modificação do “meu” eu;
entretanto, o “eu” só adquire a característica de ser “meu” graças ao acoplamento que os opõe.
Numa palavra, a consciência é “minha” por se opor ao “outro”. 82 Assim, cada compreensão de
outrem que efetuo cria novas possibilidades de compreensão e, dialeticamente, cada
compreensão efetuada desvenda a nossa própria vivência psíquica na sua semelhança e na sua
diversidade. Poder-se-ia mesmo dizer que as potencialidades do eu se concretizam em
acoplamentos e que estes, por sua vez, tornam possíveis novas potencialidades.83
Considerando que o meu ego só pode ser um ego que possui experiências do mundo se
estiver em relação com outros ego, seus semelhantes, se for membro de uma sociedade de
mônadas, os atos intencionais só são possíveis numa comunidade intermonádica. 84 Trago em
79 Ibidem.
80 MC, § 48, p. 134.
81 MC, § 50, p. 141.
82 Cf. MC, § 52, p. 147.
83 Cf. MC, § 54, p. 153.
84 Mas como se dá o estabelecimento da comunidade das mônadas? Primeiramente se dá na percepção do ser
comum da “Natureza”: o corpo do “outro” é inseparável de mim próprio enquanto é o “elemento determinante
do meu ser próprio”. O corpo do outro tem uma função co-apresentativa, isto é, tenho consciência de outrem
porque ele se revela num illic (ali) absoluto. Este illic é inseparável do hic (aqui) absoluto. É a existência do
corpo dado a mim como illic que me permite percepcionar o meu corpo como hic, como “corpo central”, “ponto
zero”. (Cf. MC, § 55, p. 156-157). A Natureza, então, é constituída como identidade das multiplicidades. Esta
estrutura é-me dada originalmente como pertença. A co-apresentação estabelece uma identidade entre a minha
mim estruturas que implicam a co-existência de outras mônadas.85
Ao explicitar o que me é próprio, aquilo que me pertence, acabo compreendendo no
“próprio” o “não-próprio”. Por analogia, o “não-próprio” adquire o seu sentido. Ainda que
permaneça como verdadeiro que tudo o que existe para mim só pode extrair o seu sentido
existencial de mim, o solipsismo é dissipado.86
A consciência de mim próprio só é possível graças a esta “comunhão espiritual com o
ser”.87 É a penetração intencional de outrem na minha esfera primordial. A existência de uma
mônada constituída em mim como estranha estabelecendo uma comunidade em mim, mônada
primordial, a partir da qual o mundo objetivo é estabelecido.