Doxa e crença entre os antropólogos é, antes de tudo, uma chamada
para se pensar como uma interpretação se torna hegemônica e como se reproduzem os fenômenos de crenças coletivas. É também um importante escrito para entender o desenvolvimento histórico da antropologia. E mais: podemos compreender, após sua leitura, teorias e métodos que fundamentaram, e ainda fundamentam, pesquisas antropológicas no mundo inteiro.
O interesse de Lygia Sigaud se resume nesta pergunta: como uma
interpretação, em meio a tantas outras disponíveis no mercado de ideias, pode se tornar hegemônica?
Como método, Sigaud usa o clássico da antropologia, o Ensaio sobre
o Don, de Marcel Mauss, investigando quais as razões para autores, tais como Claude Lévi-Strauss, proporem determinada interpretação, e essa interpretação se tornar doutrina quase que indiscutível entre os acadêmicos. Como suporte de sustentação de sua hipótese, além de Ensaio sobre o Don, Sigaud também faz uso do não menos importante Diário no sentido estrito do termo, de Bronislaw Malinowski; uma vez que a comparação entre as duas obras possibilita o entendimento do como uma interpretação se torna doxa e crença entre os antropólogos.
O ED fundamentou-se a partir da verificação de que em diversas
civilizações as trocas e os contratos se fazem sob a forma de dádivas, teoricamente voluntárias, que na prática são obrigatoriamente dadas e retribuídas. O objetivo de Mauss, segundo Sigaud, era duplo: (...) Chegar a conclusões arqueológicas sobre a natureza das transações humanas, sobre a moral e a economia dessas transações; por outro, mostrar como essa moral e essa economia funcionam ainda em nossas sociedades, e em seguida deduzir conclusões de ordem moral. Seu método consistia em servir-se da comparação precisa, estudando o assunto em áreas determinadas – Polinésia, Melanésia e Noroeste americano – e alguns direitos das civilizações da Antiguidade (2007, p.132).
Todavia, “o ED não era referência obrigatória à época” (2007, p.134).
Por mais que antropólogos reconhecidos como Bronislaw Malinowski – que dedicou apenas uma nota de pé ao estudo de Mauss, no seu livro dedicado ao direito e a ordem nas sociedades primitivas: Crime e Custo – e Franz Boas o citassem. Foi o antropólogo Claude Lévi-Strauss que tornou o ED uma obra reconhecida entre os cientistas sociais do mundo com a “ideia fundamental da reciprocidade”. Lévi-Strauss, a partir do estudo de Mauss, fez uso do princípio da reciprocidade, criado por ele, para explicar as trocas matrimoniais. Segundo o antropólogo adepto do Estruturalismo, Mauss evidenciou que a troca, nas sociedades ditas primitivas, seria menos em forma de transações que de dons recíprocos e enfatizou a importância destas práticas para as ditas sociedades e às nossas sociedades englobadas pelo sistema capitalista moderno. E finalmente, continuando na reflexão de Lévi-Strauss, que essas trocas não têm apenas valor econômico, mas tem significado religioso, social, mágico, jurídico etc. – é aquilo que Mauss chama de fato social total. O fenômeno das trocas, segundo Lévi-Strauss, faria parte das estruturas fundamentais do espírito humano. Em 1950, após a morte de Mauss, Lévi-Strauss foi incumbido de fazer uma introdução para uma coleção de textos de Mauss. Mais tarde essa coletânea seria denominada de Sociologia e Antropologia. Foi na Introdução que Levi-Strauss abriu caminho para tornar-se um intérprete autorizado pela comunidade de cientistas sociais franceses. Sigaud, fazendo referência ao trabalho de Lévi-Strauss, expõe: O trabalho é apresentado como um texto “capital”, o “mais justamente célebre”, aquele cuja influência foi mais profunda, “um evento decisivo da evolução científica”, uma obra-prima. Tantas honrarias o ED jamais recebera em sua saga, que começara nos anos de 1920 (2007, p. 136).
Não obstante, a quantidade de elogios lhe fosse útil para legitimação
de seus escritos, como um grande intérprete da obra de Mauss, faltaram para Lévi-Strauss as críticas à referida obra para ultrapassar Mauss e angariar “um lugar ao céu” na comunidade científica mundial. E ele o faz. Nas palavras de Sigaud,
A observação empírica não lhe permitia ver a troca nos fatos,
mas tão-somente as obrigações de dar, receber e retribuir... Como a virtude da coisa não está na coisa, mas é concebida subjetivamente, ou bem essa virtude não é outra coisa se não o próprio ato da troca, ou bem é de uma natureza diferente e, em relação a ela, o ato da troca se torna um fenômeno secundário. O único modo de escapar ao “problema teria sido perceber que é a troca que constitui o fenômeno primitivo, e não as operações discretas nas qais a vida social a decompõe. Mauss teria procurado restituir o todo com sua partes, porém, como isso seria impossível, teria então acrescentado uma quantidade suplementar. Essa quantidade seria o hau. “Não estamos aqui diante de um desses casos (não tão raros) em que o etnólogo se deixa mistificar pelo nativo?” “O hau não é a razão última da troca: é a forma consciente sob a qual homens de uma sociedade determinada, em que o problema tinha uma importância particular , conceberam uma necessidade incosciente cuja razão está alhures”... Graças a essa técnica argumentativa, o hau, que aparece em Mauss como uma noção central do direito maori, torna-se, com Lévi-Strauss, a explicação da troca (2007, p. 137).
Ou seja, o direito, questão fundamental para Mauss, passa para
segundo plano com Lévi-Strauss. Este, a partir da concepção de hau, desenvolve a teórica da reciprocidade. Usado por Sigaud para autenticar seus estudos, o caso anglo-saxão envolve os escritos pessoais do “etnógrafo dos etnógrafos”, Malinowski, e o polêmico antropólogo estadunidense Clifford Geertz. O Diário no sentido estrito de termo foi escrito nas passagens de Malinowski por Mailu, entre setembro de 1914 e agosto de 1915, e nas ilhas Tobriandesas, entre outubro de 1917 e julho de 1918. No diário, encontramos uma série de trechos que comprometem a ideia formada por Malinowski (seguida, até então, como crença) de que o antropólogo deve desenvolver uma empatia em relação aos “nativos”. Geertz foi o grande debatedor desse método e viu no Diário a oportunidade para ruir com tudo que a Escola de antropologia inglesa, que construiu todo o seu aporte teórico-metodológico a partir da célebre obra Argonautas do Pácifico Ocidental. Para Malinowski, o fundamento para um etnografia de sucesso é a empatia. No entanto, explica Geertz, nas palavras de Sugaud: “o Diário revelava a ausência de empatia”, dessa forma, não se fazia necessário a empatia como instrumento de acesso à vida nativa. E continua com a seguinte pergunta: “se o conhecimento do ponto de vista dos nativos não depende da empatia, como então ele seria possível?”. Dessa forma, a solução, propõe Geertz, “seria o estudo das formas simbólicas: as palavras, as imagens, as instituições e os comportamentos” (2007, p. 77). Assim,
A diferença não residia, portanto, na empatia, jamais invocada
por este como recomendação de método, mas na natureza das questões formuladas. Em Geertz, a questão consistia em interpretar significados, tarefa que propõe que ser realizada da mesma forma como se interpreta um texto ou um poema.
Desse modo, para Geertz, o método da antropologia seria a etnografia,
sendo ela assim um esforço para narrar à experiência. A doxa é construída a partir dos dois casos citados acima. O que estava em jogo nas interpretações produzidas era a projeção do nome e a ascensão na academia. Desse modo, explica Sigaud,
Levi-Strauss, em um primeiro momento filiar-se a Mauss para
ser aceito por seus pares na França, e dele se distinguir por meio da indicação do erro para fazer avançar sua própria teoria e sua própria carreira; para Geertz, em um primeiro momento demolir Malinowski no âmbito da concorrência como os antropólogos britânicos e depois utilizá-los para legitimar uma nova definição do ofício de antropólogos (2007, p. 150). A credibilidade às interpretações gerou nos seguidores uma despreocupação em buscar no texto original – o ED e o Diário. As interpretações de Lévi-Straus e Geertz eram autorizadas pela comunidade de antropólogos, e não se fazia necessário (ou não era permitido) buscar em Mauss ou Malinowski possíveis erros nas afirmações.