Cesário Augusto1
2
Utilizo “espetáculo” em corroboração ao lúcido significado do termo, formulado pelo anarquista francês Guy
Debord (1931-1994), em que pese seu lugar recôndito na “linguagem oficial” (1996) afoita por manter espécie de
alienação por meio e através do “olhar iludido” (id.ibid.), gérmen de uma consciência falsificada nos meandros de seu
próprio deixar-se conduzir pelos ditames do status quo, sobretudo na arte, embora, sobre este sobretudo, no dia-a-dia
das funções: “Le spectacle se représente à la fois comme la société même, comme une partie de la société, et comme
instrument d'unification. En tant que partie de la société, il est expressément le secteur qui concentre tout regard et
toute conscience. Du fait même que ce secteur est séparé, il est le lieu du regard abusé et de la fausse conscience ; et
l'unification qu'il accomplit n'est rien d'autre qu'un langage officiel de la séparation généralisée.” In: Guy Debord. Le
Société du Spetacle. Paris: Galimard, 1996. Traduções minhas, exceto quando mencionado o contrário.
3
Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico de Atuantes, pertencente à Escola de Teatro e Dança, registrado
no diretório de grupos do Instituto de Ciências da Arte da UFPA – ICA e no diretório do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.
4
“Sou Argalif Isohar, portador do espetáculo. Espetáculos são instrumentos ainda desconhecidos para vós Cristãos;
tratam-se de lentes para corrigir a vista.” Argalif Isohar é personagem do conto, escrito por Italo Calvino (1923-
1985), O cavaleiro inexistente (tradução para a língua portuguesa, por Nilson Moulin), The non-existent kight
(tradução para o inglês, feita em 1962) ou Il cavaliere inesistente (originalmente publicado em italiano, em 1959).
5
Traduz-se “Tempestade e Ímpeto”. Este dueto de substantivos movimentou ética, estética, política e socialmente a
negação de atitudes submissa à aristocracia pós-iluminista; propagador de uma rompante e desmedida atitude
fomentadora das emoções incontidas, daquele subjetivismo irracional, arauto do expressionismo por vir, foi a ponte, o
empurrão ao Romantismo, paradoxalmente iniciado com a introspecção nos abismos então encontrados nas obras do
Classicismo. Nomes como Friedrich Schiller (1759-1805) Johann Wolfgang von Goethe (1749–1832) e Jakob
teatrais com André Antoine (1858-1943), entre o Romantismo pulsante e o Realismo,
entressafra de melodramas cuja herança pareceu insistir falta de alternativas até ser
varrido pelos anéis de ouro e fuás de pós de arroz. Daí segue que, Ítalo Calvino (1923-
1985), dando voz a Argalif Isohar, diz serem “spetacles” (1962) os óculos inventados
pelos mouros. Por esta prosaica, somada a outras mais práticas razões, o GITA evitamos
usar a palavra espetáculo. Em seu lugar, na ausência de um termo mais preciso ainda
porvir, damos trato ao termo apresentação pública.
Entendo haver jargões em todos os ofícios. Há jargões também em confrarias.
Nos rápidos 4 (quatro) anos ou mais ou menos de existência do GITA, criamos nossos
próprios jargões a partir de meus alvitres e de estudos que nos indicassem uma ética,
uma bússola. Um deles é a apresentação pública. Usamo-la, em detrimento a espetáculo.
Adiante tento explicar.
Se eu adjetivo como espetáculo, a coisa é boa e eu gostei. As artes, as cênicas
em particular, até onde enxergo, não admitem o gosto e suas conjunções similares, tanto
quanto às negações, quando transformado em verbo: gostei, não gostei, adorei, detestei,
amei... provavelmente, diria com certeza, minha visão é agradavelmente turva; mesmo
assim, ou até por isto, persisto. As artes cênicas descabem nestas classificações
porquanto tais verbos, advérbio e conectivo em nada acrescentam à obra. Nunca vi um
pedreiro dizer gostei do beiral; dos pedreiros já ouvi:
- o beiral está com defeito no acabamento porque a chuva apodrece este tipo de
madeira;
ou
- no caimento, o beiral funciona, e funciona ainda mais com o material barato, de telha
que não trabalha na seca...
Ou seja, pedreiros dominam o que fazem, são mestres no comentário técnico de
seus afazeres. Com mestres assim e a partir deles, dou-me a evitar a palavra espetáculo
quando fruo (assisto, em expectativa patente) ou fluo (faço junto, em desconforto
perene) a arte cênica.
Michael Reinhold Lenz (1751–1792) se posicionam como propulsores dos radicalismos incontidos e marcantes em
entrega absoluta ao preço mesmo da morte anunciada pelo suicídio consciente (HAUSER, 2003). Um estudo que
ponteie esta seta na jugular das plumas e paetês melodramáticos com o extremo cardinal da rebeldia pós-moderna dos
happenings a dos anos ’60, ’70 e ’80 do século XX agitam o prelo de minhas reflexões, deflagradas em escritos ainda
fragmentados em pedaços de papel, especificamente na condição de aplicabilidade das pesquisas transversais do
GITA.
Digo possuir alguém um enfeite sensacional, de que gosto muito. Um enfeite,
qual seja uma bola de árvore de Natal pendurada no lado de fora da porta, ou uma
maçaneta carimbada com a imagem de um leão em alto relevo, são prodigiosos
espetáculos. Pronuncio ter sido alguma conduta, especialmente a idônea, um espetáculo,
pois houvera servido a mim de exemplo. Meu juízo entende serem o bibelô e uma
privada tão espetaculares quanto uma pia batismal, desde que ambos sejam úteis.
Assim, asseados, cheirando a pinho, são um espetáculo no qual me sento ou me benzo
como em um jardim de ouro. E, sobre o jardim, conquanto livre em nascimento sem
poda, com flores forçando saída em meio aos galhos, repleto de verde, arborizado,
trilhado pelo caminho de passageiros, espanto-me com tamanho espetáculo. Espetáculo,
pois, é-me algo bonito e de que gosto: um par de óculos, por exemplo, iguais aos de
Argalif Isohar.
Se eu gosto e acho bonita uma peça de arte fruída no momento único, equivoco-
me por omissão. Na mesma medida em que o acontecimento cênico é uma liturgia
pungente, alteradora de mim, exigente de respeito (que difere da subserviência) e
silêncio, é bonito o edifício teatral, embora, quanto mais suntuoso, menos teatral fica e
mais a um edifício se remete. Parece-me descabido dizer que uma liturgia constitui
espetáculo, ainda mais quando anunciada antes de tomar lugar, tempo e ação.
E chegam os editais, onde tenho de escrever o nome do sei eu lá inexistente
espetáculo. Escrevo, para enquadrar-me na norma, furtando a mim a lembrança etérea
dos shows a que assisti e continuo assistindo. São além de mim, constituem
espetacularidades. Assisto a Ney Matogrosso e arrogo-me a supor que sei do que falo.
Outras façanhas, por exemplo, o desfile da Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos
de Vila Isabel, mostram-se belos espetáculos arrasa-quarteirão, arrasa-avenida, arrasa a
miséria no rompante celebrante e fugaz dos sambistas, arrasa o que desgosto, arrasa o de
que gosto, embora nunca me conduzam ao recôndito abismo no qual me dependuro para
manter minha sanidade. O teatro me mexe; o espetáculo me conforta. Daí, haver um
infinito à frente, o inacabado sempiterno de saber-me não sabedor de coisa alguma,
sobretudo ao perceber uma peça cênica, o sujeito atuante se acabando, em sala de aula,
em estúdios, na rua quando, despojados de melindres, companheiros me dão o melhor
de si. Por vezes, um (a) atuante, pela oralidade, desfaz o palco e conversa com quem
chega para assisti-lo, ele (a) com garrafa de água na mão e, de súbito, começa a
trabalhar já tendo começado, o que me permite repensar a existência no querer nunca
acabar aquele momento solene quando ele (a) se me faz ver a mim de outro jeito 6. Para
esta sabedoria fora necessária a perseverança e a coragem, penso depois. Obrigo-me, a
partir desta experiência, a olhar mais para quem começa, para a tela sem rabisco algum,
em ingenuidades pródigas em nobreza. Vejo, aqui, a arte parida das entranhas, com dor,
sofreguidão, gozo, e mais dor.
7
Entre outras definições, o Taoísmo se consagra como a prática do Tao (caminho, em língua chinesa arcaica), na
ciência inclusa na prática, na cons-ciência amalgamada no fazer, na ação sendo no não-pensar, no não-pensar sendo o
momento de concomitância dos opostos Yin e Yang, da “luz e escuridão, amor e ódio, masculino e feminino”
(CARNIE,1997), inteireza fundamental para o estado do Chi, i.e., nas “várias formas de energia [...] como respiração,
respeitar esta luta, nunca jogando com ela contra o (a) guerreiro (a), seja do GITA, seja
de grupos e artistas em trabalho de construção de outras éticas. Preconizo gostar de
tudo, de todos. Desentendo o desgosto pelo sagrado. Para quê sair de casa, então? Este
masoquismo onanista de ir para sofrer ao invés de extasiar-se no templo vai ao encontro
da concepção sociológica do sano Guy Debord, citado em epígrafe, visto que, se não for
para gostar do divertido, melhor seria prosseguir, nutrir mesmo a incontinente
automasturbação da pretensa genialidade, deixar-se dominar pelo poder constituído da
modorra politicamente implícita em incentivar guerras, mesmo que chamem os teatros
de paz:
Sous toute ses formes particulières, information ou propagande,
publicité ou consommation directe de divertissements, le spectacle
constitue le modèle présent de la vie socialement dominante. (1996)8
espírito ou vitalidade” (id., Ibid.), conforme transliteração da língua chinesa antiga. No Tao há espécie de paradoxo
dos paradoxos, pois nele, sobretudo para o logocentrismo euro-americano, revolvem-se conceitos inconcebíveis na
prática ocidental e, decerto, irrealizáveis, porque sua realização exige, por estas bandas geográficas e culturais,
discernimento e não conhecimento, sabedoria e no não-saber, nobreza na humildade. Exceções, à experiência do Tao,
se comprovam em países do continente africano setentrional (vis a vis Egito, Marrocos e, mais abaixo, Kênia e
Tanzânia), em países andinos da América do Sul e em todos os países do extremo oriente, sem exceção.
8
“Em todas as suas formas específicas de informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de
divertimentos, o espetáculo é o atual modelo de vida socialmente dominante.”
Referências bibliográficas
CALVINO, Italo. The non-existent knight. In: Italo Calvino. Our Ancestors. Trad.
Archibald Colquhon. London: Minerva, 1992.
CARNIE, L.V. Chi Gung – (Qigong). Trad. Euclides L. Calloni. São Paulo:
Pensamento, 1997.
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
PIMENTELDEALENCAR, Cesário Augusto. The shining self: the actor´s journey from
character to role. Tese de doutorado. Exeter: University of Exeter, 2003.