1789-1989:
HISTÓRIAS DA
HISTÓRIA
Como se deu que alguns ideais revolucionários
ressoassem nos tristes trópicos,
mas sobretudo pela vertente, girondina
CARLOS GUILHERME MOTA
OS MARCOS
DO PROCESSO
"Obedecer às leis, isso não é
claro ..."
Saint-Just (1767 - 1794)
Absolvido pelo
Tribunal
Revolucionário, Marat
é carregado em
triunfo pela
multidão
. 74
dia da Tomada da Bastilha, mas também o
dia que o preço do pão esteve mais alto na
França durante todo o século XVIII...
Labrousse, particularmente, dada sua as-
cendência intelectual, percebia que seus co-
legas sucessores de Jaurès (autor de uma
notável e volumosa História Socialista da
Revolução Francesa), Mathiez e Lefebvre
sabiam pensar e manejar estruturas
históricas.
Soboul, militante do Partido Comunista
Francês, orphelin de Ia Nation e de tradição
camponesa de Nimes, desenvolveu sua tra-
jetória intelectual fora dos Annales de Brau-
del. Mas no fim dos anos 50 surge com sua
tese notável Lês- Sans-culottes Parisiens à
l'An II (Paris, Clavreuil, 1962), revelando
as características da organização e das for-
mas de pensamento do mundo do trabalho
em Paris no momento mais crítico da Revo-
lução. Tese profundamente heterodoxa se
A cidadã camponesa do fim do séc. XVIII consideradas as limitações do pensamento
"marxista" da década de 40/50, mas genui-
Révolution Française e finalmente o Institut namente marxista pela metodologia empre-
d'Histoire de Ia Révolution Française, gada. Não se trata aqui de arrolar sua cons-
criado em 1937 por Lefebvre... tante e densa produção - sobre o ano I; so-
Em verdade, trata-se de duas vertentes bre Saint-Just, Robespierre, Danton, Cou-
ou famílias de pensamento: a dos Annales thon; sobre os soldados do ano II; sobre a
(Economies, Sociétés, Civilisations), de Primeira República; nem seu trabalho de
Marc Bloch, Lucien Febvre, e depois Brau- edição de documentos, ou elaboração de
del, e a dos Annales Historiques de Ia Révo- manuais de haute vulgarisation - mas de
lution Française, de Albert Mathiez (1914 indicar ao leitor brasileiro a existência, em
- 1932), G. Lefebvre (1874 - 1959), Albert língua portuguesa, de três livros de Soboul:
Soboul (1914 - 1982), e atualmente dirigida História da Revolução Francesa (2? ed.,
por Michel Vovelle. A esta segunda Rio de Janeiro, Zahar, 1974), A Revolução
"família" pertence Jacques Godechot, o au- Francesa (3? ed., São Paulo, Difel, 1979) e
tor de La Grande Nation, discípulo de Ma- Camponeses, Sans-Culottes, Jacobinos
Marx enxergou
thiez. (Lisboa, Seara Nova, 1974), além de arti- os embates
gos referenciais, entre os quais Descrição e entre "estamentos
Medida em História Social, publicado na pretéritos e
L'Information Historique (1966) e tradu- classes futuras"
Luitas águas passa- zido na Revista de História (USP, 1968, n?
ram sob as pontes do Sena, do Garonne, do 75) - um acerto de contas com o marxismo
Ródano - mas o fato é que a resposta de- e com os Annales. Na apreciação de Gode-
sencorajadora de Braudel a Soboul conti- chot, Soboul "bien que marxiste depuis sã
nha um recado à (suposta) história factual prime jeunesse, protestait avec véhémence
ou mecanicista por vezes cultivada seja pe- lorsqu'on lê tratait d'historien marxiste. II se
la tradição comemorativista-republicanista, proclamait fidèle à l'historiographie révolu-
seja pela marxista dogmática. O autor do tionnaire 'classique'." (J) (em L'Histoire de
La Médüerranée sugeria - sem a suavidade Ia Révolution Française), "clássica", ou
de seu mestre Febvre - a necessidade de se seja, a linhagem de Michelet, Jaurès, Mat-
atentar para a respiração das estruturas so- hiez, Lefebvre .. .
ciais, econômicas e civilizacionais na Na obra de Jacques Godechot, por sua
longue durée - informado que estava das vez, o leitor poderá encontrar um manancial
pesquisas de seu colega Eraest Labrousse, riquíssimo de informações atualizadas: em
também um discreto socialista ("eu apenas português, ressaltam seus volumes As Revo-
quantifico o que Marx descobriu...", bla- luções e Europa e América no Tempo de
gueava). Recorrendo a sofisticadas técnicas Napoleão, contendo o estado atual das
de quantificação, propunha ele uma nova e questões, linhas de pesquisa e fontes a res-
desmistificadora periodização para a his-
(1) "ainda que marxista desde sua primeira juven-
tória da França nos séculos XVIII e parte tude, protestou com veemência sobre a obra do histo-
do XIX. Afinal, Labrousse-Braudel já sa- riador marxista. Ele se proclamou Jiel à historiogra-
biam que o 14 de julho não fora apenas o fia revolucionária clássica'."
75
peito dos principais temas revolucionários é um dos diretores, onde escreve regular-
(e contra-revolucionários) do período de mente, e na Révue Historique (Paris), que
1788 a 1815. Em sua extensa e variada publica a cada três ou quatro anos um
obra, cobrindo desde a história do Atlân- substancioso Bulletin Bibliographique; a
tico, a articulação das "repúblicas-irmãs", a partir de 1955 e durante muitos anos Jac-
revolução colonial até as petites histoires de ques Godechot foi seu redator. Em se-
espionagem, destaque-se uma importante gundo, publicou-se em português seu ba-
coletânea de escritos vários de sua autoria lanço As Grandes Correntes da Historio-
(Regards sur 1'Époque Révolutionnaire, grafia da Revolução Francesa de 1789 aos
Toulouse, Privat, 1980) que seus ex- Nossos Dias (Revista de História, USP, n?
estudantes editaram, contendo estudos so- 80, 1970). E, finalmente, um extenso, atua-
bre a França revolucionária e sobre a revo- lizado e polêmico estudo historiográfico,
lução fora da França (inclusive sobre Por- L'Histoire de Ia Révolution Française (em
tugal e a Revolução, sobre as instituições Historiens e Géographes, Paris, Buisson,
napoleônicas exportadas e sobre Robes- fev.-março 1984, págs. 711-759) - em que
pierre e a América). E para consulta siste- indica os atuais centros de pesquisa, institu-
mática, um preciso e atualizado instru- tos, comissões, museus; as grandes corren-
mento de trabalho: La Révolution Fran- tes de interpretação; os manuais e guias, as
çaise, Chronologie Commentée 1787 - grandes sínteses; os estudos parciais sobre
1799 (Paris, Perrin, 1988), contendo minu- relações internacionais, vida política e insti-
ciosa periodização e um instigante pequeno tucional, social, das idéias e mentalidades,
dicionário biográfico dos personagens cita- militar etc.; e biografias. Nesse estudo, Go-
dos, cerca de 400. dechot apresenta, ao discutir as grandes
A análise historiográfica - sabem os his- sínteses, sua perspectiva crítica: "As gran-
toriadores profissionais - constitui o mais des sínteses, publicadas nos últimos doze
difícil campo do conhecimento. "Que é um anos, em verdade não trazem fatos novos.
problema histórico? É a história do pro- Elas se destacam essencialmente pelas di-
blema", dizia sempre Lucien Febvre. Além versas interpretações que dão à Revolu-
disso, a crítica historiográfica pressupõe a ção." E, de Soboul a Chaunu, a Cobban e
crítica ideológica, a demorada reflexão so- Furet-Richet, e a Hampson, Mazauric e Ré-
bre as "fontes", a experiência interdiscipli- gine Robin, Godechot alinha restrições ou
nar, certos cuidados com os usos da His- qualidades - fazendo notar todavia que foi
tória. nos estudos monográficos que surgiram
O historiador da Grande Nation, dentro inovações. Nesse balanço, refere-se mais di-
de uma tradição que remonta (termo fran- retamente à obra de François Furet e Denis
cês...) à linhagem jacobina, enfrentou em Richet (La Révolution Française, Paris,
várias épocas de sua vida a tarefa de ofere- Hachette, 1965), interpertação "revisio-
cer o état actuel das pesquisas e discussões. nista", segundo pensa. Negando a luta de
Em primeiro lugar, nos Annales Histori- classes, para eles a Revolução teria sido ar-
ques de Ia Révolution Française, dos quais ticulada por uma elite intelectual saída das
Achille Occhetto,
secretário do
Partido Comunista
Italiano, proclama:
"Somos filhos da
Revolução Francesa."
Mas os revolucionários,
diz ele, eram
herdeiros do
despotismo
76
-
A polêmica
sobre o<"fím" da
Revolução
também passa
pelo cinema de hoje.
Por exemplo,
pelo Danton de
Wajda
Com efeito, as revoluções dos Estados Uni- a América do Sul durante todo o século
dos e da França polarizaram os corações e XIX, seja o mundo oficial local, seja o co-
mentes não só das elites nativas coloniais, mando da South American Station, que
mas também do mundo do trabalho. A am- controlava e administrava o império infor-
bigüidade da presença francesa será entre- mal da Inglaterra.
tanto uma constante, sobretudo após Bona- No fim do século XVIII, idéias de revo-
parte restabelecer a escravidão nas Antilhas lução circulavam pelo Atlântico, assistindo-
em 1802. A morte de Toussaint- se a um verdadeiro vendaval bibliográfico.
Louverture, preso em Paris, dá origem ao Os movimentos de independência em gesta-
maior dos mitos revolucionários do período ção tiveram seus agentes em revolucio-
colonial. O medo do haitianismo - o perigo nários como Francisco de Miranda, que lu-
do levante em massa de escravos - marcará tou nas tropas girondinas (sendo inclusive
culpado da derrota na batalha de Neerwin-
den), José de San Martin ou em personali-
dades como José Joaquim da Maia, o estu-
dante que se encontrou com Jefferson em
Nimes para pedir apoio dos Estados Uni-
dos para a revolução de Minas em 1789
("Inconfidência"). Também as tropas de
Napoleão eram esperadas (em vão...) em
Salvador nos fins do século XVIII, para
ajudar na libertação, por Cipriano Barata,
um dos grandes revolucionários da História
do Brasil: preso na Conjuração dos Alfaia-
tes (1798), terá atuação avançada no pro-
cesso de independência. Com efeito, nos
principais portos brasileiros os franceses
eram aguardados: Rio de Janeiro, Bahia,
Recife...
Deixando de lado certas participações
concretas de brasileiros que viveram na
França nesse período, como o padre Ar-
José de San Martin, ruda Câmara (um dos inspiradores da Re-
grande volução de 1817 e 1824 em Pernambuco),
personagem da José Bonifácio (por curto tempo, em 1790 e
independência 91 em Paris, aluno em química e minerafo-
argentina gia de Fourcroy, Duhamel, Jussieu e Sage -
78
este, adversário de Lavoisier e de Chaptal) padre Arruda Câmara - não só militares
ou como o baiano mulato e filho de carpin- bonapartistas desembarcados dos Estados
teiro Caetano Lopes de Moura (o "brasi- Unidos chegam (tardiamente) para ajudar a
.eiro soldado de Napoleão", médico e autor Revolução e resgatar Napoleão em Santa
de uma biografia do corso), importa notar Helena para um novo retorno à Europa.
as relações intensas entre o processo revo- Também um comerciante bretão, o conser-
lucionário na França e a fermentação po- vador Tollenare exclama aliviado, em seu
lítico-ideológica nas várias partes do Brasil. diário, após a repressão ao movimento:
As idéias de Revolução e de Reforma "Mais um pouco mais de tempo e tería-
vêm sendo estudadas com rigor, podendo- mos revisto os sans-culottes."
se ultrapassar a história noive das "influên- As novas idéias penetram, em níveis
cias" e dos "reflexos". No imaginário da mais profundos do sistema - aguardando
França, a presença do Brasil sempre foi no- novas pesquisas. Um só exemplo: o advo-
íável, desde a famosa Fête brésilienne com gado dos revolucionários nordestinos de
a presença de indígenas em Rouen no sé- 1817 presos, Aragão de Vasconcelos, leitor
culo XVI, que tanto repercutiu na literatura de Brissot de Warville (que citava impetuo-
e na filosofia de Montaigne a Rousseau. Se samente, apesar de ser autor proibido), em
figuras da revolução pensaram e menciona- seus argumentos mais fortes para justificar
ram o Brasil no período colonial - como a insurreição e libertar os revolucionários, A morte de
Raynal e Rèstif de Ia Bretonne - em contra- utiliza-se de Rousseau, sem citá-lo embora: Toussaint-Louverture,
partida Rousseau, Mably, Montesquieu, "Nas revoltas a marcha ordinária nada preso em Paris,
Voltaire, Brissot, Raynal, Volney e mesmo aproveita, é antes nociva, as leis ficam sem criou um dos maiores
Boissy d'Anglas, entre tantos outros, eram vigor e os princípios que até então serviam mitos revolucionários
muito lidos aqui. Às vezes por brancos ad- de norma são mui mesquinhos para nos do período colonial:
vogados rebeldes, às vezes por artesãos mu- aferrarmos a eles,como âncoras de salvação, o medo do
latos e pobres. Se, em Minas de 1789, a re- o homem volta como ao natural estado ..." "haitianismo"
volução almejada era a dos proprietários
contra a colonização, em Salvador de 1798
era contra os proprietários.
'entre as leituras de
pensadores franceses, estudos recentes vêm
destacando a importância das idéias de
Raynal na gestação do pensamento revolu-
cionário no mundo colonial. Toussaint
Bréda, o futuro Toussaint-Louverture, des-
pontou nas páginas de Raynal-Diderot,
como bem analisou o historiador Fernando
A. Novais, em estudo prodigioso sobre a
crise do Antigo Sistema Colonial portu-
guês, em que revela quais leituras eram fei-
tas desses autores no universo colonial.
Em qualquer hipótese, na história do
pensamento revolucionário no fim do sé-
culo XVIII e começo do XIX ressalta a in-
tensa circulação de idéias de reforma e re-
volução, das metrópoles para as colônias, e
vice-versa, com refrações e matizes
específicos. No Brasil, de 1777 a 1824,
idéias de revolução, por vezes misturadas a
um reformismo ilustrado, ajudaram a plas-
mar a nova ordem - vencendo as propostas
que conciliassem a revolução com a escra-
vidão. Nada obstante, as "idéias france-
sas", o "perigo francês", o "jacobinismo", a
"francezia" sempre amedrontavam as for-
ças da contra-revolução.
E a presença francesa pode ser notada de
outras formas. Na primeira revolução bra-
sileira, no Nordeste em 1817, em que se
iniciou o jovem frei Caneca - discípulo do
79
petem, aqui e acolá, com novas roupagens e
outros disfarces. E freqüentemente muitas
AS REVOLUÇÕES farsas.
Nesse processo, houve várias revoluções
DA REVOLUÇÃO dentro da Revolução. Mas a melhor síntese
talvez tenha sido a do próprio revolucio-
nário Marat. Ao denunciar a traição ao
" . . . esta não era uma época a ser medida povo pelos "conspiradores educados e sutis
pelos critérios humanos cotidianos." da classe superior", que a princípio se opu-
Eric J. Hobsbawm seram aos déspotas e se insinuaram na con-
fiança popular, voltando-se depois contra
" . . . nesse emaranhado de raízes está o "os de baixo", escreveu:
cerne das resistências que hoje temos de "O que as classes superiores ocultam
vencer se não queremos apenas sobreviver constantemente é o fato de que a Revolução
como museus de r&folutas eras." acabou beneficiando somente os donos de
Vitorino Magalhães Godinho,(1970) terra, os advogados e os chicaneiros."
Nesta breve história, ressaltam as ocor-
Nesse longo percurso de apenas dez anos rências de dois momentos de ruptura na
(1789-1799), toda uma lição de História se História moderna da França: a Revolução
apresenta, tornando clássico o exemplo re- de 1789 e a Revolução de 1793. Revoluções
volucionário da França. A crise do Antigo que anunciam - e demarcam - as duas ver-
Regime; as reformas e a reação feudal; a tentes dominantes da então inaugurada
aliança (e depois o confronto e, mais tarde, História Contemporânea. Na primeira, a
a conciliação) entre burguesia e nobreza; o derrubada do Antigo Regime, a abolição
assalto à Bastilha e a abolição da servidão; das feudalidades, a construção da cidada-
o confronto entre monarquistas e republica- nia; na segunda, a emergência dos movi-
nos e, depois, entre a República burguesa e mentos populares e a primeira participação
a democracia popular; o embate do go- popular no governo da rés publica, ao lado
verno revolucionário com a ditadura jaco- da burguesia jacobina radical. O movi-
bina; a disputa entre igualitaristas radicais e mento popular, destruído depois dessa pri-
representantes da revolução burguesa; e, fi- meira experiência do ano II, somente vol-
nalmente, o golpe de Napoleão Bonaparte e tará a se mobilizar na França nas revolu-
Sieyès em 1799 completam, etapa por ções de 1830, 1848 e 1871. Mas, para além
etapa, um processo histórico que deixará desses dois momentos - 1789 e 1793 - de
marcas profundas no pensamento contem- ruptura, vislumbram-se outros traços que
porâneo. Processo que oferece ao leitor a permitem falar num movimento mais geral
rica, densa amostragem de posições - de - a Revolução Francesa, processo decisivo
estilos de pensamento, abarcando visão de da transição nem sempre contínua e com-
história, de política, de arte, de filosofia, de pleta do Feudalismo ao Capitalismo
literatura - e de situações que se tornaram (Dobb).
emblemáticas. E que, por esse motivo, se re- No contexto violento de reforma institu-
Reunião jacobina
em janeiro de 1792,
segundo uma gravura
satírica. Entre 1793
e 1794, os Jacobinos
apelaram para o
movimento popular,
mas seu poder
foi efêmero
80
O último
retrato
de Luís XVI,
no desenho
de Joseph
Divreux
ff
A Liem de profunda, a
Revolução foi extensa. Consolidando-se, a
mercadorias, livros, armas e idéias pelo
Atlântico - sobretudo quando essas pessoas
se chamam Tom Paine, padre Arruda Câ-
revolução burguesa foi sendo exportada mara, Francisco de Miranda, Thomas Jef-
para outros países, sobretudo no período ferson, San Martin, Toussaint-Louverture e
napoleônico. Mas em qualquer hipótese, Napoleão? Ou mesmo José Bonifácio, o in-
como se viu, torna-se impossível explicar a contido "patriarca" da Independência do
Revolução sem se considerar a dialética en- Brasil - que em 1790-91 esteve estudando
tre a guerra interna e externa. Quase toda a com Fourcroy em Paris, cidade em que dei-
Europa e as Américas - o Brasil inclusive - xou uma filha, Elisa, com madame Delau-
sofreram suas repercussões e, em contra- nay . . .?
partida, a alimentaram; e também em larga A Revolução foi extensa também no
medida, a Ásia e a África. tempo, pois um dos dilemas centrais da Re-
Jacques Godechot, estudioso da Grande pública do Diretório permaneceu irreso-
Nation, chegou a formular a idéia de uma luto para a classe média francesa, segundo
Revolução Atlântica - para frisar o caráter o diagnóstico do historiador Hobsbawm em
ocidental e burguês do processo, tanto mais A Era das Revoluções: como compatibilizar
profundo quanto mais próximo das regiões estabilidade política com avanço econô-
ribeirinhas desse oceano. Tal fórmula entre- mico adotando-se o programa liberal de
tanto recebeu críticas daqueles que, como 1789-91? Ou seja, como evitar "ao mesmo
seu amigo Soboul, julgaram esse conceito tempo" o duplo perigo da república demo-
demasiado abrangente, esvaziando a especi- crática jacobina e do retorno do Antigo Re-
ficidade dos movimentos nacionais e sociais gime? As experiências sucessivas e alterna-
de cada região. Mas como deixar de consi- das do Diretório (1795-99), Consulado
82
Boissy d'Anglas
é saudado pela plebe
que carrega a cabeça
decepada de seu
inimigo Feraud,
a 20 de maio de 1795.
Porta-voz da direita
no Diretório, Boissy
foi autor muito
lido no Brasil em fins
do séc. XVIII
A marca da
Inconfidência Mineira
é o reformismo
dos proprietários
84
apenas no tratamento democrático por
"tu", na instituição do divórcio ou no corte
ie cabelo ao estilo do imperador romano
Tão - como a brasileira Maria Theodora
da Costa adotaria em seu casamento com o
fàer revolucionário Domingos José Martins
em Recife em 1817, demostrando publica-
mente suas convicções republicanistas.
Essa revolução cultural caminhou por meio
de idéias, projetos, hipóteses, conceitos e
ideologias que foram sendo testadas, com-
batidas, rejeitadas, perseguidas, adaptadas
e aplicadas.
"Ideologia", por exemplo, uma das
palavras-chave do vocabulário contempo-
râneo, apareceu pela primeira vez na
França naquele turbulento fim de século, no
conflituoso período do Diretório: era utili-
zada por gente - filósofos, ou melhor,
"ideólogos" - como Destutt de Tracy, Ca-
banis, Volney. E também por gente que de-
testava filósofos . . . como Napoleão Bona-
parte, ex-leitor de Voltaire. Napoleão, que
se serviria de alguns "ideólogos" em sua ir-
resistível ascensão.
A REVOLUÇÃO
í FRANCESA
E A NOSSA
CONTEMPORANEIDADE
O diretor italiano
Pontecorvo
contou no
filme Queimada,
com Marlon Brando
no papel de
agente duplo, uma
história simbólica
também no
movimento
republicanista de
1817, em Pernambuco
e em todo o Nordeste
86
aberto ou ampliado, fora dos marcos do
erodido mercantilismo ibérico, ilustrado ou
não.
A maior região escravista do Ocidente,
entretanto, deveria ser mantida sem que os
"de baixo" se manifestassem - afinal, o pe-
rigo do haitianismo atormentava as elites
brasileiras e portuguesas, a armada inglesa
da South American Station e os franceses
do Diretório, do Consulado, do Império e da
Restauração. Só Toussaint-Louverture, um
black jacobin, igualmente leitor de Raynal,
mostraria ao mundo a face colonial da
R evolução: terminou seus dias num presídio
da França, mas seus sucessores venceram
as tropas de Napoleão...
f?
-£uii
inalmente, os estu-
dos sobre a decantada "influência" da Re-
volução Francesa no Brasil ainda aguar-
dam análises que respondam a velhas per-
guntas. Por que a esquerda brasileira não
percebe que um escritor e homem de ação
como Abreu e Lima, o "general das mas-
sas" e autor de O Socialismo (1855), foi tão
marcado pelo conservador e golpista do 18
Brumário, o abade Sieyès? Estarão, de fato,
as idéias fora do lugar? Por que, no Brasil
atual, a despeito de suas trágicas caracterís-
ticas sócio-culturais e políticas, as "perigo-
sas idéias jacobinas" republicanas e demo-
cráticas, que trariam a nós as noções de ci-
dadania plena e de legitimidade, continuam
a não vicejar, em contraste com este perma-
nente ranço cultural do despotismo esclare-
cido, do autoritarismo bonapartista e do gi-
rondinismo de meia-confecção que ine-
briam nossas elites, sem resgatar e implan-
tar entretanto nem um só traço porventura
positivo daqueles projetos históricos? E a
corrupção, os sucessivos golpes e o desgo-
verno no período do Diretório (1795-1799),
que termina com o golpe do 18 Brumário
de Sieyès e Napoleão, não iluminariam por-
ventura - guardadas as proporções e sobre-
tudo os talentos de ambos - os descami-
nhos desta ínvia "Nova República" brasi-
leira?
Quando um historiador austero como sas está em curso. Para a América Latina, O golpe de Napoleão
Jacques Godechot, meditando sobre o con- entretanto, região periférica sempre vivendo e Sieyès de 1799
formismo contemporâneo da sociedade de a eterna antevéspera, fatigada embora de encerra o período de
massas, ressalta o aspecto positivo do abalo neocaudilhos e de neogirondinos "moderni- desgoverno e corrupção
cultural e político de 1968, no sentido de se- zadores", soa histórica a advertência re- do Diretório.
rem buscados novos padrões civilizatórios cente do historiador Michel Vovello. Qualquer semelhança
para substituir formas agônicas de vida e "Tenho visitado alguns países da com a Nova
de pensamento, não é da necessidade de América Latina. Constato - e não julgo, República. ..
uma nova e profunda Revolução Cultural mas apenas observo e aprecio como histo-
que se está falando? Na China, na União riador das mentalidades - uma espécie de
Soviética, na Europa às vésperas de 1992 - consolidação da direita, e penso que isso
na Itália em particular -, ou na Europa define bem um universo: o do medo."
Central, a releitura das revoluções france- (Rio de Janeiro, 1987)
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