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a explicitar algumas das idéias ali contidas.

José
Jeremias de Oliveira Filho não me tem faltado com
a sua palavra amiga de estímulo, mesmo quando se
trata de trabalhos menores, como os que reúno
aqui, palavra que sobremodo valorizo porque dita
em momentos de grande desânimo. O mesmo posso l — Tio Patinhas no centro do universo
dizer de José César A. Gnaccarini e de Braz José
de Araújo. Aos professores e alunos do curso de
pós-graduação em Sociologia Rural da Universi- "Bem, é que no nosso país", disse Alice,
dade de Brasília sou agradecido pelos comentários, ainda um pouco ofegante, "o mais certo seria
críticas e sugestões que fizeram ao texto aqui in- chegar a outro lugar — depois de correr tanto
como nós fizemos".
cluído como último capítulo. Heloisa Helena Tei- "Um país muito lento!", retorquiu a Rainha.
xeira de Souza Martins, minha leitora predileta, "Não, aqui, como vês, é preciso correr o mais
leu e comentou criticamente estes trabalhos, aju- que se pode para ficar no mesmo lugar. Se quise-
dando-me a enxergá-los de um modo mais objeti- res ir para outro lugar tens de correr, pelo menos,
vo. Finalmente, sou agradecido aos rneus alunos duas vezes mais depressa!"
de todos estes anos que, com suas indagações, aju- (Lewis Carroll, Alice do outro lado do
daram-me a definir e situar pontos de vista aqui espelho)
contidos.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS
l de novembro de 1977
A grande esperança "de" cada um dos membros
dessa incrível família de patos trajados de gente
é a de que o caminho que os leva educativamente
de coloridas folhas de papel aos nossos olhos e à
nossa mente seja um caminho sem retorno. Aloja-
dos na nossa inteligência, esperam demarcar aí a
posse ilícita do terreno em que pretendem vegetar
na continuidade do imobilismo em que foram ge-
rados e que constitui a razão de ser de sua existên-
cia. Nada de voltar às origens enriquecidos pela
crítica vital de seus hospedeiros para, ao menos,.

( * ) Publicado originalmente em Ciência e Cultura, vo-


lume 27, número 9, Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência, Setembro de 1975, pp. 943-948. Reproduzido
no Caderno de Sábado (suplemento literário do Correio
do Povo), Porto Alegre, 4 de setembro de 1976, pp. 8-9.

XIV
comprometerem-se com a vida do mundo que os
produz. Seu modo de ser impõe que, nesse plano,
um par de aspas seja, por prudência, colocado nos
[ história em quadrinhos, projetando-o, no entanto,
para todas as outras relações, como se substanti-
vamente fossem uma única relação e, em decorrên-
extremos da palavra "educativamente". É que a cia, os personagens se reduzissem a uml.
existência autoritária dos personagens é condição da
ditadura dos quadrinhos. A reflexão crítica consti-
tui inequívoca manifestação subversiva, pois de-
mocratiza a educação, transformando o hospedeiro- Tio Patinhas, além das suas excentricidades de
-objeto de coisa passiva em pessoa. Nesse pequeno rico, tem parentes, amigos e inimigos. Cada um
mundo fantasioso não é apenas cada personagem possuído por suas próprias características, só con-
uma coisa contemplada, mas o próprio leitor é segue definir-se, no entanto, contraponteando com
coisa, repositório passivo que nele se integra para ele. Patinhas é o único personagem que serve de
abrigar sem reflexão cada membro da sociedade referência na definição e constituição de todos os
centrada nessa família. outros.
Neste trabalho registro uma leitura sociológica Donald, seu sobrinho, vem primeiro na lista dos
das histórias cujos personagens são os habitantes circunstantes. Um dos herdeiros da fortuna de Pa-
de Patópolis, figuras criadas pela empresa de Walt tinhas, persegue dolorosamente a existência anôma-
Disney. Procuro descrever as relações sociais que la de rico potencial, cuja vida oscila entre o desem-
vinculam os vários personagens e, através do seu prego e os empregos que o Tio lhe oferece. Quando
conteúdo, mostrar que elas hierarquizam os pato- empregado pelo Tio vive, entre irado e apavorado,
politanos por meio de uma escala implícita de va- as humilhações que aquele o faz sofrer, desde o salá-
lores fundada na figura do capitalista clássico. Essa rio miserável até as artimanhas e engenhos utiliza-
escala de valores é que se pretende educativa, por dos para mantê-lo desperto e ativo conforme as
meio da definição do gosto do leitor, procurando
incutir nele as noções morais de bom, ridículo, de- l. Com este artigo não tenho a descabida pretensão
linqüente e louco, entre outras. Tal leitura seria de parafrasear o surpreendente e ótimo estudo de Ariel
impossível sem a constatação preliminar de que Dorfman e Armand Mattelart (Dorfman e Mattelart,
cada personagem é, antes de tudo, mercadoria, que 1972) sobre o conjunto dos personagens das historietas
industrializadas de Walt Disney. Apenas retomo uma aná-
se vende e se compra. Daí resulta o imobilismo lise que fiz em 1970, como recurso didático, em cursos
que explica os vários tipos e a posição passiva do de Sociologia para alunos de currículos diferentes do de
leitor "educando". Torna-se possível, desse modo, Ciências Sociais. Recebi de diversas pessoas, especial-
a leitura sociológica das historietas, uma vez que mente ex-alunos, a sugestão para sistematizar e publicar
a substância das relações sociais não está primeiro as minhas formulações de então. Depois de resistir por
nos vínculos entre os personagens, mas sim na re- algum tempo, arrisco-me a fazê-lo agora por várias razões,
lação da empresa que produz e vende a história a principal das quais é a de que, fundando-se o trabalho
na mesma perspectiva que orientou aqueles autores —
e o consumidor que a compra. A historieta sistema- decorrendo daí vários pontos de contato — guarda, no
tiza o universo simbólico que suporta e explica a entanto, uma identidade própria que sugere a exploração
relação entre produtor-vendedor e o comprador de de outros aspectos do mesmo tema, como notará o leitor.
expectativas do patrão. Sua humilhação é maior — enquanto Donald tem o que já é obsoleto — as
porque o delírio acumulativista de dinheiro do Tio idéias por inteiro. Isso seria paradoxal, em se tra-
transforma-o numa das peças de um sistema de tando de idéias, se para eles o pensamento e a ins-
produzir riquezas, cujo caráter espoliativo consegue piração não fossem objetivamente determinados.
perceber, mas ao qual se conforma para não ser Para toda nova situação não há uma idéia nova: há
deserdado. Excluído dos benefícios da riqueza que o "Manual do escoteiro", fonte inesgotável de in-
ajuda a crescer, com ela se compromete, como se formações que cobre todo o saber possível e do
por antecipação fosse sua. Vive o sonho de desfru- qual se pode receber qualquer resposta ou dado
tar a riqueza que na realidade lhe é vedada. com rapidez, como se viesse de um computador.
Seu drama é imenso. É pai sem- ter filhos. Hu- Para eles a situação é clara: não existem para repe-
guinho, Zezinho e Luizinho, os três sobrinhos, re- tir individualizadamente as mesmas palavras, os
presentam para ele um encargo paterno e um pesa- mesmos gestos e os mesmos atos que criaram o uni-
delo. Podem acompanhar, de modo adulto, toda a verso de Patinhas. Não nasceram para produzir o
incompetência de Donald para o desempenho da universo, mas para reproduzi-lo.
maior parte das atividades a que o obrigam as cir- É aí que representam um pesadelo para Donald,
cunstâncias, no emprego ou em casa. Sua determi- pois este é compelido a repetir sozinho palavras,
nação de vencer, a desesperada necessidade de ser gestos e atos do criador — Patinhas — sem efeito
capaz a que as expectativas inflexíveis de Patinhas algum. Seus ataques de ira são indicativos de uma
o submetem, impedem-no de reconhecer-se inca- incapacidade fundamental para entender porque a
pacitado, bem como o impedem de aceitar suges- sua atividade é estéril. É que sua condição de her-
tões e auxílios dos três sobrinhos. É na interferên- deiro obscurece a sua condição de trabalhador.
cia dos três que se apoia a maior parte das vitórias Não está entre os deserdados da terra. Não pode
de Donald. São eles que, depreciando-o ainda mais, ver na riqueza o produto do trabalho, inclusive do
de fato se realizam segundo as regras de Patinhas. seu trabalho, porque ela constitui a massa de bens
Embora os três correspondam melhor às espe- que espera receber e que é totalmente despropor-
ranças de Patinhas do que Donald, eles não repe- cional à sua pequena participação na tarefa de pro-
tem o modo de ser, as táticas, as intenções, os re- duzi-la. Não pode ver-se na condição de explorado
cursos do tio senil. São de uma geração de tecno- porque se vê na de beneficiário da exploração. Por
cratas, para os quais não é viável o projeto do enri- isso, a sua indignação é sempre e justificadamente
quecimento pessoal pelo trabalho, pela sorte e pela uma indignação pessoal, escoada para o nível da
astúcia. Por isso, agem coordenadamente. Nunca irritação descontrolada. Essa é a articulação ade-
cada um deles é senhor de um pensamento com- quada para transformar o pesadelo de Donald-tra-
pleto. No mais das vezes cada um se limita a emi- balhador e Donald-desempregado em irritação cô-
tir uma única palavra que se junta à palavra do mica, em atividade comicamente desastrada. O
outro e à do outro para que surja uma sentença drama do trabalhador é obscurecido pela comicida-
e uma idéia. Estão articulados entre si como peças de do herdeiro.
ajustadas de um mecanismo rigoroso. Eles têm o Donald é também marido sem ter mulher. Sua
que falta a Donald — apenas os pedaços das idéias namorada Margarida o submete ao regime duro do
parceiro de cama e mesa, sem as vantagens do car- externo que legitima seu modo de ganhar a vida e
go, transformado no perene carregador de pacotes até a futura herança de parte da riqueza de Pati-
e fazedor de serviços. Margarida não lhe oferece as nhas. O talismã tem aí uma importância muito
penas cálidas e macias para que recoste a cabeça grande, pois Patinhas também tem o seu — a moe-
atormentada. Ela também o submete ao duro re- dinha n.° 1. A presença desse componente mágico
gime da exploração doméstica. De Margarida não no universo de Patinhas constitui como que a fonte
se ouve ou vê uma palavra ou atitude de amor, de de um direito natural, o direito de enriquecer. Já
afeto desinteressado. Para ela, pata venal, a relação que todos trabalham — Donald trabalha, Hugui-
entre os sexos é assexuada e utilitária. Nesse plano, nho, Zezinho e Luizinho trabalham e vários outros
ela estabelece com Donald uma relação que amplia membros do universo trabalham — é preciso ex-
a sua esterilidade: não se acasalam nem procriam. plicar porque uns têm a riqueza e outros não a têm.
Margarida é a fêmea fútil à espera da doação e da Esse componente mágico institui uma diferenciação
rendição incondicional e material dos patos. Não interna fundamental no universo de Patinhas: há os
trabalha. Afora o trato das três sobrinhas (Laia, predestinados e escolhidos, cujos talentos se multi-
Lelé e Lili), resumido no adestramento que, por plicam (estou aqui trocadilhando com a palavra
contraposição aos sobrinhos de Donald, as trans- bíblica "talento", usando-a ao mesmo tempo no
formará em novas Margaridas, esgota o seu tempo, sentido de moeda e de dom) e há os demais que não
acompanhada da galinha Clara, nas festinhas da são servos nem bons nem fiéis, de tal modo que
sociedade, vivendo vicariamente a condição de con- misteriosa entidade sobrenatural neles não confia.
sumidora, não se sabe a partir de que. Para ela A sorte representa, portanto, um chamamento má-
Donald é importante apenas enquanto é servil. gico, apoiado em símbolos externos. Com isso, nem
Para manter Donald subjugado aos seus capri- Gastão nem Patinhas parecem senhores de si mes-
chos, não hesita em aceitar a corte de outros patos, mos, pois ambos estão subjugados pelos objetos
enciumando-o. O primo de Donald, Gastão, pato mágicos que lhes garantem a sorte e a riqueza.
de vida fácil, de características mais próximas às Dessa maneira, a excepcional riqueza de Patinhas
de Margarida, sistematicamente empenhado em cor- torna-se legítima em face, por exemplo, da modesta
tejá-la, pode satisfazê-la em seu afã de consumo, existência de Donald. O componente mágico instau-
ra a ordem do universo, pois, do contrário, o Pato
representando sempre um desafio a mais para que Donald subversivamente declararia guerra a seu
Donald se empenhe na luta para preservar ou Tio, dando estrutura e direção à sua irritação pe-
ganhar aquilo que deseja e nunca alcança: dinhei- rene, efetivando, pois, a profecia de que no fim dos
ro ou companhia feminina. Só Margarida não perde tempos filhos lutariam contra pais, irmãos contra
— com Donald ou Gastão ela é herdeira virtual irmãos.
de uma parcela da fortuna de Patinhas. Aparentemente, a sorte de Gastão é destinada a
Mas, Gastão é dotado de um dom: ele tem contrabalançar as adversidades de Donald, ,'ítravés
sorte, que lhe é dada por um infalível pé-de-coelho, de um contraste que torna a este último mais uma
desde que o tenha sempre consigo. Para ele, tudo vez cômico. Quase sempre, no entanto, a ajuda
se resolve graças aos eflúvios desse talismã, suporte tecnocrática e secularizada dos sobrinhos de Do-

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nald, senhores de um "talismã" moderno, o já re- não estão sob seu controle, desvirtuando os seus
ferido "Manual do escoteiro", mediante recursos objetivos. Por isso, não pode decifrar o sentido do
que separam o pé-de--coelho de seu dono, atenua, que faz. Em termos mannheimianos, Peninha está
desvia ou inverte a privilegiada sorte de Gastão.
Esse personagem serve, a um só tempo, para refor- mergulhado na racionalidade funcional de um uni-
çar os fundamentos mágicos da existência de Pa- verso instituído que "dispensa" os patos e os ho-
tinhas e a sua negação, que é o recurso tecnocráti- mens, absorvendo-os apenas no cumprimento do
co ao "Manual". O "Manual" é a esperança dos ritual dos papéis sociais rigidamente demarcados.
desesperançados. Num mundo crescentemente se- Peninha e Patinhas estão contrapostos, pois, no
cularizado, o reinado absoluto dos talismãs na dis- plano da criatividade. Enquanto o segundo é cria-
tribuição dos bens produzidos pelo trabalho comum dor e criatura na gênese do universo, é senhor das
poderia fazer com que o Donald irascível se trans- ações e das conseqüências das ações, tem o domí-
formasse no Donald consciente, descobrindo que a nio do que faz, com Peninha se dá o contrário. É
mágica supremacia dos talismãs poderia ser ques- que a criatividade de Patinhas se torna impessoal
tionada e até destruída. O "Manual" "democratiza" na medida em que ele se submete ao querer obje-
mais do que o acesso à riqueza, a convivência com tivo representado pela "moeda n.° l". Nesse pro-
a distribuição desigual da riqueza, pois restaura, no cesso, submetido ao reinado das coisas, ele se torna
plano secular, o princípio ordenador da vida social agente e não sujeito da reprodução das coisas e do
que encontrara sua primeira eficácia na sorte jus- universo coisificado. Patinhas não é senhor do
tificada pelos talismãs. dinheiro, mas servo do dinheiro. Não é ele quem
O Pato Donald não cumpre sozinho as adversi- "diz" ao dinheiro o que deve ser feito, mas é o
dades do universo de Patinhas. Seu primo Peninha dinheiro que precisa do cérebro de Patinhas, de
acompanha-o, de modo diverso, na trajetória des- todos os seus músculos e sentidos, para cumprir a
favorável. Enquanto Donald é essencialmente um sua lei natural que é a reprodução crescente, inces-
cumpridor de ordens, um pato no trabalho ou em sante e inexorável. Por isso Patinhas é um homem
busca de trabalho, Peninha é um pato cheio de atormentado com a segurança do seu dinheiro, pois
imaginação e iniciativa. Sua imensa submissão e está irremediável e totalmente identificado com ele.
boa vontade no atendimento das ordens do Tio le- Peninha inverte a imagem de Patinhas. Tomado
va-o à constante tentativa de inovar. Entretanto, de iniciativas é vitimado por elas constantemente.
cada iniciativa e cada inovação revelam-se sempre É que essas iniciativas não são canalizadas para o
desastrosas. Ao contrário de Donald, não amarga leito natural do que nesse universo é concebido
a impossibilidade do cumprimento formal do que como criação. Peninha quer criar soluções. Pati-
lhe é determinado. Não consegue entender por que nhas quer criar dinheiro. Peninha não sucumbiu
suas intenções nunca se realizam, por que levam ainda à desumanização que a posse impessoal do
sempre a atos que produzem resultados opostos aos sujeito pela riqueza impõe. É que as possibilidades
desejados. Peninha não consegue entender nunca o de criar de novo o mesmo universo já estão esgo-
que faz, pois entre a intenção, o ato e o resultado tadas. A fase da acumulação originária encerra-se
intrometem-se outros componentes da situação que com Patinhas.
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Donald, Gastão e Peninha nascem num mundo tes de feno sem que por isso a vida animal e vege-
constituído e integrado. Nenhum pato pode possuir tal do estabelecimento rural sofra grandes conse-
mais a envergadura heróica do civilizador Patinhas qüências. Nem por isso Vovó Donalda deixará de
porque no momento histórico por este vivido os fazer as suas tortas, sempre disponíveis para todos,
dons podiam ser encontrados no mesmo pato. Já inclusive para o próprio Gansolino. Por essas ra-
seus sobrinhos receberam fatias de um mundo espe- zões, as únicas reuniões familiares, em que todos
cializado: o trabalho para Donald, a sorte para confraternizam, são presididas por Vovó Donalda,
Gastão, a iniciativa para Peninha. A associação en- apesar da completa anomalia na estrutura familiar:
tre eles, porém, não reconstitui o pato heróico: já ela é avó sem ter tido filhos; Patinhas é tio sem ter
estão confrontados e em conflito, à espera da he- tido irmãos e o mesmo se dá com Donald; os três
rança que virá com a morte do Tio sovina e obso- sobrinhos não conhecem pai e mãe. A trágica es-
leto, com suas suíças e polainas à antiga. Os peda- terilidade biológica de todos os membros da famí-
ços não podem ser juntados para começar de novo lia só é possível porque na verdade estão em dife-
porque cada um deles ainda está tomado pelo mito rentes graus destituídos de humanidade. Vovó Do-
do capitalista-herói e considera, pois, que o seu nalda simboliza apenas a recomposição artificiosa
próprio dom é o dom essencial. Desse modo, as do mundo natural. Ainda aí, por trás das aparên-
freqüentes associações entre Donald e Peninha re- cias, é Patinhas quem reina. A unidade familiar em
sultam em fracasso, pois cada um tenta a seu mo- face da natureza é apenas utopia que ocasional-
do assumir individualmente a totalidade do mundo. mente se concretiza para logo mais ser desfeita em
Os pedaços podem ser juntados apenas para re- resultado de processos substantivos que separam
produzir o já produzido, como fazem Zezinho, ao invés de unir, que conflitam ao invés de harmo-
Huguinho e Luizinho. Não pode criar de novo quem nizar.
não tem acesso à moeda n.° l e à sua "vontade" É que a unidade do universo de Tio Patinhas
impessoal. Os sujeitos misturam-se aos objetos, sern não é garantida pela apropriação comum das con-
distinção entre uns e outros. Os sujeitos estão so- dições de existência. Por isso, os parentes não for-
brecarregados de exigências e significações que não mam uma comunidade, nem mesmo uma comuni-
decorrem deles mesmos, tornando-se, portanto, es- dade familiar e por isso não formam uma família.
tranhos em relação a si próprios. A natureza hu- Os vínculos familiares mais constantemente presen-
mana é subvertida pela mediação dos objetos cria- tes não são de parentesco por consangüinidade ou
dos pela atividade humana. afinidade, mas são vínculos dominados pela linha
Somente quando essa família volta à natureza de herança das riquezas. Entre um parente e outro
é que pode encontrar a sua paz. É na fazenda da interpõem-se os bens tidos ou esperados. Estão jun-
Vovó Donalda, no retorno ao mundo natural, que tos porque a riqueza foi acumulada, foi juntada.
Patinhas aparentemente deixa de reinar. Vovó Do-
nalda o substitui. Aí ela é a senhora do mundo. A Em conseqüência, as relações sociais que piodu-
natureza dadivosa atenua a exploração dos patos zem outros personagens do universo, não parentes
pelos patos. Gansolino, o empregado da fazenda, — amigos e inimigos — em nada diferem das re-
pode tranqüilamente tirar as suas sonecas nos mon- lações aparentemente familiares.

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Maga Patalójika, auxiliada por Madame Min, Acontece, porém, que a mesma riqueza gerada para
está obcecadamente voltada para a captura da jioe- as mãos de Patinhas cria os outros componentes do
da n.° 1. Deseja para si a fonte mágica da riqueza mundo, inclusive os recursos de defesa dá apropria-
e supõe que a posse do talismã fará com que ela, ção privada da riqueza. A diferença entre Patinhas
que já dispõe de tantos e variados poderes, possa e os Metralha é que Patinhas chegou primeiro. A
reproduzir em seu benefício a riqueza de Patinhas, institucionalização dos canais de acesso à riqueza
Nesse plano, ela e Patinhas são iguais. Ambos acre- legitimou essa primazia, transformando em ilícitas
ditam na importância transcendental do talismã todas as outras formas de apropriação dos bens.
como produtor e reprodutor de riquezas. O talis- Daí que a vida livre dos Metralha seja sempre ape-
mã representa aí, para Patinhas e Maga, os riscos nas curta temporada fora da cadeia. Estão sempre
imponderáveis do capitalismo: a sorte de um é a retornando à prisão. Basicamente são iguais a Pa-
desgraça do outro. Preservar a dimensão mágica tinhas, concordam quanto à acumulação da rique-
da reprodução da riqueza não é apenas um elemen- za, discordando apenas quanto aos detalhes na
to de coerência interna na ditadura dos quadrinhos, forma de fazê-lo. Estão certos de que a melhor coi-
mas é também a tentativa de mostrar que o talismã, sa do capitalismo é ser capitalista. O grau de orga-
embora necessário, não é exclusivo. Maga tem po- nização dos Metralha para obtenção da riqueza
deres excepcionais, pode fazer e desfazer, mas aão chega a ser empresarial. Os ardis que são interpos-
pode criar e recriar o capital, pois os outros dois tos por Patinhas mostram que entre este e aque-
componentes presentes na consciência burguesa de les o que há é uma verdadeira competição, freqüen-
Patinhas — a iniciativa e o trabalho — não podem temente decidida através da polícia que responde
ser substituídos por bruxaria. Com Maga reforça-se pela observância da conduta institucionalizada, que,
o princípio do direito natural à riqueza, ao talento. garantindo a igualdade jurídica, garante ao mesmo
No fundo, Maga serve para situar nos limites da tempo a desigualdade econômica (Dahrendorf,
ordem o pretenso caráter mágico da acumulação da 1966:29). Em suma, os amigos de Patinhas são
riqueza. Não é o pato que escolhe o talismã, mas amigos do capital. Os seus inimigos são inimigos
o talismã que escolhe o pato. das formas institucionais e dos mitos de sustentação
Enquanto Maga deseja apossar-se do que ela do capital, embora na verdade sejam amigos do
supõe ser a fonte da riqueza, os irmãos Metralha capitalismo.
buscam apossar-se diretamente da riqueza já acumu- As histórias se tornam atraentes e engraçadas na
lada. No universo de Patinhas eles representam a medida em que os seus vários cômicos, como Do-
conduta anêmica dos que aceitam os fins do siste- nald e Peninha, retiram a sua comicidade das dis-
ma, mas não os meios institucionais para alcançá- crepâncias que há entre suas condutas e o per-
-los. Tanto quanto Patinhas, estão sedentos de ri- sonagem-padrão: Patinhas. A trama das historinhas
queza. Mas repudiam os caminhos institucionais é una e sólida, amarrada pela valorização do capi-
para obtê-la. Na verdade, as experiências de cada talista-herói chamado Patinhas. Ora, Patinhas, sa-
um dos outros membros do universo, parentes, bemos, personifica o capital, assumindo a vida da
amigos e inimigos de Patinhas, constituem a reite- coisa, vivificando o que é morto, o que é trabalho
rada demonstração de que os Metralha têm razão. morto, social, acumulando em suas mãos particula-

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rés. Portanto, cada um é ridículo, delinqüente, in- vista a perspectiva tola e infantil da condição hu-
gênuo ou louco na medida em que a sua razão mana dos patos para atender a demanda da repro-
particular não é a razão pela qual o capital se insti- dução do dinheiro pelo dinheiro. Aí ele se torna
tucionalizou socialmente.
racional, porque a racionalidade é a dos objetos e a
É nesse tipo de contraste que o cientista também do enriquecimento que propiciam quando são com-
tem a sua parte na degradação moral que vincula prados e vendidos.
cada um ao Tio Patinhas. O prof. Pardal, inventor
desastrado, desespera-se na tentativa de solucionar Entre Pardal e Peninha há semelhanças e dife-
com a sua inteligência, as suas pesquisas e a sua renças. As semelhanças dizem respeito à crença ine-
incansável dedicação à invenção e à descoberta os ficaz na atividade criadora. As diferenças dizem
grandes e pequenos problemas de Patópolis. Seu respeito a que um se apoia no pensamento cientí-
desligamento do mundo é proverbial nos quadrinhos, fico e o outro no senso comum para pôr em práti-
em que o cientista é freqüentemente apresentado ca o impulso criador. Ambos são iguais, porém,
como louco, ingênuo, alienado, sonhador, perigoso quando ignoram que tudo "já está criado" se se le-
enfim. Por isso, Pardal não pode ter no universo de va em conta que a dinâmica do universo é regida
Patinhas senão a tolerância que piedosamente a pela riqueza acumulada que insaciavelmente preci-
nossa hipocrisia burguesa dedica aos alienados men- sa crescer.
tais. Ele se preocupa com pequenas coisas (e nisso De fato, o universo de Patinhas é educativo se
é quase infantil), como a invenção de um pula-pula tomamos a educação como veículo impositivo de
que facilite o transporte das pessoas, ou de um
combustível que torne mais rápido, os meios de valores. Diante dele as crianças e os adultos podem
transporte, ou de uma banheira voadora. Vive, en- descobrir como são estúpidos, como são ridículos
fim, na esperança de resolver aflitivos problemas do e alienados quando toleram que na sua personali-
dia-a-dia dos patopolitanos ou na esperança de an- dade se manifestem grotescos traços humanos. Pati-
tecipar e solucionar os problemas que os patopoli- nhas constitui um chamado à razão: a razão que
tanos provavelmente enfrentarão no futuro. Só que faz com que as coisas se relacionem umas com as
Pardal esquece freqüentemente de uma coisa muito outras como se fossem dotadas de condição huaia-
importante no universo de Patinhas: é que aí não na e que faz com que as relações entre os homens
há lugar para a primazia da utilidade dos objetos. pareçam relações entre coisas, conforme já cbser-
Cada objeto tem que ser, antes de mais nada, uma vou um sábio alemão.
mercadoria. Por isso, as loucuras de Pardal só de-
saparecem quando são absorvidas pelo delírio REFERÊNX-1AS
acumulativista de Patinhas. Quando este faz uma
1. Dahrendorf, Ralf, 1966. Sociedad y Ubertad. Editorial
encomenda ou solicita uma invenção que resolva Tecnos S.A., Madrid.
um problema crucial para o capital, como uma 2. Dorfman, Ariel e Mattelart, Armand, 1972. Para leer
defesa contra os Metralha ou um equipamento que dl Pato Donald — Comunicación de masa y colonia-
o torne mais rico. O cientista só deixa de ser doido lismo, segunda edición, Siglo XXI Argentina Edito-
quando trabalha para o capital, quando perde de res S.A., Buenos Aires.

16 17

3-S.M.C.P.
3. Goldmann, Lucien, 1967. Dialética e cultura. Paz e
Terra, trad. de Luiz Fernando Cardoso, Carlos Nelson
Coutinho e Giseh Vianna Konder, Rio de Janeiro.
4. Mannheim, Karl, 1946. Líbertad y planificación social.
Fondo de Cultura Econômica, trad. Rubén Landa,
México.
5. Merton, Robert K., 1964. Teoria y estructura socia-
les, trad. de Florentino Torner, Fondo de Cultura
Econômica, México — Buenos Aires.
0. Martins, José de Souza, 1974. Conde Mtitarazzo, o
empresário e a empresa — Estudo de sociologia do
desenvolvimento, 2.a edição, ].a reimpressão. Hucitec-
Edítora de Humanismo, Ciência e Tecnologia, São
Pau'o.

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