Resumo
Este trabalho busca identificar os postulados de atuação do Brasil no contexto interna-
cional durante o governo Castelo Branco (1964-1967) e sua articulação com a crise do
populismo. Defende a hipótese de que a segurança não subordinou o desenvolvimento
nesse período – como as interpretações correntes costumam sugerir – mas sim que a se-
gurança articulou-se com uma nova opção de desenvolvimento: o desenvolvimentismo
associado ao capital internacional. Dentro dessa perspectiva, este trabalho discute e ma-
tiza os princípios fundamentais da política externa do Governo Castelo Branco, bem
como sua articulação com a internalização da Guerra Fria.
Palavras-chave: Guerra Fria - Política Externa - Castelo Branco
Abstract
The present study aims at the identification of Brazil’s acting assumption in the interna-
tional context during Castelo Branco’s government (1964-1967) and the populism cri-
ses. It supports the hypothesis that development was not subjected to security in that pe-
riod – as current views usually suggest. Indeed, security was associated as a new option
of development: development linked to foreign capital. Within this point of view, this
work discusses and varies the main principles in the foreign policy of Castelo Branco’s
government and its association to internalization of Cold War.
Key words: Cold War - Foreign Policy - Castelo Branco.
*
Professor de História das Faculdades Porto-Alegrenses (FAPA) e do Curso de Graduação em Rela-
ções Internacionais da UFRGS. Mestre em História e doutorando em Ciência Política (UFRGS). E-
mail: reisdasilva@hotmail.com
tação de armas nucleares e nos enten- EUA e tornava-os novos pólos de atra-
dimentos de proibições dos testes nu- ção.
cleares, o que na prática procurava im- A reação americana ao risco de
pedir a proliferação de tal tecnologia.
perda de influência em áreas do Tercei-
Tais entendimentos foram denunciados ro Mundo veio com uma crescente mi-
pelas potências emergentes, como uma litarização nos anos 60, associada a
tentativa russo-americana de congelar o
reformas econômicas, políticas e soci-
poder no sistema mundial. Ao mesmo ais na periferia a partir do projeto Ali-
tempo, a Guerra Fria direcionava-se
ança para o Progresso, o qual, com a
para a periferia do sistema mundial,
morte do Presidente Kennedy e a as-
onde ambas superpotências disputavam
censão de Lindon Johnson, será lenta-
poder e influência. Todavia, novos e-
mente esvaziada. A malograda experi-
lementos surgiram e complexificaram o
ência norte-americana no Vietnã ainda
sistema internacional, dentre os quais
estava no início, mas já começava a
estão a descolonização, a ruptura chi-
ensinar que apenas a detenção de tec-
nesa no seio do bloco soviético e a per- nologia de guerra e armamento nuclear
da do poder relativo dos EUA e da U- não era o suficiente para manter o sta-
nião Soviética.5 tus mundial. Fazia-se necessário, tam-
Nas década de 1960, começaram bém, impedir a ascensão de movimen-
a ficar mais nítidos os sinais da frag- tos que pudessem vir a provocar a rup-
mentação política e da multipolaridade tura desse sistema, tais como governos
econômica no sistema internacional. populistas, esquerdizantes ou naciona-
Dentro do quadro de tentativa de con- listas. A experiência diplomática dos
gelamento do poder mundial, perce- últimos governos populistas no Brasil
bem-se as fissuras surgidas no sistema, muito contribuiu para esta percepção
representadas pela ascensão política e norte-americana, como veremos a se-
econômica de novos atores. Assim, a guir.
bipolaridade, sob a hegemonia norte-
americana, estava cedendo espaço a um
sistema mundial mais complexo, en- Da política externa
quanto se via o crescimento acelerado independente ao paradigma
do Japão e da Alemanha Ocidental, que da interdependência
transformava-os em competidores dos
A Política Externa Independente
5 (PEI) abarcou os períodos dos gover-
SARAIVA, José Flávio (Org.). Relações
Internacionais contemporâneas: da constru- nos Jânio Quadros (1961) e João Gou-
ção do mundo liberal à globalização - de 1815 lart (1961-1964), e manteve uma relati-
aos nossos dias. Brasília: Paralelo 15, 1997, p. va continuidade, apesar de terem ocor-
258-259
interna nos Estados Unidos e que o dia um papel de país-chave dos EUA
Brasil teria sido utilizado como o obje- na América Latina, executando uma
to de polarização política. política subimperialista 22
A instauração de regimes milita-
res foi a principal característica dos
Relações com os países países do sub-continente na década de
da Bacia do Prata 1960. No período que compreende o
Governo Castelo Branco, o Uruguai foi
Nos anos 1960, a instalação de o único país com regime democrático
regimes de segurança nacional, na Ba- no Prata. O Paraguai, na época, vivia
cia do Prata, provocou convergências um regime militar desde que um golpe
de interesses entre os países, embora o de Estado, em 1954, colocou Stroesse-
acentuado pensamento geopolítico ain- ner no poder. Depois do Brasil, a Ar-
da incentivasse algumas rivalidades e gentina sofreu um golpe militar, co-
ressentimentos. A aliança com os EUA mandado pelo General Ongania, em
tornava-se a consagração do projeto 1966. Já na Bolívia, o General Barrien-
geopolítico dos militares brasileiros, o tos comandou um golpe de Estado,
qual, desde a década de 1930, vinha tendo assumido o poder no final de
sendo construído. Os geopoliticos bra- 1964.
sileiros desenhavam como objetivos a As relações entre o Brasil e a
ocupação efetiva do território nacional, Argentina voltaram a se estreitar após
a expansão na América do Sul e, pos- ao Golpe de 1964, uma vez que as es-
teriormente, a formação de uma po- tratégias de segurança coincidiam: am-
tência mundial.21 bos defendiam a revisão do conceito de
Como contrapartida à aliança soberania e propunham a implantação
com os EUA, os militares brasileiros das fronteiras ideológicas. A doutrina
tinham, como objetivos, manter a regi- das Fronteiras Ideológicas passou a ser
ão da Bacia do Prata sob a sua hege- defendida pela Argentina, quando o
monia para, assim, impedir o assédio General Juan Carlos Ongania coman-
dos países comunistas e orientar essas dou um golpe de Estado, em de junho
economias a favor do desenvolvimento de 1966, e implantou um regime seme-
do Brasil. Os objetivos e a atuação do lhante ao do Brasil. O novo Governo
Brasil no Prata durante o Governo Cas- argentino passou a defender a institu-
telo Branco indicam que este se preten- cionalização da Junta Americana de
Defesa junto à OEA. Já em 1967, o
21
COMBLIN, Joseph. A ideologia da Segu-
22
rança Nacional: o poder militar na América TRIAS, Vivian. Imperialismo y geopolitica
Latina: Rio de Janeiro: Civilização Brasilei- en America Latina. Montevidéu: El Sol,
ra, 1978, p. 27. 1967, p. 256.
Brasil relativizava a Doutrina das Fron- lidade iminente de haver uma interven-
teiras Ideológicas, praticamente aban- ção militar brasileira na Bolívia.
donando-a, tomando um rumo mais O Uruguai deu mostras de boa
independente em sua política externa. vontade para com o Brasil, anunciando
A Argentina passou, nesse momento, a o reconhecimento do Governo Castelo
disputar com o Brasil a posição de pa- Branco, em 23 de abril de 196426 Po-
ís-chave ou satélite privilegiado, na rém, havia, por parte dos dirigentes
política hemisférica dos EUA.23 Dessa uruguaios, o receio das pretensões he-
forma, no período Ongania, a Argenti- gemônicas do Brasil na região.Após
na passou, de um primeiro momento, defender o principio de intervenção em
de “satélite do satélite”24, para, após, países com focos de instabilidade co-
competir com o Brasil como país-chave munista, a intervenção brasileira no
dos EUA na América do Sul. Uruguai revelou-se provável. Somente
Já a Bolívia, de posse de uma em fevereiro de 1965 a questão enca-
grande reserva de minerais e de gás, minhou-se para um entendimento, com
além da sua posição geopolítica, prati- o estabelecimento de um prazo para
camente o centro da América do Sul, é que diversos exilados deixassem o U-
considerada, por alguns autores, como ruguai.27 Entretanto, os problemas de
“o fiel da balança” nas relações entre o relacionamento entre os dois países, em
Brasil e a Argentina. De fato, a Bolívia virtude da questão dos exilados, não
executou uma política pendular, com impediu que se continuassem as ativi-
alianças oscilando entre um e outro dades da comissão mista Brasil-
país.25 Um golpe de Estado ocorrido na Uruguai, com vistas ao desenvolvimen-
Bolívia, em 5 e 6 de novembro de to da região
1964, derrubou o Governo de Paz Es- Nas relações com o Paraguai, o
tensoro. O Brasil apoiou o golpe e re- fato mais importante foi a assinatura da
conheceu o Governo do General René Ata das Cataratas, em 1966, que permi-
Barrrientos afastando, assim, a possibi- tiria o aproveitamento conjunto do po-
tencial hidrelétrico no Rio Paraná. 28 O
23
BANDEIRA, Moniz. Estado Nacional e 26
URUGUAI decide manter suas relações
Política Internacional na América Latina: o diplomáticas e comerciais com o Brasil.
continente nas relações Argentina-Brasil. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 abr.
São Paulo: Ensaio, 1995, p. 287. 1964, 1º caderno, p. 09.
24
Ibid., p. 239. 27
NOVA fase de relações entre Brasil e Uru-
25 guai. Diário de Notícias, Porto Alegre, p.
CAMARGO, Sônia de; VASQUEZ OCAM-
PO, José Maria. Autoritarismo e democracia 03, 17 fev. 1965.
da Argentina e Brasil: uma década de polí- 28
BRASIL e Paraguai entendem-se encerrando
tica exterior, 1973-1984. São Paulo: Conví- as suas diferenças. Correio do Povo, Porto
vio, 1988, p. 367. Alegre, p. 01 24 jun. 1966.
nas críticas à China comunista. Não que o Brasil poderia ter uma balança
obstante as boas relações com Formo- comercial favorável e equilibrada, le-
sa, o Brasil revelou seu pragmatismo, vando-se em conta os benefícios da
ao ser um dos seis países que propuse- potencialidade do mercado dos países
ram a nomeação, pela Assembléia Ge- socialistas. Em agosto de 1965, Assis
ral da ONU, de uma comissão para Chateubriand, juntamente com a comi-
estudar a questão do ingresso da China tiva da Sociedade de Estudos Históri-
comunista naquela organização.34 Em cos Dom Pedro II, esteve na União
relação à Guerra do Vietnã, o Brasil, Soviética, para tratar de assuntos cultu-
pragmaticamente, manteve uma posi- rais, antecedendo a visita de Roberto
ção de solidariedade tanto com os EU- Campos.35 Os contatos comerciais au-
A, como com a República do Vietnã, mentaram. O Brasil esperava vender
embora se recusasse a enviar tropas navios e ferramentas de precisão para a
para lá. União Soviética, conforme anunciava a
Sob o signo da Política Externa Embaixada brasileira, ao comentar as
Independente, havia ocorrido o restabe- conversações comerciais entabuladas
lecimento das relações diplomáticas entre os dois países.36
com a URSS e o início das relações Mesmo com a clara opção pelas
diplomáticas com vários países do Les- relações bilaterais, durante o Governo
te Europeu. Com o Golpe militar, inau- Castelo Branco, não se menosprezou a
gura-se a perspectiva de ocorrer um participação em fóruns multilaterais. A
afastamento desse grupo de países. OEA e a ONU foram, certamente, dois
Todavia, o discurso da Guerra Fria não importantes espaços de atuação brasi-
correspondeu à prática: ao mesmo tem- leira. Ainda sobre a orientação bilateral
po em que o Brasil não rompeu com os da política externa, convém lembrar a
países socialistas do Leste Europeu, a maneira como Vasco Leitão considera-
URSS procurava aumentar o intercâm- va o multilateralismo: ele afirmava
bio comercial. Em setembro de 1964, a que, na ONU, fazia-se “ (...) uma lo-
Comissão de Relações Exteriores da gomaquia, uma disputa por palavras.
Câmara dos Deputados havia informa- Mas é melhor que existam, a OEA e a
do que os países socialistas deviam, ao ONU, para servirem de lugar para os
Brasil, cerca de 40 milhões de dólares.
Ocorreu, então, um debate sobre a van-
tagem ou não de comerciar com os
socialistas, e acabou vencendo a tese de 35
DIÁLOGO Brasil-URSS tem a cultura e o
comércio acima das ideologias. Diário de
34 Notícias, Porto Alegre, p. 03, 06 ago. 1965.
BRASIL propõe reexame da admissão da
36
China. Correio do Povo, Porto Alegre, p. 01, BRASIL oferece navios à Rússia. Diário de
22 nov. 1966. Notícias, Porto Alegre, p. 03, 16 dez. 1965.
países dizerem desaforos uns aos ou- não obstante ele ter mudado a ênfase
tros e não fazerem nada”37 nos discursos, quando assinou, no Mé-
Nos fóruns multilaterais, o Brasil xico, em maio de 1967, o Tratado de
adotou então uma postura mais discre- Tlatelolco - que prescrevia o uso de
ta, esvaziando-se o conteúdo terceiro- armas nucleares na América Latina.- e
mundista dos discursos e das práticas recusando-se a assinar o TNP.
do Governo, até então vigentes sob a
PEI. Com um enfoque mais técnico que
político, e a partir de uma postura mais
individualista, o Governo brasileiro Conclusões
buscou uma melhoria das condições do
comércio mundial e, crescentemente, Após o Golpe de 1964, foi intro-
passou a debater a questão nuclear.38 duzido, no Brasil, um novo modelo de
Conforme Clodoaldo Bueno, a atuação inserção internacional, fundamentado
do Brasil nos fóruns multilaterais so- em novos condicionamentos internos e
bre esse tema era orientada pela posi- externos. Internamente, logrou-se a
ção de que a tecnologia nuclear criava ruptura do modelo de desenvolvimento
um distanciamento das duas superpo- do tipo populista e o afastamento de
tências e os outros países e de que abrir sua base social. Externamente, embora
mão dessa tecnologia significava abrir o mundo bipolar começasse a apresen-
mão da pesquisa nacional, da soberania tar fissuras, a crescente militarização da
e do desenvolvimento. Daí nascia a América Latina - impulsionada pelos
resistência do Brasil, que defendia o Estados Unidos como forma de manter
desarmamento, em aceitar a proposta sua hegemonia, sob o discurso da
americano-soviética do Tratado de Guerra Fria – proporcionou o apoio
Não-Proliferação de Armas Nucleares necessário ao regime militar brasileiro
(TNP).39 Na realidade, tentava-se pre- e a uma nova inserção do país no sis-
parar o terreno, sem entrar em choque tema internacional.
com os EUA, para a negociação da A dimensão de segurança calcada
mudança dos termos do TNP. Essa na Guerra Fria, como orientação fun-
política continuou com Costa e Silva, damental da política externa do gover-
no Castelo Branco, não teve a profun-
37
CUNHA, Vasco Leitão, op. cit., p. 293. didade e a extensão que se apregoa.
38
VIZENTINI, Paulo. A política Externa do Embora as questões relativas à segu-
Regime Militar brasileiro. Porto Alegre: Ed. rança tenham sido a maré-montante do
UFRGS, 1998, p. 69. novo governo, o desenvolvimento tam-
39
BUENO, Clodoaldo. A política multilateral bém constituía uma prioridade, ainda
Brasileira. In: CERVO, Amado (org.). O que sob novas bases. Assim, o binômio
desafio internacional, op. cit., p. 92. segurança e desenvolvimento articula-