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Vem cá que eu te conto

editora multifoco
Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.
Av. Mem de Sá, 126, Lapa
Rio de Janeiro - RJ
CEP 20230-152

capa
Laís Brevilheri

diagramação
Fernanda Hubacher

Vem cá que eu te conto - 1a Edição


Setembro de 2009
DOMIT, Rodrigo
PACOLA, Gisele
ISBN: 978-85-7961-023-3

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro
com fins comerciais sem prévia autorização
do autor e da Editora Multifoco.
Rodrigo Domit
Gisele Pacola

Vem cá que eu te conto

Rio de Janeiro, 2009


Este livro foi escrito por canhotos.
PREFÁCIO

CONTOSSIM

Livro por canhotos. Na contra-mão? Flashes. Nem te


conto. Cuidado – o que estava aqui já passou. E o que passou
é o eterno. Sim, segundo. Sim, segundas intenções. Segundas,
quartas e sextas o que vemos. O que nem conseguimos (mais)
ver. Este livro da Gisele Pacola e do Rodrigo Domit: como nas-
ceu o que um conto, os ratos do século xxi, por um bilhão de
centavinhos, vestidos em sua roupa melhor. Bilhete: uma idéia.
(Números sagrados). Territórios além-vidro. Os contos, os au-
tores e eus. Justo isso. Justo jamais. Dia da pesca – e se a mulher
do Almeida não vai? E se você não for? Se cansaço, esperar;
esperando (cadeira!). Parte 1 – vida de escritor – parte 2.
Sinais. Tardes sem peculiaridades mas exceções. Dentes
disputando espaço, o telefone toca enquanto isso. É, esse mundo
aqui está perigoso. Aquela viagem sem a lanterna. (Iras de prin-
cesas desbocadas fazendo par com o príncipe maquiavélico). Co-
meço do resto. Táticas de conquista: chama-se o táxi, engole-se
a seco, ela muda. Leitor atento (voyeur) e este livro: silêncios de
antes completando os de agora sons. E assim será. Livre arbítrio:
gatos, cigarros, chão. Sábio assobiar. Monólogos da grande histó-
ria que não usa disfarce. Saturno e sua radiação (capacidades e in-
diferenças?) sobre o povo das luzes. Pergunta na boca. Será sua.
Evolução dos meios, enquanto isso, por aí.

por Luci Collin


O CONTO DO CONTO

O conto nasceu assim: o pai dos contos plantava se-


mentes de criatividade e os contos brotavam delas. Quando
o conto nasceu, um contou para o outro, o outro contou
para outro, este outro para outro, outro e assim foi. O conto
veio depois da conta, mas o contador, das contas, veio bem
depois do contador de contos.
Certo dia, o conto começou a ficar bem falado, gente im-
portante começou a escrever sobre ele e, quando foi perceber,
já estava estampado por livros, revistas e jornais. Sucesso de pú-
blico e crítica, o conto fez história. O conto pregava que quem
corre atrás consegue. Ele conseguiu, ganhou prêmios e tudo o
mais. Estava vivendo um conto de fadas.
Mas o inevitável aconteceu: tudo que sobe tem que des-
cer. O conto começou a se envolver com drogas, sexo e car-
nificinas. Passava a noite na taverna, se envolvia em brigas,
participava de rituais e organizava orgias de fazer inveja ao
marquês dos contos proibidos.
Antigamente, o conto tinha um discurso de moralismo
bem próximo das fábulas. Agora, não respeitava mais nada nem
ninguém. Tornou-se intolerante e atacava, a golpes de machado,
as igrejas, os governos, os santos e as putas. E o problema se agra-
vou quando o conto se vendeu: passou a defender qualquer causa
ou pessoa com intenções duvidosas por apenas alguns contos.
Quando o conto começou a ficar mal falado, qualquer
um contava o conto como se fosse um conto qualquer e con-
tavam um conto qualquer como se fosse o conto. Os amigos
foram se afastando na mesma medida que a fama ia acabando.
Os que ficaram, nos dedos se contava.
E o conto acabou sozinho, quando percebeu que ha-
via caído em um conto: o conto do conto.

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VIDA DE ESCRITOR

— Não gostei muito do seu personagem.


— Qual deles?
— Esse aqui.
— Como assim?
— Achei ruim.
— Como se atreve?
— Oras, você tem que estar aberto a críticas.
— Critique meu jeito de escrever! Uma palavra errada. Coe-
são, coerência, pontuação, o diabo! Mas não me venha falar dele!
— O que há com você? Não seja tão radical.
— Se eu não defender meu personagem, quem o fará?
— Pare com isso, é só um personagem.
— E você é só um humano estúpido.
— Não acredito que está brigando comigo por causa disso.
O escritor vira-se de costas para o amigo, abre o livro e sus-
surra baixinho entre o segundo e o terceiro parágrafo:
— Você tinha razão, ele é um idiota. Sim, sim, vou pedir pra
ele sair. Dê-me um minuto.

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UM DIA É DA PESCA

O garoto foi pescar com o pai, adorava esse tipo de pro-


grama. Ele e o pai juntos, viagem até o rio, aquela sensação de
acampar — mesmo estando hospedado em um bom hotel — e
pescar. Só tinha uma coisa que o incomodava: limpar os peixes.
Ele não conseguia enfiar uma faca nos pobres peixes e arrancar-
lhes as tripas com as próprias mãos.
Ele e o pai passaram o dia pescando no barranco, cada
qual com seu baldinho. Os baldinhos encheram-se, as horas
também e o pai começou a limpar os peixes que pegou. Enfiava
a faca, colocava no rio e tirava as tripas. Enfiava a faca, colocava
no rio e tirava as tripas.
O filho já estava enjoado e o pai, volta e meia, ainda falava:
— Olha, esse aqui tem ova! — E levantava as mãos exibin-
do algo não identificável e bem sujo de sangue.
Ao terminar de limpar o balde todo, o pai virou-se para o
filho e perguntou:
— Não vai limpar os seus?
— Ah. Já limpo. Empresta a faca?
O pai deixou a faca e foi andando na direção do hotel.
Agora era só ele e os peixes. Olhou para o balde, faca na
mão, suor na testa, olhos de peixe e mãos tremendo. Olhos nos
peixes, mão no balde, suor na testa e hesitou. Não conseguiu
pegar nenhum. Ficou apenas pensando na crueldade que era
fazer aquilo com os animais.
Pensou mais um pouco e decidiu que ia soltá-los, todos.
Decidido, foi até o balde e pegou o primeiro peixe na mão. O
peixe se debateu, pulou contra seu rosto, fazendo-o gritar, escor-
regou entre suas mãos e foi para o chão.
Ao lado, dois moleques, que acabavam de chegar, riam da
cena e o imitavam em gestos e no grito.

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O garoto não teve dúvida, olhou bem nos olhos dos
moleques e enfiou a faca. Depois colocou no rio, tirou as tri-
pas e repetiu o processo até esvaziar o balde. Sem culpa ou
remorso. Afinal, era ele ou eles.

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CADA MACACO NO
SEU APARTAMENTO

Ouvi os gritos das crianças na vizinha e pedi para meu


marido ir lá ajudar.
Aí lembrei da marca da faca no braço da menina, a
menorzinha. Segurei meu homem na porta.
— Não vai, não.
— Meu Deus, mulher, as crianças... Liga para a polí-
cia, então!
— Para ela vir tirar satisfação aqui comigo depois?
Nem pensar! Senta aqui comigo, homem, vamos rezar. Da-
qui a pouco ela pára.

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40 ANOS DEPOIS

Peguei o álbum marrom.


Aquele, escondido.
Ele podia estar lá dentro.
Entre os outros fantasmas sorridentes.
Achei sua foto.
Lembrei sua fala, eterna e última:

— Duvido que você tenha coragem.

Vesti meu sorriso antigo no rosto envelhecido.


Protegida pelo tempo, e pela falta de provas, claro.
Bem feito.
Três dias pro sangue sair do meu vestido.
Aquele porco.

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A MULHER DO ALMEIDA

O Almeida era um cara magro, míope, sem grandes quali-


dades nem grandes defeitos. Bem na verdade, grande mesmo só o
silêncio do Almeida. Tímido que era, escondia-se atrás dos óculos
e ria baixo das piadas nas rodas de jogo. Ouvia as histórias dos mais
malandros e tudo nele misturava dúvida, surpresa e reprovação.
Se o Almeida fosse um bicho, seria um daqueles que
se escondem na concha para sua própria sobrevivência, num
mutualismo ardido e covardemente necessário. Mas o Al-
meida, coitado, nem concha tinha. Tinha era uma expressão
de bicho com pata quebrada, de coisa ignorada e esquecida.
Solitário demais, tinha um silêncio de incomodar.
O pessoal do Almeida ia até o bar todos os dias. Ele, uma
vez, no máximo, por semana. Tomava alguns remédios homeo-
páticos para se acalmar. “Acalmar do quê”, ria o Siqueira.
Mas a solidão, velha companheira do Almeida, um dia
acabou — porque um dia tudo acaba.
Em viagem ao Rio de Janeiro, conheceu uma mulher.
E foi numa tarde de quarta que ele chegou sorrindo.
— Que foi, Almeida?
— Eu... já volto. Esperem aqui.
— Mas como já volta se acabou de... Almeida!
— Olha lá, correu pra casa. Eu falei pra você, pára de
cutucar o Almeida, eu avisei.
— O cara só tá alegre, deixa...
E eis que o Almeida voltou, com uma das mãos ajeitando
os óculos e a outra segurando sem jeito a cintura da criatura-
mulher mais fantástica que algum deles já tinha visto.
— Gente, essa aqui é a minha mulher.
Ela tinha o sorriso largo, o corpo alto e desenhado. O cabelo
caindo pelos ombros até a cintura, até os dedos felizes do Almeida.

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Todos naquele momento eram um pouco do Almei-
da. Fizeram um silêncio que, mesmo quebrado pelos cum-
primentos efusivos do Siqueira e do malandro Sérgio Sales,
denunciava um espanto geral.
Como é que o Almeida? Onde é que o Almeida, que
mulher é essa?
Para piorar a situação, a mulher ainda era boazinha.
Esperta sem ter cara de safada. A voz leve sem ser vulgar.
Olhos brasileiros e redondos com uma ternura tal, e toda
ela acabava na direção do Almeida.
Depois de horas conversando – como nunca antes -, o
Almeida abraçou sua mulher e foi embora, despedindo-se
muito. Os amigos entreolharam-se.
O Almeida e sua mulher casaram-se rápido. Comple-
tado um ano, beijavam-se na rua de tal modo que fazia as
gentes suspirar, avermelhar, e é claro, sentir inveja.
Os companheiros do Almeida passaram da admiração
para a desconfiança. E sem motivo, o que os deixava ainda
mais desconfiados.
— Essa mulher tem algum defeito. — reclamou o Sales.
— Você está é implicando com a moça. De defeito, só ser
bonita demais. – riu o dono do bar, mostrando a falha no dente.
— Aí tem. Boazinha demais, bonitinha demais. Escre-
ve o que eu digo.
— Traindo o Almeida? Quando? A mulher nem sai de
casa, vive pro cara... Vocês estão é com inveja.
— Cala a boca, Siqueira, você não sabe de nada.
O tempo passava, e nada. A mulher só dava moti-
vo para o marido sorrir. Era cuidadosa, não reclamava de
nada, insistia para o marido sair de casa, mas o homem só
queria o colo da mulher na volta do trabalho.
Mas como todo amor tem seu pecado, o pobre do
Almeida caiu em tentação numa noite de outubro. No bar,

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só ele e o Sales. E assim que o Almeida levantou para ir
embora, o amigo chamou:
— Almeida, ei! Volta aqui... está cedo.
— É que minha mulher...
— É sobre ela mesma.
— Que tem ela?
— Pois é, Almeida. Senta aí.
— Fala, Sales. O que tem minha mulher?
— Não fica nervoso, calma.
— O que é que foi?
— Calma, Almeida, ei, não me olha assim. É só uma dú-
vida, amigo.
— Dúvida?
— É, brincadeira boba. É que um dia a gente apostou
aqui no bar se a tua mulher tinha algum defeito, sabe como é. A
tua mulher, né Almeida, o que é aquilo, mulher abençoada.
O Almeida sorriu.
— É, ela é mesmo.
— Mas então. Tem?
— Tem o quê?
— Defeito, Almeida.
— Não...nenhum. – e o Almeida sorriu mais.
— É amigo, você tem sorte. Mulher assim, olha. Eu digo
isso, porque, você sabe, mulher quando é boazinha demais...
— Como assim, Sales?
— Ah, aquela coisa. Tem vício escondido. Trai com o
amigo. Cada coisa.
— É?
— E como! Pior ainda são aquelas que te dão um mole-
que que é tua única alegria, e o menino cresce com a cara do
colega, aí sim. Capituzinha, sabe?
— Minha mulher não faria isso.
— Claro que não, Almeida. Tua mulher é uma santa. –
sorriu o Sales com a boca no copo de cerveja.
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E aqui começa o inferno do infeliz do Almeida.
Foi para casa orgulhoso mais uma vez de sua boa mulher.
Mas como a dúvida e o medo são lâminas, o Almeida cortou-se,
e, coitado, não conseguiu dormir.
A partir daí foi gradativo, degradê. A dúvida do Sales
agora era dele também. Não conseguiu olhar a mulher no
café, e foi direto para o bar na volta do trabalho. Sem cora-
gem de perguntar ao Sales se sua mulher tinha dado motivo
para o comentário, acabou ficando quieto mesmo. E foi ao bar
todos os dias, na tentativa de ouvir alguma coisa. A mulher
do Almeida ficou feliz de ver ele tanto tempo com os amigos,
estava mais sociável.
“Deve estar querendo que eu fique na rua para me saca-
near” – remoía o Almeida.
E aí ele começou a insistir. Em achar. Alguma coisa.
Chegava mais cedo em casa, e nada. Seguia a mulher na
rua, e nada. Ouvia as conversas dela com as amigas na exten-
são do telefone, e nada.
E o Almeida começou a beber. Começou a fumar sem
querer, viajava sem avisar sem querer, voltava bêbado sem
querer, traiu e bateu em sua mulher sem querer. A dúvida,
quase um câncer.
Sua mulher emagreceu, cortou os cabelos.
Até promessa ela fez, mas a teimosia do Almeida era. E foi
com uma chuva de abril que ela pegou o que pensava ser uma
gripe, e não cuidou. Era tuberculose, que a matou em dois me-
ses. O Almeida chegou em casa dois dias depois. Ela lá, na cama
do casal, magra e morta, de camisolinha branca, os lencinhos de
papel molhados de vermelho em volta de si.
E entre os sussurros no velório, o que se ouvia era
o seguinte:
— Ela morreu do quê, mesmo?
— Diz que foi por causa do Almeida.

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— Morreu de desgosto, isso sim.
— Esse Almeida não presta. E agora fica aí, desse jei-
to. Canalha.
E o Almeida, ai, o Almeida. Segurou a mão fria da mulher
no peito, e aí então ele descobriu. O único defeito da mulher do
Almeida era o de amar demais.

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MAIS PERTO DO SENHOR
Ela vestiu sua melhor roupa, tirou do armário aquele per-
fume guardado para ocasiões especiais e ficou fazendo e desfa-
zendo o cabelo até que ele ficasse impecável.
Saiu de casa meia hora antes do que de costume e cami-
nhou pelas ruas vazias em direção à praça. As poucas almas
vivas que encontrava estavam entre vivas e mortas, acorda-
das e desmaiadas, resquícios da noite anterior. Era assim toda
manhã de domingo, especialmente na época da colheita do
café, quando a população da cidade dobrava apenas com os
trabalhadores temporários, nômades, a serviço de quem tives-
se serviço a oferecer.
Como planejado, chegou a tempo de pegar o melhor lu-
gar, na primeira fila, à margem do altar. Observou atentamen-
te cada movimento do padre enquanto ele preparava-se para
subir ao púlpito, estava esperando por este momento desde a
semana anterior, mas não se arriscava a dirigir-lhe a palavra. Ela
pensava que se ele ao menos a olhasse com atenção, ela nem
precisaria falar nada.
Em pouco tempo começaram a chegar outros fiéis, al-
guns infiéis e outros que nem sabiam muito bem o que estavam
fazendo ali. Entre todos, uma lhe chamou a atenção, ela nunca
tinha visto aquela moça por ali. Não era muito bela fisicamente,
tinha lá um ou outro detalhe a reparar, mas o que mais chama-
va a atenção era a roupa. Era uma roupa de sábado, parecia im-
própria para a missa de domingo, uma saia alguns dedos acima
do joelho e uma blusa de alça, com um leve decote, que deixava
à mostra as linhas do pescoço adornadas com um belo par de
colares, um em tons de madeira e o outro vermelho.
Logo ela deixou de reparar no pescoço e na moça dona do
pescoço. Mas então quem reparou na moça foi o padre e, após
reparar que ele havia reparado, ela voltou a reparar na moça.

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Analisou cada detalhe, cada leve defeito, cada pecado que ela
havia de ter cometido. E reparava também no padre, nos seus
olhares e seus sorrisos. Assemelhavam-se ao olhar e ao sorriso
do último domingo, mas ela tinha certeza que se direcionavam
ao quinto banco do lado esquerdo da igreja.
A situação foi lhe deixando ansiosa, não sabia como pro-
ceder diante de tal afronta. Ainda mais porque ela estava na pri-
meira fileira, em meio a duas senhoras, no meio da cerimônia,
em meio aos olhares e colares, pensando em um meio de cessar
aqueles atos indecentes. Foi então que começaram uma oração,
e ela, sem outra opção, começou a rezar alto, mais fervorosa-
mente do que qualquer pessoa já havia orado diante daquele
altar. Por conta disso, os olhares de todos, inclusive os do padre,
direcionaram-se a ela. Percebendo a situação, ela continuou,
em alto e bom tom, a pronunciar todas as falas que cabiam aos
que ficavam de frente para o altar, já sabia todas de memória.
Ao final da cerimônia, após cânticos entusiasmados e ora-
ções fervorosas, ela olhou para o padre e ele fez um gesto para
que ela se aproximasse. Ela sentiu um frio na espinha, até o ar
dentro dos seus pulmões sentiu-se intimidado e acabou fican-
do por ali mesmo enquanto ela caminhava em direção ao altar.
Durante a breve caminhada, observou com um sorriso a moça
dos colares retirando-se pela porta lateral.
Quando ela já estava perto o suficiente, ele disse:
— Já na minha segunda celebração não pude deixar de
notar tua presença. Não há modo de não ficar admirado com
tua devoção às orações e aos cânticos. Tens algum motivo es-
pecial a celebrar?
Ela deu mais um passo em direção a ele e respondeu:
— Tenho só um motivo, ficar mais perto do senhor.

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O CONTO, O AUTOR E EU

Só podia ser brincadeira.


Justo aquilo, cair na minha mão, justo eu, a diretora do
jornal. Nem precisei folhear muito o que tinha acabado de en-
contrar ali, perdido no balcão de entrada. Um perigo. Para o
meu emprego, para quem lesse, para o jornal que provavelmen-
te ia amanhecer com janelas quebradas.
Mas que conto bom!
Mais duas páginas lidas, e percorri a sala com os olhos,
já planejando uma rota de fuga. Eu seria perseguida por ali
em breve, não sei por quantas pessoas, tomara que poucas.
Talvez pelo próprio autor, enfurecido por eu ter invadido sua
privacidade e, ainda mais, exposto suas vísceras como boné
no camelô da praça. Custava ter assinado o dito cujo, custava
ter um nome aquele conto que agora não me saía da cabe-
ça? Cada linha escrita aumentava minha sede de compartilhar
aquelas idéias com o mundo todo.
Era um conto pequeno, datado do ano passado. Na
mesma folha, algumas anotações, alguns desenhos. Muito
bons, inclusive. Tenho inveja desses escritores que dese-
nham. A fotografia da imaginação costurada com as letras,
como um presente do autor, “Olhe, foi assim que eu vi”.
Nada contra as pessoas que gostam de criar seus próprios
ambientes de cena, mas desvendar o mundo de alguém e
ainda saber como é sua forma, é como ter uma trilha sonora
nos momentos cruciais da vida.
Fui procurar um colega, alguém confiável. Ele se assus-
tou com as folhas que entreguei. Disse que sentia reconhecer
aquelas expressões, e que se fosse quem ele estava pensando (o
nosso artista desconhecido escreveu só a primeira letra do nome
como assinatura), era melhor eu jogar aquilo fora. Se o tal autor

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descobrisse que eu tinha sequer lido, ai de mim. Soltei um
“Camarada perigoso, esse tal de F.”, só para ver se arrancava
alguma informação mais valiosa de quem eu pensava ser o
dono daquilo. Meu colega foi duro:
— Sério. Olha para você, se assusta até com um aponta-
dor. Não se meta com ele. O cara é suburbano, você está arran-
jando confusão de graça.
— E se não for ele? Ou, melhor! E se realmente for ele, e
ele deixou no balcão justamente para alguém publicar?
— Se for ele, o que é apenas uma hipótese, duvido que
fizesse isso. Olha... ele é amigo dos desenhistas, talvez veio
visitar algum deles e perdeu. Por que não vai lá perguntar?
Ah, claro. Como eu vou perguntar por alguém que eu
nem sei o nome, para pessoas que também não conheço? E
além disso, por conta de um conto que nem posso publicar
com o risco de ser... o que ele faria comigo? Nem isso eu sei.
O fato é que aquele desconhecido era mais cru que
um açougue inteiro, com seus fantasmas e traumas invisí-
veis. Tão perfeitamente urbano e maníaco, um espelho que-
brado, uma bomba bípede em tempos de zumbi. Assoprei
a cobiça que enovelava o ar como uma aranha em volta da
minha cabeça, e resolvi esquecer.
Com muito desgosto, deixei um bilhete no balcão de
achados e perdidos, dizendo que havia encontrado um conto
de um tal de F. Saí rápido dali, vai que ele aparece para bus-
car e me vê. Vai que ele me conhece, caras desse tipo sempre
sabem quem é você, e sem você saber. Sem falar que o autor
daquilo era esperto o suficiente para saber do que pessoas
do jornal são capazes.
Uma semana, e nenhuma notícia. Aquilo já tinha ido
longe demais. Fui para a sala dos desenhistas, o conto na
mão, era agora.
— Boa tarde, tudo bem?

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Eles levantaram os olhos de suas telas coloridas como
ovelhas submissas. Senti um cheiro azedo de fofoca no ar.
— Boa tarde, senhora.
— Senhora? Quem é você, José de Alencar?
— Desculpe. O que a senhora... desculpe.
Pirralho idiota.
— Achei esse conto na portaria, semana passada. O
revisor me disse que um de vocês conhece o autor. Quero
falar com ele.
Amontoaram-se em volta de mim como crianças na creche,
em volta da tia. Até sem querer faziam-me sentir mais velha. Le-
ram o papel com olhar faminto. Até que um deles, enfim.
— Ei, você achou o conto do meu camarada! Nossa, ele
estava louco comigo atrás disso e...
— Quem ele é? Onde ele está?
— Olha, ele escreve nos fundos de um bar, às vezes. Eu
te dou o endereço.
Peguei o endereço e o revisor, e fomos para o bar no final
da Rua XV. Nem de dia aquele lugar tinha luz, um asco. Fui di-
reto na loira do balcão.
— Quero falar com o escritor.
— Ele saiu. Foi tomar café na Boca Maldita, deve estar lá,
falando com os velhos na praça.
Perfeito. Nem precisava ver o cara. Ia deixar o conto lá e
pronto. Despachei o revisor, não precisava mais dele.
— Só vim deixar um papel para ele. Posso?
— Põe lá na mesa dele. É naquela porta, lá no fundo.
Andei pelo bar tentando não encostar em nada, aquelas
paredes pareciam ter óleo grudado desde a construção da Ca-
tedral da Tiradentes.
Abri a porta e ali estava, o mundo de F., inteiro para mim.
Uma lâmpada fraca e amarelada iluminou as paredes do
cubículo, cobertas de desenhos grampeados ou colados, todos

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em nanquim. Os traços, a letra, era ele mesmo. De mobília, ape-
nas uma cadeira, uma máquina de escrever e uma mesa muito
antiga, dessas com buraco para tinteiro. Um cinzeiro com vá-
rias bitucas apagadas, uma carteira de cigarros amassada sobre
elas. Um papel em branco.
Sentei na cadeira de F., pus uma bituca velha na boca,
tinha gosto de álcool. Decidi ficar ali um tempo, conhecer o
mundo daquele autor. A sala fedia a fumaça. Esse lunático,
quem ele pensa que é, Drácula? Viver trancado assim, num lu-
gar imundo. Escrevendo aquelas coisas... fantásticas e sombrias.
Brinquei com os dedos na máquina, ficaram com cheiro de cha-
ruto. Abri a porta, a loira estava lá, me esperando.
-Ei, você, menina. Me traz um gole de alguma coisa, eu
vou esperar ele aqui mesmo.
— Tem certeza?
— Traz logo, garota.
Ela serviu um cálice com uma bebida gosmenta, da qual
nem entendi o nome. Fechei a porta quase na cara dela. Sentei
na cadeira de F. e respirei aquele ar pesado, o mesmo ar dele. O
tempo passou, pedi mais uns goles, e adormeci, meio bêbada,
com a cabeça na mesa. Acordei com o barulho da porta. Um
vulto, parado, me olhava sem entender nada.
— Quem é você?
— Você é o F.?
— Não interessa. Quem te deixou entrar?
— Quero falar com você.
Atravessou a sala como um bicho que tem a toca invadi-
da. Em silêncio, conferiu cada desenho na parede, cada canto,
e cada segundo a mais que eu ficava ali, mais incomodado ele
ficava. Viu a bituca na minha mão.
— Falar comigo... sobre o quê?
— Achei isso no balcão do jornal. É seu, não é?
— Não acredito! Que ótimo, você achou!

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— Achei, e li. Gostei muito.
— Que bom, pequena. Obrigado por devolver.
Peraí. Um sociopata não é tão educado assim. Ou é? Joguei
o conto em cima da mesa e levantei da cadeira num pulo. Ele
me olhou com uma cara estranha. Mas que cara era aquela? Ele
estava planejando algo. Com certeza.
— Eu não publiquei, tá? Nada.
— Ahn? Você ia publicar? – respondeu sério, com o
conto na mão.
Era agora. Ele ia me atacar. Já podia ver meu sangue espir-
rado nos desenhos, precisava agir rápido. Rasguei a blusa arran-
cando os botões, o sutiã pulou com os seios à mostra. Sentei na
mesa com as pernas abertas, a saia subiu até a virilha.
— Por favor, não me machuque. Eu me dou, para você.
— Hein?
— Faça o que quiser comigo, eu... eu faço tudo.
— Quem diabos é você, afinal de contas? Sua maluca!
Ele abriu a porta e tentou chamar a loirinha aguada.
Fechei com uma perna, enquanto a outra enlaçava o corpo
dele. Não sabia mais qual jogo ele estava fazendo. Estava
mentindo para me provocar, ia me deixar à vontade para um
ataque aéreo, mas não, eu não sou ingênua, ele ia ver.
— Ei, pare com isso! Se vista!
Empurrou-me delicadamente e acendeu um cigarro,
encostado num canto. Estava desfigurado.
— Não adianta me perseguir depois na rua, seu doen-
te! Eu te mato, viu! Eu tenho uma arma!
— Meu Deus, moça, eu nem te conheço! Para que eu
ia te perseguir? Eu só quero que você suma, suma daqui!
Abriu a porta da sala e me forçou a sair, com a blusa
ainda aberta. Sorte que o bar estava vazio. A loirinha, com
os olhos arregalados, uma mão no telefone.
— Vai chamar a polícia, sua vaca? Chame mesmo, eu
vou denunciar esse tarado!
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A mão de F. puxou-me para dentro da sala novamente.
— Moça, por que quer me prejudicar? O que eu te fiz?
— Tem medo da polícia, é? Eu li o seu conto. Você fez
tudo aquilo, eu sei que fez!
— É só um conto! São personagens... só isso!
— Não são! É você! Olhe, os seus desenhos!
— O que você vê aqui fora é muito diferente do que...
você nem me conhece!
— Ah não, é?
Abri a calça de F. com uma mão só, ele ficou puto e me
estapeou, uma, duas, três vezes.
— Maluca! Saia daqui! Saia do meu mundo, sua inva-
sora maníaca!
Passei a mão no nariz, e um pingo de sangue caiu na
folha branca da mesa. F. acendeu outro cigarro, abriu a porta
pela metade.
— Moça, por favor. Nunca tinha batido em uma mulher,
por Deus. Você está bem?
— Cale a boca.
Conheço bem esse tipo, agora ele já sabia com quem es-
tava lidando. Ia pensar duas vezes antes de me perseguir pela
rua. Já pensou? As luzinhas amarelas da Rua XV, as únicas tes-
temunhas, um luxo de desgraça classe C.
Ele parecia triste, transtornado, um psicopata isso sim.
Peguei o conto em cima da mesa, enfiei na cintura da saia.
— Ei, meu conto! Você não vai levar, isso é meu!
— Vou! E vou publicar! E ai de você se for atrás de mim!
— Foi para isso que você veio aqui? Para me pedir au-
torização para publicar no jornal? Desculpe, mas não posso
concordar com isso.
— Ah, pode sim! Te denuncio por abuso sexual!
— Vou te dar motivo então, piranha maluca!
Arrancou o conto da minha saia, segurou na boca com os
dentes, e fez o que podia e como podia comigo ali mesmo. A
27
máquina de escrever tremia sobre a mesa junto com as minhas
coxas. Tentei arranhá-lo na cara com as unhas, ele me esbofeteou
de novo. E terminou.
— Era isso que você queria? Pronto. Agora fora daqui.
— Nunca mais apareça no meu jornal, seu maluco! —
resmunguei, arrumando o cabelo.
— Mas eu nunca fui lá! O meu amigo levou o conto para
ler e perdeu! Eu nunca pisei naquele lugar maldito. Caramba,
olhe seu rosto, pequena, me desculpe, eu nunca...
Aquele desenhista pirralho. Então foi ele. Então eu... en-
tão o F... nunca tinha, nada, ai de mim. Eu precisava pensar em
alguma coisa, rápido.
— Olhe aqui, F., vamos fazer um acordo. Não te conhe-
ço, nunca te vi, certo?
— Sim, pode ser... — ele sussurrou, quase hipnotizado.
— Ótimo, passar bem.
Saí do mundo de F., e voltei para o trabalho. Choveu um
pouco no caminho, e a água suja que caiu de toldos e postes
lambeu meu rosto, lavando as marcas da tarde. Entrei no jornal
batendo o salto no chão como sempre, como se nada, como se
realmente nada tivesse acontecido.

28
DEDICATÓRIA

Alegrou-se com a notícia de que o livro seria dedicado a


ela. Caminhou até a livraria com passos e um sorriso dignos de
uma musa inesquecível, imortal.

Ao abrir na primeira página, leu: “Em memória de...”.

O livreiro recolheu o corpo.

29
VOYEUR

Atravessava a rua, quando vi e parei.


Ele com ela.
Os meus carinhos, ele nela.
Já sabia, mas não tinha visto, e nem queria.
O asfalto virando gelatina.
A buzina dos carros me acordou.
Andei rápido, antes que.
A divisória da lojinha, meu esconderijo.
Masoquista isso, ficar olhando o que não mais.
Vou embora. Mas.
Fato foi que fiquei.
Beijo na testa, na boca, carinho no cabelo, dela dela.
Meus beijos.
E por azar vi o que ninguém contou.
A argola amarelinha no dedo direito dos dois.
Lembrei do último dia.
— Casa comigo? Eu te faço feliz. — ele disse.
E meu silêncio de antes completou o de agora, escondida
nem mais deles, mas de mim.
Voyeur do que já fui, do que não tive coragem, do amor
que desisti tantas outras vezes.
Ela saiu buscar algo, ele sozinho na rua, quer saber, chega!
Saí do meu canto devagar, desgraça, me viu.
A voz dele, um tiro na orelha:
— Oi! Quanto tempo! Como você está?
— Desculpe, acho que não sou quem você está pensando.
(Eu e minhas idiotas saídas geniais)
— Nunca foi.
Resposta amarga, ferida dupla, eu e ele, sim senhor.
Algum lugar naquele peito ainda era meu.

30
SOBRE O EGO

O ego vai te levar longe


E vai te deixar lá, sozinho.

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SINAIS

Dificilmente saía de casa. Além disso, nenhuma pecu-


liaridade daquela tarde quente dava o mínimo sinal de que o
dia seria uma exceção. Do sofá da sala de visitas, local onde
costumamos receber a pequena parcela do mundo com a qual
nos relacionamos, apenas observava o formato das nuvens e
os diferentes tons de azul e cinza, além do branco.
— É claro!
Exclamou em voz alta, irrompendo o silêncio que ha-
via tomado a sala. Sentiu o leve incômodo que nos persegue
quando ainda não sabemos que ninguém é normal. Seguiu-se
ao incômodo um diálogo mental no qual prometeu a si mes-
mo que nunca mais falaria a sós. No final do mesmo diálogo,
que por pouco não virou discussão, já duvidou que conse-
guisse cumprir a promessa.
A frase que irrompeu o silêncio da sala pareceu ter acor-
dado a cidade. Então o alarme de algum carro ou casa, sem
cerimônias, entrou pela janela e veio sentar-se ao seu lado no
sofá. O alarme tocando e o mal-estar iniciando-se. Começou
a pensar que havia algo de errado, não sabia o que, mas algo
o incomodava. Algo estava errado. Imaginou que devia ser
dentro de seu corpo, sabia que devia se cuidar melhor, e lem-
brou-se da avó dizendo que tudo que fazemos com o corpo é
cobrado depois. Foi até a estante e agarrou seu livro sobre me-
dicina básica, mas de nada adiantou, porque não sabia nem ao
certo o que incomodava, se era dor de cabeça, no estômago,
ânsia de vômito ou dor no peito, não tinha nenhuma certeza
além do mal-estar. A este ponto estava difícil respirar, a testa
suava frio, as mãos se cruzavam e passavam constantemente
pelos cabelos, da testa até a nuca, enquanto os dentes se com-
primiam como se disputassem o espaço dentro da boca.

32
Os primeiros ônibus e carros começaram a circular pelas
ruas e o barulho emitido por eles parecia rasgar a pele daquele
corpo tenso, que nesse momento encolhia-se em um canto do
sofá enquanto o alarme continuava a tocar. As mãos cobriam-
lhe os ouvidos, mas os visitantes indesejados gritavam rente à
sua face. Buzinas, freadas, batidas, tiros, o som do vizinho de
cima e a televisão do de baixo, o canto estúpido do vizinho ao
lado no chuveiro enquanto os filhos dele jogam o videogame
no último volume, o caminhão do lixo, o carro da polícia, a am-
bulância, o profeta do apocalipse, as crianças do coral natalino.
Em meio ao caos interno, o telefone tocando. Sempre é
alguém querendo vender algo, sempre querem algo em troca
por simples palavras. O telefone tocou, tremeu e implorou até
cansar. Mas uma hora ele parou. Já era tarde, as visitas viram
que era hora de ir embora, o silêncio tomou conta novamente.
O corpo, antes encolhido, estirava-se pelo sofá, respirando com
alívio e sem a tensão que se imprimira pelas horas que antece-
deram este momento. Agora a sós, pensou naquela tarde e, já
esquecendo da promessa, disse a si mesmo:
— Esse mundo aqui dentro está muito perigoso. Amanhã
eu prometo que vou passar o dia na praça.
Ninguém respondeu. Mas mesmo assim, dava para notar
no rosto a descrença com a nova promessa.

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LIVRE ARBÍTRIO

Acordei com o gato miando e um cheiro estranho.


Abri os olhos, e, nossa.
O quarto pegando fogo.
A vela. Eu esqueci.
Ah, que merda.
Sentei na cama.
Fiquei olhando o fogo comer a escrivaninha e o armá-
rio e o carpete.
Acendi um cigarro.
Abri a janela, o gato saiu. Fechei.
Lá de fora, ele me olhou, egípcio,
“Você não vem?”
Fechei a cortina, que começou a pegar fogo também.
Fui sentar na cama, não dava mais.
Mas que saco. Sentei no chão.
Tentei ver uma salamandra, o fogo estava lindo.
As labaredas dançavam melódicas.
Ouvi o barulho da campainha.
Deve ser aquele vizinho chato.
Já deve ter chamado bombeiro, polícia, o caramba.
Fico tonta, fumaça demais.
Para não desmaiar, abro a janela de novo.
Respiro ar puro. Fecho.
Meu lugarzinho no chão também já queimou, agora, só
esse lado, do lado da janela.
Meu braço, meu cabelo e minhas pernas, meio queimados.
Acendo outro cigarro. Tosse. Fumaça ou vício?
Dane-se.
O vidro de comprimidos. Custou caro.
Corro até o outro lado do quarto, me queimo toda.

34
Mas pego o vidro, e pego fogo.
Pegar fogo dói.
Enrolo o corpo numa coberta.
Abro o potinho de pílulas, quanta estupidez.
Não vai fazer efeito até o fogo me pegar.
Devia ter tomado mais antes de dormir.
O fogo levanta os braços para seu abraço mortal, mas
não me pega.
Escuto barulhos e gritos na porta.
Aquele vizinho intrometido.
Olho para fora da janela, o gato se lambendo no telhado.
Será que isso é suicídio?
Lembrei de uma amiga dizendo que se matar é pecado.
Que a gente fica lá no purgatório, pagando depois.
Mas isso é um acidente.
Mas talvez seja suicídio por eu ter tido a chance de fugir.
Não sei.
Do outro lado do quarto, minhas fotografias derretem.
Nem gostava delas mesmo.
Tudo passado, tudo inerte, tudo morto.
Aparece um bombeiro no telhado.
Pede que eu abra a janela.
Finjo que não escuto.
Grita para eu sair.
Que divertida, essa roupinha dele.
Parece um bonequinho.
Mando um beijo com tchauzinho,
só para ver o que ele faz.

35
APOSTA QUE SE PERDE

Sentamos na escada mesmo, ele tirou as cartas do bolso.


-Pôquer?
-Pode ser.
-O que vamos apostar?
-Pensei que você não fosse disso.
-Feijões?
-Se for para apostar comida, vamos apostar maçãs.
-Já sei. Vamos apostar segredos.
-Humm, perigoso isso. Quantos deles?
-Todos.
-Os meus e os dos outros?
-Sim.
-E se eu ganhar?
-Guarda os segredos com você.
-Mas aí eu não levo nada.
-Sim.
-Tomara que eu perca. Não agüento mais.

36
O CAMINHO ERRADO

De tanto brincar de esconde-esconde,


cresceu sem saber como era aparecer por inteiro.

De tanto fingir que não sentia,


acabou não se importando.

De tanto fazer silêncio,


apenas nele encontrou sua paz.

A solidão é uma saída.


Sair dela é que não tem uma.

37
A ENTREVISTA
E O DEPOIS DA ENTREVISTA

— Não há muito que fazer aqui.


— Pouco trabalho, o senhor diz?
— É... bem pouco. Dependemos da aprovação de tercei-
ros para avançar as etapas... entende? Do processo...
— Contanto que não me demitam por não fazer nada.
— Negativo. Quer dizer, positivo. É... me confundi com a
construção da sua frase, pode repetir?
Fingi que não era comigo e olhei para o vazio do branco
do olho do meu futuro chefe.
— Ah, indifere. Seja bem-vindo.
Não tive coragem de perguntar, mas ficou pendurado no
canto da boca. Que tipo de lunático eremita conseguiria ficar
tanto tempo assim? Sozinho, numa sala enorme, sem fazer qua-
se nada? Aceitei mesmo assim.
Já faz quatro meses. Se trabalhei oito horas ao todo é
muito. Voltei a falar sozinho, e agora inovei para o diálogo com
objetos. Já li mais livros do que poderia imaginar num mês, já
enjoei do telefone, de jogar jogo-da-velha sozinho e sempre
perder para o outro que sou eu também.
Dia desses, meu chefe apareceu com um serviço. Para
minha infelicidade, acabou rápido. Levamos dois dias. Só dois.
Tanta gente inveja esse meu serviço. Metade dessa gente não
teria sanidade mental para mantê-lo. Ou não. Não sei. A serven-
te outro dia veio reclamar.
— Moço, você me assusta quando fica falando sozi-
nho na sala.
— Pensei que quando eu ria sozinho, te assustava.
— Ah, isso me apavora!
Credo. Depois sou eu que.

38
A CADEIRA

Ali sentado. O cansaço bate. E nada acontece.


E o cansaço bate mais forte. Bate no corpo, bate no rosto.
Não há distração que faça o relógio correr. Ou ao menos andar.
No momento, ele parece parado. Parado naquele momento.
Todo o resto correndo. E ele parado.
Esperando.
Esparramou-se na cadeira. Como um sorvete que se der-
rete na casquinha. Tomou a forma da cadeira. Inerte. Angústia,
cansaço. Uma dor que não sabe ao certo se é no pescoço, na
nuca, nas costas ou nos três.
Esperando.
Pegou mais um café. Já é o terceiro (é grátis mesmo). Sen-
tou novamente, corrigiu a postura. Queimou a ponta da língua.
Arqueou novamente a coluna, tomando a forma da cadeira. Su-
biu o olhar para o relógio. Aproximou o copo da boca e asso-
prou. Seguiu assoprando. O café esfriando.
Esperando.
Pensou que podia ter aproveitado melhor esse tempo.
Umas horinhas poderiam fazer alguma diferença. Talvez pu-
desse ter adiantado aquele trabalho. Podia ter conversado com
alguém interessante. Chegou à conclusão de que nada o impe-
dia de conversar com alguém ali mesmo. Era o que pensava. Na
prática percebeu que muita coisa o impedia de ter uma boa con-
versa. A pressa, o medo, a tendência a não falar nada interessan-
te, a falta de intimidade, o distanciamento mínimo comum, o
pensamento múltiplo comum, as idéias vagas, as vagas idéias, as
idéias procurando vagas, sem espaço para estacionar em meio
aos transtornos que ocupam as mentes. Desistiu após duas con-
versas sobre o clima, quatro sobre futebol, uma sobre violência
e outras três sobre religião. Caminhou desoladamente, de volta

39
para sua cadeira. Não que fosse sua, mas aquela onde ele estava
antes, na qual devia ter sentado muita gente diferente. Tentou
fazer um cálculo de quantas pessoas deviam passar ali por dia,
dividir pelo número de cadeiras e talvez chegar a um número
médio de pessoas por dia naquela cadeira. Podia fazer um livro
só sobre aquela cadeira e os tantos personagens incomuns que
passam por ali. Mas desistiu da idéia. Esparramou-se novamen-
te na cadeira. E ficou ali.
Esperando.

40
A DIFERENÇA ENTRE SER PURA
E PUTA É DE UMA LETRA SÓ

O nome da prostituta era Shirley.


Na verdade, nem sei se é assim que se escreve.
Tinha uma pinta preta na ponta esquerda do nariz, a típi-
ca bruxa dos contos infantis.
— É ela. – disse a balconista da farmácia, entre os dentes.
— Ahn?
— Ela. A cafetina. Tá vendo aquelas meninas ali, saindo
daquela portinha?
Olhei para o outro lado da rua, realmente, uma porti-
nha cuspindo garotas, todas saindo do Hotel “O Chefão”. A
tal da Shirley, será?
— Tem uma que você precisa ver. Loira, linda. Meio
gordinha, mas linda. Três quadras para baixo, acho que arran-
ja até marido. Ninguém diz que... – reclamava a balconista.
O bolo de mulheres da porta se agita, e a tal da loirinha
sai pela porta. A meio-também-gordinha-balconista saltita:
— Olha, olha!
— Elas parecem felizes. – sorri.
— Ganham mais do que eu. – ruminou.
Era inveja demais. Pensei em propor à balconista que ela
fosse dividir um quarto com a loirinha, as duas meio-gordinhas,
as duas ganhando bem, todo mundo feliz, melhor não.
— Tá vendo aquela com o neném no colo? É o sétimo.
Os outros, ela deu.
— Vendeu?
— Deu, vendeu, vai saber.
Ela se aproveitava da minha distração para piorar a his-
tória. Não fez diferença. A criança (literalmente uma filha da
puta) parecia feliz. A puta-mãe fofocava com as outras putas. A

41
meia-gordinha-balconista tentava fazer a mesma coisa, tentava
fofocar comigo, me senti mal. Talvez as putas também estives-
sem falando de nós “Olha, olha, aquelas enrustidas! A magri-
nha não deve agüentar nem meio homem! A-ha-ha”.
Não agüentava mais aquilo. A balconista falando ininter-
ruptamente, tão absorta no seu mundo envenenado que nem
me viu apertar o botão que chama a polícia embaixo do balcão.
Os carros chegaram rápido, revólveres na mão, uma baderna,
um espetáculo de foge daqui e dali, putas e meias-gordas corre-
ram em guinchos e sussurros, uivos em pleno meio-dia.
O guarda entrou na farmácia, a balconista pediu descul-
pas, tinha tocado sem querer, devia estar estragado.
— Tudo bem por aqui então?
O povo que tinha entrado na farmácia e a meia-gordinha-
balconista responderam que sim. Sim? Oras. Então tá.
Antes que se lembrassem que eu existia, saí.

42
NÃO LEMBRO QUANDO, MAS FOI

O mês era um daqueles sem feriado, uma afronta para


mães de família, universitários e turismo em geral.
Em plena sexta-feira, colegas de trabalho inflamados des-
feriam palavras cortantes sem calcular vítimas. Em seus cora-
ções, uma artéria aorta bombando cianureto.
Por cautela ou crendice, fui pesquisar os astros, era a úni-
ca explicação para tanta gente afetada. Não deu outra, lá esta-
vam eles, Saturno e Marte rodopiando violentos nas casas zo-
diacais, chacoalhando os mares e o escritório.
Ciente de um provável confronto – no qual eu ia passar
um vexame, estava num daqueles dias e ia chorar como uma
criança se alguém falasse um A -, corri com todas minhas per-
sonalidades de mãos dadas para o banheiro; a racional já estava
lá, lavando o rosto para se acalmar. Acabei indo para dentro da
divisória, a sagrada divisória da liberdade com vaso sanitário.
Algumas pessoas entraram e saíram, outras sussurraram
quando viram a ponta do meu sapato por debaixo da portinha,
houve quem entrou e perguntou se eu tinha vindo trabalhar.
Pela janela eu olhava o sol egoísta no céu, sem nuvem, azul
azul, estava tudo é vermelho isso sim. Saturno e sua radiação alu-
cinada com certeza estavam furando minha retina sem eu saber.
Fechei a janela, e subi no vaso sanitário. Um lugar calmo, muito
calmo, onde nem o Sol nem Saturno nem Marte me encostavam,
nem viam meus sapatos. Agora o dia estava melhorando.

43
CAPACIDADE

Desde que o tempo é tempo, as pessoas desejam ter a


capacidade de enxergar através das outras. Sensações, senti-
mentos e os mais profundos pensamentos. E a essa capacidade,
deu-se o nome de compreensão.
Nos tempos atuais, caminhando pela rua, percebe-se que
as pessoas têm a capacidade de enxergar através das outras. E a
essa capacidade, dá-se o nome de indiferença.

44
INCAPACIDADE

Eram feitos um para o outro.


Ela muda. Ele cego.
Ela muda. Ele surdo.
Cansada de mudar sem ser vista ou ouvida, ela fez um
enorme discurso de despedida.

Ele mudo.

45
NOCAUTE

Numa mesa de bar, cenário comum dos maiores mo-


nólogos da história humana, estavam sentados os dois em
cantos opostos. Não exatamente como nos cantos opostos de
um ringue, mas a expressão do que se sentava mais perto do
bar bem que lembrava a expressão de um boxeador fatigado.
Com essa cara, acompanhava o que dizia quem estava no ou-
tro córner. Desenrolava-se mais um desses monólogos que
acontecem todo dia. Monólogos que por vezes até nos fazem
bem, falar nos faz bem. Afinal, quem acompanhava as pala-
vras com cara de lapso não ficava muito atrás de muito amigo
do peito, psicólogo renomado e outros ouvidores oficiais que
ouvem e deixam falar.
Melhor do que falar, só a sensação de ser compreendido,
esta é incomparável, intangível. E foi esta sensação que veio a
aparecer quando, após um longo discurso semi-filosófico sobre
a mentalidade do conjunto humano, as explorações e a nítida
inversão dos valores na sociedade, a expressão de lapso se des-
fez e proferiu-se a expressão:
— Está ao contrário...
O ânimo, que já ia se abatendo pelo desânimo à frente,
refez-se. Havia entendido que o mundo estava de pernas para o
ar, formava-se uma clara rede de interação pairando no ar. Além
da compreensão, notava-se o poder de sintetizar o raciocínio.
Mas, antes mesmo que pudesse começar a fazer este raciocínio
afluir a outro, deste para outro e continuar até o oceano, a sen-
tença foi terminada:
— Este seu colar... Está ao contrário. O fecho está vira-
do para frente.

46
O BILHETE

S. morava num sobrado esquisito, com um muro baixo na


frente, dando um ar de desdém à violência do centro a poucas
quadras dali. Era um desses sobrados tipo caixote classe média,
com duas vagas na garagem sempre vagas.
A S. trabalhava (muito) com decoração, sempre aquelas
olheiras, aquela poeira eterna de grafite na mão direita. Um dia,
a S. chamou nosso pessoal da faculdade para ajudá-la numa obra
externa no tal do sobradinho. Depois de um breve espetáculo de
desculpas esfarrapadas (algumas até anotadas por mim, muito
boas!), lá fui eu ajudar a S., que no fundo mesmo queria era agra-
dar o pai aposentado.
O propósito de enfeitar a casa já era complicado, íamos
precisar de material pesado, o qual dava preguiça só de pensar
em carregar. Escadas, rolos, latas, madeira, credo. Mas, mais
complexo era esse pai da S. Ex-militar, baixinho e teimoso,
como o muro do sobradinho.
Enfim, chegou o dia, e lá estávamos eu e a S., imundas e
audaciosas. Alguns homens (todos?) que passavam pela calçada
e viam nós duas montadas em escadas com pincéis espátulas e
o escambau, davam aquela risadinha imbecil, aquela mesma, de
quando eu confiro o óleo do carro sozinha no posto de gasolina.
A “obra” não tinha um ritmo muito conexo, apesar do nos-
so conhecimento em estruturas, materiais e técnicas de pintura.
Nosso trabalho era meio estabanado, e piorava com as irritantes
dicas do pai de S. .
— Ali, filha, vai ficar daquele jeito?
— Não, pai, o acabamento nem começou...
— Ah. Mas tá mal feito, hein?
Depois de uma semana ininterrupta junto daquele pro-
feta mal-intencionado, desferindo os piores infortúnios sobre a

47
nossa empreitada feminista, não agüentei. Aproveitei a primei-
ra saída do velho para desabafar.
— ... O seu pai podia vir ajudar em vez de...
S. fez um SSSHHH!!, desceu quicando da escada, e foi
conferir se o velho tinha ouvido. O que não adiantava nada,
porque ele era do tipo que fingia surdez, e isso invariavelmente
o fazia escutar o que não queria. Tudo isso seguido de um silên-
cio rancoroso de uma semana até alguém adivinhar o que ele
realmente tinha escutado, ou não.
Quando S. me segurou pelo braço e disse “Vamos conver-
sar”, liguei a valsa de Schubert dentro da cabeça para agüentar a
bronca. S. me levou num canto. Pronto, o barraco ia comer solto.
Mudei a música do Schubbie para a 5ª sinfonia do mano BeeTho-
O-Ven, ideal para arranca-rabos e pega-pra-capar em geral.
Mas S. era elegantemente esquizofrênica, a musa pós-moder-
na do Dr. Jekyll. Pediu desculpas baixinho, disse que sabia que o
velho era difícil, pediu paciência. Ele tinha blábláblá (uma daquelas
doenças doloridas de velho nas pernas, que me fez sentir uma me-
gera), e o máximo que podia fazer era reclamar.
Observei bem o velho no outro dia, e, coitado. Do que
será que esse velho gosta? Uma idéia.
— Ei, menina, essa lata aí, você vai cair dentro dela!
— Obrigada, Seu J., por avisar.
O velho ficou curioso por eu ter respondido em palavras
ao invés dos costumeiros grunhidos. Era agora.
— É, seu J... o que o senhor gosta de fazer?
Cretina, que pergunta cruel. O velho mal andava direito.
Para piorar, ele ainda fez aquela cara de túnel do tempo, e fi-
cou lá hipnotizado, acho que nem lembrava a última vez que tinha
prestado atenção nele mesmo. Comprovando a minha hipótese, ele
soltou a resposta no pretérito:
— Eu gostava... de ir na lotérica.
— É? Vamos ali na esquina, torrar uns trocados?

48
O velho coçou a testa. S. tinha saído para comprar mais
tinta, e nem ia notar o pseudo-seqüestro do velho.
“Tomara que ele não tenha um treco no meio da rua”,
pensei. E lá estávamos nós, na bendita da lotérica, quando o Seu
J. revelou-me seu lado místico.
— Não olhe meu jogo. São números sagrados.
Seu J. fez um gesto mágico hilário no ar e abriu de novo
a portinha do túnel. Segurei a risada, e quase cuspo o cafezinho
morno no jogo cabalístico do velho.
— Ah é?
— São as datas da falecida. Nascimento, e o outro dia.
Cretina, cretina. De novo? Peguei o bilhete da mão do ve-
lho e paguei a aposta. Voltamos quase amigos para casa. Com
sorte, antes da S. voltar.
A semana passou tranqüila, e finalmente eu e S. termi-
namos a pintura. O sobradinho, além de esquisito, agora era
“coloridinho”. Mas ficou bom. Cansada, fui trocar de roupa
no banheiro. E o Seu J. gritou. E gritou mais.
“Ricooooo minha filhaaaa estamos ricoooos!!!”
Cheguei na sala a tempo de ver o lindo abraço de S. e
seu pai. Chorando, grudados, a glória. Seu J. balançando o
bilhete da loteria na mão. Caíram no sofá às gargalhadas, tão
fortes que dava para mastigar. Seu J. me viu parada no corre-
dor, e sorriu, o velho sorriu mesmo e me abraçou também,
“Olha menina olha o jogo que você me deu!”
Alguns vizinhos curiosos penduraram-se no murinho.
Seu J. fechou a porta alucinado, puxou S. pela mão, “SHHHH
filha, quieta”, e me olharam.
— Menina. Não conta pra ninguém. Precisamos ter cuidado.
— Sim, Seu J., eu sei.
A euforia tinha sumido, e agora eu estava com medo
do medo deles.
— Você já estava de saída, não é?

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— É, sim, mas...
— Vá para a sua casa, e quando sair pelo portão, disperse
os vizinhos. Invente alguma coisa, que eu caí, sei lá.
— Tá, Seu J.
S. estava com uma cara transfigurada. Em seus olhos ca-
valgavam frases de luxúria, fama e poder. Meio assustador, mas
completamente compreensível, eu conhecia a vida dos dois.
Beijei a testa da inerte S. flutuante, apertei a mão de Seu J., de-
sejei boa sorte, e fui para a porta da casa. O velho segurou-me
pela mão, e com a expressão mais agradecida que já me olha-
ram (será que é assim que os santos se sentem?), mostrou o
bilhete com os números premiados.
— Olha, menina, eu vou te recompensar.
— Não precisa, Seu J., que é isso, eu já sou feliz.
Enquanto Seu J. murmurava seus últimos “obrigado até
mais santa menininha”, dei aquela olhada fatalmente racional
no tal do bilhete.
Seu J. era milionário, sim. Se tivesse jogado uma sema-
na antes. Os números da falecida eram o resultado do sorteio
anterior, e pelo jeito o japonês da lotérica mais uma vez tinha
esquecido de atualizar a placa na entrada da loja.
Soltei a mão de Seu J. devagar, agradeci com as pernas
moles e escorri para o lado de fora da casa. Falei qualquer as-
neira para os vizinhos papagaísticamente empoleirados no mu-
rinho darem o fora, e fui atravessando a rua devagar, bem deva-
gar. O sobradinho agora era de vidro.
Ouvi uns cochichos, olhei para trás, e vi uma vizinha xe-
reta se aproximar da quebradiça porta da casa da S.
Pensei em gritar, pular na mulher, xingar o japonês.
Mas eu corri.

50
POVO DAS SOMBRAS

O povo das sombras aparece sempre no mesmo horário,


junto com as sombras, assim que o sol nasce. Sempre muito
cedo, ainda na madrugada, mas, aparentemente, sem nenhuma
ajuda de deus.
Preparam seu café antes de você acordar, limpam o escri-
tório antes de você chegar, colocam o ônibus para rodar antes
de você se aglomerar ao congestionamento. Ligam os motores
e preparam a cidade para você só chegar e sentar na janelinha,
exigindo serviço de bordo.
E você nem ao menos os enxerga, faz questão de des-
viar o olhar.

51
A VOCÊ, QUE EU NÃO PUDE AJUDAR

Encontrei o garoto esquentando as mãos numa fogueira,
em um campo de refugiados no Paquistão.
Por volta de uns 07 ou 10 anos, tinha o rosto ainda sujo de
mais um desses desastres ecológicos no Oriente. Com os olhos
imensos azulados e fundos, por um segundo pensei a quem ti-
nha puxado. A mãe, o pai, quem sabe agora: estavam mortos,
e você já sabia.
O ambiente farpado e faminto onde morava agora nada
tinha da pouca infância na qual você tentava se agarrar. Era só
mais um dos semi-vivos sem idade nem nome que o jornal fo-
tografava para publicar sei lá onde.
Tive vontade de abraçá-lo, levá-lo para casa e dividir meu
assalariado pão com você.
As mãozinhas esticadas, essa maldita poeira sujando o
seu “estar-criança”.
Tomei distância para tentar esquecê-lo.
Passei os dedos no seu rosto pela tela do computador,
onde em breve você desapareceria. Segunda-feira de manhã e
isso. Respirei sem vontade e continuei a fotossíntese, enraizada
na cadeira do escritório.

52
IDADE DAS TREVAS

Foi-se, há muito tempo, o tempo em que a felicidade era


compartilhada e a tristeza comovia.
Nestes novos tempos, a felicidade dos outros incomoda.
E a tristeza, a tristeza é alheia.

53
21, ME ESPERA

Ah! Século 21! Evoluídos, globalizados, competitivos, anti-


pacíficos, anti-relógio, preciso terminar de ler isso o quanto antes
não tenho tempo eu faço academia eu bebo para esquecer o dia
hoje não dá tenho auditoria tenho que pagar a conta da luz que já
venceu já pensou ficar sem luz vou fazer o que em casa?
Ah! O 21 do baralho, joguinho tranqüilo de domingo
era tão melhor.
Neste século matamos, sim, matamos muito matamos
tanto que nem dá tempo de ler a última notícia (eu não tenho
tempo para isso mesmo). Matamos por crença (ainda), mata-
mos por dinheiro (ainda e acho que para sempre), matamos por
amor mas dessa vez é o outro que morre eu lá tenho cara de
morrer de tuberculose por alguém hein Álvares me diz!
Olha 21 como somos modernos estamos mais sujos fa-
zemos mais lixo expulsamos os ratos (alguns) semana passada
para caber aquela embalagem de congelado lá no descampado
lá perto do meu manancial ai João Cabral morreria de infarto
o planeta esquentou sabia? Ai que polêmica ai a mesma notícia
no jornal olha essa calçada que porcaria quebrou meu salto de
novo ninguém vai arrumar isso vou ligar pra secretaria hein!
Ah, 21, que te quero lindo. O Rio de Janeiro continua sendo
um lugar que tenho medo de pisar sim atirem pedras sou caipira
e aqui não tem bala perdida (ou alguém ainda não me contou).
Ah, 21, que te quero lindo! 10 potes sobre a pia! Pé mão
olho pescoço! Vomite, querida, senão não vai para a praia no
fim do ano, não sorria princesa e não grite também porque
tudo isso dá rugas! Sim vamos perpetuar o ritual aborígine e
pintar pintar pintar os olhos as unhas os cabelos os pêlos da
púbis agora quem caça é a mulher. Sim, no 21º andar um ho-
mem sentado escolhe uma por uma -Eu! Eu!— são muitas não

54
entendo de genética mas Darwin diria que a maioria nesse as-
pecto evolutivo não sobrevive devido ao caráter da espécie. No
21º andar elas mentem traem seu sexo traem entre si eu preciso
preciso de você ah agora não quero mais quero aquele que tem
outra quero aquele que tem mais grana no fim quero todos
porque afinal de contas há várias maneiras de se pintar e não dá
tempo de escolher com quem vou casar agora.
Oh, 21, você está com fome? Esqueça isso, vamos procu-
rar mais estrelas no céu e procurar mais galáxias que não temos
acesso. A fome passa e um bilhão de centavinhos a gente arran-
ja rapidinho sempre tem alguém que ajuda quer dizer agora eu
não posso você entende não é?
21 eu sinto lhe dizer não é por mal mas fizemos alguns
buracos no céu e sim meus netos serão focas besuntadas de pro-
tetor solar focas sem peixe talvez mas belas focas super antena-
das na última invenção.
Esqueça a maçã do Newton esqueça a língua do Einstein
o negócio agora é aprimorar quem vai inventar algo tão impor-
tante como a roda? Ah sim achamos a cura de algumas doenças
e nossas mulheres não morrem mais entaladas com uma crian-
ça tentando sair pelas ancas isso basta? Basta.
21 eu preciso ir estou sem relógio mas sei que estou atra-
sado depois nos falamos passa lá em casa eu faço uma janta e
vemos a novela hoje vai ter briga na TV e vai ser demais!

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JARDIM DE INVERNO

Mãe e filho aguardavam pela consulta na sala de espera.


Ela estava entretida com uma revista, lendo sobre a
vida daqueles que menos se importam com a vida alheia.
Enquanto isso, ele se divertia com a cara grudada no vidro.
Desenhando na parte embaçada pelo próprio bafo, criando
estórias e aventuras envolvendo a pequena selva que o enca-
rava através do vidro.
Depois de um tempo, entediado, o garoto decidiu que
queria explorar os territórios além-vidro, e questionou a mãe:
— Mãe, eu posso brincar neste quintalzinho?
— Não é um quintalzinho, filho, é um jardim de inverno.
E não pode brincar nele, jardim de inverno é só para ver.
O garoto, ainda parado de frente para o vidro, pensou
um pouco e respondeu:
— Eu quero ter um desses em casa.
— Não dá, meu filho, só gente com muito dinheiro con-
segue ter um desses em casa.
O garoto entendeu a lição.
Muitos anos depois, ele parou com o rosto colado no vi-
dro da vitrine de uma das lojas mais caras da cidade. Desta vez,
ele é que foi questionado:
— Papai, o que é que você está olhando?
— Jardins de inverno.
E seguiram em frente. Não dava para brincar além do vidro.

56
TUDO MENOS DESCULPAS

Simples
Se erro, me justifico
No pretérito do subjetivo:

“Talvez eu tenha dito”

57
FUGA

Percebo-me e sigo
Persigo-me e vejo
Percevejo.

58
CINZAS

Em uma metrópole qualquer, debaixo de uma chuva fina,


mas tão fina que se tornava quase invisível, caminhavam lado
a lado, de mãos dadas, o garotinho e a mãe. A mãe ia andando
com pressa, sem dar atenção ao filho, arrastando-o pela mão.
Quando pararam em um cruzamento, esperando o sinal
abrir, o garotinho girou o pescoço e reparou no mundo à sua
volta: nas centenas de pessoas apressadas, nas plantas, pássaros,
prédios e tudo o mais. Após uma breve análise, por sinal muito
precisa, ele virou-se para a mãe e perguntou:
— Mamãe, se os passarinhos são coloridos, as plantinhas
são coloridas, os prédios são coloridos e até mesmo a comida é
colorida... Por que é que as pessoas são todas cinza?
E ele ficou olhando, esperando por uma resposta. Enquan-
to o rosto da mãe, por vergonha, passou de cinza para rosa.

59
SABIA ASSOBIAR

Cabisbaixos ambos, ele e o canário. Ele sentou-se na varan-


da, abaixo da gaiola, e começou a assobiar, lenta e tristemente.
O canário, que até então nunca havia sequer piado, res-
pondeu, com um canto rápido e alegre. Ele então sorriu, como
nunca havia sorrido.
Não se sabe até hoje quem ensinou quem.

60
MÁ NOTÍCIA

— Minha filha, sente-se aqui. Tenho que contar uma coisa.


A garota sentou, de olhos bem abertos e boca entreaber-
ta. Já imaginando o que estava por vir.
— Você lembra que há algum tempo eu falei sobre al-
guém que estava muito doente?
A menina, agora um pouco mais triste, fez sinal de posi-
tivo com a cabeça.
— Ele faleceu hoje pela manhã, enquanto você estava
na escola.
A garota não conseguiu conter algumas lágrimas, a mãe a
abraçou e continuou falando:
— Essas coisas acontecem. Foi melhor assim. Ele estava
velho, sofrendo e já tinha perdido mais da metade da visão.
— Mas eu gostava dele! — Exclamou a garota indignada.
— Todos nós o amávamos, mas não havia nada que pu-
déssemos fazer.
— E onde ele está agora? Eu quero ver ele.
— Achamos melhor que você não o visse daquele jeito, é
melhor que guarde lembranças dele vivo e feliz.
— Mas o que fizeram com ele?
— O papai o embrulhou em um cobertor e enterrou na
beirada do lago, perto daquela árvore que ele tanto gostava.
— Aquela que a gente sempre ia?
— Sim, aquela que se enche de flores roxas na primave-
ra, bem ao lado de onde costumávamos pescar.
— Então ele deve estar feliz.
— Provavelmente. Mas por que você diz isso? — Disse
a mãe, um pouco surpresa com a frase da filha.
— Ele me contou que foi lá que ele conheceu a vovó.
A mãe ficou sem palavras. Neste momento, o avô en-
trou na sala:

61
— Minha netinha querida, não chore! O vovô compra ou-
tro gatinho para você.
A garota começou a soluçar de tanto chorar.

62
FAZENDO AS PAZES

Às vezes, tenho lá meus desentendimentos com o mun-


do. Ficamos brigados, ambos emburrados e em silêncio. On-
tem mesmo tivemos uma briga feia. O mundo pode ser bem
cruel de vez em quando.
Mas ao final da tarde, uma borboleta pousou ao meu lado
na rede. Chegou e por ali ficou, batendo asas como se dançasse.
Aceitei as desculpas imediatamente, sem pensar duas vezes.

63

Passou o dedo pela cabeceira e mostrou para a garotinha


deitada na cama ao lado:
— Olha essa sujeira, minha filha, isso aqui está uma
vergonha!
— Mas não fui eu que sujei.
— Foi você sim. Está aqui no seu quarto.
— Mas...
— Nada de “mas”. Ainda hoje você pega um paninho e
limpa. Quando eu voltar, quero ver isso aqui brilhando.
A garotinha, ainda deitada na cama, refletiu sobre o pó
em cima da cabeceira e sua relação de culpa em relação ao pó.
E, quando a mãe voltou, a cabeceira ainda estava toda empoei-
rada. Ela então cobrou a filha:
— Por que é que a cabeceira continua toda cheia de pó?
Com um ar de saber só de experiências feito, a garotinha
respondeu, até com certo desprezo:
— Não adianta limpar. Vai sujar de novo. É pó de gente.

64
O TEMPO DAS PAIXÕES

A todo momento, há algumas paixões despertando


E outras, em fuso horário diferente, indo dormir

65
ADORÁVEL INEVITÁVEL

Meu tropeço
Teu sorriso
Um começo.

66
TODO DIA

— Eu passo o dia todo esperando ela aparecer.


— Que triste isso...
— Não é triste não... Triste, só quando ela não vem.

67
O SILÊNCIO

é um ponto branco
escrito a dedo

no fim de uma frase


que não foi dita.

68
SUMÁRIO

O conto do conto
Rodrigo Domit 9
Vida de escritor
Gisele Pacola 10
Um dia é da pesca
Rodrigo Domit 11
Cada macaco no seu apartamento
Gisele Pacola 13
40 anos depois
Gisele Pacola 14
A mulher do Almeida
Gisele Pacola 15
Mais perto do Senhor
Rodrigo Domit 20
O conto, o autor e eu
Gisele Pacola 22
Dedicatória
Rodrigo Domit 29
Voyeur
Gisele Pacola 30
Sobre o ego
Rodrigo Domit 31
Sinais
Rodrigo Domit 32
Livre arbítrio
Gisele Pacola 34
Aposta que se perde
Gisele Pacola 36
O caminho errado
Gisele Pacola 37
A entrevista e o depois da entrevista
Gisele Pacola 38
A cadeira
Rodrigo Domit 39
A diferença entre ser pura e puta é de uma letra só
Gisele Pacola 41
Não lembro quando, mas foi
Gisele Pacola 43
Capacidade
Rodrigo Domit 44
Incapacidade
Rodrigo Domit 45
Nocaute
Rodrigo Domit 46
O bilhete
Gisele Pacola 47
Povo das sombras
Rodrigo Domit 51
A você, que eu não pude ajudar
Gisele Pacola 52
Idade das trevas
Rodrigo Domit 53
21, me espera
Gisele Pacola 54
Jardim de inverno
Rodrigo Domit 56
Tudo menos desculpas
Gisele Pacola 57
Fuga
Gisele Pacola 58
Cinzas
Rodrigo Domit 59
Sabia assobiar
Rodrigo Domit 60
Má notícia
Rodrigo Domit 61
Fazendo as pazes
Rodrigo Domit 63

Rodrigo Domit 64
O tempo das paixões
Rodrigo Domit 65
Adorável inevitável
Gisele Pacola 66
Todo dia
Rodrigo Domit 67
O silêncio
Gisele Pacola 68
Este livro foi composto em
Dante MT Std pela Editora
Multifoco e impresso em
papel offset 75g/m2

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