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Marcial Ma€aneiro, SCJ

TRILOGIA DO AMOR
Deus Pai e seu amor salv•fico
nas “enc•clicas trinitƒrias” de Jo…o Paulo II

(leitura teológica)

Roma, 2008
2

Abreviações

AAS - Acta apostolicae sedis, atos da Sé Apostólica


AG - Ad gentes, do Concílio Vaticano II
CTI - Comissão Teológica Internacional
DA - Diálogo e anúncio, documento da Santa Sé
DM - Dives in misericordia, encíclica de João Paulo II
DS - Denzinger, "enchiridion symbolorum"
DV - Dominum et vivificantem, encíclica de João Paulo II
ES - Ecclesiam suam, encíclica de Paulo VI
GS - Gaudium et spes, do Concílio Vaticano II
LG - Lumen gentium, do Concílio Vaticano II
NA - Nostra aetate, do Concílio Vaticano II
OL - Orientale lumen, carta apostólica de João Paulo II
PG - Patrologia grega, edição Migne
PL - Patrologia latina, edição Migne
RH - Redemptor hominis, encíclica de João Paulo II
RM - Redemptoris missio, encíclica de João Paulo II
RMa - Redemptoris Mater, encíclica de João Paulo II
TMA - Tertio millennio adveniente, carta apostólica de João Paulo II
UR - Unitatis redintegratio, do Concílio Vaticano II
3

Introdução

Tr†s enc•clicas marcaram o ensinamento de Jo…o Paulo II, de modo


particular, nos primeiros anos do seu longo pontificado: Redemptor hominis
(1979), Dives in misericordia (1980) e Dominum et vivificantem (1986). Com
essas tr†s enc•clicas, Papa Wojtyla imprimiu ao seu programa pastoral um
acento nitidamente trinitƒrio: a salva€…o ‡ uma oferta do Pai rico em
misericˆrdia, pelo Filho redentor do homem, no Esp•rito que vivifica. E tudo isto
voltado para o ser humano, imagem e semelhan€a de Deus, convidado a tomar
parte ativa na Histˆria da Salva€…o. Outra caracter•stica dessas enc•clicas ‡ sua
organicidade. Cada qual tem uma reflex…o prˆpria, mas a prop‰e em intera€…o
com as demais. De tal modo, que o conteŠdo e as perspectivas se remetem
mutuamente, formando um tríptico magisterial. N…o por acaso, mas por m‡todo
e inten€…o do autor. Quando anunciou a publica€…o da terceira enc•clica –
dedicada ao Esp•rito Santo – o Jo…o Paulo II disse:

Esta constitui uma trilogia, com as enc•clicas Dives in misericordia e Redemptor


hominis, dedicadas ao Pai e ao Filho. Trata-se, portanto, de uma trilogia
trinitƒria.1

Abrindo sua trilogia, Jo…o Paulo II prop‰e, primeiramente, uma enc•clica


sobre o mist‡rio da reden€…o em Cristo: Redemptor hominis 2. Assim, Jo…o
Paulo II elegeu a cristologia como ponto de partida para as demais enc•clicas. Œ
• luz de Cristo Redentor que nos aproximamos do mist‡rio do Pai e definimos a
miss…o da Igreja, assistida pelo Parƒclito. Esta enc•clica come€a situando-se:
sua publica€…o acontece •s v‡speras de um mil†nio novo, tempo oportuno para
se contemplar o mist‡rio da Encarna€…o em todo o seu significado. A seguir, o
Papa recorda o pontificado de Paulo VI – especialmente sua postura de diƒlogo

1
Alocução de 18-5-1986, in Insegnamenti di Giovanni Paolo II, vol. IX-1(1986), p. 1634.
4

e renova€…o conciliar – destacando quatro temas importantes do cenƒrio


eclesial: a colegialidade (dos pastores, na co-responsabilidade com leigos e
consagrados); o apostolado (a€…o pastoral, catequese e miss…o "ad gentes"); o
diálogo ecumênico (caminho para a unidade dos crist…os) e o diálogo inter-
religioso (no contato com as religi‰es n…o-crist…s)3. Estes temas brotaram no
Conc•lio Vaticano II, cresceram no terreno missionƒrio e hoje estendem seus
ramos por toda a Igreja, animados pelo sopro da nova evangeliza€…o e os
impulsos do atual pontificado.

Terminado este preŽmbulo situacional (Cap•tulo I), a reflex…o de Jo…o


Paulo II toma corpo e se organiza em tr†s cap•tulos sucessivos:

 O mistério da redenção (Cap•tulo II): O ponto de partida ‡ Cristo e seu


amor pela humanidade. Nele as dimens‰es divina e humana da salva€…o
se encontram. A humanidade se renova e se reconcilia com Deus, que
decretou instaurar a nova criação. Seguindo o mandato de Cristo, a
Igreja recebe dele a mesma miss…o e se coloca a servi€o da salva€…o
universal. Esta miss…o se dƒ pelo anŠncio integral do Evangelho, que
garante ao homem sua verdadeira liberdade, dignidade e salva€…o.

 A situação do homem contemporâneo (Cap•tulo III): Tendo apresentado o


mist‡rio da Reden€…o, o Papa fala da condi€…o humana. O ser humano
vive entre gra€a e pecado, santidade e iniq•idade. Œ amado e redimido
por Cristo, mas imerso numa situa€…o de angŠstia e medo. Muitas vezes,
a paz ‡ obscurecida e a realiza€…o humana ‡ comprometida pelo mal.
Apesar disso, Deus se faz prˆximo e vem ao encontro do homem em
Jesus: a encarna€…o revela a solicitude de Deus pela humanidade. N…o a
humanidade abstrata, mas percebida em sua situa€…o histˆrica e
existencial. O texto fala, ent…o, dos medos e esperan€as do homem

2
Texto latino em: AAS 71(1979), p. 257-324. Neste estudo, a indicamos pela sigla RH.
3
Cf. RH nn. 5-7.
5

contemporâneo. Recorda os direitos humanos, o justo progresso e a


liberdade religiosa.

 Condição humana e missão da Igreja (Capítulo IV): A Igreja expressa sua


solicitude pela vocação do ser humano em Cristo, e considera o homem
todo. Nesta missão, a Igreja sente-se responsável pela Verdade
revelada. Sob a luz da Revelação o intelecto pode abrir-se ao mistério
divino e aprofundar a inteligência da fé. Anunciar a verdade e promover a
salvação de todos é o serviço que a Igreja quer cumprir, em fidelidade ao
munus recebido do Senhor. Assistida pelo Espírito Santo e sustentada
nos sacramentos, a Igreja se faz "próxima do homem, de todos e de cada
um dos homens", testemunhando Cristo "até as extremidades da terra"4.

II

A Dives in misericordia é a segunda encíclica da trilogia5. Traz oito


capítulos, que podemos visualizar segundo um esquema ternário6:

 O mistério da misericórdia (Capítulos I-V): Ampla descrição da


misericórdia de Deus. Ao correr do texto, o Papa nos toma pela mão e
nos conduz pela história da salvação: do Antigo Testamento ao evento
pascal de Cristo. Nos momentos mais significativos desta história,
contemplamos a misericórdia divina que recria o ser humano, fazendo
dele homem novo. A experiência da misericórdia integra toda a relação
entre Deus e seu Povo, da ação libertadora de Javé à nova aliança. Em
Cristo este amor misericordioso de Deus se faz presente de modo
irrepetível: encarnado em sua pessoa, anunciado nas suas parábolas,

4
RH n. 22, citando At 1,8.
5
Texto latino em AAS 72(1980), p. 1177-1232. A seguir, a indicaremos com a sigla DM.
6
O compasso ternário desta encíclica é observado por W. RUSPI: "Eucaristia e riconciliazione
alla luce della Dives in misericordia", in F. TAGLIAFERRI: L'enciclica "Dives in misericordia" -
Presenza pastorale 1/2(1981), Roma, p. 77-80.
6

prometido como bem-aventuran€a, consumado na Cruz e vitorioso na


Ressurrei€…o.

 A misericórdia de geração em geração (Cap•tulo VI): Focaliza situa€‰es


existenciais do nosso tempo: conflitos, escŽndalo dos sistemas injustos e
da mis‡ria, promo€…o dos direitos da pessoa. Sobre a gera€…o presente
paira o medo e a inquietude. Œ uma gera€…o carente do verdadeiro
sentido da misericˆrdia: n…o uma condescend†ncia diante do mal, mas
disposi€…o profunda de cada um, para vencer a injusti€a e promover a
solidariedade.

 A misericórdia na missão da Igreja (Cap•tulos VII-VIII): A Igreja professa e


anuncia a misericˆrdia divina. Nela se espelha o rosto paterno,
compassivo e benigno de Deus. A misericˆrdia ‡ necessƒria para re-
configurar a ordem da justi€a, para estabelecer o direito e a igualdade, no
respeito por tudo o que ‡ humano e pela fraternidade rec•proca. Isto
requer educa€…o cont•nua e a proposta de uma a€…o pastoral imbu•da de
sensibilidade e compaix…o, que conduza o mundo • civilização do amor.
Implantar o perd…o, fazendo o mundo mais humano, ‡ tarefa que a Igreja
recebe do Evangelho. Por isso, n…o sˆ proclamamos a misericˆrdia, mas
a suplicamos, com Maria, ao Pai.

III

Temos, enfim, a terceira enc•clica – Dominum et vivificantem – sobre o


Esp•rito Santo7. Novamente, o compasso ternƒrio confere ritmo ao texto:

 O Espírito do Pai e do Filho, dado à Igreja (Parte I): O documento parte


de Jesus para chegar ao Dom do Esp•rito. Jesus ‡ concebido pelo
Esp•rito Santo; promete enviƒ-lo da parte do Pai; ‡ o Messias ungido pelo

7
Texto latino em AAS 78(1986), p. 809-900. Em nosso estudo, usaremos a sigla DV.
7

mesmo Espírito8. Na missão salvífica de Jesus se manifesta a nós a


Pessoa e a obra do Espírito Santo, amor do Pai e do Filho. Ele é o
Espírito da Verdade, que "habita na Igreja e nos corações dos fiéis como
num templo"9. Desde Pentecostes até nossos dias, ele guia a Igreja,
renova-a e unifica-a na comunhão10.

 O Espírito que convence o mundo quanto ao pecado (Parte II): Jesus


anunciou a Boa Nova, segundo o desígnio de Deus. Voltando ao Pai,
invocou o Paráclito que convence o mundo a respeito do pecado, da
justiça e do juízo11. O Espírito age em sintonia com o Pai e o Filho,
convencendo e conduzindo a humanidade à plena salvação12. Para isso,
serve-se do ministério da Igreja - que ele mesmo capacita com sua
unção13. Por sua graça, reconhecemos o mysterium iniquitatis que fere o
homem e o universo, e nos abrimos ao mysterium pietatis14. Somente
pela ação do Espírito Santo podemos experimentar a salvação e retornar
ao Pai na plena obediência de fé, a exemplo do Filho Jesus. Conhecedor
das profundezas de Deus, o Espírito derrama o amor do Pai e do Filho
em nossos corações. Por ele o Pai nos comunica a vida eterna15.

 O Espírito que dá a vida (Parte III): Depois de acenar ao Grande Jubileu


que celebra o Cristo "concebido do Espírito Santo"16, o texto se dedica à
presença vivificante do Paráclito. Além de confirmar nossa adoção filial,
ele enche o universo e age além dos confins visíveis da Igreja: "o Espírito
Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a

8
Cf. DV nn. 15-21.
9
DV n. 25, citando Lumen gentium n. 4 que, por sua vez, cita 1Cor 3,16; 6,19.
10
Cf. DV nn. 25-26.
11
Cf. Jo 16,7 citado no n. 27 desta encíclica.
12
Cf. DV n. 31.
13
Cf. DV n. 32.
14
Expressões usadas pela DV nn. 33 e 48.
15
Cf. DV n. 48.
16
DV n. 49.
8

possibilidade de serem associados ao mist‡rio pascal"17. Indo adiante, o


texto reflete sobre a escravid…o da carne e a liberdade dos filhos de Deus
– conflito que o ser humano padece e sˆ resolve com a gra€a do
Consolador. Este ‡ senhor que dƒ a vida: vem em socorro • nossa
fraqueza e forma o homem interior18. O Esp•rito ‡ simples em sua
ess†ncia divina, mas multiforme em sua virtude: une os filhos de Deus na
caridade, anima a vida espiritual, favorece a uni…o •ntima dos homens
com Deus, garante a eficƒcia dos sacramentos e renova a face da terra19.
Amparada por ele, a Igreja atravessa os s‡culos e se volta a Cristo, na
esperan€a de sua vinda gloriosa: "O Esp•rito e a Esposa dizem: vem!" (Ap
27,17)20.

IV

Completa-se, assim, a trilogia. "Tr†s documentos sucessivos e


coordenados, dedicados a expor conteŠdos centrais do mist‡rio trinitƒrio,
mostrando a conex…o entre os aspectos ontolˆgicos e econ•micos presentes na
revela€…o do mist‡rio de Deus, e centrados em cada uma das Pessoas
divinas"21. Uma trilogia que – al‡m do ensino formulado nos textos – nos faz
perceber as linhas de fundo que caracterizam o pensamento e o apostolado de
Karol Wojtyla:

 O marco trinitário – presente em muitos documentos, nas catequeses, no


tri†nio de prepara€…o ao Grande Jubileu e no seu itinerƒrio espiritual22.

17
DV n. 53, citando Gaudium et spes n. 22.
18
Cf. DV n. 57-58, cuja reflexão se inspira em Rm 8.
19
Cf. DV nn. 59-62.
20
Versículo citado ao n. 66 da mesma encíclica.
21
A. ARANDA: "Revelación trinitaria y misión de la Iglesia", in A. ARANDA: Trinidad y
salvación - estudios sobre la trilogía trinitaria de Juan Pablo II, Pamplona, 1990, p. 47.
22
Cf. JOÃO PAULO II: Tertio millennio adveniente nn. 39-55.
9

 O acento soteriológico – releitura dinŽmica da mensagem salv•fica,


endere€ada aos contextos e sujeitos de nosso tempo.

 A postura cristocêntrica – pois ‡ • luz de Jesus Cristo que se desvenda o


plano do Pai e o mist‡rio do prˆprio homem.

 A responsabilidade missionária da Igreja – que reaviva sua a€…o


missionƒria, proclama a Palavra em novos areˆpagos, dialoga com
culturas e religi‰es.

 Enfim, a solicitude antropológica – o cuidado particular com a pessoa


humana, sua condi€…o histˆrica e sua dignidade, sempre presente no
cora€…o, na voz e nos gestos deste Papa: apresenta o mist‡rio pascal
como encontro regenerador ser humano com Deus, em Jesus de Nazar‡;
insiste na gra€a renovadora do Esp•rito Santo, que habita a Igreja e os
cora€‰es; convoca toda a humanidade • comunh…o com o Pai, e dos
homens entre si.

Tendo presentes essas linhas de fundo, concentramos nossa aten€…o na


reflexão soteriológica desenvolvida por Jo…o Paulo II, particularmente no que
concerne a Deus Pai. Deste modo, procedemos em consonŽncia com as
enc•clicas mesmas. Pois as perspectivas trinitƒrias de cada texto n…o se perdem
numa amplid…o inconclusa, mas convergem no desígnio amoroso do Pai,
princ•pio do agir salv•fico da Trindade. Nessas tr†s enc•clicas, "o mist‡rio
trinitƒrio ‡ proposto • Igreja n…o sˆ como a completa e suprema verdade que
deve professar acerca de Deus em Si mesmo, mas tamb‡m como a verdade
sobre a salva€…o • qual Deus nos chama: verdade sobre Deus Pai que
engendra eternamente o Filho e que, junto com o Filho, dƒ origem ao Esp•rito
Santo; verdade sobre Deus Pai que, pela Encarna€…o do Filho e o Dom do
10

Esp•rito Santo, realiza na histˆria a nossa salva€…o"23. Aliƒs, esta converg†ncia


na pessoa do Pai ‡ sugerida pelos t•tulos da trilogia: o Filho redentor do homem
e o Esp•rito senhor e vivificante efetuam, em comunh…o trinitƒria, o plano
decretado pelo Pai rico em misericórdia.

Dr. Pe. Marcial Maçaneiro, SCJ

Docente de Teologia sistemƒtica e ecum†nica na Faculdade Dehoniana, Brasil.


Assessor episcopal para o Ecumenismo e o Diƒlogo Inter-religioso da CNBB.
Editor da revista “TQ - Teologia em Quest…o”.

23
A. ARANDA: "Revelación trinitaria y misión de la Iglesia", o.c., p. 54-55.
11

1. JESUS CRISTO, REDENTOR DO HOMEM

O enfoque cristoc†ntrico desta enc•clica n…o relega ao segundo plano o


mist‡rio do Pai. Antes, o destaca, discernindo o amor salv•fico do Pai na miss…o
do Filho. No correr do texto, o Pai ‡ contemplado em cada aspecto do Cristo
Redemptor hominis: da encarna€…o • cruz, da prega€…o • sua presen€a
sacramental.

a) Deus quer que todos sejam salvos

"O Redentor do homem, Jesus Cristo, ‡ o centro do cosmos e da histˆria"


– diz Jo…o Paulo II24. Esta primeira frase da enc•clica, feita ao modo de uma
profiss…o de f‡, se apˆia na contempla€…o joanina do Verbo:

"O Verbo fez-se carne e veio habitar entre nˆs"(Jo 1,14); e em outra passagem:
"Deus, de fato, amou de tal modo o mundo, que lhe deu o seu Filho unig†nito,
para que todo o que nele cr† n…o pere€a, mas tenha a vida eterna"(Jo 3,16).25

Nascido do Pai antes de todos os s‡culos, o Verbo se encarna para falar


o que ouviu da parte do Pai:

"Deus, depois de ter falado outrora aos nossos pais, muitas vezes e de muitos
modos, pelos Profetas, falou-nos nestes Šltimos tempos pelo Filho” (Hb 1,1s),
por meio do Filho-Verbo, que se fez homem e nasceu da Virgem Maria.26

Com a express…o Filho-Verbo, o texto n…o sˆ identifica Jesus como Verbo


encarnado, mas o vincula ao mist‡rio de Deus Pai: o Verbo que se faz homem ‡
o Filho de Deus; tem no Pai sua origem eterna; recebe do Pai o principado e
dele ouve a mensagem salv•fica. A encarna€…o n…o se limita a mostrar-nos o

24
RH n. 1.
25
RH n. 1.
26
Ibidem.
12

Verbo. Mas o revela como Filho: ele nos comunica a salvação que o Pai nos dá.
Além de assinalar a plenitude dos tempos, a encarnação do Filho constitui
também um ato redentor do Pai. Ato pelo qual "a história do homem atingiu, no
desígnio de amor de Deus, o seu vértice"27. Assim, o Pai efetua de modo
singular o seu desejo de salvar a todos os homens. O Filho assume a
humanidade e põe sob nova luz aquela dimensão de santidade e comunhão
com a vida divina, que o Pai nos havia oferecido desde a criação do mundo:

Deus, através da encarnação, deu à vida humana aquela dimensão, que


intencionava dar ao homem já desde o seu primeiro início, e deu-lha de maneira
definitiva.28

Deste modo o Pai dá provas do "seu eterno amor e a sua misericórdia,


com toda a liberdade divina"29. Nem o pecado, nem a rebeldia humana, podem
cancelar este amor, pois "Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem
ao conhecimento da verdade"(1Tm 2,4)30. Esta é a vontade que o Filho Jesus
veio cumprir, anunciando a palavra salvífica que - como disse o mesmo Senhor -
"não é minha, mas do Pai que me enviou"(Jo 14,24)31. Desta mesma palavra a
Igreja se faz porta-voz, continuando na história o "diálogo de salvação" iniciado
por Deus, disponível à "missão da salvação de todos"32.

b) Em Jesus, nossa reconciliação com o Pai

A encíclica dá um passo significativo, ao considerar o mistério da


redenção à luz do mistério de Cristo33. Um olhar vai até Paulo VI e recorda suas
diretrizes evangelizadoras: o diálogo, o anúncio, a comunhão dos cristãos. Outro
olhar avança, apontando para o advento do novo milênio. Então João Paulo II se
interroga:

27
Ibidem.
28
Ibidem.
29
RH n. 1.
30
Passagem bíblica empregada pelo n. 4.
31
Outra citação bíblica, parágrafo n. 4; reaparece ainda nos nn. 12 e 19.
32
RH n. 4.
13

O que serƒ necessƒrio fazer, para que este novo advento da Igreja, conjugado
com o jƒ iminente fim do segundo mil†nio, nos aproxime daquele que a Sagrada
Escritura chama "Pai perp‡tuo" - Pater futuri saeculi (Is 9,6)? 34

Ao indagar sobre o novo advento e como viv†-lo numa aproxima€…o ao


Pai perp‡tuo, o Papa toca naquela intui€…o espiritual que foi se explicitando
cada vez mais, at‡ a celebra€…o do Grande Jubileu: a vida cristã é uma
35
peregrinação de retorno ao Pai . Peregrina€…o em dois passos: na dire€…o de
Cristo; depois, com Cristo ao Pai. Indicando o primeiro passo, a enc•clica diz:

A Šnica orienta€…o do esp•rito, a Šnica dire€…o da intelig†ncia, da vontade e do


cora€…o para nˆs ‡ esta: na dire€…o de Cristo, Redentor do homem; na dire€…o
de Cristo; redentor do mundo. Para ele queremos olhar, porque sˆ nele, Filho de
Deus, estƒ a salva€…o, renovando a afirma€…o de Pedro: "A quem iremos nˆs,
Senhor? Tu tens palavras de vida eterna"(Jo 6,68 ss).36

O texto prossegue, tecendo uma elaborada medita€…o cristolˆgica. Jesus


‡ "a Cabe€a" que rege o corpo eclesial37. Dele "tudo prov‡m e nˆs somos
criados para ele, (…) que ‡ ao mesmo tempo o caminho e a verdade, a
ressurrei€…o e a vida"38. Ele nos revela o Pai, e retorna para o Pai "para que o
Consolador viesse a nˆs e continue a vir constantemente como o Esp•rito da
verdade"39. Em Cristo se encontram "todos os tesouros da sabedoria e da
ci†ncia e a Igreja ‡ o seu Corpo"40. Ele ‡ tamb‡m a Palavra: fala • Igreja e al‡m
dela, pois o exemplo de sua vida toca o cora€…o de muitos, inclusive n…o-
crist…os. Verbo encarnado, ele ‡ ouvido como "Filho de Deus vivo"(Mt 16,16)
pelos que reconhecem sua divindade. Mas fala tamb‡m •queles que o admiram
por sua exist†ncia exemplar, antes mesmo de aderirem pela f‡ ao mist‡rio de
sua Pessoa divina. A estes Jesus fala "como Homem: ‡ a sua prˆpria vida que

33
Título do Capítulo II e de seu primeiro sub-tema, respectivamente.
34
RH n. 7.
35
Cf. JOÃO PAULO II: Tertio millennio adveniente nn. 49-50.
36
RH n. 7.
37
Ibidem, remetendo a Ef 1,10.22; 4,25; Col 1,18.
38
Ibidem, remetendo a 1Cor 8,6; Col 1,17; Jo 14,6; 11,25 respectivamente.
39
Ibidem, remetendo a Jo 16,7.13.
14

fala, a sua humanidade, a sua fidelidade à verdade e o seu amor que a todos
abraça"41.

Para a Igreja, porém, ele é e será sempre o Ungido de Deus, consumador


da Nova Aliança. "A Igreja não cessa nunca de reviver sua morte na Cruz e a
sua Ressurreição, que constituem o conteúdo da vida cotidiana da mesma
Igreja. De fato, é por mandato do próprio Cristo, seu Mestre, que a Igreja celebra
incessantemente a eucaristia, encontrando nela a fonte da vida e da santidade,
o sinal eficaz da graça e da reconciliação com Deus, o penhor da vida eterna. A
Igreja vive o seu mistério e nele vai haurir sem jamais se cansar, e busca
continuamente os caminhos para tornar este mistério do seu Mestre e Senhor
próximo do gênero humano: dos povos, das nações, das gerações que se
sucedem e de cada um dos homens em particular"42. Na Redenção pascal de
Cristo a Igreja encontra "o princípio fundamental de sua vida e de sua missão"43.

O segundo e derradeiro passo da peregrinação cristã, vai na direção do


Pai. É a ele que Cristo aponta. Jesus contém "os tesouros da sabedoria e da
ciência" justamente porque é "o Filho unigênito que vive no seio do Pai"44, onde
todo bem "tem a sua origem"45. Quem segue a Cristo na fé, sob a guia do
Espírito, chegará com ele e por ele ao mistério do Pai, fonte da sabedoria e do
amor:

Em Jesus Cristo, o mundo visível, criado por Deus para o homem - aquele
mundo que, entrando nele o pecado, foi submetido à caducidade - readquire
novamente o vínculo originário com a mesma fonte divina da Sabedoria e do
Amor.46

40
Ibidem, remetendo a Rm 12,5; 1Cor 6,15; 10,17; 12,12.27; Ef 1,23; 2,16; 4,4; Col 1,24; 3,15.
41
Ainda o n. 7.
42
Ibidem.
43
Ibidem.
44
Como dirá mais adiante o n. 19.
45
RH n. 8.
46
RH n. 8.
15

A meditação cristológica desenvolvida até aqui acena várias vezes a


Deus Pai: Jesus é o Filho em quem "vemos o Pai"; ele estabelece a Igreja - seu
Corpo - como sacramento de "união" e "reconciliação com Deus"47. Mas nas
páginas seguintes, este peregrinar com Cristo ao Pai é ainda mais claro.
Lembrando o pecado de Adão - que rompeu sua amizade com o Criador - o
texto afirma que foi o Pai quem quis, por primeiro, refazer este vínculo através
de seu Filho, Novo Adão:

De fato, "Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigênito"(Jo 3,16).
Assim como no homem-Adão este vínculo foi quebrado, assim no homem-Cristo
foi de novo reatado.48

O vínculo quebrado foi restabelecido na nova aliança em Jesus, pelo qual


retornamos, reconciliados, a Deus: "Ele mesmo (Cristo) é o nosso caminho para
a casa do Pai"49. A seguir, o texto lembra que neste retorno ao Pai participa a
Criação inteira:

Não nos convencem, porventura, a nós homens do século vinte, as palavras do


Apóstolo das gentes, pronunciadas com uma arrebatadoura eloqüência, sobre a
"criação inteira" que "geme e sofre as dores do parto, até o presente" e "espera
ansiosamente a revelação dos filhos de Deus", acerca da criação que "foi
submetida à caducidade"? 50

A humanidade e a Criação inteira retornam ao Pai em virtude do Cristo,


Verbo no qual "foram criadas todas as coisas" e no qual "tudo subsiste"(Col
1,16.17). Trata-se do alcance cósmico da Redenção: recapitular em Cristo todas
as coisas, segundo o projeto original do Criador (cf. Ef 1,10). No Cristo
"primogênito de toda criatura" (Col 1,15) a natureza encontra seu sentido
transcendente, o homem desvenda sua vocação e Deus se revela como Pai. É o
que sintetiza a encíclica, usando estas linhas da Gaudium et spes:

No mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do


homem. De fato, Adão - o primeiro homem - era figura do futuro (Rm 5,14), isto
47
Nos termos do parágrafo n. 7.
48
RH n. 8.
49
RH n. 13.
50
RH n. 8, citando Rm 8,22 e 19, respectivamente.
16

‡, de Cristo Senhor. Cristo, que ‡ o novo Ad…o, na prˆpria revela€…o do mist‡rio


do Pai e do seu Amor, revela tamb‡m plenamente o homem ao prˆprio homem e
descobre-lhe a sua voca€…o sublime.51

Observamos que "na fˆrmula mistério do Pai estƒ contido, em s•ntese,


todo o conhecimento que a Igreja possui a respeito da intimidade trinitƒria. A
revela€…o do mist‡rio do Pai no Filho Jesus nos mostra que a vida trinitƒria ‡
constitu•da de rela€‰es de paternidade e filia€…o, numa mŠtua espira€…o de
amor, que a ambas se refere e de ambas se distingue: a comunh…o trinitƒria ‡ a
Unidade de Tr†s em amor e doa€…o. No mist‡rio revelado do Pai mostra-se a
nˆs a intimidade da vida divina. E na entrega do Filho – por nˆs homens e pela
nossa salva€…o (propter nos homines et propter nostram salutem) – mostra-se a
plenitude do amor de Deus Pai pelo homem"52. Com esta perspectiva, a
enc•clica vincula o mist‡rio de Cristo diretamente • manifesta€…o da paternidade
divina. Sendo Pai, o Criador nos fez • sua imagem, dotou-nos de todas as
riquezas espirituais e selou conosco uma alian€a. Permaneceu fiel e esperou de
nˆs total correspond†ncia, no amor. Mesmo quando a humanidade perdeu-se no
erro, ele reprop•s a alian€a repetidas vezes, pelos Patriarcas e Profetas.
Vencendo a iniq•idade, ele finalmente nos reconciliou mediante seu Filho:

Jesus Cristo, o Filho de Deus vivo, se tornou a nossa reconcilia€…o junto do Pai.
Precisamente ele, e sˆ ele, satisfez ao eterno amor do Pai, •quela paternidade
que desde o princ•pio se expressou na cria€…o do mundo, na doa€…o ao homem
de toda riqueza do que foi criado, ao faz†-lo "pouco inferior aos anjos"(Sl 8,6),
enquanto criado • imagem e • semelhan€a de Deus; e igualmente satisfez
•quela paternidade de Deus e •quele amor, de certo modo rejeitado pelo
homem, com a ruptura da primeira Alian€a e das alian€as posteriores que Deus
"repetidas vezes ofereceu aos homens".53

Seguindo um correto enfoque cristolˆgico, ‡ ao Pai que o texto reconhece


a iniciativa de criar, propor alian€a, enviar o Redentor e reconciliar consigo a
humanidade pecadora54. Enviando o Filho, Deus Onipotente expressa seu

51
RH n. 8, citando Gaudium et spes n. 22.
52
A. ARANDA: "Revelación trinitaria y misión de la Iglesia", o.c., p. 60-61.
53
RH n. 9, citando ao final uma frase da Oração Eucarística IV.
54
De fato, Jesus não se apresenta como o centro da própria mensagem, mas anuncia em primeiro
lugar o amor do Pai e seu Reino: Mc 1,14-15; Mt 4,17; Lc 4,43; Jo 5,19.
17

paterno amor por nós55. Mais: "com esta revelação do Pai se explica o sentido
da cruz e da morte de Cristo"56. Jesus padece a cruz na fidelidade ao Pai e a
seu Reino. Ele realizou em tudo a vontade do Pai: fez-se Servo, assumiu a
natureza humana, anunciou em palavras e gestos o reinado soberano de Deus;
afrontou o pecado e o mal, nas estruturas e no coração dos homens; revelou o
Pai a todos, especialmente aos pobres e pecadores; suportou diversos conflitos
e a condenação, "obediente até a morte, e morte de cruz"(Fil 2,8). "Por sua
obediência realizou a redenção"57.

De sua parte, também o Pai agiu fielmente, executando seu plano


salvífico nos atos da vida de Cristo, da encarnação à ressurreição vitoriosa (cf.
Fil 2,9-11). Tendo criado todas as coisas em Cristo, Deus Pai o estabeleceu
Redentor em fidelidade a si mesmo, à sua própria paternidade:

O Deus da criação revela-se como Deus da redenção, como "Deus fiel a si


próprio", fiel ao seu amor para com o homem e para com o mundo, que já se
revelara no dia da criação. E este seu amor é amor que não retrocede diante de
nada daquilo que nele mesmo exige a justiça. E por isso o Filho "que não
conhecera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós" (2Cor 5,21).58

Somente o Filho poderia consumar a salvação, numa fidelidade irrestrita


ao plano de Deus. "Com sua ação redentora Cristo satisfaz ao amor do Pai,
correspondendo à sua paternidade, já manifestada na criação do homem, depois
negada quando este rompeu sua relação de amizade com Deus, pelo pecado"59.
Jesus é ao mesmo tempo Filho obediente e novo Adão: ele toma sobre si a
desobediência dos outros filhos, se faz primogênito entre muitos irmãos e
resgata para Deus todas as gerações humanas. A oblação de Jesus é
manifestação de sua filial entrega "e, ao mesmo tempo, manifestação da eterna
paternidade de Deus, que por ele (Cristo) se aproxima novamente da

55
Cf. RH n. 9.
56
Ibidem.
57
Como lemos em Lumen gentium n. 3.
58
RH n. 9
59
A. ARANDA: "Revelación trinitaria y misión de la Iglesia", o.c., p. 60.
18

humanidade, de cada um dos homens"60. Nele o Pai exerce misericórdia; nos


perdoa e resgata nossa dignidade de filhos:

Amor maior do que o pecado, do que a fraqueza e do que "a caducidade do que
foi criado"(cf Rm 8,20), mais forte que a morte; é amor sempre pronto a erguer e
a perdoar, sempre pronto para ir ao encontro do filho pródigo, sempre em busca
da "revelação dos filhos de Deus"(Rm 8,19) que são chamados à glória futura.61

c) O Verbo e o Espírito apontam para o Pai

Na encarnação, o Verbo se uniu a cada um dos homens62. Participou de


nossa condição humana e partilhou-nos a graça da filiação divina. Ele, Filho por
sua procedência eterna; nós, por graça do Pai na força do Espírito Santo. Com
este pensamento a encíclica retoma a perspectiva joanina, e diz:

Essa união de Cristo com o homem é em si mesma um mistério, do qual nasce o


"homem novo", chamado a participar na vida de Deus, criado novamente em
Cristo para a plenitude da graça e da verdade. A união de Cristo com o homem
é a força e a nascente da força, segundo a incisiva expressão de São João no
prólogo de seu Evangelho: "o Verbo deu-lhes o poder de se tornarem filhos de
Deus"(Jo 1,12). É esta força que transforma interiormente o homem, qual
princípio de uma vida nova que não fenece nem passa, mas dura para a vida
eterna.63

O texto ressalta que esta vida nova em Cristo é "prometida e


proporcionada a cada homem pelo Pai"64. O Pai nos amou desde toda a
eternidade, nos elevou à participação de sua vida divina e nos fez criaturas
novas em seu Filho. Este é o "destino divino" do ser humano, que deve inspirar
e preencher todo o nosso "destino humano no mundo temporal"65. Os filhos de
Deus vivem no mundo, sem pertencer ao mundo (cf. Jo 17,14-16). Nosso
coração não repousa enquanto não retorna ao Coração do Pai, como bem
exprimiu Agostinho: "Fizestes-nos, Senhor, para vós, e o nosso coração está

60
RH n. 9.
61
Ibidem.
62
Cf. Gaudium et spes n. 22.
63
RH n. 18.
64
Ibidem.
65
Ibidem.
19

inquieto, enquanto não repousa em vós"66. De fato, a vida cristã é um peregrinar


para o Pai. Peregrinos como "povo de Deus sobre a terra"67, somos a porção da
humanidade que aceita Cristo como Redentor e tem consciência da adoção filial
recebida no batismo. Vivemos nossa humanidade como um tesouro "enriquecido
com o inefável mistério da filiação divina, da graça de 'adoção como filhos' no
Unigênito Filho de Deus, mediante a qual dizemos a Deus Abbá, Pai (Gl 4,6; Rm
8,15)"68.

Peregrina no tempo, a Igreja caminha guiada pelo "Espírito Santo que o


Redentor havia prometido e que comunica continuamente, cuja descida -
revelada no dia de Pentecostes - perdura sempre"69. Em oração a Igreja o
invoca, para receber "seus dons" e "frutos". É na força deste permanente
70
Pentecostes que a Igreja se realiza como sinal de salvação . Ainda sobre o
Espírito Santo, a encíclica ressalta três efeitos de sua ação no Corpo místico de
Cristo: ele nos introduz mais plenamente no mistério redentor; põe em nós os
sentimentos do Filho Jesus; nos orienta para o Pai. O Espírito Santo é o Espírito
da Verdade71 e o Paráclito que a Igreja invoca72. Mais: é o Pedagogo por
excelência, que "põe em nós os sentimentos do Filho e nos orienta para o Pai"73.
Desde modo, ao considerar a Pessoa do Espírito Santo, a encíclica confirma a
monarquia do Pai na unidade trinitária: tanto o Verbo quanto o Espírito têm no
Pai sua origem eterna e apontam para o Pai como arché da vida divina74. Como

66
Frase de AGOSTINHO: Confessiones I, 1, citada pela encíclica no n. 18.
67
RH n. 18.
68
RH n. 18.
69
RH n. 19.
70
Ibidem, remetendo a Lumen gentium n. 1.
71
RH n. 3.
72
RH n. 19.
73
RH n. 18.
74
"Somente o Pai é fonte, por mais que seja verdade que sem o Filho e o Espírito Santo que
procedem desta fonte o Pai não pode receber este nome. É preciso afirmar as duas coisas: o Pai é
a única fonte e princípio da divindade e, ao mesmo tempo, não existe nem pode existir sem o
Filho e o Espírito; neste sentido, o Pai está referido a eles assim como o Filho e o Espírito estão
referidos a ele. O XI Concílio de Toledo diz: O que é o Pai, não o é em referência a si mesmo,
mas ao Filho; e o que é o Filho, não o é em referência a si mesmo, mas ao Pai; de maneira
semelhante, também o Espírito Santo não se refere a si mesmo, mas é em relação ao Pai e ao
20

diz o texto, linhas depois: "vida divina, que o Pai tem em si e concede ao Filho
ter em si mesmo"75.

d) A paternidade de Deus se reflete na missão da Igreja

Deus aben€oou em Cristo cada ser humano, por Ele "querido" e


"escolhido", "destinado • gra€a e • glˆria"76. Elevou-nos • condi€…o de filhos no
Filho e fez da histˆria humana uma histˆria de salva€…o. Esta "histˆria salv•fica –
tanto a da humanidade inteira, quanto a de cada pessoa humana, em cada
‡poca – ‡ a histˆria admirƒvel da reconcilia€…o. Histˆria pela qual Deus, que ‡
Pai, reconcilia o mundo consigo, no sangue e na cruz de seu Filho feito homem,
engendrando uma nova fam•lia de reconciliados"77. Jesus consumou esta
reconcilia€…o e, no Evangelho, nos revelou a hora e o desejo de Deus:
"Aproxima-se a hora, ou melhor, jƒ estamos nela, em que os verdadeiros
adoradores adorar…o o Pai em Esp•rito e verdade, porque ‡ assim que o Pai
quer seus adoradores"(Jo 4,23)78. Este desejo do Pai estende-se a "todos e a
cada um dos homens"79, pois ele ‡ o Pai supremo "de quem toma nome toda
fam•lia, no c‡u e sobre a terra"(Ef 3,15)80.

Desta boa-not•cia a Igreja ‡ sinal e mensageira. Sua miss…o ‡ servir a


este desejo do Pai, realizando a "hora" anunciada pelo Evangelho no hoje dos
homens (cf. Jo 4,23). Por isso a Igreja se preocupa com cada ser humano,
enquanto "ser pessoal e ao mesmo tempo comunitƒrio e social - no Žmbito da
prˆpria fam•lia, no Žmbito de sociedades e de contextos diversos, no Žmbito da

Filho, sendo chamado Espírito do Pai e do Filho (DS 528)" (L.F. LADARIA: El Dios vivo y
verdadero, Salamanca, 1998, p. 312).
75
Na voz de RH n. 20.
76
RH n. 13.
77
JOÃO PAULO II: Exortação apostólica sobre Penitência e Reconciliação n. 4.
78
Como nos recorda a encíclica, ao citar este verso de São João no n. 12.
79
RH n. 14.
80
O termo grego aqui traduzido por "família" é  (patría): designa qualquer grupo social
que deve sua existência e unidade a um mesmo antepassado. Logo, este versículo fala que a
21

prˆpria na€…o ou povo, (…) enfim no Žmbito de toda a humanidade"81; a Igreja


tem "solicitude pelo homem, pela sua humanidade e pelo futuro dos homens
sobre a terra"82. Isto se manifesta no minist‡rio universal da Igreja, que convoca
• unidade a inteira fam•lia humana, servindo-a nas amplas esferas da vida: na
esfera das Igrejas, com a busca perseverante da unidade crist… mediante o
diƒlogo ecum†nico83; na esfera das religiões não-cristãs, "atrav‡s do diƒlogo,
dos contatos, da ora€…o em comum e da busca dos tesouros da espiritualidade
humana, os quais, como bem sabemos, n…o faltam tamb‡m aos membros
destas religi‰es"84; na esfera da liberdade, ao aproximar-se "de todas as
culturas, de todas as concep€‰es ideolˆgicas e de todos os homens de boa
vontade"85, para salvaguardar "a aut†ntica liberdade" e "a dignidade da pessoa
humana"86; na esfera do desenvolvimento, para que ao progresso t‡cnico
corresponda "um proporcional desenvolvimento da vida moral e da ‡tica (…),
mais responsƒvel, mais aberto para com o outro, em particular para com os mais
necessitados e os mais fracos"87; na esfera dos direitos, promovendo os Direitos
Humanos para que sejam "o princ•pio fundamental do empenho em prol do bem
do mesmo homem"88; na esfera da verdade, comunicando o "grande tesouro" da
Revela€…o89, progredindo "no conhecimento de Deus, em resposta • sua
Palavra revelada"90, enfim, incentivando a mŠtua colabora€…o entre teologia,
filosofia e ci†ncias91. Com esta diaconia92 a Igreja espelha a paternidade de
Deus no mundo. Faz-se instrumento de seu amor e ministra de reconcilia€…o,

origem de todo agrupamento humano, qual família, remonta a Deus, o Pai supremo (cf. Bíblia de
Jerusalém: Ef 3,15 - nota "e").
81
RH n. 14.
82
RH n. 15.
83
Cf. RH n. 6.
84
RH n. 6; cf. também 11 e 18.
85
RH n. 12.
86
Ibidem.
87
RH n. 15.
88
RH n. 17.
89
RH n. 18.
90
RH n. 19.
91
Colaboração solicitada por João Paulo II no mesmo n. 19.
92
Pois o texto diz: amore et cura (n. 18), servimus (n. 19), ministrare, serviendo, serviendi e
ministerium (n. 21): AAS 71(1979), p. 303, 306, 316-319.
22

como insiste a enc•clica: "instrumento da •ntima uni…o com Deus e da unidade


de todo o g†nero humano"93.

e) O amor do Pai, manifestado na Eucaristia e em Maria

A enc•clica se conclui com algumas pƒginas dedicadas • Eucaristia e,


logo adiante, a Maria. Tanto este sacramento, como Maria, s…o associados •
reden€…o de Cristo: a Eucaristia - celebra€…o de sua entrega pascal; Maria -
m…e do Verbo Encarnado. A reflex…o tem um eixo cristoc†ntrico. Contudo, o
horizonte de sentido – que ordena soteriologicamente cada elemento – ‡ o amor
do Pai.

A Eucaristia ‡ considerada "o centro e o v‡rtice de toda a vida


sacramental, por meio da qual os crist…os recebem a for€a salv•fica da
reden€…o"94. Pois ela atualiza os efeitos da reden€…o, ao renovar
sacramentalmente a oferta de Cristo ao Pai:

Neste sacramento, de fato, renova-se continuamente, por vontade de Cristo, o


mist‡rio do sacrif•cio que ele fez de si mesmo ao Pai sobre o altar da cruz;
sacrif•cio que o Pai aceitou, retribuindo esta doa€…o total de seu Filho, que se
tornou "obediente at‡ a morte"(Fil 2,8), com a sua doa€…o paterna; ou seja:
como dom da vida nova imortal na ressurrei€…o, porque o Pai ‡ a primeira fonte
e o doador da vida desde o princ•pio.95

Notemos a exatid…o dos termos: primus fons Pater est et dator vitae iam
inde a principio96. Por conseguinte, o Pai ‡ "fonte primeira" das gra€as que
Cristo opera na Eucaristia e, ao mesmo, Aquele a quem se oferece este
sacrif•cio pascal. Quando comungamos, "a vida divina que o Pai tem em si
mesmo e concede ao Filho ter em si mesmo, ‡ comunicada a todos os homens
que est…o unidos com Cristo"97. Quando oramos em torno do mesmo altar, "nos

93
Lumen gentium n. 1, citada pela encíclica nos nn. 7, 19 e 21.
94
RH n. 20.
95
Ibidem.
96
Na redação latina do mesmo n. 20: AAS 71(1979), p. 310.
97
RH n. 20.
23

unimos a Cristo terrestre e celeste, que intercede por nós junto do Pai"98.
Quando oferecemos o corpo e sangue do Senhor, "participamos naquela
restituição única e irreversível do homem e do mundo ao Pai"99. Na Eucaristia o
fiel se torna "participante no mistério da redenção" e "tem acesso aos frutos da
filial reconciliação com Deus"100.

Quanto a Maria, o texto a focaliza em um duplo procedimento. De um


lado, considera a sua maternidade: Maria é "mãe da confiança", "Mãe de Cristo",
"Mãe da Igreja", "Mãe de Jesus", "celeste Mãe da Igreja" ou simplesmente
"mãe"101. De outro lado, interpreta esta maternidade como manifestação do
amor de Deus, mais precisamente do Pai:

O eterno amor do Pai, manifestando-se na história da humanidade através do


Filho - que o Pai mesmo deu "para que todo aquele que nele crê não pereça,
mas tenha a vida eterna"(Jo 3,16) - esse amor aproxima-se de cada um de nós
por meio desta Mãe e, de tal modo, adquire sinais compreensíveis e acessíveis
para o ser humano.102

A referência ao Pai é central neste pensamento: a maternidade de Maria


manifesta o amor do Pai de modo próximo, em sinais compreensíveis e
acessíveis à pessoa humana. A maternidade de Maria não é somente um traço
amoroso de sua pessoa - embora ela tenha seu valor de mulher e mãe
reconhecido pela Igreja. Indo, além disso, sua maternidade é um sinal do amor
divino. Nas suas formas maternais e femininas, Maria se torna sinal
compreensível do amor do Pai. Amor tão profundo e regenerador, que nele
percebemos "a maternidade de Deus, à qual se refere freqüentemente a
Sagrada Escritura"103. Por isso o texto qualifica a maternidade de Maria como
"mistério da Mãe"104. Não é uma qualificação fenomênica - que focaliza sua
maternidade como dado biológico, psicológico ou cultural - mas uma qualificação

98
Ibidem.
99
Ibidem.
100
Ibidem.
101
RH n. 22, parágrafo dedicado a Maria, com o título: "Mãe da nossa confiança".
102
Ibidem.
103
Dirá João Paulo II na carta apostólica Orientale lumen n. 9.
24

teológica: no mysterium Matris se aproxima de nós o aeternus Patris amor105.


Neste sentido, a reflexão segue a doutrina mariológica do Concílio Vaticano II,
que interpreta a pessoa de Maria (concepção imaculada, maternidade, virtudes e
intercessão) no quadro maior do plano divino da salvação, ou seja, à luz da ação
econômica da Trindade106. Donde a afirmação:

Maria é a Mãe da Igreja, porque, em virtude da inefável eleição do mesmo Pai


eterno, e sob a particular ação do Espírito de Amor, ela deu a vida humana ao
Filho de Deus.107

Maria não é mãe de Jesus (e mãe da Igreja) por escolha e iniciativa sua,
mas sim ex ineffabili electione per ipsum Aeternum Patrem peracta108. O Pai a
constituiu mãe do Verbo Encarnado pela ação do Espírito Santo e Mãe da Igreja
por designação de seu Filho, que "quis explicitamente estender a maternidade
de sua Mãe, a ela apontando como filho, do alto da cruz, o seu discípulo
predileto"109. Observamos que este mesmo pensamento é retomado pelo Papa
na encíclica Redemptoris Mater, que vincula o papel de Maria ao desígnio de
Deus Pai:

A mãe do redentor tem um lugar bem preciso no plano da salvação, porque, "ao
chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido duma mulher,
nascido sob a Lei, a fim de resgatar os que estavam sujeitos à Lei e para que
nós recebêssemos a adoção de Filhos. E porque vós sois filhos, Deus enviou
aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama Abbá, Pai"(Gl 4,4-6).110

Neste texto, o olhar que contempla Maria vislumbra sabiamente o plano


divino - ao qual Maria aponta. Pois a encíclica quer esclarecer, antes de tudo, o
papel da "Mãe de Deus, no mistério de Cristo e da Igreja"111. Um procedimento

104
RH n. 22.
105
Nos termos latinos do mesmo n. 22: AAS 71(1979), p. 323.
106
Cf. Lumen gentium, cap. VIII, nn. 52-69.
107
RH n. 22.
108
Ibidem, redação latina: AAS 71(1979), p. 321.
109
Ibidem, acenando à passagem de Jo 19,26.
110
Redemptoris Mater (RMa), n. 1.
111
RMa nn. 2 e 4.
25

tão fundamental, que é nas linhas deste documento dedicado à Mãe do


Redentor, que lemos a seguinte descrição do agir salvífico do Pai:

"Bendito seja Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual no alto dos céus
nos abençoou com toda a sorte de bênçãos espirituais, em Cristo"(Ef 1,3). Estas
palavras da Carta aos Efésios revelam o eterno desígnio de Deus Pai, o seu
plano de salvação do homem em Cristo. É um plano universal, que concerne a
todos os homens criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26). Todos
eles, assim como "no princípio" estão compreendidos na obra criadora de Deus,
assim também estão eternamente compreendidos no plano divino da salvação,
que se deve revelar cabalmente na "plenitude dos tempos", com a vinda de
Cristo. Pois "nele", aquele Deus que é "Pai de nosso Senhor Jesus Cristo (são
as palavras que vêm a seguir na mesma Carta) "nos elegeu antes da criação do
mundo, para sermos santos e imaculados aos seus olhos. Por puro amor ele nos
predestinou a sermos adotados por ele como filhos, por intermédio de Jesus
Cristo, segundo o beneplácito da sua vontade, pela qual nos tornou agradáveis
em seu amado Filho. Nele, mediante o seu sangue, temos a redenção, a
remissão dos pecados, segundo as riquezas da sua graça"(Ef 1,4-7).112

112
RMa n. 7.
26

2. DEUS, RICO EM MISERICÓRDIA

Publicada em continuidade com a Redemptor hominis, a segunda


enc•clica da trilogia se constrˆi ao redor de uma tese central: "Deus que ‡ rico
em misericórdia ‡ aquele que Jesus Cristo nos revelou como Pai” 113. Deus Pai ‡
contemplado no Filho e a partir do Filho, em quem a caridade divina n…o apenas
se mostra, mas opera. Disso nos d…o testemunho as palavras e os eventos da
histˆria salv•fica, narrada nas Escrituras. Nestas palavras e eventos, a enc•clica
vai discernir a misericˆrdia de Deus: suas express‰es, sua assimila€…o na
experi†ncia humana e sua virtude salv•fica, at‡ mergulhar em sua fonte primeira,
o Pater misericordiarum et Deus totius consolationis (Pai das misericˆrdias e
Deus de toda a consola€…o: 2Cor 1,3)114.

Com uma reflex…o de sabor b•blico, a Dives in misericordia delineia o


rosto do Pai - ou melhor, seu "cora€…o"115 – traduzindo o amor divino em chave
messiŽnica (amor realizado no mist‡rio pascal de Jesus), prof‡tica (amor que
interpela o tempo presente, t…o carente de solidariedade e reconcilia€…o) e
apostˆlica (amor comunicado na miss…o da Igreja)116. Assim, o cora€…o do Pai
se desvela num texto que, ao lado do conteŠdo teolˆgico, traz tamb‡m uma
proposta espiritual-apostˆlica: viver a f‡ crist… como experi†ncia e proclama€…o
da misericˆrdia divina.

a) Jesus Cristo, revelação-encarnação da misericórdia do Pai

Deus "que habita numa luz inacess•vel" (1Tm 6,16), quis revelar-se. Falou
• humanidade na linguagem do cosmos e deu-nos a conhecer seu poder atrav‡s

113
DM n. 1, citando Ef 2,4.
114
Ibidem, citando 2Cor 1,3: AAS 72(1980), p. 1178.
115
Cf. DM n. 4, nota 52.
116
Cf. DM capítulos I-V, VI, VII-VIII respectivamente.
27

de suas obras. A mente humana, considerando estas coisas, chegou ao


"conhecimento duma Suprema Divindade ou até do Pai"117. Conhecimento
possível, mas indireto; real, mas imperfeito. Pois é um conhecer "às
apalpadelas"(At 17,27): concebe a Divindade, intui suas perfeições e a invoca
sob muitos títulos; mas não desvenda seu Nome definitivo, nem contempla-lhe o
verdadeiro rosto, porque é conhecimento destituído da visio Dei.

Esta visio Dei - dentro de uma História que aguarda seu desfecho
escatológico - nos é dada pela livre auto-comunicação de Deus, que coroa a
revelação quando envia ao mundo seu Filho, "imagem visível do Deus
invisível"(Col 1,15). Mediante Jesus Cristo, manifestam-se tanto as qualidades
eternas de Deus, como absoluto e origem do Verbo, "quanto sua relação de
amor para com o homem, isto é, sua philanthropia (benignidade para com o ser
humano: Tt 3,4). É precisamente aqui que suas perfeições invisíveis se tornam
reconhecíveis de um modo particular, incomparavelmente mais reconhecíveis do
que através de todas as outras 'obras por Ele realizadas': tornam-se visíveis em
Cristo e por meio de Cristo, por intermédio das suas ações e palavras e, por fim,
mediante a sua morte na cruz e a sua ressurreição"118.

Jesus Cristo não fala exclusivamente sobre Deus-em-Si-mesmo, mas nos


comunica de modo histórico e definitivo quem é Deus-para-nós, ou como diz a
Escritura: "Deus conosco"(Is 7,14). Neste sentido, Jesus torna particularmente
visível "aquele atributo da divindade que já o Antigo Testamento - servindo-se de
diversos conceitos e termos - tinha definido misericórdia. Não somente fala dela
e a explica com o uso de comparações e parábolas, mas sobretudo ele próprio a
encarna e a personifica. Ele próprio é, em certo sentido, a misericórdia. Para
quem a vê nele - e nele a encontra - Deus torna-se particularmente 'visível' como
Pai 'rico em misericórdia'(Ef 2,4)"119. Nesta economia redentora, a visio Dei

117
Nostra aetate n. 2.
118
DM n. 2. A qualificação de Deus Pai como philànthropos é tomada da teologia oriental, na
qual João Paulo II parece inspira-se, como nos demonstra Orientale lumen n. 14.
119
DM n. 2.
28

(visão de Deus) que Jesus nos proporciona é na verdade a visio Patris (o rosto
do Pai) 120. Assim se cumprem as palavras "Quem me vê, vê o Pai"(Jo 14,9):

"Deus que é rico em misericórdia"(Ef 2,4) é aquele que Jesus Cristo nos revelou
como Pai. Foi o seu próprio Filho quem, em si mesmo, no-lo manifestou e deu a
conhecer (cf. Jo 1,18; Hb 1,1ss). Convém lembrar, a respeito, o momento em
que Filipe, um dos doze apóstolos, dirigindo-se a Cristo lhe disse: "Senhor,
mostra-nos o Pai e isso nos basta"; e Jesus respondeu-lhe: "Há tanto tempo que
estou convosco e não me conheces? Quem me vê, vê o Pai"(Jo 14,8ss).121

Este episódio foi seguido pelos acontecimentos pascais do Senhor, nos


quais se confirmou "para sempre o fato de que 'Deus, que é rico em
misericórdia, movido pela imensa caridade com que nos amou, restituiu-nos à
vida juntamente com Cristo, quando estávamos mortos pelos nossos
pecados'(Ef 2,4s)"122. Neste evento salvífico, Deus se mostra para nós como
"Pai das misericórdias e Deus de toda consolação"(2Cor 1,3). Dito isto, João
Paulo II retoma a idéia do peregrinar cristão, antevendo seu ponto de chegada:
nosso encontro com a misericórdia de Deus. Este é o mistério ao qual nos
voltamos. Não só nós, Igreja de Cristo, mas nós, humanidade:

Agora, convém que nos voltemos a este mistério: sugerem-no múltiplas


experiências da Igreja e do homem contemporâneo; e exigem-no também as
aspirações de tantos corações humanos, os seus sofrimentos e esperanças, as
suas angústias e expectativas. Se é verdade que todos e cada um dos homens,
em certo sentido, são o caminho da Igreja - como afirmei na encíclica
Redemptor hominis - também é verdade que o Evangelho e toda a Tradição nos
indicam constantemente que devemos percorrer, com todos e cada um dos
homens, este caminho, tal como Cristo o traçou, ao revelar em si mesmo o Pai e
seu amor. Em Jesus Cristo, todos os caminhos em direção ao homem - tais
como foram confiados de uma vez para sempre à Igreja no cotexto variável dos
tempos - são ao mesmo tempo um caminhar ao encontro do Pai e do seu
amor.123

Considerando "as aspirações de tantos corações humanos, seus


sofrimentos e esperanças, suas angústias e expectativas"124, o Papa recorda

120
DM n. 13: AAS 72(1980), p. 1218.
121
DM n. 1.
122
DM n. 1.
123
Ibidem.
124
Ibidem.
29

que a revela€…o da misericˆrdia - em Jesus - toca a humanidade real. N…o ‡ um


dado "apenas conceitual, mas integralmente existencial"125. Tende a atingir a
realidade dos indiv•duos e sociedades, da esfera afetiva •quela efetiva das
rela€‰es humanas, onde se mesclam a fraternidade e o ˆdio, a liberdade e a
escravid…o126. A verdade acerca de Deus "Pai das misericˆrdias" (2Cor 1,3) nos
leva a reconhec†-lo "particularmente prˆximo do homem, sobretudo quando este
sofre, quando ‡ amea€ado no prˆprio nŠcleo da sua exist†ncia e da sua
dignidade"127.

Œ justamente a esta humanidade sofrida e amea€ada que Cristo se


apresenta, anunciando o tempo da gra€a:

Diante de seus conterrŽneos, em Nazar‡, Cristo faz men€…o das palavras do


profeta Isa•as: 'O Esp•rito do Senhor estƒ sobre mim, porque ele me conferiu a
un€…o e me enviou a anunciar a Boa-Nova aos pobres, a proclamar a liberta€…o
aos cativos e o dom da vista aos cegos, a p•r em liberdade os oprimidos e a
promulgar um ano de gra€a da parte do Senhor'(Lc 4,18s). Segundo S…o Lucas,
estas frases constituem sua primeira declaração messiânica – • qual se seguem
os fatos e as palavras conhecidos por meio do Evangelho. Mediante tais fatos e
palavras, Cristo torna o Pai presente no meio dos homens. Πmuito significativo
que esses homens sejam sobretudo os pobres, carentes dos meios de
subsist†ncia; os que est…o privados da liberdade; os cegos que n…o v†em a
beleza da cria€…o; aqueles que vivem com amargura no cora€…o, ou que sofrem
por causa da injusti€a social; e, por fim, os pecadores. Em rela€…o a esses
Šltimos, de modo especial, o Messias se torna um sinal particularmente leg•vel
de Deus que ‡ amor, torna-se um sinal do Pai.128

b) Paternidade de Deus e “ethos” do Evangelho

A mentalidade contemporŽnea muitas vezes esquece o sentido da


misericˆrdia. Os conflitos, a injusti€a social e outras amea€as • vida s…o
realidades t…o dramƒticas, que chegam "a tirar do cora€…o humano a prˆpria

125
Ibidem.
126
Cf. Gaudium et spes n. 9, conforme indicação de DM n. 2.
127
DM n. 2.
128
DM n. 3.
30

id‡ia de misericˆrdia"129. Constata-se at‡ um certo mal-estar ao tocar no


assunto. Para alguns, misericˆrdia soa como fraqueza ou condescend†ncia
diante do mal. Assim, ela ‡ vista como um sentimento sem frutos: insignificante
para a religi…o e dissociada dos esfor€os de promo€…o humana.

Tal perda do sentido da misericˆrdia nos faz notar, ainda, duas car†ncias:
a insuficiente assimila€…o do ethos evangélico pela sociedade contemporŽnea; e
uma car†ncia de paternidade na rela€…o do homem com Deus130. Sem a
misericˆrdia, desvirtua-se o alcance ‡tico do Evangelho que exige caridade e
justi€a segundo o Reino de Deus; sem ela, ofusca-se um tra€o fundamental do
Deus crist…o, que ‡ sua paternidade. Por conseguinte, a humanidade encontrarƒ
o sentido libertador do Evangelho e o verdadeiro rosto de Deus, voltando-se •
misericórdia, tal qual Jesus a prop‰e.

De fato, a misericˆrdia ‡ algo central na mensagem de Jesus a respeito


de Deus e de seu Reino. Jesus n…o prega uma divindade que seja apenas
Šnica, alt•ssima ou potente, como se poderia deduzir da tradi€…o dos escribas e
doutores. Ele prega, al‡m disso, uma divindade amorosa e paterna,
salvificamente prˆxima a cada ser humano131. Jesus mergulha nas fontes
genu•nas da Revela€…o, interpreta os antigos patriarcas e profetas, e nos revela
com originalidade o "Deus rico em misericˆrdia" – como diz Paulo (Ef 2,4). "Esta
verdade, mais do que tema de ensino, ‡ uma realidade que Cristo nos tornou
presente. Tornar presente o Pai como amor e misericˆrdia, na consci†ncia do
prˆprio Cristo, ‡ o ponto de aferimento fundamental da sua miss…o de
Messias"132.

129
DM n. 2.
130
Daí a necessidade de se redescobrir continuamente a paternidade de Deus na experiência de fé,
testemunhando-a com uma práxis conseqüente de amor e justiça. Cf. J. SARAIVA-MARTINS:
Dives in misericordia - commento all'enciclica di Giovanni Paolo II, Roma, 1981, p. 349-441; P.
O'CALLAGHAN: "Perché tutto sia a lode della sua gloria - la paternità di Dio alla luce di
Cristo", in CPGG: Tertio millennio adveniente (testo e commento), Milano, 1996, p. 215-226.
131
Cf. W. KASPER: Il Dio di Gesù Cristo, Roma, 1997, p. 217-250.
31

Manifestando a divindade como "Pai, amor e misericˆrdia, Jesus faz da


mesma misericˆrdia um dos principais temas da sua prega€…o. Como de
costume, tamb‡m neste particular ele ensina, antes de mais nada, com
parƒbolas, porque estas exprimem melhor a ess†ncia das coisas. Basta recordar
a parƒbola do filho prˆdigo (Lc 15,11-32) ou a parƒbola do bom-samaritano (Lc
10,30-37), ou ainda, por contraste, a parƒbola do servo sem compaix…o (Mt
18,23-35)"133. Temos ainda "o bom pastor • procura da ovelha tresmalhada (Mt
18,12-14; Lc 15,3-7) ou a mulher que varre a casa • procura da dracma perdida
(Lc 15,8-10)"134.

Deus, portanto, ‡ Pai misericordioso. E seu Reino se caracteriza por


rela€‰es de misericˆrdia para com seus filhos e filhas. Este tra€o distintivo da
paternidade de Deus, por sua vez, requer que nos deixemos "guiar na prˆpria
vida pelo amor e pela misericˆrdia. Esta exig†ncia faz parte da ess†ncia mesma
da mensagem messiŽnica e constitui a medula do ethos evang‡lico. Œ isto que o
Mestre exprime, seja atrav‡s do mandamento por ele definido como 'o maior'(Mt
22,38), seja na forma de b†n€…o, ao proclamar no serm…o da montanha: 'Bem-
aventurados os misericordiosos, porque alcan€ar…o misericˆrdia'(Mt 5,7)"135.
Assim, a misericˆrdia conserva a dupla dimens…o da ágape crist…: "revela mais
plenamente o Pai, que ‡ Deus rico em misericˆrdia" (dimensão divina),
"tornando-se para as pessoas modelo de amor misericordioso para com os
outros" (dimensão humana)136. Enquanto divina, a misericˆrdia nos permite
experimentar a acolhida, o perd…o e a benignidade de Deus Pai. Enquanto
humana, nos interpela • compaix…o "em rela€…o aos que sofrem, aos infelizes e
aos pecadores. (…) N…o se trata somente de cumprir um mandamento ou uma
exig†ncia de natureza ‡tica, mas tamb‡m satisfazer a uma condi€…o de capital

132
DM n. 3.
133
Ibidem.
134
Ibidem.
135
DM n. 3.
136
Expressões do mesmo n. 3.
32

importância, a fim de Deus poder se revelar na sua misericórdia para com o ser
humano: os misericordiosos alcançarão misericórdia"137.

Neste sentido, a misericórdia é indispensável ao anúncio cristão de Deus.


Se nós cristãos assimilarmos seu sentido e a praticarmos visivelmente - como
ensinou Jesus nos dias de sua pregação - "do mesmo modo que os homens de
então, também os homens do nosso tempo podem ver o Pai, neste sinal
visível"138. Muitos poderão superar sua condição de orfandade existencial (falta
de sentido, caos, solidão) ao encontrar na paternidade de Deus uma resposta
para o mistério humano e uma nova inspiração para a fraternidade139. Sobre
isto, João Paulo II acrescenta, num outro documento:

A todas as Igrejas, do Oriente e do Ocidente, chega o grito dos homens de hoje,


desejosos de encontrar um sentido para sua vida. Nós percebemos neste grito o
clamor de quem busca o Pai esquecido e perdido (cf. Lc 15,18-20; Jo 14,8). As
mulheres e os homens de hoje pedem que lhes mostremos Cristo, o qual
conhece o Pai e o revelou a nós (cf. Jo 8,55; 14,8-11). Deixando-nos interpelar
pelas interrogações do mundo, escutando-as com humildade e ternura, em
solidariedade plena com quem as expressa, somos chamados a mostrar - com
palavras e gestos atuais - a imensa riqueza que nossas Igrejas guardam no
tesouro de suas tradições. Aprendamos do próprio Senhor, que ao longo do
caminho se detinha entre as pessoas, as escutava e se comovia ao vê-las como
"ovelhas sem pastor"(Mt 9,36). Dele devemos aprender este olhar amoroso com
o qual reconciliava as pessoas com o Pai e consigo mesmas, comunicando-lhes
a única força capaz de curar integralmente o ser humano.140

c) Nas Escrituras, a semântica do amor divino

Desde a primeira Aliança, Deus revela sua compaixão pela humanidade,


comunicando-nos a salvação que irá consumar-se em Jesus Cristo. Numa
pedagogia que conduz passo a passo à Nova Aliança, a Revelação do primeiro
testamento fala da benignidade e ternura de Deus. Mergulhando nesta

137
Ibidem, acenando para a bem-aventurança de Mt 5,7.
138
DM n. 2.
139
Cf. G. COSTANZO: "Paternità di Dio e mistero dell'uomo", in F. TAGLIAFERRI: o.c., p. 43-
54.
140
Orientale lumen n. 4.
33

Revelação, a Dives in misericordia examina os testemunhos e os termos que


mais expressam o amor divino por Israel e, enfim, por cada ser humano.

Dentre os testemunhos, temos a intercessão do povo israelita que, no


sofrimento ou quando toma consciência de sua infidelidade à Aliança, apela à
misericórdia de Deus. "Entre os fatos e textos mais salientes, podemos recordar:
o início da história dos Juízes (Jz 3,7-9); a oração de Salomão ao ser
inaugurado o Templo (1Sm 8,22-53); uma parte das intervenções proféticas de
Miquéias (Mq 7,18-20); as consoladoras garantias oferecidas por Isaías (Is 1,18;
51,4-16); a súplica dos hebreus exilados (Br 2,11-3,8) e a renovação da Aliança,
depois do regresso do exílio (Ne 9)"141. Outro exemplo significativo é a pregação
dos profetas, que apresentam a misericórdia "em ligação com a incisiva imagem
do amor da parte de Deus. O Senhor ama Israel com o amor de uma particular
eleição, semelhante ao amor de um esposo; e por isso perdoa suas culpas e até
mesmo as infidelidades e as traições. Ao encontrar-se perante a penitência, a
conversão autêntica do seu povo, restabelece-o novamente na sua graça. Na
pregação dos profetas, misericórdia significa uma especial potência do amor,
que prevalece sobre o pecado e sobre a infidelidade do povo eleito"142.

Na origem desta confiança na misericórdia divina está "a experiência


fundamental do povo eleito, vivida nos dias do êxodo: o Senhor viu a aflição de
seu povo, reduzido à escravidão, ouviu seus clamores, deu-se conta dos seus
sofrimentos e decidiu libertá-lo (cf. Ex 3,7ss). Neste ato de salvação realizado
pelo Senhor, o Profeta quis individuar o seu amor e a sua compaixão (cf. Is
63,9). É aqui, precisamente, que se enraíza a segurança de todo o povo e de
cada um dos seus membros na misericórdia divina, que pode ser invocada em
todas as circunstâncias dramáticas"143. Pois este mesmo Senhor é Aquele "que

141
DM n. 4.
142
Ibidem.
143
Ibidem.
34

se definiu a Moisés como 'Deus compassivo e misericordioso, lento para a


cólera e cheio de bondade e de fidelidade'(Êx 34,6)"144.

Entre os termos tomados do hebraico bíblico, a encíclica destaca o verbo


hamal e os vocábulos hus, emet, hesed e rahamim. Partindo das Escrituras,
João Paulo II diz:

O conceito de misericórdia no Antigo Testamento inclui também o conteúdo do


verbo hamal, que literalmente significa "poupar (o inimigo)", mas também
significa "manifestar piedade e compaixão" e, por conseguinte, perdão e
remissão da culpa. O termo hus exprime igualmente piedade e compaixão, mas
isso, sobretudo em sentido afetivo. Estes termos aparecem nos textos bíblicos
com menor freqüência para indicar a misericórdia. É oportuno ainda lembrar o
(já citado) termo emet, que significa: em primeiro lugar, "solidez, segurança" (no
grego dos Setenta: verdade); e depois, também "fidelidade"; e desta maneira
parece relacionar-se com o conteúdo semântico próprio do termo hesed.145

Cada termo exprime uma nuance particular do amor divino. Emet significa
firmeza, segurança, solidez. É, portanto, "firmeza na ternura"146: um amor seguro
e constante. Hesed, por sua vez, "indica uma profunda atitude de bondade.
Quando esta disposição se estabelece entre duas pessoas, estas passam a ser,
não só benévolas uma para com a outra, mas ao mesmo tempo reciprocamente
fiéis por força de um compromisso interior, portanto, também em virtude de uma
fidelidade para consigo próprias. E se é certo que hesed significa também graça
ou amor, isto sucede precisamente em base a tal fidelidade"147. Juntando estes
dois termos, o hebraico formulou o binômio hesed we'emet: "amor e fidelidade",
ou também "graça e verdade". Trata-se de amor comprometido, em sentido
objetivo e subjetivo: é amor que une dois aliados, reciprocamente fiéis, em
comum acordo (objetivamente); ao mesmo tempo, é amor fiel em sentido
subjetivo, porque cada um dos aliados decide ser fiel a si mesmo, selando a
aliança interiormente, diante da própria consciência.

144
Ibidem.
145
DM n. 4.
146
R. PENNA: "Misericordia", in Dizionario Enciclopedico della Bibbia, Roma, 1995, p. 876.
147
DM n. 4, nota 52.
35

Israel vive esta aliança de modo perseverante, mas imperfeito: não é


absolutamente fiel, devido à injustiça e às freqüentes idolatrias. Javé, por sua
vez, vive hesed we'emet de modo perfeito: sempre fiel a si mesmo e à aliança
que selou por sua soberana iniciativa. Apesar da imperfeição de Israel, Deus
continua comprometido (hesed) e firme em sua ternura (emet), ainda que o povo
não mereça. Ele mesmo diz: "Eu faço isto, não por causa de vós, ó casa de
Israel, mas pela honra do meu santo Nome"(Ez 36,22). Israel "não pode ter
pretensões em relação ao hesed de Deus, com base numa suposta justiça legal.
No entanto, pode e deve continuar a esperar e a ter confiança em obtê-lo, já que
o Deus da aliança é realmente responsável pelo seu amor. Fruto deste amor, é o
perdão e a reconstituição na graça, o restabelecimento da aliança interior"148.
Deste modo, o limite da justiça legal é superado pelo hesed de Deus. Este,
precisamente por isso, é chamado de Clemente e Misericordioso (cf. Êx 34,6; Sl
103)149.

Outro termo, usado nas Escrituras "para definir a misericórdia é rahamim.


O matiz de seu significado é um pouco diverso do significado de hesed.
Enquanto hesed acentua as características da fidelidade para consigo mesmo e
da responsabilidade pelo próprio amor (que são características em certo sentido
masculinas), rahamim - já pela própria raiz - denota o amor da mãe (rehem =
ventre materno). Do vínculo mais profundo e originário, ou melhor, da unidade
que liga a mãe ao filho, brota uma particular relação com ele, um amor
particular. Deste amor se pode dizer que é totalmente gratuito, não fruto de
merecimento, e que, sob este aspecto, constitui uma necessidade interior: é uma
exigência do coração"150. Estes termos "diferem no seu conteúdo particular, mas
tendem a confluir, se assim se pode dizer, de vários pontos de vista para um
único conteúdo fundamental, para exprimir a riqueza transcendental da
misericórdia e, ao mesmo tempo, para aproximá-la do homem sob aspectos

148
DM n. 4, nota 52.
149
A clem€ncia e a miseric•rdia de Deus s‚o proclamadas tambƒm no Alcor‚o e na tradi„‚o
isl…mica. Cf. M. MA†ANEIRO: “Compaix‚o, miseric•rdia e ternura”, in TQ – Teologia em
Quest•o 9(2006), Taubatƒ (Brasil), p. 36, nota “1”.
36

diversos"151: perdoar a culpa (hus), ter piedade (hamal), ser firme na ternura
(emet), amar em fidelidade ao outro e a si mesmo (hesed), amar com entranhas
de misericórdia (rahamim).

É importante observar, ainda, que os termos emet, hesed e rahamim não


se aplicam diretamente ao Espírito de Javé (Ruah), nem à sua Palavra (Dabar)
ou à sua Sabedoria (Hokmah), mas a Javé mesmo, o Senhor152. Deste modo, os
atributos de ternura constante (emet), amor responsável (hesed) e compaixão
visceral (rahamim) configuram a paternidade de Javé para com a humanidade
(em geral) e o povo de Israel (em particular). Paternidade que se manifesta
sobretudo na eleição israelítica, pois Deus elege Israel entre todas as nações,
adotando-o como um filho. Esta mesma paternidade envolve, de modo
particular, o Messias prometido, a quem Deus declara: "Tu és meu filho, eu hoje
te gerei"(Sl 2,7). Sem perder as prerrogativas de Santo (Qadosh), Poderoso
(Shaddai) e Altíssimo (Elyon), Deus é aquele que está presente a seu povo
(Iahweh), amando-o com "bondade e ternura, paciência e compreensão,
prontidão para perdoar"153; enfim, com "ternura de Pai"154. Ao que João Paulo II
acrescenta:

Assim, o Senhor revelou a sua misericórdia tanto nas obras quanto nas
palavras, desde os primórdios do povo que escolheu para si; e no decurso da
sua história, este povo, quer em momentos de desgraça, quer ao tomar
consciência do próprio pecado, continuamente se entregou com confiança ao
Deus das misericórdias. Na misericórdia do Senhor para com os seus,
manifestam-se todos os matizes do amor: ele é para eles Pai, dado que Israel é
seu filho primogênito; ele é também o esposo daquela a quem o Profeta anuncia
um nome novo: "bem-amada" (ruhama), porque será usada misericórdia para
com ela.155

150
Novamente DM n. 4, nota 52.
151
Ibidem.
152
Cf. K.D. SAKENFELD: "Love (in the Old Testament)", in The Anchor Bible Dictionary, vol.
4, New York-London, 1992, p. 375-381.
153
DM n. 4, nota 52.
154
Diz o mesmo Papa, na carta Orientale lumen n. 28.
155
DM n. 4.
37

O Antigo Testamento encerra a semŽntica do amor divino. Al‡m do


simbolismo esponsal, adota os sentimentos do amor paterno como imagem real
do amor de Deus, zeloso e indulgente: "Vou conduzi-los •s torrentes de ƒgua,
por um caminho reto, em que n…o trope€ar…o. Porque eu sou um pai para Israel
e Efraim ‡ o meu primog†nito"(Jer 31,9); "Como um pai ‡ compassivo com seus
filhos, o Senhor ‡ compassivo com aqueles que o temem"(Sl 103,13).
Compaix…o t…o profunda, que une a firmeza do pai (emet) e os afetos da m…e
(rahamim) num amor que se inclina e perdoa:

Quanto Israel era um menino, eu o amei e do Egito chamei meu filho. Mas
quanto mais eu os chamava, tanto mais eles se afastavam de mim. Eles
sacrificavam aos baals e queimavam incenso aos •dolos. Fui eu, contudo, quem
ensinou Efraim a caminhar, eu os tomei em meus bra€os, mas n…o
reconheceram que eu cuidava deles! Com v•nculos humanos eu os atra•a, com
la€os de amor eu era para eles como os que levantam uma criancinha contra
seu rosto, eu me inclinava para ele e o alimentava. Como poderia eu abandonar-
te, ˆ Efraim; entregar-te, ˆ Israel? Meu cora€…o se contorce dentro de mim,
minhas entranhas se comovem (Os 11,1-5.8).

Tocados por este amor, os israelitas se dirigem a Deus como filhos e


filhas a seu pai:

 “Meu pai e minha m…e me abandonaram, mas Iahweh me acolhe” (Sl


27,10).

 “Com efeito, tu ‡s nosso pai. Ainda que Abra…o n…o nos conhecesse e
Israel n…o tomasse conhecimento de nˆs, tu, Adonai, ‡s nosso pai e
nosso redentor: tal ‡ o teu nome para sempre” (Is 63,16).

 “Adonai, tu ‡s o nosso pai, nˆs somos a argila e tu ‡s o nosso oleiro,


todos nˆs somos obra das tuas m…os” (Is 64,7).

Do ponto de vista terminolˆgico, esta paternidade ‡ descrita em analogia


com os sentimentos humanos. Entretanto, do ponto de vista teolˆgico, jamais se
reduz a uma paternidade mitolˆgica, como ocorre em alguns cultos vizinhos a
Israel156. A paternidade divina, na concep€…o no primeiro testamento, ‡ uma

156
"Destes cultos, citamos o deus fenício El que, comparável ao touro egípcio Men, fecundava
sua esposa e engendrava outros deuses. Assim também Baal, filho de El, era especializado na
38

qualidade atribuída somente ao Deus Único e por ele mesmo revelada no seu
relacionamento com Israel: a eleição, a libertação do Egito, o socorro nos
perigos e inúmeras provas de carinho157. Aproximando-se de Deus como pai
compassivo, o Antigo Testamento traça "a impressionante imagem do seu amor
que, em contato com o mal e, em particular, com o pecado do homem e do
povo, se manifesta como misericórdia"158. Os termos usados não surgem do
mito, mas da experiência da proximidade salvífica de Javé159. Trata-se de um
dado de Revelação já presente nas antigas páginas, à espera da sua futura e
definitiva explicitação em Jesus, como conclui a encíclica:

Cristo revela o Pai na mesma perspectiva, contando com um terreno já


preparado, como o demonstram numerosas páginas dos escritos do Antigo
Testamento. Como remate desta revelação, na véspera de sua morte, Ele diz ao
apóstolo Filipe aquelas memoráveis palavras: "Há tanto tempo que estou
convosco e tu não me conheces? Quem me vê, vê o Pai"(Jo 14,9).160

d) Do filho pródigo ao Pai misericordioso

Tendo presente o testemunho do amor de Deus comunicado nas


Escrituras judaicas, a encíclica dá um passo na direção do Novo Testamento.
Recorda, antes de tudo, duas vozes que proclamam a misericórdia divina no
início do Evangelho de Lucas. "A primeira destas vozes é a de Maria que,
entrando em casa de Zacarias, engrandece louvando o Senhor com toda a sua

fecundação de casais humanos e animais, mediante iniciação ritual de sua união com uma deusa.
Em contrapartida, o Deus bíblico é único: não é associado a nenhum outro deus, não executa ato
sexual, nem produz filhos por atividade carnal"(M. HUBAUT: Dieu mon Père et votre Père,
Paris, 1999, p. 33-34).
157
Como lemos nas vinte vezes em que o Primeiro Testamento nomeia a Deus de pai: Dt 32,6;
2Sm 7,14; 1Cr 17,13; 22,10; 28,6; Tb 13,4; Sl 68,6; 89,27; Sb 14,3; Sir 23,1.4; 51,10; Is 63,16
(bis); 64,7; Jer 3,4.19; 31,9; Ml 1,6; 2,10.
158
DM n. 4, final da nota 52.
159
A propósito, diz W. KASPER: "A caracterização paterna da divindade (motivo presente
também em algumas religiões históricas), tal qual nos oferece o Antigo Testamento, exprime o
proprium e o specificum da fé vétero-testamentária em Deus: a liberdade e a soberania de Deus, a
sua transcendência, que é uma liberdade no amor e que historicamente se manifesta como o
curvar-se de Deus na imanência, fazendo-se Deus-conosco" (Il Dio di Gesù Cristo, o.c., p. 193).
160
DM n. 5.
39

alma pela sua misericˆrdia, da qual se tornam participantes, de gera€…o em


gera€…o, os homens que vivem no temor de Deus. Pouco adiante,
comemorando a elei€…o de Israel, ela proclama a misericˆrdia da qual se
recorda desde sempre Aquele que a escolheu. A outra voz ‡ a de Zacarias que,
na mesma casa, por ocasi…o do nascimento de Jo…o Batista, seu filho,
bendizendo o Deus de Israel, glorifica a misericˆrdia que ele quis usar para com
os nossos pais e lembrar-se da sua santa alian€a"161.

O magnificat de Maria e o benedictus de Zacarias s…o, de fato, dois


salmos de louvor • divina misericˆrdia (cf. Lc 1,46-55.68-79). Seja na forma de
hesed - fidelidade de Deus ao seu amor pelo povo - seja na forma de rahamim,
como diz Zacarias: "Gra€as ao misericordioso cora€…o de nosso Deus"(Lc 1,78).
Nesta frase, o termo grego splanchna (traduzido em latim como viscera
misericordiae) confere ao amor divino a afei€…o visceral do ventre materno,
remontando ao hebraico rahamim162. Terminadas estas considera€‰es, Jo…o
Paulo II se volta ao ensino de Cristo. Recorda as parƒbolas da misericˆrdia
mencionadas no Evangelho e, dentre estas, elege uma: “a parƒbola do filho
prˆdigo, na qual a ess†ncia da misericˆrdia divina se acha expressa de um
modo particularmente l•mpido”163. A seguir, explica o porqu† da escolha:

Contribui para isso, n…o tanto a terminologia - como nos livros do Antigo
Testamento - mas a analogia, que permite compreender mais plenamente o
prˆprio mist‡rio de misericˆrdia, como drama profundo que se desenrola entre o
amor do pai e a prodigalidade e o pecado do filho.164

Come€a, a partir da•, uma interpreta€…o analógica da parƒbola: na


rela€…o pai-filho contemplamos, em forma narrativa, o amor de Deus Pai por
nˆs165. Esta interpreta€…o constitui o Cap•tulo IV da enc•clica. Aqui, o Papa rel†

161
DM n. 5.
162
Cf. DM n. 5, notas 60 e 61.
163
DM n. 5.
164
Ibidem.
165
Passando da terminologia à analogia, João Paulo II respeita o mistério inefável de Deus.
Adorado como Pai que engendra o Filho e envia o Espírito eternamente, sabemos, porém, que a
linguagem com que expressamos tal mistério é sempre linguagem analógica: teologicamente
40

a parábola seguindo quatro passos hermenêuticos: o significado de aliança; o


acento à dignidade interior do filho; a medida da estrita justiça; o encontro com o
Pai misericordioso.

(1) Dando o primeiro passo, João Paulo II constata que a relação entre
pai e filho - com tudo o que comporta de ruptura e perda, perdão e ganho - nos
fala da aliança entre Deus e toda a humanidade, de Adão aos nossos dias:

Este filho, que recebe do pai a parte da herança que lhe toca e deixa a casa
paterna para ir esbanjar essa herança numa terra longínqua "vivendo
dissolutamente", em certo sentido, é o homem de todos os tempos, a começar
por aquele que foi o primeiro a perder a herança da graça e da justiça original.
Neste ponto a analogia é muito ampla. A parábola se refere indiretamente a
todas as rupturas da aliança de amor: a toda perda da graça, a todo pecado.166

(2) No passo seguinte, o Papa observa que "a analogia desloca-se


claramente para o interior do homem. A herança que o jovem tinha recebido do
pai era constituída por certa quantidade de bens materiais. Entretanto, mais
importante do que esses bens era a sua dignidade de filho na casa paterna. A
situação em que ele veio a encontrar-se quando se viu sem os bens materiais
que havia dissipado, deveria tê-lo tornado consciente, como é normal, também
da perda dessa dignidade"167. Além de encontrar-se materialmente miserável, a
necessidade o leva a desejos e atos indignos, como cobiçar a comida dos
porcos. Tal situação fere a sua dignidade de pessoa e, mais ainda, sua condição
de filho. Por isso, pondera e se lamenta: "Quantos empregados de meu pai têm
pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome"(Lc 15,17).

adequada e fiel à verdade crida, mas que - definitivamente - não captura o inefável Ser de Deus.
Seu ser, em sentido absoluto, só é "definível" por Ele mesmo, tal qual Deus se compreende e se
pronuncia a Si próprio. Aquilo que dele conhecemos foi-nos revelado e, graças à Revelação
mesma, é conhecimento veraz. Por tais motivos, a analogia é também anagogia, como nos ensina
a mística e a teologia apofática. Sobre isto, cf. ainda Orientale lumen nn. 6 e 16.
166
DM n. 5.
167
Ibidem.
41

(3) Prosseguindo esta reflexão, a encíclica focaliza a decisão do filho


pródigo e dá o terceiro passo interpretativo:

É então que ele toma a decisão: "Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e lhe direi:
Pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho;
trata-me como a um de teus empregados"(Lc 15,18-19).168

João Paulo II observa que, pensando desta forma, o filho pródigo segue a
medida da estrita justiça: já que foi infiel à sua filiação, propõe ao pai que seja
infiel à sua paternidade, não o considerando mais seu filho. Deste modo, poderia
trabalhar na casa sem direitos nem herança. Destituído da relação filial que tinha
com seu pai, lhe bastaria sobreviver. O estreito sentido da justiça, que orienta o
raciocínio do filho pródigo, nos faz lembrar o preceito "olho por olho, dente por
dente"(Lv 24,20). Consciente "daquilo que mereceu e daquilo a que ainda pode
ter direito segundo as normas da justiça"169, resta-lhe pedir desculpas e
humilhar-se como um servo aos mandos do patrão. "Essa seria a exigência da
ordem da justiça, até porque aquele filho, com o seu modo de comportar-se, não
tinha somente dissipado a parte da herança que lhe cabia, mas tinha também
ofendido e magoado profundamente o pai"170.

(4) Entretanto, o encontro com o Pai revela uma outra medida, que
supera as margens estreitas da justiça. Eis o quarto passo hermenêutico. Para
surpresa do filho, o pai permanece pai, reagindo com zelo e ternura. Ainda que
ciente dos descaminhos do rapaz, "tratava-se afinal de contas do seu próprio
filho, e esta relação não podia ser alienada nem destruída por nenhuma espécie
de comportamento"171. Não era seu filho que retornava? Sendo pai, poderia ele
cancelar sua paternidade? Daí a acolhida compassiva e reconciliadora:

Ao ver o filho pródigo regressar à casa, o pai, "movido de compaixão, correu ao


seu encontro, abraçou-o efusivamente e beijou-o"(Lc 15,20). Com certeza, ele
procede deste modo levado por um profundo afeto; e assim se pode explicar

168
Ibidem.
169
Ibidem.
170
DM n. 5.
171
Ibidem.
42

tamb‡m a sua generosidade para com o filho, aquela generosidade que causara
tanta indigna€…o no irm…o mais velho.172

Os gestos s…o significativos. Todavia, as causas da como€…o do pai s…o


ainda mais profundas:

O pai sabe que o que se salvou foi um bem fundamental: a humanidade de seu
filho. Muito embora este tenha esbanjado a heran€a, a verdade ‡ que sua
humanidade estƒ salva. Mais ainda: esta, de algum modo, foi reencontrada. (…)
A fidelidade do pai a si prˆprio estƒ centralizada inteiramente na humanidade do
filho perdido, na sua dignidade. Por isso, sobretudo, se explica a como€…o de
alegria que manifesta quando o filho volta para casa.173

O amor pelo filho que retorna n…o se dimensiona segundo as medidas da


exata justi€a. Tem, na verdade, outra medida: "o amor para com o filho, o amor
que brota da prˆpria ess†ncia da paternidade, como que constringe o pai - se
assim podemos nos exprimir – a ter solicitude pela dignidade do filho. Esta
solicitude constitui a medida do seu amor"174. Uma medida que, superando a
estrita justi€a, acolhe o miserƒvel e resgata o que estava perdido. Em vez de
repudiar, abra€a; em vez de condenar, perdoa; em vez de rebaixar, eleva.
"Quando isto acontece, aquele que ‡ objeto da misericˆrdia n…o se sente
humilhado, mas como que reencontrado e re-valorizado. O pai manifesta-lhe
alegria, antes de mais por ele ter sido reencontrado e por ter voltado • vida. Esta
alegria indica um bem que n…o foi desfeito: o filho, embora prˆdigo, n…o deixa de
ser realmente filho de seu pai. E indica, ainda, um bem que foi reencontrado: no
caso do filho prˆdigo, o regresso • verdade sobre si mesmo"175.

Completando, assim, os quatro passos hermen†uticos, Jo…o Paulo II


conclui: “N…o hƒ dŠvida de que – naquela simples, mas penetrante analogia – a
figura do pai nos revela Deus como Pai”176. Depois, comenta:

172
DM n. 6.
173
Ibidem.
174
DM n. 6.
175
Ibidem.
176
Ibidem.
43

O comportamento do pai da parábola, todo o seu modo de agir, que manifesta a


sua disposição interior, nos permite encontrar cada um dos fios que tecem a
visão da misericórdia no Primeiro Testamento, numa síntese totalmente nova,
cheia de simplicidade e profundidade. O pai do filho pródigo é fiel à sua
paternidade, fiel àquele amor que desde sempre tinha dedicado ao próprio
filho.177

O amor de Deus Pai, retratado na parábola, condensa a hesed do Antigo


Testamento e a agàpe, do Novo. É fidelidade a si próprio, da parte do pai
(hesed); é caridade paciente que tudo espera e suporta, permanecendo sempre
generosa (agàpe)178. Somando os traços desse amor, a encíclica caracteriza a
paternidade de Deus com as qualidades de benignidade, consolação, ternura,
compaixão, fidelidade e alegria179. Este amor brota da disposição interior do Pai:
supera a medida da estrita justiça e age como misericórdia. Não é a mera
condolência sentida à distância, mas um "amor capaz de debruçar-se sobre
todos os filhos pródigos e sobre qualquer miséria humana". É amor eficaz que
"reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas de mal existentes no
mundo e no homem"180. Misericórdia é, em suma, a designação salvífica e
operante do amor divino.

e) Mistério Pascal: o amor do Pai "in actu salvationis"

"Se quisermos exprimir totalmente a verdade sobre a misericórdia, com


aquela totalidade com que ela foi revelada na história da nossa salvação,
devemos penetrar de maneira profunda no acontecimento final que -
especialmente na linguagem conciliar - é definido como mysterium paschale
(mistério pascal)"181. Com sua entrega pascal, Jesus nos desvela a dimensão
humana e divina da Redenção. "Na sua dimensão humana, revela a grandeza
inaudita do homem que talem ac tantum meruit habere Redemptorem (que

177
Ibidem.
178
Cf. DM n. 6.
179
Cf. respectivamente nn. 1, 4 (à nota 52) e 6.
180
DM n. 6.
181
DM n. 7.
44

mereceu ter um tal e t…o grande Redentor)"182; na sua dimens…o divina, nos
permite descobrir "a profundidade daquele amor que n…o retrocede diante do
extraordinƒrio sacrif•cio do Filho, para satisfazer • fidelidade do Criador e Pai
para com os homens, criados • sua imagem e escolhidos neste mesmo Filho
desde o princ•pio, para a gra€a e a glˆria"183.

Cristo, portanto, ‡ o Filho obediente (Novo Ad…o) ungido com o Esp•rito


Santo para operar a misericˆrdia do Pai, restaurando em si todas as coisas.
Agindo assim, cumpre o projeto messiŽnico que o Pai lhe havia confiado. Faz-se
revela€…o radical do amor divino, ao assumir a mis‡ria humana em fidelidade a
Deus e a seu Reino. Sua oferta pascal sigila tudo quanto pregou e fez, como
momento culminante de sua vida redentora. Acolhendo a oferta do Filho, o Pai
se sente satisfeito em sua paternidade. N…o no sentido jur•dico – como uma
divindade que decreta o sacrif•cio legal do filho para aplacar sua ira iminente –
mas sobretudo no sentido de aliança restabelecida pelo Cordeiro perfeito. Pois
Jesus ‡ o Filho obediente que encerra o imp‡rio da Lei e inaugura o Reino da
Gra€a: "a Lei foi dada por meio de Mois‡s, a gra€a e a verdade nos vieram por
Jesus Cristo" (Jo 1,17). O Pai ‡ satisfeito em sua paternidade, porque
correspondido fielmente pelo Filho, que assume as conseq•†ncias extremas de
Seu des•gnio e consuma a salva€…o com a oferta de si mesmo184. "Com sua
obedi†ncia, o Filho permite que o amor do Pai continue manifestando-se como
amor paterno para com o homem pecador, precisamente porque permite
regenerar os seres humanos e resgatar-lhes a filia€…o divina, devolvendo-os ao
Pai como filhos"185.

Este mysterium paschale confere sentido soteriolˆgico • misericˆrdia,


garantindo-lhe estatuto salv•fico. Provinda da fidelidade do Pai a si mesmo e da

182
Ibidem.
183
Ibidem.
184
"Somente o Filho de Deus pode realizar a autêntica redenção do pecado do mundo, da morte
eterna e da servidão da lei, segundo a vontade do Pai e com a colaboração do Espírito
Santo"(CTI: "Cuestiones selectas de cristología", IV, 1, in Documentos, Madrid, 1998, p. 233).
185
L.F. MATEO-SECO: "Cristo, redentor del hombre", in A. ARANDA: o.c., p. 139.
45

sua compaixão por seus filhos pródigos, a misericórdia é o amor divino in actu
salvationis (o amor divino em ato eficaz de salvação)186. Na misericórdia, o amor
de Deus se manifesta em gestas de acolhida, perdão e resgate da humanidade
ferida, dividida e pecadora. Em termos definitivos, é o amor do Pai em ato
salvífico no mistério pascal do Filho. Assim, a misericórdia se insere no centro
da obra redentora e se mostra, realizada, na oblação de Jesus:

O mistério pascal é o ponto culminante desta revelação e atuação da


misericórdia, que é capaz de justificar o homem, e de restabelecer a justiça
como realização daquele desígnio salvífico que Deus, desde o princípio, tinha
querido realizar no homem e, por meio do homem, no mundo.187

À luz deste mysterium, podemos ver a misericórdia presente nas várias


facetas da cruz e glorificação do Filho de Deus. Neste sentido, a encíclica
medita sobre o Mistério Pascal e colhe quatro aspectos da revelação da
misericórdia, ali percebidos:

 A mesma misericórdia que supera os limites da justiça, se torna


realização máxima da verdadeira justiça, quando o Pai aceita a oferta de
Cristo pela redenção de muitos188. Esta justiça, não é uma justiça pela
justiça (segundo a estrita medida legal), mas uma justiça que "se funda no
amor, dele procede e para ele converge"189, segundo a medida de Deus.
Cristo encarna de tal modo esta justiça "à medida de Deus"190, que ele
mesmo se faz objeto de misericórdia. Aquele que "passou fazendo o bem
e curando a todos"(At 10,38) mostra-se agora digno de misericórdia e
apela ao Pai, "àquele Pai cujo amor ele pregou aos homens e de cuja
misericórdia deu testemunho com todo o seu agir"191.

186
DM n. 4: AAS 72(1980), p. 1187.
187
DM n. 7.
188
Pensamento que retorna mais adiante, no n. 14.
189
DM n. 7.
190
DM n. 7.
191
Ibidem.
46

 Na Paixão do Senhor a misericórdia se manifesta como solidariedade


com o destino humano: "Cristo, ao sofrer, fala de modo particular ao
homem e não apenas ao homem crente. Mesmo o homem que não crê
poderá descobrir nele a eloqüência da solidariedade com o destino
humano, bem como a harmoniosa plenitude de uma dedicação
desinteressada à causa do ser humano, à verdade e ao amor"192.

 A misericórdia divina resgata nossa filiação e estabelece uma aliança


nova e universal. "A cruz de Cristo sobre o Calvário surge no camiho
daquele admirabile commercium (a comunicação admirável de Deus com
a humanidade) que encerra, ao mesmo tempo, o chamado dirigido ao
homem para que, dando-se a si mesmo a Deus e oferecendo consigo
todo o mundo visível, participe da vida divina e, como filho adotivo, se
torna participante da verdade e do amor que estão em Deus e provêm de
Deus. Precisamente no caminho da eterna eleição do homem para a
dignidade de filho adotivo de Deus, surge na história a cruz de Cristo,
Filho Unigênito"193. Ele veio para dar testemunho definitivo da aliança feita
por Deus "com todos e cada um dos homens"194. Nova e definitiva, esta
aliança "foi estabelecida ali, no Calvário, e não mais limitada a um só
povo, a Israel, mas aberta a todos e a cada um"195.

 No mistério pascal Deus manifesta misericórdia por seus filhos mais


carentes e aflitos. "A cruz, é como que um toque de amor eterno nas
feridas mais dolorosas da existência terrena do homem; é o cumprir-se
pleno do programa messiânico que, um dia, Jesus tinha formulado na
sinagoga de Nazaré"196. Este programa consistia "na revelação do amor
misericordioso para com os pobres, os que sofrem, os prisioneiros, os

192
Ibidem.
193
Ibidem.
194
Ibidem.
195
DM n. 7.
196
DM n. 8, enviando a Lc 4,18-21.
47

cegos, os oprimidos e os pecadores"197. Diante do mal e da morte que


afligem tantos irm…os, somos chamados a operar misericˆrdia para com
todos os crucificados da histˆria, at‡ o dia em que "Deus enxugarƒ todas
as lƒgrimas dos seus olhos; n…o haverƒ mais morte, nem pranto, nem
gemidos, nem dor, porque as coisas antigas ter…o passado"(Ap 21,4)198.

Para nosso estudo, ‡ significativo observar que a reflex…o converge num


ponto comum: a revelação de Deus Pai e seu amor salvífico. Este ponto estƒ
teologicamente implicado nos quatro aspectos e se torna expl•cito quando a
enc•clica diz:

Deus, tal como Cristo o revelou, n…o permanece apenas em estreita rela€…o com
o mundo, como Criador e fonte Šltima da exist†ncia. Ele ‡ tamb‡m Pai: estƒ
unido ao homem por ele chamado • exist†ncia no mundo vis•vel, mediante um
v•nculo ainda mais profundo do que o v•nculo da cria€…o. Œ o amor que n…o sˆ
cria o bem, mas faz com que se participe na prˆpria vida de Deus, Pai, Filho e
Esp•rito Santo. Efetivamente, quem ama deseja dar-se a si prˆprio.199

Do Pai nos vem toda vida, sendo ele a "fonte Šltima da exist†ncia", aquele
que nos chama a participar "na prˆpria vida de Deus". Com tal pensamento, a
enc•clica encaminha sua reflex…o • glorifica€…o pascal de Cristo – epifania da
vida em plenitude • qual o Pai convoca todos os homens. No cenƒrio doloroso
do Calvƒrio, a Šltima palavra do Pai n…o ‡ a morte do Filho, mas sua
ressurreição. Esta acena para a vida futura dos remidos e nos descobre o
sentido libertador da cruz. Assim, podemos discernir na paix…o do Filho, o amor
do Pai:

(A Šltima palavra do Deus da Alian€a) seria pronunciada, efetivamente, naquela


madrugada quando, primeiro as mulheres e depois os apˆstolos, ao chegarem
ao sepulcro de Cristo crucificado o encontram vazio, ouvindo pela primeira vez o
anŠncio: "Ele ressuscitou!" - Depois, repetir…o aos outros tal anŠncio e ser…o
testemunhas de Cristo ressuscitado. No entanto, mesmo na glorifica€…o do Filho
de Deus, continua a estar presente a Cruz que, atrav‡s do testemunho
messiŽnico do Homem-Filho que nela morreu, fala e n…o cessa de falar de Deus
Pai, que ‡ absolutamente fiel ao seu eterno amor para com o homem. Pois ele
197
DM n. 8.
198
Ibidem.
199
DM n. 7.
48

"amou tanto o mundo (e portanto o homem no mundo) que deu seu Filho
unig†nito, para que todo aquele que nele crer n…o pere€a, mas tenha a vida
eterna"(Jo 3,16). Crer no Filho crucificado significa "ver o Pai"(Jo 14,9), significa
crer que o amor estƒ presente no mundo e que este amor ‡ mais forte que toda
esp‡cie de mal em que a pessoa, a humanidade e o mundo est…o envolvidos.200

Insistindo novamente na ressurrei€…o, Jo…o Paulo II professa a


paternidade fiel de Deus que resgata o Filho e exerce compaix…o pela
humanidade:

O mist‡rio pascal ‡ Cristo no momento mais alto da revela€…o do imperscrutƒvel


mist‡rio de Deus. Œ precisamente ent…o que se verificam plenamente as
palavras pronunciadas no Cenƒculo: "Quem me v†, v† o Pai"(Jo 14,9). De fato,
Cristo a quem o Pai "n…o poupou" em favor do homem e que na sua paix…o e no
supl•cio da Cruz n…o encontrou a misericˆrdia humana, na sua ressurrei€…o
revelou a plenitude daquele amor que o Pai nutre para com ele e, nele, para com
todos os homens.201

A ressurrei€…o brota da misericˆrdia divina, no momento em que Deus a


exercita num ato escatolˆgico. Ressuscitando seu Filho, o Pai atesta sua
fidelidade ao amor que tem pelos homens e pronuncia um “n…o” definitivo ao mal
e • morte. Podemos, ent…o, proclamar a respeito de Cristo: "Este ‡ o Filho de
Deus, que na sua ressurrei€…o experimentou em si, de modo radical, a
misericˆrdia, isto ‡, o amor do Pai que ‡ mais forte do que a morte". E podemos
testemunhar, a respeito do Pai: "Este Pai não é Deus de mortos, mas de vivos
(Mc 12,27)" 202.

f) A Igreja, ícone da misericórdia divina

Considerando a miss…o da Igreja, a enc•clica situa a evangeliza€…o no


horizonte das inquietudes humanas para, depois, propor o apostolado da
misericˆrdia como oferta de salva€…o e realiza€…o plena da justi€a. Entre as
fontes de inquietude para o mundo de hoje, est…o: a viol†ncia, as armas
at•micas, a tortura, a amea€a biolˆgica, a mis‡ria, a fome, a mortalidade infantil

200
DM n. 7.
201
DM n. 8.
49

e o subdesenvolvimento. À origem de tudo, João Paulo II denuncia um sistema


de iniqüidade: os recursos militares que podem causar a destruição parcial da
humanidade; os perigos da civilização materialista, que aceita o primado das
coisas sobre a pessoa; a sujeição de indivíduos e de inteiras sociedades por
parte de quem dispõe da força e dos métodos de coação; as várias formas de
opressão que privam a pessoa de sua liberdade interior e da possibilidade de
manifestar publicamente suas convicções éticas, políticas e religiosas; o estado
de desigualdade entre ricos e pobres que, além de perdurar, aumenta. Estes são
os mecanismos da iniqüidade, que compõem a imagem do mundo de hoje,
enredado de tensões e contradições203.

Diante disto, a encíclica interroga: "Será suficiente a justiça?" Pois "muitas


vezes os programas que têm como ponto de partida a idéia de justiça e que
devem servir para sua atuação na convivência das pessoas, dos grupos e das
sociedades humanas, na prática, sofrem deformações. E embora continuem,
depois, a apelar para a mesma noção de justiça, a experiência demonstra,
todavia, que sobre ela predominam certas forças negativas, como o rancor, o
ódio e até a crueldade. Então, a ânsia por aniquilar o inimigo, por limitar a sua
liberdade ou mesmo por lhe impor uma dependência total, torna-se o motivo
fundamental da ação. E isto contrasta com a essência da justiça que, por sua
natureza, tende a estabelecer a igualdade e o equilíbrio entre as partes em
conflito. Esta espécie de abuso da idéia de justiça e a alteração prática da
mesma demonstram o quanto a ação humana pode afastar-se da própria justiça,
embora seja empreendida em seu nome"204. Esta prática trai o sentido
verdadeiro da justiça e implanta o regime do "olho por olho, dente por dente"(Mt
5,38). Em nome desta pretensa justiça, muitas vezes se aniquila o próximo, se
mata, se priva da liberdade e dos mais elementares direitos humanos - como
nos dá prova a História. Donde a conclusão do Papa:

202
DM n. 8.
203
Cf. DM n. 11
204
DM n. 12.
50

A experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a justiça, por si só,


não é suficiente. E mais: que ela pode levar à negação e ao aniquilamento de si
mesma, se não se permitir àquela força mais profunda, que é o amor, plasmar a
vida humana nas suas várias dimensões. Foi precisamente a experiência
histórica que, entre outras coisas, levou à formulação do axioma: summum ius,
summa iniuria. Esta afirmação não tira o valor à justiça, nem atenua o significado
da ordem instaurada sobre ela; mas indica apenas, sob outro aspecto, a
necessidade de recorrer às forças bem mais profundas do espírito, que
condicionam a própria ordem da justiça.205

Para que a justiça seja de fato instaurada, sem desvios ou alteração


prática, não pode referir-se apenas à ideologia, classe ou poder que a promove,
mas àquela reserva ética e espiritual que é o amor, compreendido
evangelicamente:

Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis, para não
serdes julgados; não condeneis, para não serdes condenados; perdoai, e vos
será perdoado. Dai, e vos será dado; será derramada no vosso regaço uma boa
medida, calcada, sacudida, transbordante, pois com a medida com que
medirdes sereis medidos também (Lc 6,36-38).

Não se trata de uma alusão romântica ao Evangelho, mas de se atuar a


misericórdia nas relações humanas e sociais, como fundamento último da justiça
verdadeira. Fiel ao amor que a motiva, a misericórdia aplaca a vingança, resgata
o outro e termina por realizar - em sentido pleno - a própria justiça. Esta é
proposta de João Paulo II a partir da Revelação e da ética evangélica que, por
sua vez, se fundam no agir salvífico do Deus de Jesus Cristo206. Por isso a Igreja
assume a misericórdia como imperativo evangélico de sua missão, em três
atitudes:

Professando-a em primeiro lugar como verdade salvífica necessária para uma


vida coerente com a fé; depois, procurando introduzi-la e encarná-la na vida
tanto dos seus fiéis, como, na medida do possível, na vida de todos os homens
de boa vontade. Enfim, professando a misericórdia e permanecendo-lhe sempre
fiel, a Igreja tem o direito e o dever de apelar para a misericórdia de Deus,
implorando-a perante todas as formas de mal físico ou moral, diante de todas as
ameaças que obscurecem o horizonte de vida da humandiade
contemporânea.207
205
Ibidem.
206
Cf. DM nn. 12 e 14.
207
Prólogo do capítulo VII: "A misericórdia de Deus na missão da Igreja".
51

Esta miss…o exige o empenho constante da Igreja, tanto em n•vel de


consci†ncia quanto de a€…o. Assim como a sociedade n…o garante a justi€a
referindo-a apenas • lei e aos mecanismos pol•ticos, tamb‡m a Igreja n…o pode
ser - de modo aut•nomo - fonte da misericˆrdia proclamada. A Igreja – qual
ministra salutis (servidora da salva€…o) – enra•za a sua proclama€…o na
Revela€…o do amor de Deus em Cristo, continuando assim o munus recebido
desde os apˆstolos:

Œ preciso que a Igreja de nosso tempo tome consci†ncia mais profunda e


particular da necessidade de dar testemunho da misericˆrdia de Deus, em toda
a sua miss…o, em continuidade com a tradi€…o da Antiga e da Nova Alian€a e,
sobretudo, no seguimento do prˆprio Cristo e dos seus apˆstolos.208

Temos, aqui, tr†s refer†ncias inspiradoras para o testemunho da


misericˆrdia por parte da Igreja: Alian€a, seguimento a Cristo, munus apostˆlico.
Todas, por sua vez, radicadas no amor salv•fico do Pai, fonte primeira da
misericˆrdia209. A miss…o da Igreja n…o se esgota nela mesma, mas no
testemunho universal da misericˆrdia que o Pai derrama sobre a humanidade.
Misericˆrdia realizada em Cristo e por ele confiada ao minist‡rio eclesial, para
que seja proclamada na verdade, encarnada na prática e implorada na oração.
Encontrar por estas vias a misericˆrdia divina, ‡ encontrar o rosto do Pai:

De acordo com as palavras que Cristo dirigiu a Felipe, a vis…o do Pai - vis…o de
Deus mediante a f‡ - tem precisamente no encontro com a sua misericˆrdia um
momento singular de simplicidade e verdade interior, como aquele que nos ‡
poss•vel ver na parƒbola do filho prˆdigo.210

Ao que Jo…o Paulo II acrescenta:

A Igreja professa a misericˆrdia de Deus, a Igreja vive dela na sua vasta


experi†ncia de f‡ e tamb‡m no seu ensino, contemplando constantemente a
Cristo, concentrando-se nele, na sua vida e no seu evangelho, na sua Cruz e
Ressurrei€…o, enfim, em todo o seu mist‡rio. Tudo isto, que forma a vis…o de

208
Ibidem.
209
O Pai é "fons magnifici ipsius amoris misericordis", e Jesus é o messias que nos abriu esta
fonte: "qui nobis ab eo est apertus" (DM n. 14): AAS 72(1980), p. 1223.
210
DM n. 13.
52

Cristo na f‡ viva e no ensino da Igreja, aproxima-nos da "vis…o do Pai" na


santidade da sua misericˆrdia.211

Deste modo, a frase de Cristo – "quem me v†, v† o Pai" (Jo 14,9) – pode
ser aplicada tamb‡m • Igreja. Sempre que algu‡m experimenta a misericˆrdia
mediante a sacramentalidade da Igreja, encontra o Pai e v† seu rosto. A
Palavra, os sacramentos (sobretudo a eucaristia e a penit†ncia), a piedade
aut†ntica (como o culto ao Cora€…o de Jesus) e a prƒtica do amor fraterno212,
fazem da Igreja um ícone da misericˆrdia divina. Isto se concretiza no seu
apostolado, especialmente quando ela ministra a reconcilia€…o, no perd…o e na
caridade dispensados. Assim, a Igreja mostra a todos quanto "infinita e
inexaur•vel ‡ a prontid…o do Pai em acolher os filhos prˆdigos que voltam • sua
casa"213. Da• o perd…o, a gratuidade e a solidariedade que devem caracterizar a
prƒxis eclesial, especialmente no encontro com os pobres, aflitos e
pecadores214, • imagem "daquele amor que ‡ paciente e benigno, como o ‡ o
Criador e Pai"215.

211
DM n. 13.
212
Elementos citados no mesmo n. 13.
213
DM n. 13.
214
Traços de uma pastoral da misericórdia, na opinião de L. CHIARINELLI: "L'enciclica Dives
in misericordia di Giovanni Paolo II", in F. TAGLIAFERRI: o.c., p. 12-13.
215
DM n. 13.
53

3. SENHOR QUE DÁ A VIDA

Sendo um documento prioritariamente pneumatológico, a encíclica


Dominum et vivificantem descreve amplamente a Pessoa e missão do Espírito
Santo. Isto significa reconhecer a ação do Espírito como verdadeiro
protagonismo salvífico: um agir que é missão-participação do Pneuma na ação
econômica da una Trindade. A encíclica, neste ponto, é sugestiva e equilibrada:
o texto descreve a missão do Espírito Santo com riqueza de indicações bíblico-
teológicas, sem descuidar a relação íntima das três Pessoas na comunhão
trinitária (pericorese). Assim, o texto esclarece tanto o agir específico do Espírito
Santo, quanto seu vínculo com o desígnio do Pai. Este vínculo está presente em
toda a obra do Paráclito: a criação do universo; a encarnação e unção do
Messias Jesus; o Pentecostes; a animação do apostolado da Igreja; os apelos
de conversão, santificação e comunhão despertados no coração das pessoas; o
dinamismo salvífico que opera dentro e fora do Corpo visível de Cristo.

a) O protagonismo do Espírito e sua procedência "a Patre"

Num primeiro olhar (sintético), recolhemos as notas mais luminosas com


as quais a encíclica caracteriza o Paráclito e sua missão. O Espírito "é Senhor e
dá a vida", ele que "falou pelos Profetas". Enquanto vivificador, é simbolizado na
Escritura como "água viva"(Jo 7,37) e "nascente de água a jorrar para a vida
eterna"(Jo 4,14). Nele experimentamos o "novo nascimento" que nos permite
"entrar no Reino de Deus" (cf. Jo 3,5). É Espírito de Vida, "no qual o
imperscrutável Deus uno e trino se comunica aos homens, constituindo neles a
nascente da vida eterna"216. Nele nos é concedido "encontrar o segredo do amor
e a força de uma nova criação"217; por isso o invocamos como "consolador,

216
Todas as expressões citadas até aqui estão em DV n. 1.
217
DV n. 2.
54

intercessor e advogado"218. "Procede do Pai e do Filho e com o Pai e o Filho ‡


adorado e glorificado: Pessoa divina, ele estƒ no cora€…o da f‡ crist… e ‡ a fonte
e a for€a dinŽmica da renova€…o da Igreja"219. Esp•rito de Comunh…o, ele "indica
os caminhos que levam • uni…o dos crist…os", qual "fonte suprema dessa
unidade, que prov‡m do prˆprio Deus"220.

Al‡m disso, ele impele a Igreja "a cooperar para que se realize o des•gnio
de Deus, o qual constituiu Cristo como princ•pio de salva€…o para o mundo
inteiro"221. "Por conseguinte, o Esp•rito Santo farƒ com que perdure sempre na
Igreja a mesma verdade, que os apˆstolos ouviram de seu Mestre"222. "Sendo o
prˆprio Jesus Cristo a suprema e mais completa revela€…o de Deus •
humanidade, ‡ o testemunho do Espírito que inspira, garante e convalida a sua
fiel transmiss…o na prega€…o e nos escritos apostˆlicos"223. Jesus o apresenta
como Esp•rito que fala o que ouve do Pai e esclarece a verdade, no presente e
no futuro da Igreja: "Quando vier o Esp•rito da Verdade, ele vos conduzirƒ •
verdade plena; porque ele n…o falarƒ por si mesmo, mas de tudo o que tiver
ouvido, e vos anunciarƒ as coisas que est…o para vir"(Jo 16,12s). De fato,
conduzir à verdade plena "‡ obra do Esp•rito da Verdade e fruto de sua a€…o no
ser humano"224. Assim, "a suprema e completa auto-revela€…o de Deus – que se
realizou em Cristo (…) – continuarƒ a ser manifestada na Igreja mediante a
miss…o do Consolador invis•vel"225. Ele atua em sintonia com a Reden€…o de
Cristo, "consolidando e desenvolvendo na histˆria os seus frutos salv•ficos"226.

218
DV n. 3, traduzindo o termo grego Paràkletos
219
DV n. 2.
220
Ibidem.
221
Ibidem.
222
DV n. 4.
223
DV n. 5.
224
DV n. 7.
225
Ibidem.
226
Ibidem.
55

Em seu mistério, o Espírito é Amor e Dom227: nele "Deus existe à maneira


de Dom", tanto na "permuta de amor recíproco entre as Pessoas divinas", como
na "doação da existência a todas as coisas, pela criação; e doação da graça aos
homens, mediante toda a economia da salvação"228. Agindo segundo o desígnio
do Pai, o Espírito consagra Jesus como "Messias" e "Servo de Deus"229,
acompanha-o em sua missão e inaugura "o tempo da Igreja" no dia de
Pentecostes230. Hóspede perfeito, "habita na Igreja e nos corações dos fiéis
como num templo"231. "Ele introduz a Igreja no conhecimento de toda a verdade,
unifica-a na comunhão e no ministério, edifica-a e dirige-a com diversos dons
hierárquicos e carismáticos, e a enriquece com seus frutos"232. Espírito da
Verdade, ele convence o mundo quanto ao pecado e à justificação que vem de
Deus233. Vento "que sopra onde quer"(Jo 3,16) ele "enche o universo" como
"Dom da vida nova e eterna" e "princípio da ação salvífica de Deus no
mundo"234. Ele é "o artífice" de nossa união com o Pai235.

Num segundo olhar (analítico) constatamos que se trata de uma


pneumatologia trinitária: a ação salvífica do Paráclito é referida à vontade do Pai
e à missão de Jesus. O Espírito realiza o desígnio do Pai numa tríplice ação: 1.
enche o universo e renova a face da terra (ação pneumática na criação); 2.
convence o mundo acerca do pecado e da salvação definitiva que vem de Deus
(ação pneumática na humanidade); 3. faz frutificar a redenção no coração dos
fiéis, santificando-os com seus dons (ação pneumática na comunidade dos
remidos). Esta tríplice ação se verifica centrada na pessoa de Jesus Cristo,

227
"Dois grandes temas da pneumatologia ocidental, elaborados por Agostinho, depois passados a
Tomás de Aquino, no qual se apóia o Papa" (J.A. DOMÍNGUEZ: "La teología del Espíritu
Santo", in ARANDA: o.c., p. 202, remetendo a Summa theologiae I, qq. 37-38).
228
DV n. 10.
229
DV 15-16, também 49-52.
230
DV n. 25.
231
DV n. 26, citando 1Cor 3,16; 6,19.
232
DV n. 25, enviando a Jo 16,13; Ef 4,11-12; 1Cor 12,4; Gal 5,22.
233
Cf. DV nn. 28 e 45.
234
DV nn. 67, 41 e 54 respectivamente.
235
DV n. 50.
56

como "plenitude da realidade salv•fica"236: ele ‡ o Verbo no qual tudo susbsiste,


encarnado por obra do Esp•rito Santo; ‡ o Redentor, ungido com o mesmo
Esp•rito; ‡ Cabe€a da Igreja, congregando os remidos num sˆ Corpo habitado
pelo Parƒclito237. "Jesus Cristo constitui a obra-mestra do Esp•rito Santo"238.

Aplicando ainda o olhar anal•tico, vemos que a enc•clica insiste no v•nculo


entre o Esp•rito e o Pai. Isto vem expresso, particularmente, em tr†s formula€‰es
aplicadas ao Pneuma: "receberƒ do que ‡ meu para vo-lo anunciar"239, "procede
do Pai"240 e "fonte viva"241. A primeira formula€…o - de meo accipiet et
242
annuntiabit vobis - ‡ de Jesus mesmo. Quando prometeu o Esp•rito aos
disc•pulos, disse: "Ele me glorificarƒ porque receberƒ do que ‡ meu e vos
anunciarƒ"(Jo 16,14). "E Jesus, como que para explicar a palavra 'receber' -
colocando claramente em evid†ncia a unidade divina e trinitƒria da fonte -
acrescenta: 'Tudo quanto o Pai tem ‡ meu. Por isso vos disse que ele receberƒ
do que ‡ meu, para vo-lo anunciar'(Jo 16,15)"243. Portanto, o Esp•rito prometido
comunica o que Cristo recebeu do Pai, voltando-se, assim, ao prˆprio Pai -
origem da unidade trinitƒria - como conclui a enc•clica: "Recebendo do que é
meu, ele (o Esp•rito Santo) vai, por isso mesmo, haurir daquilo que é do Pai "244.

A segunda formula€…o – Spiritus a Patre procedit (o Esp•rito que procede


245
do Pai) – ‡ igualmente tomada do Evangelho: "Quando vier o Parƒclito, que
vos enviarei de junto do Pai, o Esp•rito da Verdade que procede do Pai, ele darƒ
testemunho de mim" (Jo 15,26). A exegese observa que a primeira parte do
vers•culo ("enviarei de junto do Pai") fala da miss…o-envio do Esp•rito no mundo,

236
DV n. 64.
237
Cf. DV nn. 15-22, 49-52.
238
A. BARRACHINA CARBONELL: "El Espíritu Santo, artífice del misterio de Cristo", in A.
BENLOCH-A. BARRACHINA: Creo en el Espíritu Santo, Valencia, 1998, p. 203.
239
DV n. 7.
240
DV n. 8.
241
DV n. 10.
242
DV n. 7, texto latino: AAS 78(1986), p. 816.
243
DV n. 7.
244
Ibidem.
245
DV n. 8, texto latino: AAS 78(1986), p. 817.
57

denominado, por isso mesmo, o Paráclito246. Entretanto, a encíclica fixa sua


atenção na parte seguinte ("que procede do Pai"), considerada um aceno bíblico
à procedência eterna do Pneuma. É certo dizer que "o Espírito Santo é enviado
também pelo Filho"247 quando nos referimos à missão do Consolador, que nos
vem por intercessão do Filho e para dar testemunho do Filho (cf. Jo 15,26). Mas
quando explicitamos dogmaticamente a espiração eterna do Pneuma é ao Pai
que a atribuímos em sentido originário, pois o Pai é Principium sine principio
(Princípio sem princípio)248. É verdade que Jesus "envia" o Espírito. Mas "só o
envia de junto do Pai"249 - o que equivale a dizer que o Pai envia o Consolador
"em nome do Filho"250. "Portanto, o Pai envia o Espírito Santo com o poder da
sua paternidade, como enviou o Filho"251.

Temos, enfim, a terceira formulação: fons vivus252. A encíclica atribui ao


Espírito a qualidade de "fonte viva"253 ou "fonte eterna de toda dádiva que
provém de Deus"254. Esta afirmação explicita a identidade do Espírito Santo
como donum increatum255: Dom eterno de Deus, "fonte e início de toda boa
dádiva para as criaturas"256. Para melhor definir esta qualidade de fons vivus e
principium257, a encíclica evoca a imagem bíblica da "água viva" e sua
"nascente" no coração dos fiéis258. Observamos que a relação com Deus Pai

246
Cf. Biblia de Jerusalém: Jo 15,26 - nota "u".
247
DV n. 8.
248
DS 490.
249
DV n. 41, também nn. 9 e 30.
250
I. De La POTTERIE: La vida según el Espíritu, Salamanca, p. 95.
251
DV n. 8, onde João Paulo II favorece a correta interpretação do filioque, fundamental para o
diálogo com o Oriente cristão. Sobre isto, observa C. SCHÖNBORN: "Esta orientação bíblica
contribuirá de forma muito concreta a que saiam do impasse certas controvérsias teológicas,
como a do filioque. Ajudará, sobretudo, a adquirirmos um conhecimento mais profundo e vivo do
Espírito Santo, tornando-nos mais conscientes de sua presença e mais dóceis à sua ação" ("Es el
Señor y da la vida", in ARANDA, o.c., p. 161).
252
DV n. 10 mantém "fons vivus" nas traduções em vernáculo. Já o texto latino diz: "e fonte vivo
emanat ominis largitio data creaturis": AAS 78(1986), p. 819.
253
Ibidem.
254
DV n. 50. Reaparece ainda nos nn. 34, 37, 39, 41 e 58.
255
DV nn. 10 e 67: AAS 78(1986), p. 819 e 899.
256
DV n. 34.
257
"Fons vivus", ao n. 10; "principium", ao nn. 2 e 54: AAS 78(1986), p. 810 e 876.
258
DV n. 1, citando Jo 7,37 e 4,14.
58

está incluída na própria noção pneumatológica de fons vivus e principium,


quando lemos atentamente: o Espírito "é fonte de toda dádiva" (fons est omnium
largitionum) que, por sua vez, "provém de Deus" (provenientium a Deo)259. A
proveniência a Deo (e não simplesmente de Spirito) indica a "Origem paterna"
do próprio Paráclito e dos dons por ele elargidos260. Por isso, a encíclica reserva
exclusivamente ao Pai o título de primigenius fons - fonte primigênia
(originária)261 das graças e da vida trinitária. Para cada termo aproximativo, que
une Pai e Espírito na mesma economia salvífica, há um termo distintivo que
qualifica o Pai como fonte primigênia dos dons e da própria comunhão trinitária:
262
o Espírito é principium vitale, o Pai é principium vitae ; o Espírito é fons vivus,
o Pai é primigenius fons 263; o Espírito é donum264, o Pai é dator 265. Assim, João
Paulo II confirma a consubstancialidade divina do Pneuma - um só Deus com o
Pai e o Filho - ao mesmo tempo que discerne o Pai como princípio sem princípio
da vida divina (no âmbito da koinonia trinitária) e aquele por cuja iniciativa nos
vem a salvação, mediante Cristo, no Espírito (no âmbito da economia trinitária).

b) O “dar-se salv‚fico” do Pai, no Filho e no Esp‚rito

Em meio a muitas indicações bíblicas e teológicas, João Paulo II designa


a salvação com duas expressões: donatio e communicatio Dei: doação e
comunicação divinas266. Expressões sintéticas, alicerçadas na Revelação do
próprio Deus Trino, que se comunica ao nos criar, santificar e resgatar, em vista
da participação do homem na vida divina267. Este é o plano de Deus, que abraça
numa só historia salutis criação e redenção, Israel e as nações, cosmos e

259
DV n. 50, original latino: AAS 78(1986), p. 870.
260
H.U. von BALTHASAR: "Commento", in H.U.von BALTHASAR-Y.CONGAR: Lasciatevi
muovere dallo Spirito - enciclica sullo Spirito santo di Giovanni Paolo II, Brescia, 1986, p. 105.
261
DV n. 22: AAS 78(1986), p. 830.
262
Respectivamente DV nn. 2 e 54: AAS 78(1986), p. 810 e 876.
263
Respectivamente DV nn. 10 e 22, segundo o texto latino citado antes.
264
DV n. 41: AAS 78(1986), p. 857.
265
No contexto da trilogia, RH n. 20: AAS 71(1979), p. 310. Já DS 568 diz "donum donatoris".
266
DV nn. 11-14: AAS 78(1986), p. 819-822.
267
Cf. DV nn. 37 e 41.
59

pessoa humana, tempo e eternidade. Neste plano - convém ressaltar - a


salvação não se restringe à restauração de uma ordem original desfeita, nem se
basta com a oferta de alguma virtude emanada do Deus Onipotente268. Mais que
isso, salvação é a oferta que Deus faz de Si mesmo. Ele não nos dá algo
secundário, mas nos oferece a Si próprio em comunhão, segundo o Amor que o
constitui essencialmente:

Deus é agàpe, isto é, dom gratuito e total de Si. (...) A capacidade de amar de
maneira infinita, doando-se sem reservas e sem medida, é própria de Deus. (...)
Este Deus que revelou a Si mesmo, deseja, de um modo inefável e
incomparável, comunicar-se, dar-se! Este é o Deus da aliança e da graça.269

A restauração da ordem original, bem como a santificação da


humanidade e do cosmos, não se limitam a reparar a Criação ferida pelo
pecado, recuperando uma harmonia perdida no passado. Mas se orientam à
comunhão futura e definitiva entre Deus e o homem; comunhão que é destino da
Nova Criação e condição escatológica da humanidade reconciliada, quando
Deus será "tudo em todos"(1Cor 15,28)270. Assim nos comprovam as gestas
divinas cumpridas ao longo da história, culminadas na encarnação e na
ressurreição de Cristo.

Coerente com esta verdade gravada nas Escrituras, João Paulo II diz que
a oeconomia salutis nasce da doação e auto-comunicação divinas, isto é, do
dar-se salvífico de Deus. E mais precisamente, de Deus Pai:

O amor de Deus Pai, dom, graça infinita e princípio de vida, tornou-se visível em
Cristo e, na sua humanidade, tornou-se "parte" do universo, do gênero humano
e da história. Esta manifestação da graça na história humana, mediante Jesus
Cristo, realizou-se por obra do Espírito Santo, que é princípio de toda ação

268
As Escrituras não aceitam a idéia de alguma emanação semi-divina, derivada de uma
divindade antecedente, nem a existência de um salvador demiurgo, distinto e inferior ao Deus
absoluto. Toda ação criadora, libertadora e regeneradora provada na historia salutis é considerada
obra do Deus único e verdadeiro: cf. Dt 4,7; Is 63,8-9; Hb 1,1-4; 1Jo 1,1-2.
269
JOÃO PAULO II: Catequeses sobre o Pai n. 3 (10-3-1999); Catequeses sobre o Credo (11-9-1985) n. 7.
270
Como lemos em DV n. 59.
60

salvífica de Deus no mundo: ele, "Deus escondido"(Is 45,15) que como Amor e
Dom "enche o universo"(Sb 1,7).271

Nesta afirmação, os elementos pneumatológicos (Espírito, princípio da


ação salvífica de Deus no mundo) se vinculam àqueles cristológicos (Jesus,
manifestação histórica da graça), enraizados, uns e outros, no amor Dei Patris,
272
qui est donum, gratia infinita, principium vitae . O amor do Pai se dá
salvificamente no Filho e no Espírito Santo, fazendo jorrar de sua arcana
iniciativa a torrente de todas as graças salutares. Em outras palavras: por Cristo,
na unidade do Espírito Santo, acontece para nós a donatio salvifica Dei273.
Podemos dizer que o Pai é dom primigênio que se comunica em paternal
donatio, ao proferir sua Palavra e espirar seu Sopro. Neste sentido, a encíclica
segue o filão das Escrituras, nas quais "Deus de fato é o Pai. A Palavra é
Palavra de Deus, ou seja, do Pai. O Espírito é Espírito de Deus, isto é, do Pai. O
Pai é invisível e habita numa luz inacessível. O Verbo e o Espírito o revelam e a
ele conduzem. Ambos saem de sua boca"274. Palavra e Sopro, Filho e Espírito,
caracterizam o se donare gratuito e amoroso do Pai275.

O Filho é sua Palavra criadora, presente desde o início do mundo,


quando Deus criou o céu e a terra. No tempo estabelecido esta Palavra se
encarnou, tomando parte na vida humana (cf. Gn 1, Jo 1)276. Inserido na história,
Jesus Cristo se faz princípio de salvação para todos os que crêem, conduzindo-
os ao Pai. Ele é a suprema auto-comunicação de Deus aos homens. É o Verbo
que nos introduz no conhecimento de Deus. É o Filho obediente a quem o Pai
entregou todo o poder (exousía) para curar e libertar, ensinar e salvar, acolher e
perdoar, na medida de Sua paterna misericórdia. Jesus é o primeiro consolador

271
DV n. 54.
272
Ibidem: AAS 78(1986), p. 876.
273
DV n. 12: AAS 78(1986), p. 820.
274
Y. CONGAR: La Parola e il Soffio, Roma, 1985, p. 26.
275
O fato de atribuirmos ao Filho a kênosis histórica pela encarnação e cruz, e denominarmos o
Pneuma de Dom, "não exclui que seja próprio do Pai o amor e a doação originais, a que o Filho e
o Espírito Santo, cada um a seu modo, correspondem"(L.F. LADARIA: o.c., p. 311).
276
Cf. DV n. 33.
61

instituído pelo Pai em nosso favor: "se alguém pecar, temos como advogado
(parákleton) junto do Pai, Jesus Cristo, o Justo"(1Jo 2,1).

O Espírito Santo, por sua vez, age em sintonia com a missão do Filho,
sendo, também ele, dado pelo Pai - de quem procede eternamente. Se o Filho é
"aquele que foi ungido pelo Pai"277, o Espírito é a própria unção que consagra o
Messias e faz nele morada278. Se Jesus é o primeiro consolador que nos
anuncia a Boa-nova, o Espírito é o "outro Consolador, assegurando de modo
duradouro a transmissão e irradiação da Boa-nova revelada por Jesus"279. A
salvação que o Pai consumou em Jesus é, portanto, comunicada no dar-se
salvífico de Deus no Espírito Santo280. Filho e Espírito co-operam a redenção,
comunicando-nos o amor Dei Patris281:

A Redenção realizada pelo Filho nas dimensões da história terrena do homem -


consumada quando de sua "partida", por meio da cruz e da ressurreição - é, ao
mesmo tempo, transmitida ao Espírito Santo com todo o seu poder salvífico:
transmitida àquele que "receberá do que é meu" (Jo 16,14).282

Esta reflexão nos lembra a analogia proposta por Santo Irineu: Filho e
Espírito são as duas mãos do Pai, com as quais ele cria o universo, modela o
ser humano e regenera todas as coisas283. Com certa semelhança, João Paulo II
fala do dar-se salvífico do Pai em Cristo e no Espírito Santo. A missão do Filho e
a missão do Espírito (distintas e próprias, porém relacionadas) se realizam em
sintonia com o desígnio do Pai, como a encíclica demonstra em várias linhas:

277
DV n. 18.
278
Cf. ibidem.
279
DV n. 7, também nn. 14 e 64.
280
DV n. 11-12
281
DV n. 54: AAS 78(1986), p. 876.
282
DV n. 11.
283
IRINEU DE LYON: Adversus haereses IV, 20. In Sources Chrétiennes 140, Paris, 1965, p.
627.
62

 Jesus Cristo é a "suprema e completa auto-revelação de Deus"; esta, por


sua vez, "continuará a ser manifestada na Igreja mediante a missão do
Consolador invisível, o Espírito da verdade"284.

 Jesus é o Verbo encarnado, presente desde os albores do mundo como


Palavra criadora de Deus. O Espírito é a ruah Elohim que pairava sobre
as águas primordiais, em íntima relação com o Verbo285.

 No primeiro gênesis (princípio/geração), Verbo e Espírito marcaram "o


início do comunicar-se de Deus às coisas que cria", especialmente "ao
homem"286. Com o envio do Consolador em Pentecostes "começa então a
nova auto-comunicação salvífica de Deus, no Espírito Santo"287. "É um
novo princípio em relação ao primeiro: àquele princípio primigênio do dar-
se salvífico de Deus, que se identifica com o próprio mistério da
criação"288.

 O Filho nos introduz no conhecimento do Pai, sendo dele a Palavra


incriada e consubstancial. O Espírito perscruta as profundezas do mistério
divino289, se hospeda em nossos corações e nos inflama com o amor de
Deus290, sendo dele Caridade eterna e transformante291.

 Cristo consuma a redenção, oferecendo-se ao Pai em sacrifício pascal292.


O Espírito "encaminha para o Pai o sacrifício do Filho, introduzindo-o na
divina realidade da comunhão trinitária"293.

284
DV n. 7.
285
Cf. DV n. 12, que cita Gn 1,1-2.
286
DV n. 12.
287
DV n. 11.
288
DV n. 12, tema retomado nos nn. 13 e 31.
289
Cf. DV nn. 32, 34, 36, 38, 59.
290
Cf. DV n. 58.
291
Cf. DV n. 39.
292
Cf. DV n. 40.
293
DV n. 41.
63

 "A filia€…o por ado€…o divina nasce nos homens sobre a base do mist‡rio
da Encarna€…o; e, portanto, gra€as a Cristo, que ‡ o Filho eterno.
Todavia, o nascer ou renascer dƒ-se quando Deus Pai envia aos nossos
corações o Espírito de seu Filho. Œ ent…o que, na verdade, 'recebemos o
esp•rito de ado€…o filial, pelo qual clamamos Abbƒ, ˆ Pai' (Rm 8,15)"294.

 "Deus Pai enviou 'o prˆprio Filho em carne semelhante • carne pecadora
e, para expiar o pecado, condenou o pecado na carne'(Rm 8,3). No ponto
culminante do mist‡rio pascal, o Filho de Deus (…) apresentou-se no
meio dos apˆstolos, depois da ressurrei€…o, soprou sobre eles e disse:
Recebei o Esp•rito Santo"295.

O Filho e o Esp•rito s…o as hipˆstases com as quais o Pai atua a


salva€…o, doando-se a nˆs por eles e neles, na comunh…o da Una Trindade. Em
termos trinitƒrios, podemos dizer que a díade Cristo-Esp•rito (na sua bi-unidade)
participa, sem separa€…o nem confus…o, na auto-revela€…o do Pai (com o qual
s…o um sˆ Deus, na tri-unidade). Esclarecendo esta perspectiva diádica sugerida
na enc•clica, citamos o teˆlogo Serghei Bulgakov296:

A inseparabilidade e a inconfundibilidade das hipˆstases da d•ade significam, ao


mesmo tempo, a concretude inalterƒvel da sua co-rela€…o, na qual n…o pode
haver invers…o ou substitui€…o. A primeira n…o pode ocupar o lugar da segunda,
nem a segunda pode ocupar o lugar da primeira. Bem compreendida, esta
concretude refuta qualquer colora€…o de subordinacionismo. N…o diminui a igual
divindade do Verbo e do Esp•rito, nem desfaz sua distin€…o hipostƒtica; mas
implica no fato de que as hipˆstases s…o igualmente necessƒrias e
insubstitu•veis na auto-revela€…o divina do Pai.297

Nem confus…o, nem subordina€…o, mas relação Filho-Esp•rito numa


comunh…o diƒdica que, inserida no dinamismo trinitƒrio, os refere conjuntamente

294
DV n. 52, enviando a Gl 4,6, Rm 5,5 e 2Cor 1,22.
295
DV n. 57, ao final.
296
De Bulgakov citamos algumas linhas atinentes à díade Logos-Pneuma, que favorecem a
compreensão da encíclica. Não entramos no debate sobre a reflexão sofiológica deste teólogo.
297
S. BULGAKOV: Il Paraclito, Bologna, 1987, p. 343.
64

ao Pai. Com efeito, o Pai ‡ a hipˆstase primeira (em sentido fontal) que se dá no
Verbo proferido e no Pneuma espirado. Deste modo, "o carƒter trinitƒrio da
d•ade ‡ plenamente afirmado pelo princ•pio da monarquia, que ‡ convalidada
pela revela€…o diƒdica do Pai, na qualidade de arché e sujeito divino"298. Pois o
Pai ‡ "princ•pio de comunh…o, no amor"299.

Compreendendo assim, Logos (Cristo) e Pneuma (Esp•rito) s…o os


agentes diádicos da revela€…o-salva€…o decretada pelo Pai e executada – pela
participa€…o mesma deles – trinitariamente. A distin€…o das Pessoas n…o resulta
em confus…o, divis…o ou oposi€…o de seu ser e agir salv•fico, pois s…o
essencialmente um sˆ Deus, santo, onipotente e salvador300. Em sua miss…o
econ•mica, as divinas Pessoas executam uma Šnica salva€…o, para o bem da
inteira humanidade: os mesmos homens que receberam de Cristo "o poder de
se tornarem filhos de Deus, (…) t†m acesso ao Pai no Esp•rito Santo"301.
Configura-se, assim, a a€…o econ•mica da Trindade: a salva€…o nos vem da
iniciativa primig†nia do Pai; pela media€…o pascal do Filho; no Dom santificante
do Esp•rito. Acenando mais uma vez a esta perspectiva diƒdica, Jo…o Paulo II
diz:

O poder da Reden€…o perdura e desenvolve-se na histˆria do homem e do


mundo como que num duplo ritmo, cuja fonte se encontra no Pai eterno. De um
lado: o "ritmo" da miss…o do Filho, que veio ao mundo, nascendo de Maria
Virgem por obra do Esp•rito Santo; de outro lado, tamb‡m o "ritmo" da miss…o do
Esp•rito Santo, tal como foi definitivamente revelado por Cristo.302

Estas palavras sugerem a salva€…o como uma sinfonia trinitƒria,


executada sob a reg†ncia do Pai. Com suas duas mãos (a d•ade Filho-Esp•rito),
o Pai confere ritmo • reden€…o, fazendo-a perdurar na histˆria dos homens e do
mundo. Em resumo: reden€…o em "duplo ritmo" (díade), "cuja fonte se encontra
no Pai" (arché).

298
Idem, p. 341.
299
JOÃO PAULO II: Orientale lumen n. 15.
300
De acordo com o credo Quicumque, DS 75.
301
DV n. 52.
65

c) Nas profundezas de Deus há um amor de Pai

O Espírito Santo perscruta o íntimo de Deus e nos dá um duplo


testemunho: que "nas profundezas de Deus há um amor de Pai", e que as
mesmas "profundezas de Deus estão abertas, de algum modo, à participação
por parte do homem"303:

Deus invisível (cf. Col 1,15; 1Tm 1,17), na riqueza do seu amor, fala aos homens
como a amigos (cf. Êx 33,11; Jo 15,14-15) e conversa com eles (cf. Br 3,38),
para os convidar e os admitir à comunhão com ele.304

Para a fé cristã, a onipotência de Deus é uma onipotência amorosa; e a


transcendência de Deus é uma transcendência aberta305. Embora eterno e
distinto de tudo o que há no universo, Deus não permanece mudo e isolado em
sua majestade absoluta, mas se comunica ao ser humano em "generosa dádiva
de graça e amor"306. Neste se donare divino, manifesta-se a nós a Trindade: o
Pai, fonte de toda graça e promessa salvíficas (fons primigenius); o Filho,
Palavra criadora e regeneradora do Pai (Verbum); o Espírito, Amor que nos é
dado, vínculo de nossa comunhão com Deus Trino (Amor et Donum)307.
Salvação é ouvir a Palavra da verdade, acolher o Dom e comungar do amor do
Pai. Perdição é fechar-se à verdade, recusar o Dom e rejeitar o amor do Pai. Se
a missão do Filho é cumprir a salvação decretada pelo Pai e instaurar seu
Reino, a missão do Espírito Santo é convencer o mundo quanto ao pecado e
orientá-lo à justificação divina, guiando a humanidade no caminho da salvação.
Isto vem sintetizado na fórmula: ad Patrem - in Filio - per Spiritum Sanctum308.
Esta salvação - que liberta o mundo do pecado e nos conduz à vida em

302
DV n. 63.
303
DV nn. 39 e 34, respectivamente.
304
DV n. 34, citando Dei verbum n. 2.
305
Nos termos de DV nn. 33 e 34.
306
DV n. 31.
307
Cf. DV nn. 31-35.
308
DV n. 32: AAS 78(1986), p. 844. Também Orientale lumen n. 18.
66

plenitude - se mostra de modo inelud•vel no mist‡rio da cruz. Na cruz, o Filho de


Deus afronta a iniq•idade e a derrota com "a obla€…o do supremo amor, que
supera o mal de todos os pecados humanos"309.

(1) "Dolor Patris": expressão da compaixão divina

Jo…o Paulo II fala do amor salvífico de Deus em termos de verdadeiro


amor, que jamais permanece indiferente • iniq•idade e • rejei€…o por parte dos
homens. Se Deus decidiu livremente nos salvar, ‡ porque se interessa por todos
e cada um de seus filhos, numa solicitude que o move e comove realmente310.
Nas Escrituras, isto se expressa no "ciŠme" de Deus por seu povo:

N…o te prostrarƒs diante desses deuses e n…o os servirƒs, porque eu, Iahweh
teu Deus, sou um Deus ciumento, que puno a iniq•idade dos pais sobre os filhos
at‡ a terceira e quarta gera€…o dos que me odeiam, mas que tamb‡m ajo com
amor at‡ a mil‡sima gera€…o para aqueles que me amam e guardam os meus
mandamentos (’x 20,5-6).

A Revela€…o nos confirma o zelo de Deus (qannah) pelo bem das


criaturas e, em particular, pela humanidade. Zelo livre e conscientemente
empenhado no projeto de salvar a todos os homens, criando-os, libertando-os e
chamando-os • comunh…o na vida divina. Zelo amoroso, que culminarƒ no envio
do prˆprio Filho para a reden€…o de muitos. Jo…o Paulo II esclarece que esta
como€…o e zelo divinos n…o acontecem porque Deus seja ontologicamente
limitado. Se a como€…o, o zelo e a alegria - em Deus - expressam o seu pathos,
este ‡ precisamente um pathos divino311, sem qualquer ind•cio de car†ncia,
radicado unicamente na liberdade amorosa de Deus: “A concep€…o de Deus

309
DV n. 31.
310
Tenhamos presente, a este respeito, as palavras da Dives in misericordia nn. 4-6.
311
Assim pensavam os Padres que, "contrariando as mitologias pagãs, sublinham a apatheia de
Deus, sem negar - apesar disso - sua compaixão com o mundo que sofre. Neles, o termo apatheia
se opõe a patho - entendido como uma paixão involuntária e imposta de fora, ou ainda uma
paixão que seja conseqüência da natureza decaída. Contudo, certas vezes admitem pathè naturais
e inocentes, atribuídas a Jesus Cristo e inclusive a Deus, enquanto padece juntamente com os
homens"(CTI: "Teología-Cristología-Antropología", Parte II-B, 3, in Documentos, o.c., p. 260).
67

como ser necessariamente perfeit•ssimo exclui, por certo, em Deus, qualquer


esp‡cie de sofrimento, derivante de car†ncias ou feridas”312.

Contudo, pelo fato mesmo de ser Amor (ontolˆgico e n…o apenas


metafˆrico) hƒ em Deus uma vontade de salva€…o que – manifestada na historia
salutis – espera da humanidade a devida correspond†ncia, em igual amor (cf. Ef
1,4). Deus tem consci†ncia da prˆpria vontade salv•fica e deseja v†-la cumprida.
Por isso, n…o pode permanecer indiferente •s respostas de amor ou desamor
por parte dos homens313. Da• o zelo do Pai, disposto a dar e receber amor, no
dinamismo da salva€…o oferecida:

Nas profundezas de Deus hƒ um amor de Pai que, diante do pecado do homem,


reage - segundo a linguagem b•blica - at‡ o ponto de dizer: estou arrependido de
ter criado o homem. "O Senhor viu que a maldade dos homens era grande sobre
a terra… E o Senhor disse: Estou arrependido de os ter feito"(Gn 6,5-7). Mas o
Livro Sagrado, mais freq•entemente, fala-nos de um Pai que experimenta
compaix…o pelo ser humano, como que compartilhando a sua dor. Esta
imperscrutƒvel e indiz•vel "dor" de Pai, em definitivo, gerarƒ sobretudo a
admitƒvel economia do amor redentor em Jesus Cristo, para que - atrav‡s do
mysterium pietatis - o amor possa revelar-se, na histˆrica humana, mais forte
que o pecado.314

“Absolutamente livre e soberano na obra da cria€…o, Deus permanece


fundamentalmente independente do universo criado. Mas isto, de modo algum,
significa que ele fique indiferente em rela€…o •s criaturas. Pelo contrƒrio: ele as
guia com eterna sabedoria, amor e provid†ncia”315. Na cria€…o e reden€…o, ele
age como Pai: alt•ssimo, mas n…o distante; eterno, mas n…o indiferente. Mist‡rio
inefƒvel e ao mesmo tempo presente, ele se aproxima, revela seu Nome e nos
prop‰e Alian€a, porque ama verdadeiramente suas criaturas316. Sˆ ‡ poss•vel
conceber um dolor Patris sob o signo do amor Patris 317.

312
DV n. 39.
313
Cf. CTI: "Teología-Cristología-Antropología", Parte II-B, 4.2, in Documentos, o.c., p. 262.
314
DV n. 39.
315
JOÃO PAULO II: Catequeses sobre o Credo – Deus, Pai todo-poderoso (18-9-1985).
316
Cf. Gn 9,8-16; Gn 15; Êx 3,7-15; Êx 6,5; Dt 7,9; Jer 31,31-34.
317
O parágrafo n. 39 cita Patris amor e dolor patris numa espécie de dialética, na tensão entre
graça salvífica (da parte do Pai) e pecado (da parte dos homens). Esta dialética, visível no evento
da cruz, se resolverá por iniciativa de Deus, que manifesta o seu poder redentor ao operar
68

Esta dor (analogicamente pensada) exprime a real compaix…o de Deus


Pai: ele considera o pecado humano, tendo compaix…o pelas mis‡rias que
desfiguram a criatura que ele mesmo moldou • sua imagem e semelhan€a.
"Assim como a compaix…o ‡ uma perfei€…o nobil•ssima entre os homens, existe
tamb‡m em Deus - de modo eminente e sem qualquer imperfei€…o - a mesma
compaix…o: o inclinar-se por comisera€…o (e n…o por falta de poder), sendo
assim uma compaix…o conciliƒvel com sua eterna felicidade"318. Inclinando-se
benigno sobre os filhos pecadores, o Pai n…o dƒ vas…o • sua sancta ira, mas se
comove paternalmente:

Adonai ‡ compaix…o e piedade, lento para a cˆlera e cheio de amor; ele n…o vai
disputar perpetuamente, seu rancor n…o dura para sempre. Nunca nos trata
conforme nossos erros, nem nos devolve segundo nossas culpas. Como um pai
‡ compassivo com seus filhos, Iahweh ‡ compassivo com aqueles que o temem,
porque conhece nossa estrutura, ele se lembra do pˆ que somos nˆs (Sl 103,8-
9.13-14).

Em seu inscrutabilis dolor Patris, Deus n…o pronuncia um decreto de


condena€…o, mas um decreto de salva€…o. Este decretum salutis o Pai nos
comunica mediante o Verbum salutis, que ‡ seu Filho: "Deus amou tanto o
mundo, que lhe entregou seu Filho Šnico, para que todo o que nele cr† n…o
pere€a, mas tenha a vida eterna. Pois Deus n…o enviou o seu Filho ao mundo
para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele"(Jo 1,16-17).
Neste sentido, a "dor" do Pai n…o significa uma debilidade, mas indica a
onipot†ncia de seu amor, que se compadece da mis‡ria humana e reage ao
pecado com o poder da misericˆrdia. Nisto concorre o Esp•rito Santo, que sonda
o cora€…o do Pai e converte sua "dor" em "amor salv•fico":

No ser humano, a misericˆrdia inclui a dor e a compaix…o pelas mis‡rias do


prˆximo. Em Deus, o Esp•rito que ‡ Amor faz com que a considera€…o do
pecado se traduza em novas dƒdivas de amor salv•fico. (…) Nasce, assim, a

misericórdia: In Deo vero Spiritus-amor hanc peccati humani considerationem convertit in


novam salvifici amoris largitionem - AAS 78(1986), p. 852-853.
318
CTI: "Teología-Cristología-Antropología", Parte II-B, 5.1, in Documentos, o.c., p. 262.
69

economia da salvação, que plenifica a história humana com os dons da


Redenção.319

(2) O amor salvífico como "donatio" e "oblatio"

Iluminando ainda a questão da dolor Patris, a encíclica raciocina: "Deus,


na criação, revelou-se a si mesmo como uma onipotência que é Amor"320; tal
amor é "amor salvífico", e amor salvífico é amor que "sabe sofrer"321. João Paulo
II diz que, em Deus, onipotência é amor. E pelo fato de ser amor, Deus é livre ao
dar-se salvificamente, segundo o mesmo Amor que o qualifica ontologicamente
(cf. 1Jo 4,8). Pois amor verdadeiro é amor que se comunica em "generosa
dádiva"322. A encíclica usa os termos donum, donatio, communicatio e oblatio
para expressar o amor-ágape que define o mistério divino e sua relação com a
humanidade323. É neste sentido que o texto conclui que um autêntico amor
salvífico é capaz de sofrer, em livre atitude de compaixão. A encíclica diz:
amorem salvificum, aptum ad patiendum324, ou seja: "amor pronto/apto ao
padecimento" ou "amor que sabe sofrer"(como se traduz). O saber sofrer denota
a livre doação (aptum ad) e a compaixão de quem ama fielmente, sem esquivar-
se às exigências que o próprio amor comporta. Em Deus Pai, o amor aptum ad
patiendum é entendido como "amor capaz de debruçar-se sobre todos os filhos
pródigos, sobre qualquer miséria humana"325. Neste caso, a "dor" não é uma
fraqueza do sujeito que ama, mas sinal de sua capacidade de doação e atestado
de amor fiel326. Voltando-nos à Pessoa do Pai (como propõe a encíclica), o dolor

319
DV n. 39.
320
DV n. 37.
321
DV n. 45.
322
DV n. 31, em sintonia com o significado de agàpe e oblatio.
323
DV nn. 10-14, 23, 40: AAS 78(1986), p. 819-821, 830, 855.
324
DV n. 45: AAS 78(1986), p. 863.
325
Assim disse João Paulo II: DM n. 6.
326
Donatio e oblatio não implicam necessariamente tristeza ou negação do sujeito. No dar-se ao
outro está a realização de amar, numa entrega livre e comunional. Em Deus-Amor, esta doação é
felicidade perfeita.
70

Patris n…o ‡ um pathos ao modo das criaturas, mas express…o de "sua


onipot†ncia, que ‡ amor"327.

Como dissemos antes, o dolor Patris se inscreve no horizonte do amor


Patris - amor livre e pleno na perfei€…o de sua divindade. A compaix…o, alegria
ou como€…o de Deus Pai constituem affecti divinos, express…o de sua
paternidade zelosa para com os filhos328. Sendo Pai, ele nos ama com amor
livre, gratuito e total. Se todo amor aut†ntico comporta, por si mesmo, a
liberdade e gratuidade de amar (donatio/oblatio), em Deus esta liberdade e
gratuidade s…o perfeitas: livres da necessidade e da limita€…o (diversamente das
criaturas e da natureza ferida pelo pecado). Quanto mais livre, mais perfeito ‡ o
amor. Nas criaturas, esta perfei€…o ‡ comprometida pelo limite, sendo alcan€ada
somente com o aux•lio da gra€a. Em Deus, por‡m, o amor ‡ perfeito: quando se
compadece, o faz por livre decis…o de amar, numa obla€…o soberana. A
enc•clica traduz esta obla€…o soberana de Deus como o dar-se salvífico do Pai,
no Filho e no Espírito Santo329. Isto ‡ reafirmado quando Jo…o Paulo II insiste no
carƒter oblativo do amor, que faz da pessoa um dom para o outro, • semelhan€a
de Deus que ‡ Amor:

A •ntima rela€…o com Deus, no Esp•rito Santo, faz com que o homem tamb‡m
compreenda de uma maneira nova a si mesmo e • sua prˆpria humanidade.
Assim ‡ realizada plenamente aquela imagem e semelhan€a de Deus, que o ser
humano ‡ desde o princ•pio. Esta verdade •ntima do homem deve ser
continuamente descoberta • luz de Cristo, que ‡ o protˆtipo da rela€…o com
Deus; e, na mesma verdade, deve ser iguamente redescoberta a raz…o de o
homem n…o poder "encontrar-se plenamente a n…o ser no dom sincero de si
mesmo"(…). Isto acontece justamente por motivo da semelhan€a com Deus, a
qual "torna manifesto que o homem ‡ a Šnica criatura da Terra a ser querida por
Deus por si mesma", com a sua dignidade de pessoa e tamb‡m com sua
abertura • integra€…o e • comunh…o com os outros.330

327
DV n. 37.
328
A Comiss‚o Teol•gica Internacional, retomando os Padres da Igreja, fala de pathè em Deus.
Cf. CTI: “Teolog‰a-Cristolog‰a-Antropolog‰a”, Parte II-B, 3, o.c., p. 260.
329
Cf. DV nn. 11-14
330
DV n. 59. Cf. tambƒm o n. 34, que designa a possibilidade de o homem acolher a comunica„‚o
salv‰fica de Deus como "capacidade de alian„a", pedra-de-toque da antropologia crist‚.
71

Esta semelhança nos remete à sua própria matriz: o "Deus uno e trino,
que 'existe' em si mesmo como realidade transcendente de Dom inter-
pessoal"331. Existindo como dom, o amor se comunica sem reservas e se
entrega sem retrocessos332. "Efetivamente, quem ama deseja dar-se a si
próprio"333. Ainda que esta entrega comporte sacrifício, o amor permanece fiel e,
assim, encontra verdadeira felicidade. Tal oblatividade é típica do amor, seja da
pessoa humana (criada à semelhança de Deus), seja do Deus Trino (origem
incriada da semelhança)334. Ser como Dom e como Amor é "a eterna potência
do abrir-se de Deus uno e trino ao homem e ao mundo, no Espírito Santo"335.

(3) A distinção das Pessoas divinas

Entretanto, convém advertir que a reflexão de João Paulo II distingue o


dolor Patris (inefável dor do Pai) e o sacrificium Filii (sacrifício do Filho na cruz).
Ainda que o dar-se compassivo do Pai e o sacrifício do Filho nos testemunhem o
mesmo e inefável amor trinitário, não se confundem no modo de sua
manifestação, respeitando o que é próprio a cada uma das hipóstases (=
Pessoas divinas na Trindade). O amor do Pai se debruça sobre as misérias
humanas e sobre o sofrimento do Filho com verdadeira compaixão, donde se diz
que o Pai com-padece o sofrimento humano, não em sentido de negatividade
em Deus, mas como exercício perfeito de sua misericórdia. Usando uma
linguagem dialética, "os Padres denominam esta misericórdia perfeita em
relação às desgraças e dores humanas como Paixão de amor, de um amor que

331
Ibidem.
332
Comunicando-se às criaturas, o amor divino é compassivo. Contudo, como o mesmo amor não
experimenta reservas ou diminuição, é ilimitado. Temos, assim, a originalidade do amor divino:
paradoxalmente compassivo (na liberdade de dar-se aos homens) e imutável (em sua absoluta
constância). Interpretado à luz deste paradoxo, o dolor Dei confirma a natureza do amor divino,
ao mesmo tempo livre/oblativo e imutável/constante. Amor que não é apenas um atributo, mas
definição ontológica de Deus segundo o Novo Testamento (cf. 1Jo 1,4-8).
333
Como disse João Paulo II: DM n. 7.
334
Cf. P. SCAFARONI: "Descrizione dell'amore secondo la grande tradizione cristiana", in Alfa
Omega, Roma, 2(1998), p. 193-215.
335
DV n. 59.
72

na Paixão de Jesus Cristo se consuma e derrota o próprio sofrimento"336. A


entrega do próprio Filho é, por assim dizer, a oblação do Pai: "ao dar o Filho, no
dom do Filho, se exprime a essência mais profunda de Deus, o qual, sendo
Amor, é fonte inexaurível da dádiva"337. Ou como dirá Paulo: Deus Pai "não
poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos nós"(Rm 8,32)338.

Por outro lado a "morte, como vítima de amor na cruz" é uma doação
própria do Filho: "foi ele, sozinho, quem fez esta oblação"339. Podemos dizer que
o amor trinitário (agàpe) é essencialmente amor oblativo, que se doa e se
comunica (donatio/oblatio). Porém, uma é a oblação do Pai, outra a oblação do
Filho340. A encíclica refuta qualquer sombra de patripassianismo. Somente o
Filho se encarnou e foi crucificado, padecendo dor e morte humanas. Somente
Jesus é o Redentor crucificado "em cuja humanidade se concretiza o 'sofrimento
de Deus' "341.

(4) A cruz e o aspecto trinitário do "dolor Dei"

A Cruz de Cristo é, paradoxalmente, morte provocada pelo mal e morte


que derrota o mal. Paradoxo que só o amor salvífico da Trindade pode
resolver342. A mesma Cruz que sinaliza o pecado do mundo, é clamor de Deus à
consciência humana, ao denunciar a maldade e suscitar o arrependimento. É
aqui que João Paulo II medita sobre o aspecto trinitário do dolor Dei, 343,
contemplada no evento da cruz:

336
CTI: "Teología-Cristología-Antropología", Parte II-B, 5.1, in Documentos, o.c., p. 262.
337
DV n. 23. Mais: no dom da "vida nova", que o Pai concede ao Filho na ressurreição e a nós
pela graça, o Papa vê a doação do Pai: donatio sua paterna (RH n. 20): AAS 71(1979), p. 310.
338
João Paulo II emprega este pensamento paulino, ao falar do amor profundo de Deus pela
humanidade, na carta apostólica Orientale lumen n. 14.
339
DV n. 40.
340
O aspecto trinitário da questão é esboçado nos nn. 39 e 45.
341
DV n. 39. Portanto, somente de Jesus é que se pode afirmar em sentido próprio: Deus se
encarnou, Deus chorou, Deus foi crucificado, Deus padeceu humanamente.
342
Cf. DV n. 31.
343
Conforme DV nn. 39 e 45, a expressão dolor Dei indica o acento trinitário da reflexão. Tal
acento se conjuga - mas ao mesmo tempo de distingue - da questão do dolor Patris. Pois
73

Sabe-se que a consci†ncia n…o sˆ manda ou pro•be, mas julga • luz das ordens
e proibi€‰es interiores. Ela ‡ tamb‡m a fonte dos remorsos: o homem sofre
interiormente por causa do mal cometido. N…o serƒ este sofrimento como que
um eco long•nquo daquele "arrependimento por ter criado o homem" que o Livro
Sagrado - com linguagem antropomˆrfica - atribui a Deus? Um eco daquela
"reprova€…o" que, inscrevendo-se no "cora€…o" da Sant•ssima Trindade, se
traduz na dor da cruz, na obedi†ncia de Cristo at‡ • morte, em virtude do amor
eterno? Quando o Esp•rito da verdade, que "convence o mundo quanto ao
pecado", permite • consci†ncia humana participar naquela dor, ent…o a dor da
consci†ncia torna-se particularmente profunda, mas tamb‡m particularmente
salv•fica. E assim, mediante um ato de contri€…o perfeita, opera-se a convers…o
aut†ntica do cora€…o: a metánoia evang‡lica.344

Donde a interroga€…o:

O "convencer quando ao pecado", portanto, n…o deveria significar tamb‡m


revelar o sofrimento, revelar a dor inconceb•vel e inexprim•vel que, por causa do
pecado, o Livro Sagrado - na sua vis…o antropomˆrfica - parece entrever nas
"profundezas de Deus" e, em certo sentido, no prˆprio cora€…o da inefƒvel
Trindade? A Igreja, inspirando-se na Revela€…o, cr† e professa que o pecado é
ofensa a Deus. O que ‡ que, na imperscrutƒvel intimidade do Pai, do Verbo e do
Esp•rito Santo, corresponde a esta ofensa, a esta recusa do Esp•rito que ‡ Amor
e Dom? 345

A resposta se faz perceber ao longo da reflex…o. Antes de tudo, a


enc•clica recorda que a intimidade do Pai, do Filho e do Esp•rito Santo resulta de
sua pericorese, pois eles se relacionam como "Dom inter-pessoal"346, na
koinonia do mesmo "Amor criador e salv•fico"347. Œ a partir da comunh…o das
hipˆsteses que se esclarece o aspecto trinitƒrio do dolor Dei: o que "comove" o
amor do Pai se refere, de algum modo, ao Filho e ao Esp•rito; assim como o
sacrif•cio pascal do Filho, que se dƒ ao Pai, solicita a virtude do Esp•rito
Santo348. "A economia da salva€…o manifesta que o Filho eterno assume em sua
prˆpria vida o acontecimento kenótico do nascimento, da vida humana e da
morte na cruz. Este acontecimento – no qual Deus se revela e se comunica,

enquanto o dolor Patris significa analogicamente a compaixão do Pai, a reflexão sobre o dolor
Dei focaliza o amor da inefável Trindade.
344
DV n. 45.
345
DV n. 39.
346
DV n. 59.
347
DV n. 39.
348
Cf. DV nn. 39-41.
74

absoluta e definitivamente – afeta, de alguma maneira, o ser prˆprio de Deus


Pai, enquanto ele ‡ o Deus que realiza estes mist‡rios e os vive como prˆprios e
seus com o Filho e o Esp•rito Santo. Deus Pai n…o sˆ se comunica e se revela a
nˆs, livre e gratuitamente, no mist‡rio de Jesus Cristo, mas ‡ tamb‡m o Pai que
– com o Filho e o Esp•rito Santo - conduz a vida trinitƒria de modo profund•ssimo
e (segundo podemos entender) de um modo quase novo, jƒ que a rela€…o do
Pai e do Filho encarnado na consuma€…o do dom do Esp•rito Santo ‡ a mesma
rela€…o que constitui a Trindade"349.

O papel de cada Pessoa divina (hipˆstase) no evento pascal n…o produz


divis…o na Trindade, a qual permanece una em sua a€…o salv•fica. Com base •
comunh…o do Pai, do Filho e do Esp•rito Santo, Jo…o Paulo II se permite falar do
dolor Dei que ecoa no coração da Trindade; sobretudo quando contempla o
mist‡rio da cruz. Discernindo neste mist‡rio a a€…o da Trindade, o Papa
concentra seu olhar em dois pontos:

 O Amor consubstancial das tr†s Pessoas, "ofendido" pelo pecado


humano.
 A a€…o do Esp•rito, que encaminha ao Pai a obla€…o do Filho na cruz.

Quanto ao primeiro ponto – o amor consubstancial das três Pessoas –


Jo…o Paulo II interroga: se o pecado ‡ ofensa a Deus, o que corresponde a esta
ofensa no caso do Pai, do Filho e do Parƒclito?350 Ao que responde: a
"desobedi†ncia" e "transgress…o" dos filhos ‡ ofensa ao amor paterno de Deus
(no caso do Pai)351; a dor injusta da cruz, que perdura quando o ser humano
persiste no mal e rejeita o Evangelho, ofende a Cristo (no caso do Filho)352; e a
"recusa de aceitar a salva€…o que Deus oferece ao homem, mediante o Esp•rito

349
CTI: "Teología-Cristología-Antropología", Parte II-E, 3, o.c., p. 250.
350
Indagação do parágrafo n. 39, citado acima.
351
DV n. 36.
352
DV n. 41.
75

Santo" ofende o mesmo Esp•rito (no caso do Pneuma)353. Portanto, a ofensa


referida a cada Pessoa divina toca, na verdade, o amor essencial que as
mesmas Pessoas partilham em sua comunh…o.

Quanto ao segundo ponto – o Espírito que encaminha ao Pai a oblação


do Filho – o Papa diz:

O Filho de Deus, Jesus Cristo - como homem - na sua ora€…o ardente e na sua
paix…o, permitiu ao Esp•rito Santo, que jƒ tinha penetrado at‡ o mais profundo a
sua humanidade, transformá-la num sacrifício perfeito mediante o ato de sua
morte, como v•tima de amor na cruz. Foi ele, sozinho, quem fez esta obla€…o.
Como Šnico sacerdote, "se ofereceu a si mesmo, sem mƒcula, a Deus"(Hb
9,14). Em sua humanidade, Jesus era digno de tornar-se um tal sacrif•cio,
porque ele só era "sem mƒcula". Contudo, ofereceu-o "em virtude de um Esp•rito
eterno"(idem): o que equivale a dizer que o Esp•rito Santo agiu de um modo
especial nesta auto-doa€…o absoluta do Filho do homem, para transformar o
sofrimento em amor redentor.354

Em seguida, Jo…o Paulo II desenvolve este pensamento ao estilo da


Carta aos Hebreus. Lembra os antigos sacrif•cios, numa analogia que demonstra
a excel†ncia definitiva do sacrif•cio de Jesus. Mais uma vez, cita e esclarece a
a€…o espec•fica do Esp•rito Santo na obla€…o do Redentor:

No primeiro Testamento, por mais de uma vez se fala do "fogo do c‡u", que
queimava as oferendas apresentadas pelos homens355. Por analogia, pode-se
dizer que o Esp•rito Santo ‡ o fogo do céu que age no mais profundo do mistério
da cruz. Provindo do Pai, Ele encaminha para o Pai o sacrif•cio do Filho,
introduzindo-o na divina realidade da comunh…o trinitƒria.356

Assim, a enc•clica mostra a a€…o da Trindade no sacrif•cio pascal de


Jesus, sem confundir nem separar as divinas Pessoas. O texto b•blico usado
como base assegura o justo discernimento, como podemos constatar:

De fato, se o sangue de bodes e de novilhos, e se a cinza da novilha, espalhada


sobre os seres ritualmente impuros, os santifica purificando os seus corpos,

353
DV n. 46.
354
DV n. 40.
355
Cf. Lv 9,24; 1Rs 18,38; 2Cr 7,1.
356
DV n. 41.
76

quanto mais o sangue de Cristo que - mediante um Esp•rito eterno se ofereceu a


si mesmo a Deus como v•tima sem mancha - hƒ de purificar a nossa consci†ncia
das obras mortas para que prestemos um culto ao Deus vivo (Hb 9,13-14).

Cristo consuma sua obla€…o ao derramar seu sangue como Cordeiro sem
mancha () oferecendo-se "mediante um Esp•rito eterno"
() "a si mesmo, a Deus" ( isto ‡, ao Pai). Assim
como o Filho se dƒ ao Pai mediante o Esp•rito, o Pai sente compaix…o pelo Filho
crucificado, acolhendo a sua absoluta entrega em virtude do mesmo Esp•rito
Santo que ‡ – entre Pai e Filho – o vinculum caritatis por excel†ncia. "No
sacrif•cio da cruz toda a dor trinitƒria pelo pecado do mundo se reŠne numa
Šnica chama de amor, que queima tudo: tanto o Cordeiro do sacrif•cio, quanto a
culpa daqueles que o crucificaram e que, com tal ato, ofenderam sumamente ao
prˆprio Deus. Este fogo que, na dor da cruz queima a dor da ofensa ‡, pois, o
Esp•rito Santo, concedido aos homens como dom e penhor da concilia€…o com
Deus e de uma alian€a nova, de agora adiante indissolŠvel"357. Deste modo,
podemos ler corretamente a intui€…o de Jo…o Paulo II sobre “a imperscrutƒvel
dor de Deus” (inenarrabilis dolor Dei) que se inscreve misteriosamente “no
cora€…o mesmo da inefƒvel Trindade” (intra cor ipsum Trinitatis ineffabilis) 358.

(5) Deus é amor

Enfim, observamos que o tema do dolor Patris assinala, em Jo…o Paulo II,
uma mudan€a de paradigma teolˆgico: passagem do modelo aristot‡lico-tomista
ao modelo b•blico-semita. A linguagem b•blica referente ao pathos divino n…o ‡
vista apenas como referencial literƒrio, mas como referencial hermen†utico: uma
linguagem que, bem interpretada em seus recursos antropomˆrficos, ‡ apta a
nos revelar algo do mist‡rio de Deus, ao modo de analogia-anagogia.
Confirmando a inefƒvel compaix…o de Deus como caracter•stica do Ser divino, o
Papa segue o primado da Escritura sobre outras instŽncias de conhecimento

357
H.U. von BALTHASAR: Lasciatevi muovere dallo Spirito, o.c., p. 118.
358
DV n. 39: AAS 78(1986), p. 852.
77

filosófico-religioso, deslocando-se do (Deus é intelecção =


paradigma grego) ao  (Deus é amor = paradigma bíblico)359.
O amor de Deus, muito além de uma metáfora, é verdadeiro e pessoal amor,
nascido ex caritate Dei Patris, consumado na kênosis do Filho e espargido
universalmente pela caritas do Espírito Santo. Com esta concepção bíblica e
trinitária de Deus, João Paulo II se permite falar de dolor Patris, no horizonte do
amor Patris. A reflexão aristotélico-tomista sobre a impassibilidade divina é
confrontada com o Deus da revelação judaico-cristã, inclinando-se ante o
derradeiro mistério de Deus-Caritas.

Admitindo tal mistério, a reflexão de João Paulo II concilia a imutabilidade


e a liberdade de Deus, no paradoxo (sem contradição) desses divinos
atributos360. Imutabilidade, porque "a vida divina é tão inesgotável e imensa, que
Deus não necessita de modo algum das criaturas, e nenhum acontecimento na
criação pode acrescentar-lhe algo novo, ou fazer que seja ato algo que nele
tinha sido potência. Deus, portanto, não muda por diminuição, nem progresso.
'Daí que, não modificando-se por nenhuma destas vias, é próprio de Deus ser
completamente imutável'361. A Sagrada Escritura nos confirma isto, dizendo que
em Deus Pai 'não há variação nem sombra de mudança'(Tg 1,17). Entretanto,
esta imutabilidade do Deus vivo não se opõe à sua suprema liberdade, como o
demonstra claramente o evento da Encarnação. A afirmação da impassibilidade
de Deus pressupõe e inclui esta particular compreensão de imutabilidade (dita
acima). Mas não se deve concebê-la de modo que Deus permaneça indiferente
aos acontecimentos humanos. Deus, que nos ama com amor de amizade, quer
ser correspondido com amor. Quando seu amor é ofendido, a Sagrada Escritura

359
Sobre o paradigma bíblico na reflexão teológica da "dolor Patris" cf.: H.U. von
BALTHASAR: Lasciatevi muovere dallo Spirito, o.c., p. 116-118; Idem: Herrlichkeit III-2
(Neuer Bund), Einsiedeln, 1969, p. 196-211; M. FLICK-J. ALSZEGHY: Il mistero della croce,
Brescia, 1975; J. GALOT: Il mistero della sofferenza di Dio, Assisi, 1975; L.F. MATEO-SECO:
"Cristo, redentor del hombre", in A. ARANDA: o.c., p. 143-146.
360
O Pai opera "seu eterno amor e a sua misericórdia com toda a liberdade divina"(RH n. 1).
361
TOMÁS DE AQUINO: Summa theologiae, I, q.9, a.2, c.
78

fala da dor de Deus; se, ao contrário, o pecador se converte a ele, fala da sua
alegria (cf. Lc 15,7). 'É mais próxima à imortalidade a saúde de quem padece,
que o torpor de um sujeito insensível'362. Os dois aspectos (imutabilidade e
liberdade) se complementam mutuamente. Se um deles for descuidado,
desfigura-se o Deus da Revelação"363.

362
AGOSTINHO: "Vicinior est immortalitati sanitas dolentis, quam stupor non sentientis":
Enarratio in Psalmis 55,6 in PL 36, 651.
363
CTI: "Teología-Cristología-Antropología", Parte II-B, 4.1 e 4.2, o.c., p. 261-262.
79

Conclusão

Podemos sintetizar a theologia Patris da trilogia em sete pontos. Cada um


concentra aspectos relevantes do pensamento de Jo…o Paulo II, sempre em
conex…o com os demais. Formam, assim, um conjunto doutrinal complexo, •
base de indica€‰es b•blico-teolˆgicas articuladas ao longo da reda€…o364.

I
“Visio Patris”
Em Jesus, o rosto do Pai:

A Histˆria da Salva€…o – exatamente porque ‡ cumprimento da reden€…o


segundo "a medida do amor divino"365 – ‡ revela€…o da paternidade de Deus366.
Esta revela€…o come€a jƒ no Primeiro Testamento e atinge sua luz mƒxima com
a Boa-nova de Jesus. Nas antigas pƒginas, Israel reconhece a benevol†ncia e o
zelo de Jav‡367. Deus Onipotente ‡ invocado como "pai", especialmente no
contexto da elei€…o israel•tica, comprovada pela ternura de Deus por Israel, seu
primog†nito (cf. Jer 31,9). Tanto o povo em geral, quanto os salmistas e profetas
invocam a Adonai "nosso pai"368. Paternidade Šnica e transcendente, fundada na
proximidade libertadora de Jav‡, que trata Israel com entranhada compaix…o.
Deus ‡ para Israel um pai compassivo. Cuida do povo e lhe confirma a
esperan€a no Messias futuro, ao declarar: "Tu ‡s meu filho, eu hoje te gerei" (Sl
2,7).

364
Este conjunto complexo resulta do plano da trilogia, pensado pelo Papa, e também do estilo
"circular" destes documentos. De fato, a redação se aproxima mais da perspectiva contemplativa-
oriental (circular), que daquela argumentativa-latina (linear).
365
DM n. 6.
366
Além do que já tomamos do texto da trilogia, cf. JOÃO PAULO II: Exortação apostólica
sobre Penitência e Reconciliação n. 4.
367
Cf. DM n. 4, incluindo a sugestiva nota 52.
80

No Novo Testamento, a paternidade de Deus se desvela plenamente na


pessoa de Jesus de Nazar‡, o Filho "em quem vemos o Pai"369. Ele mesmo diz
proclamar uma palavra que "n…o ‡ minha, mas do Pai que me enviou"(Jo
14,24)370. Numa express…o sint‡tica, Jesus ‡ a epifania do Pai em meio aos
homens: "a imagem vis•vel do Deus invis•vel"(Col 1,15), o Filho que nos agracia
371
com a “vis…o do Pai” (visio Patris) . "Quem me v†, v† o Pai"(Jo 14,9) ‡ o
testemunho que Jesus dƒ de si mesmo, referindo sua vida ao des•gnio do Pai; e
"filho de Deus vivo"(Mt 16,16) ‡ o reconhecimento que ele recebe da parte dos
que cr†em372. Para Jesus (e por conseguinte, para seus disc•pulos) conhecer o
Pai significa discernir, acolher e corresponder • sua oferta salv•fica, em
obedi†ncia filial e comunh…o de amor. Vivendo esta obedi†ncia e este amor in
extremis (Jo 13,1) Jesus se faz Novo Ad…o e Primog†nito da humanidade
renovada373. Sˆ ele realizou fielmente o plano do Pai e satisfez • sua divina
paternidade374.

Deste modo, o Primeiro e o Novo Testamentos n…o cont†m duas


revela€‰es separadas, mas a gradativa revela€…o do Pai em momentos distintos
da historia salutis, antes e depois da encarna€…o do Verbo375. As antigas
Escrituras conduzem • novidade do Evangelho, compondo uma sˆ oeconomia
gratiae, decretada pelo Pai eterno, consumada no mist‡rio pascal de Cristo e
prolongada no tempo pelo sopro vivificante do Esp•rito376. No centro desta
oeconomia estƒ Jesus Nazareno: o Ungido de Deus, enviado "a proclamar o ano
da gra€a do Senhor"(Lc 4,19). Com efeito, Jesus n…o anuncia a si prˆprio, mas
sim o Reino de Deus "meu Pai e vosso Pai"(Jo 20,17). Reino que nele come€a e
se estende universalmente. A salva€…o ‡ comunicada "a todos e a cada um dos

368
Cf. Is 63,16; 64,7; Sl 27,10 entre outras passagens.
369
RH n. 7.
370
Citado em RH nn. 4, 12, 19.
371
DM n. 13: AAS 72(1980), p. 1218. Veja-se ainda DM n. 7.
372
Cf. DM n. 1 e RH n. 7.
373
Cf. RH n. 8.
374
Cf. RH n. 9.
375
Cf. DM n. 5.
376
Cf. DV nn. 7, 11, 12, 13, 31, 32, 34, 36, 38, 58, 59.
81

homens"377, conforme a Aliança estabelecida pelo novo Cordeiro: "não mais


limitada a um só povo, Israel, mas aberta a todos e a cada um"378. Pois "Deus
quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da
verdade"(1Tm 2,4)379, vindo a serem "os adoradores que o Pai procura"(Jo
4,23)380. Ademais, Deus é o Pai supremo "de quem toma nome toda família, no
céu e sobre a terra"(Ef 1,15). Todos os remidos participam das promessas, da
bênção e da eleição - dons que o Pai nos dá, mediante Cristo Salvador.

Selando a Nova Aliança em seu sangue, Jesus "se tornou nossa


reconciliação junto do Pai"381. O sacrifício pascal do Messias é atestado de sua
obediência filial "e, ao mesmo tempo, manifestação da eterna paternidade de
Deus, que por ele se aproxima novamente da humanidade, de cada um dos
homens"382. De fato, Cristo se uniu a nós por sua humanidade, revelou-nos "o
mistério do Pai e do seu amor" e deu-nos acesso à "filiação divina"383. Como diz
a Escritura: "o Verbo deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus"(Jo 1,12).
Esta filiação nos vem por Cristo, no dom do Espírito, com o qual clamamos a
Deus: Abbá, Pai (cf. Rm 8,15-16)384. Deus é de fato Pai de Jesus Cristo
(engendrando o Filho co-eterno) e Pai nosso pela adoção ("engendrando uma
nova família de reconciliados" 385).

Em virtude de sua própria paternidade, o Deus de Jesus Cristo se


caracteriza pela solicitude e misericórdia em favor da humanidade386. Sua
onipotência é uma "onipotência amorosa"; sua transcendência é uma
"transcendência aberta"387. Ele mesmo nos criou (e recriou em Cristo) "para a

377
RH n. 14.
378
DM n. 7.
379
Segundo RH n. 4.
380
Segundo RH n. 12.
381
RH n. 9.
382
Ibidem.
383
RH nn. 8 e 18, respectivamente.
384
Cf. RH n. 18.
385
JOÃO PAULO II: Exortação apostólica sobre Penitência e Reconciliação n. 4.
386
Cf. DM n. 6.
387
DV nn. 33 e 34, respectivamente.
82

plenitude da gra€a e da verdade"388. No diƒlogo de salva€…o que iniciou com os


homens, o Alt•ssimo se manifesta progressivamente como "Deus da Cria€…o"389,
"Deus da Alian€a"390, "Deus da Reden€…o"391, "Deus vivo"392, "Deus dos
vivos"393, "Deus das misericˆrdias"394 e finalmente, "Deus Pai"395. Aproxima-se,
fala aos homens como a amigos, revela seu nome e lhes prop‰e um pacto de
amor396. Com raz…o, ‡ invocado como Philànthropos – Deus amigo dos homens
397
. E para nos assegurar a plenitude de seus dons, "o Pai envia o Esp•rito com o
poder da sua paternidade, como enviou o Filho"398. Este Parƒclito garante que a
Reden€…o perdure na Histˆria, prolongando seus frutos de santidade e
reconcilia€…o399, at‡ o desfecho glorioso do Reino de Deus, no êschaton final.

II
«Primus fons Pater est»
O Pai, amor fontal:

Jo…o Paulo II v† no amor de Deus Pai a fonte originƒria da cria€…o,


reden€…o e santifica€…o: primus fons Pater est et dator vitae iam inde a principio
400
. Em termos b•blicos: "Deus, de fato, amou de tal modo o mundo, que lhe deu
o seu Filho unig†nito, para que todo o que nele cr† n…o pere€a, mas tenha a
vida eterna"(Jo 3,16)401. A trilogia retoma este primado do Pai na obra salv•fica
em muitas linhas. O Pai elegeu Israel para ser sinal de seu amor entre as

388
RH n. 18, também n. 13.
389
RH n. 9.
390
DM n. 7.
391
RH n. 9.
392
Ibidem.
393
DM n. 8.
394
DM n. 4.
395
DV n. 54, também RH nn. 4, 6, 7; DM 1-3, entres muitos outros parágrafos.
396
Como lemos em DV n. 34.
397
Cf. DM n. 2, também Orientale lumen n. 14.
398
DV n. 8.
399
Cf. DV nn. 25, 41, 54 e 67, especialmente.
400
RH n. 20: AAS 71(1979), p. 310.
401
Verso citado pelo Papa imediatamente no primeiro parágrafo da trilogia: RH n. 1.
83

nações402 e, por sua iniciativa, estabeleceu com a humanidade um "diálogo de


salvação"403. Ele é o Autor do plano redentor, executado pelo Filho; nele está "a
fonte divina da sabedoria e do amor"404. Em sua providência, escolheu Maria
para que o Verbo se manifestasse na carne; no mysterium Matris ele nos
405
comunica seu amor Patris . Ele, igualmente, "envia o Espírito Santo com o
poder de sua paternidade, como enviou o Filho"406; e com a unção do mesmo
Espírito constitui a Cristo "plenitude da realidade salvífica"407. Obediente, Jesus
"fala da paternidade de Deus e da própria filiação"408. Igualmente, a vida nova
dos filhos de Deus, manifestada em Cristo com a graça do Paráclito, é
"prometida e proporcionada a cada homem pelo Pai"409. O Pai está no princípio
e no fim da dinâmica salvífica, como reza esta máxima teológica: "a Patre - per
Christum - in Spiritu - ad Patrem (todo dom vem do Pai, mediante o Verbo
encarnado, na virtude do Espírito, que conduz novamente ao Pai)"410. João
Paulo II o confirma, quando diz:

A história salvífica - tanto a da humanidade inteira, quanto a de cada pessoa


humana, em cada época - é a história admirável da reconciliação. História pela
qual Deus, que é Pai, reconcilia o mundo consigo, no sangue e na cruz de seu
Filho feito homem, engendrando uma nova família de reconciliados.411

Considerando, doutra parte, o mistério de Deus Trino, a trilogia reconhece


o Pai como princípio sem princípio da vida trinitária. Seja no dinamismo ad intra
da koinonia, seja no dinamismo ad extra da economia. Assim, salvação é
definida como a "auto-comunicação" de Deus Pai412; mais precisamente: o dar-

402
Cf. DM n. 4.
403
RH n. 4.
404
RH n. 8.
405
Cf. RH n. 22.
406
DV n. 8.
407
DV n. 64.
408
DV n. 21.
409
RH n. 18.
410
A. HAMMAN: "La Trinità nella liturgia e nella vita cristiana", in Mysterium salutis 3, o.c., p.
172. João Paulo II usa formulação semelhante em DV n. 32 e Orientale lumen n. 18.
411
Exortação apostólica sobre Penitência e Reconciliação, n. 4.
412
DV nn. 11 e 23.
84

se salvífico do Pai no Filho e no Espírito Santo413. Para João Paulo II, Filho e
Espírito (a díade Logos-Pneuma) constituem o "duplo ritmo" da revelação-
salvação decretadas pelo Pai Onipotente414. Em sua bi-unidade, Filho e Espírito
participam (sem confusão nem substituição) da revelação do Pai, o qual é um só
Deus com eles (segundo a koinonia) e ao mesmo tempo a hipóstase primeira
(segundo a arché). O Filho Jesus é Palavra do Pai, por ele proferida desde todo
o sempre; o Espírito Santo é Sopro do Pai, por ele espirado desde todo o
sempre. Igualmente eternos e divinos, Palavra e Sopro vêm do Pai e a ele
conduzem: Jesus é o Filho "em quem vemos o Pai"415; o Espírito é o pedagogo
divino que "põe em nós os sentimentos do Filho e nos orienta para o Pai"416.
O primado salvífico do Pai é confirmado ainda nestes termos: amor Dei
417
Patris, qui est donum, gratia infinita, principium vitae . Assim, João Paulo II
professa a sancta monarchiae praedicatio, de acordo com a antiga tradição
418
apostólica . Em sintonia com esta tradição, somente o Pai é chamado primus
419
e primigenius fons , sendo reconhecido como arché da vida divina e fonte
primordial da salvação.

III
“Deus caritas est”
Deus é amor:

Mais que um Intelecto absoluto e muito além de uma Potência


inacessível, "Deus é amor"(1Jo 4,8). Sem negar a onisciência e a onipotência
divinas, João Paulo II insiste na verdade sobre Deus-caritas, o único e
reconhecido Deus da revelação judaico-cristã. No conjunto da trilogia, o Papa
freqüenta muitíssimo as Escrituras, segue os passos de São João na

413
Cf. DV n. 11-14.
414
DV n. 63.
415
RH n. 7.
416
RH n. 18.
417
DV n. 54: AAS 78(1986), p. 876.
418
Cf. F.A. PASTOR: "Principium totius Deitatis", in Gregorianum 79, 2(1998), p. 247-294.
419
RH n. 20: AAS 71(1979), p. 310 e DV n. 22: AAS 78(1986), p. 830, respectivamente.
85

contempla€…o do Verbo e explicita o sentido da ƒgape divina. No Novo


Testamento, dizer que "Deus ‡ agàpe () significa: Deus ‡, por sua
natureza, amor que se abaixa, que se volta aos homens, que os redime e,
assim, os conduz • sua prˆpria autenticidade"420. Esta compreens…o estƒ
presente em Jo…o Paulo II, que afirma o sentido relacional e oblativo da caritas
Dei:

Este amor ‡ capaz de debru€ar-se sobre todos os filhos prˆdigos, sobre


qualquer mis‡ria humana e, especialmente, sobre toda mis‡ria moral, sobre o
pecado.421

Esta manifesta€…o de Deus na oeconomia nos permite vislumbrar o amor


de doa€…o que o constitui na immanentia: "Deus uno e trino existe em si mesmo
como realidade transcendente de Dom inter-pessoal"422. Por isso, podemos
conceber a a€…o salv•fica de Deus como o "dar-se salv•fico do Pai, no Filho e no
Esp•rito Santo"423. Este se donare - gratuito, generoso, paternal de Deus – se
mostra singularmente no Filho, enviado com a un€…o do Esp•rito. De tal modo,
que a mesma caritas presente na intimidade trinitƒria, ‡ aquele amor fontal que,
provindo do Eterno Pai, se faz evento salv•fico em Jesus. Ver a Cristo na f‡, ‡
encontrar o Pai misericordioso, o "Deus Bom"(Mt 19,17) que inspira o amor
vivido e ensinado pelo Redentor424. No texto da trilogia, Jo…o Paulo II exprime
esta amor Dei Patris com palavras seletas:

- eterno amor e misericˆrdia425


- amor sempre pronto a perdoar426
- paternidade427
- eterna paternidade de Deus428

420
J. PFAMMATTER: "Attibuti e modi di agire di Dio nel NT", in Mysterium salutis 3, Brescia,
1969, p. 362.
421
DM n. 6, exatamente numa frase em que o Papa descreve a agàpe segundo o NT.
422
DV n. 59.
423
DV nn. 11-14.
424
Cf. RH nn. 7-10, DM nn. 1-5 e 7-9, DV nn. 3-20 e 54.
425
RH n. 1.
426
RH n. 8.
86

- amor eterno do Pai429


- amor sempre pronto a ir ao encontro do filho pródigo430
- doação paterna431
- consolação432
- benignidade433
- ternura / amor generoso434
- especial potência no amor435
- ternura, piedade, benevolência, compaixão436
- amor do Pai437
- fidelidade438
- fidelidade do Pai439
- plena afeição440
- profundo afeto441
- generosidade / magnanimidade442
- amor para com o filho 443
- amor que brota da própria essência da paternidade444
- solicitude445
- alegria446

427
RH n. 9.
428
Ibidem.
429
RH nn. 9 e 22.
430
RH n. 18.
431
RH n. 20.
432
DM n. 1.
433
Ibidem.
434
DM n. 4.
435
Ibidem.
436
DM n. 4, nota 52; novamente em DM n. 6.
437
DM n. 5.
438
DM n. 6, novamente no n. 7.
439
DM n. 6.
440
Ibidem.
441
Ibidem.
442
Ibidem.
443
Ibidem.
444
Ibidem.
445
Ibidem.
446
Ibidem.
87

- caridade paciente e benigna, que tudo espera, tudo suporta447


- amor que o Pai nutre para com ele (Jesus) e, nele, para com todos os
homens448
- amor do Pai, que ‡ mais forte do que a morte449
- amor misericordioso para com os pobres, os que sofrem, os prisioneiros,
os cegos, os oprimidos, os pecadores450
- prontid…o do Pai em acolher os filhos prˆdigos que voltam • sua casa451
- amor paciente e benigno, como o ‡ o Criador e Pai452
- amor misericordioso do Pai453
- permuta de amor rec•proco454
- doa€…o da exist†ncia (…) e da gra€a455
- doa€…o salv•fica de Deus456
- generosa dƒdiva da gra€a e do amor457
- onipot†ncia amorosa458
- comunh…o459
- onipot†ncia que ‡ amor460
- amor salv•fico461
- Amor criador e salv•fico462
- amor de Pai463
- compaix…o pelo ser humano464

447
Ibidem, conjugando o conceito hebraico hesed com a agàpe neo-testamentária.
448
DM n. 8
449
Ibidem.
450
Ibidem.
451
DM n. 13.
452
Ibidem.
453
Ibidem.
454
DV n. 10.
455
Ibidem.
456
DV n. 12.
457
DV n. 31.
458
DV n. 33.
459
DV n. 34.
460
DV n. 37.
461
DV n. 39.
462
Ibidem.
463
Ibidem.
88

- amor salvífico, que sabe sofrer465


- dom, graça infinita, princípio da vida466

Numa seleção mais restrita, João Paulo II usa cinco termos nos quais
convergem estes vários matizes do amor de Deus:

- filantropia (philanthropia) 467


- misericórdia (misericordia) 468
- doação (se donare, donatio) 469
- comunicação (communicatio) 470
- oblação (oblatio) 471

Situadas no horizonte soteriológico, estas palavras se conectam entre si,


todas analogicamente ligadas à agàpe neo-testamentária (. A propósito,
cabem aqui duas observações: 1) Embora algumas destas palavras descrevam
também o amor essencial da Una Trindade, a trilogia as emprega
prioritariamente para expressar o amor eterno e pessoal de Deus Pai. 2) Na
mesma trilogia, o binômio caritas-agàpe está teologicamente vinculado ao
binômio oblatio-kênosis, em fidelidade ao conceito de amor presente no Novo
Testamento. Pois o fato da redação preferir "encarnação" a "kênosis" não
compromete o aspecto kenótico da revelação do amor divino, compreendido
pelo Papa nos termos: se donare, donum, donatio, caritas e oblatio 472.

464
Ibidem.
465
DV n. 45.
466
DV n. 54.
467
DM n. 2: AAS 72(1980), p. 1180.
468
DM n. 4, entre outros: ibidem, várias vezes às pp. 1186-1210.
469
DV nn. 11-14: AAS 78(1986), p. 819-821
470
DV n. 23: ibidem p. 830.
471
DV nn. 31 e 40: ibidem p. 830 e 855.
472
Nos mesmos parágrafos que acabamos de indicar.
89

Assim, João Paulo II não só reafirma a revelação neo-testamentária do


amor divino, mas insiste no seu caráter histórico-existencial473. O amor Dei
Patris não é uma potentia incapaz de tocar a criatura humana, nem tampouco
uma qualidade divina entre outras. Mais que isso, é a qualidade essencial de
Deus, enquanto ele mesmo é "Amor criador e salvífico"474. Ao mesmo tempo
inefável e manifesto, eterno e presente no tempo dos homens, este amor se
mostra na auto-comunicação e no dom de si do próprio Deus475. Amor refletido
no Universo, visível na Encarnação e consumado na Páscoa do Senhor. Graças
à caritas Dei, a humanidade pode experimentar em seu peregrinar histórico a
regeneração e a reconciliação com o Pai, por Cristo, no Espírito Santo. Eis a
divina philanthropia, que abraça a humanidade em Aliança e transforma a
história humana em História de Salvação. Em João Paulo II, esta compreensão
bíblico-soteriológica do amor divino tem primazia sobre outras instâncias de
conhecimento filosófico-metafísico, ocupando lugar central no seu magistério.
Para ele, o amor de Deus Pai é aquele amor salvífico que seu Filho praticou e
ensinou (Mt 5-6), que Paulo enalteceu (1Cor 13) e que João experimentou,
indicando-lhe a fonte (1Jo 4)476.

A partir desta perspectiva bíblico-salvífica, João Paulo II faz uma


afirmação antropológica: define o ser humano como ser-de-doação, que se
realiza pelo "dom sincero de si", abrindo-se "à integração e à comunhão com os
outros"477. Para isto fomos criados à semelhança de Deus Trino, que se dá
eternamente na relação inter-pessoal que une Pai, Filho e Espírito Santo478; e se
dá também a nós na sua presença salvífica e comunional479. Confirma-se,
assim, o caráter oblativo do amor, seja do ser humano (criado à semelhança de
Deus), seja do próprio Deus (origem incriada da semelhança). Para João Paulo

473
Segundo afirmação de DM n. 1.
474
DV n. 39.
475
Como lemos em DV n. 23.
476
DM nn. 5- 7.
477
DV n. 59.
478
Cf. Ibidem, como citamos linhas acima.
479
Cf. RH nn. 8-10, DM nn. 4, DV nn. 11, 22, 23.
90

II, desta caridade divina nasce o movimento de amor redentor que,


transbordando de sua eterna fonte, se derrama copiosamente sobre a família
humana e toda a criação. Este é o único amor capaz de renovar todas as coisas
e elevar a pessoa humana à liberdade gloriosa dos filhos de Deus (cf. Ap 21,5;
Rm 8,21).

IV
“Pater misericordiarum et Deus totius consolationis”
O Deus consolador:

Reconhecido como filantropia, doação, comunicação e oblação480, o amor


de Deus se manifesta, especialmente, quando considera o mal e o pecado do
mundo e, movido pela compaixão, se inclina benigno sobre toda miséria
humana, para libertar e resgatar o ser humano, restaurando-o na sua graça. É
"amor maior que o pecado, que a fraqueza e a caducidade do que foi criado (cf.
Rm 8,20), mais forte que a morte; é amor sempre pronto a erguer e a perdoar,
sempre pronto para ir ao encontro do filho pródigo, sempre em busca da
'revelação dos filhos de Deus'(Rm 8,19) que são chamados à glória futura"481. A
esta "especial potência do amor divino"482, a Revelação denomina misericórdia.
Provinda da paternidade mesma de Deus483, ela se mostra nos atos de amor
executados ao longo da História salvífica: a promessa feita aos Patriarcas, a
libertação dos israelitas da escravidão do Egito, a travessia do deserto, a
restauração de Israel após o exílio, a consolação proferida pelos profetas, e a
Aliança continuamente proposta por Javé 484.

Além destes fatos, a misericórdia se desdobra em muitas expressões de


carinho e zelo de Javé, que trata os filhos de Israel como seus filhos.

480
Cf. respectivamente: DM n. 2, DV nn. 11-14, DV n. 23, DV nn. 31 e 40.
481
RH n. 18.
482
DM n. 4.
483
Cf. DM n. 3.
484
Cf. Gn 5; Gn 9,8-17; Êx 3 e 34,6; Jz 3,7-9; 1Sm 8,22-53; Mq 7,18-20; Is 1,18 e 51,4-16; Br
2,11-3,8; Ne 9. A maioria dessas passagens vem indicada na DM n. 4.
91

Examinando estas express‰es, Jo…o Paulo II recolhe a semŽntica do amor


divino que estƒ nas Escrituras judaicas. Ele destaca o verbo hamal e os termos
485
hus, emet, hesed e rahamim . "O conceito de misericˆrdia no Primeiro
Testamento inclui o conteŠdo do verbo hamal, que literalmente significa 'poupar'
(o inimigo), mas tamb‡m 'manifestar piedade e compaix…o' e, por conseguinte,
perd…o e remiss…o da culpa. O termo hus exprime igualmente piedade e
compaix…o, mas isso sobretudo em sentido afetivo"486. Emet ‡ firmeza,
seguran€a e solidez; caracteriza o amor de Deus como seguro e constante,
firme na sua ternura487. Hesed, por sua vez, "indica uma profunda atitude de
bondade. Quando esta disposi€…o se estabelece entre duas pessoas, estas
passam a ser n…o sˆ ben‡volas uma para com a outra, mas ao mesmo tempo
reciprocamente fi‡is por for€a de um compromisso interior, portanto, tamb‡m em
virtude de uma fidelidade para consigo próprias. Se ‡ certo que hesed significa
tamb‡m gra€a ou amor, isto sucede precisamente em base a tal fidelidade"488.
Juntando estes dois termos, a Escritura cunhou a express…o hesed we'emet: o
amor e a fidelidade do Deus da Alian€a, comprometido pessoalmente no pacto
estabelecido com Israel (cf. Ez 36,22). Por causa deste amor fiel, muitas vezes
Jav‡ vai al‡m da justi€a legal: supera o pecado com o poder da sua gra€a e
refaz a Alian€a, n…o sˆ exteriormente (nos termos da Lei), mas interiormente (na
consci†ncia dos israelitas).

Outro termo usado nas Escrituras "para definir a misericˆrdia ‡ rahamim.


O matiz de seu significado ‡ um pouco diverso daquele de hesed. Enquanto
hesed acentua as caracter•sticas da fidelidade para consigo mesmo e da
responsabilidade pelo prˆprio amor (que s…o caracter•sticas em certo sentido
masculinas), rahamim – jƒ pela prˆpria raiz – denota o amor da m…e (rehem =
ventre materno). Do v•nculo mais profundo e originƒrio, ou melhor, da unidade
que liga a m…e ao filho, brota uma particular rela€…o com ele, um amor

485
DM n. 4, incluindo a longa "nota 52".
486
Ibidem.
487
Ibidem: nota 52.
488
DM n. 4, nota 52.
92

particular. Deste amor, podemos dizer que é totalmente gratuito, não fruto de
merecimento e que, sob este aspecto, constitui uma necessidade interior: é uma
exigência do coração"489. Todos estes termos exprimem a riqueza
transcendental da misericórdia divina: perdão das culpas (hus), piedade (hamal),
firmeza na ternura (emet), amor fiel a si mesmo (hesed) e amor entranhado
(rahamim). Atribuídos ao Deus Único, estes matizes da misericórdia delineiam a
paternidade de Javé, que se manifesta no amor por suas criaturas (em geral) e
na eleição israelítica (em particular): "Ele é para eles Pai, dado que Israel é seu
filho primogênito"490.

Voltando-se, então, ao Novo Testamento, o Papa observa que "Cristo


revela o Pai na mesma perspectiva, contando com um terreno já preparado,
como o demonstram numerosas páginas dos escritos do Primeiro
Testamento"491. Depois de retomar os cânticos de Zacarias e de Maria, que
louvam o Deus da Aliança (cf. Lc 1,46-55.68-79), João Paulo II concentra a
missão de Jesus na revelação do Pai misericordioso:

"Deus que é rico em misericórdia"(Ef 2,4) é aquele que Jesus Cristo nos revelou
como Pai. Foi o seu próprio Filho quem, em si mesmo, no-lo manifestou e deu a
conhecer (cf. Jo 1,18; Hb 1,1ss). Convém lembrar, a respeito, o momento em
que Felipe, um dos doze apóstolos, dirigindo-se a Cristo lhe disse: "Senhor,
mostra-nos o Pai e isso nos basta"; e Jesus respondeu-lhe: "Há tanto tempo que
estou convosco e tu não me conheces? Quem me vê, vê o Pai"(Jo 14,8-9).492

Prosseguindo, a encíclica Dives in misericordia retoma a declaração


messiânica de Jesus na sinagoga de Nazaré e as parábolas da misericórdia,
segundo Lucas e Mateus493. Dentre estas, o Papa escolhe a parábola do filho
pródigo, interpretada como parábola do Pai misericordioso. A reflexão segue
quatro passos: 1) o significado de aliança contido na relação entre pai e filho; 2)
o acento dado à dignidade interior do filho, antes perdido, depois reencontrado;

489
Ibidem: nota 52.
490
DM n. 4.
491
DM n. 5.
492
DM n. 1.
493
Cf. DM 3-5 e suas respectivas indicações bíblicas.
93

3) a estrita justiça, limitada; 4) o encontro com o Pai na medida da sua


misericórdia, ilimitada. Em sua abordagem, João Paulo II passa da terminologia
(AT) à analogia (NT) "que permite compreender mais plenamente o próprio
mistério da misericórdia, como drama profundo que se desenrola entre o amor
do Pai e a prodigalidade e o pecado do filho494. O pai que reparte a herança com
o filho e que, depois, o espera retornar, acolhendo-o com perdão e alegria,
retrata o Deus revelado por Jesus: "não há dúvida de que, naquela simples mas
penetrante analogia, a figura do pai nos revela Deus como Pai" 495.

Além das parábolas, esta revelação do Pai é reforçada pela práxis de


Jesus, que acolhe, cura, perdoa e liberta os homens. Ele "revela mais
plenamente o Pai, que é Deus rico em misericórdia, tornando-se para as
pessoas o modelo de amor misericordioso para com os outros",
preferencialmente "em relação aos que sofrem, os infelizes e os pecadores"496.
Por ele, o "Pai das misericórdias e Deus de toda consolação" se aproximou e
"visitou o seu povo" (2Cor 1,3; Lc 7,16).

Podemos dizer que Jesus "é, em certo sentido, a misericórdia"497. As


perfeições invisíveis de Deus "se tornam visíveis em Cristo e por meio dele, por
intermédio de suas ações e palavras e, por fim, mediante sua morte na cruz e a
sua ressurreição"498. Neste sentido, o mistério pascal é o ponto culminante da
revelação da misericórdia de Deus, permitindo-nos descobrir "a profundidade
daquele amor que não retrocede diante do extraordinário sacrifício do Filho, para
satisfazer à fidelidade do Criador e Pai para com os homens, criados à sua
imagem e escolhidos neste mesmo Filho desde o princípio, para a graça e a
glória"499. Na cruz de Cristo deu-se o "toque de amor eterno nas feridas mais

494
DM n. 5.
495
DM n. 6.
496
DM n. 3.
497
DM n. 2.
498
Ibidem.
499
DM n. 7.
94

dolorosas da existência terrena do homem"500. A misericórdia se realiza como


amor fiel e operante, que perdoa e regenera a humanidade. Como sintetiza João
Paulo II: misericórdia é o amor do Pai in actu salvationis (em ato de salvar)501.

V
“Inscrutabilis dolor Patris”
O amor compassivo do Pai:

Já no início da trilogia, João Paulo II afirma que Deus manifesta "seu


eterno amor e a sua misericórdia com toda a liberdade divina"502. Este amor e
misericórdia se mostram atuantes na História da Salvação, revelando a Deus
como Pai benevolente, que salva e liberta a humanidade. Tenhamos presente, a
propósito, os textos citados acima, onde o Papa descreve a misericórdia divina
como "o amor de Deus in actu salvationis"503. Deus nos ama com amor "criador
e salvífico"504, manifestando um zelo paternal pelas criaturas e particularmente
pela pessoa humana, à qual concede a graça da adoção filial. O Papa articula
este amor (constante e eterno) com a liberdade absoluta de Deus, que decide
amar-nos livremente, como Ele mesmo nos demonstra nos eventos da Aliança,
da Encarnação do Verbo e da Redenção. Neste sentido, a encíclica Dominum et
vivificantem desenvolve uma reflexão significativa: esclarece que o Deus
Onipotente vem a nós como Deus Compassivo505. Em certo momento, a

500
DM n. 8.
501
DM n. 4: AAS 72(1980), p. 1187.
502
RH n. 1, abrindo a trilogia.
503
DM n. 4, comentada no quarto ponto desta Conclusão.
504
DV nn. 39 e 45.
505
O ensino de João Paulo II sobre o dolor Patris toca um ponto candente da teologia
contemporânea, ao considerar um aspecto da misericórdia divina não explorado pela teologia
tomista. Esta segue a afirmação aristotélica da "imutabilidade" (impassibilidade) divina, dizendo
que a alegria, dor ou compaixão em Deus acontecem "secundum effectum, sed non secundum
passionis affectum" (Summa theologiae I, q. 21, a.3). Por outro lado, a linguagem bíblica - que
João Paulo II interpreta ao modo de "analogia" e não como simples "metáfora" - sugere  em
Deus. Respeitando o primado das Escrituras, também alguns Padres admitem  divinas,
livres e perfeitíssimas, distintas das paixões de natureza humana, tocadas pelo pecado. Neste
sentido, o Papa segue o primado das Escrituras, aproximando-se menos da afirmação tomista, e
mais daquela patrística. Mesmo assim, é admirável que "o Papa proponha, sem dificuldades, um
95

enc•clica fala de amor salvificus, aptus ad patiendum506. Por outro lado, o


mesmo Papa insiste na compreens…o analˆgica da passio divina. Esta n…o
contradiz a eterna majestade e felicidade de Deus, nem confunde as hipˆstases
no evento redentor, mas mostra que o amor divino ‡ de tal modo verdadeiro (e
n…o apenas metafˆrico!) que se atua em total proximidade e doa€…o. As
express‰es se donare, donatio, communicatio e oblatio traduzem esta iniciativa
de oferta do amor divino, este "dar-se" do Pai • humanidade, no Filho e no
Esp•rito Santo507. Sobretudo quando Deus considera o mal e o pecado e -
compadecendo-se com entranhas de misericˆrdia (rahamim) - interv‡m na
Histˆria com suas gestas salv•ficas508. Œ no horizonte deste amor Patris (real e
eficaz) que Jo…o Paulo II examina as Escrituras e exprime seu ensino sobre o
inscrutabilis dolor Patris (imperscrutƒvel dor de Pai):

Nas profundezas de Deus hƒ um amor de Pai que, diante do pecado do homem,


reage - segundo a linguagem b•blica - at‡ o ponto de dizer: estou arrependido de
ter criado o homem. "O Senhor viu que a maldade dos homens era grande sobre
a terra… E o Senhor disse: Estou arrependido de os ter feito"(Gn 6,5-7). Mas o
Livro Sagrado, mais freq•entemente, nos fala de um Pai que experimenta
compaix…o pelo ser humano, como que compartilhando a sua dor. Esta
imperscrutƒvel e indiz•vel "dor" de Pai, em definitivo, gerarƒ sobretudo a
admirƒvel economia do amor redentor em Jesus Cristo, para que - atrav‡s do
mysterium pietatis - o amor possa revelar-se, na histˆria humana, mais forte que
o pecado.509

Segundo estas linhas, dolor Patris n…o indica negatividade, tristeza ou


car†ncia em Deus, mas sua capacidade de amar realmente, com solicitude e
compaix…o divinas510. Pois sendo essencialmente Agàpe (1Jo 4,8), Deus
permanece "fiel ao seu amor para com o homem e para com o mundo"511 - e,
portanto, inalterƒvel em seu Amor substancial - sem que esta constŽncia ou
imutabilidade signifique "indiferen€a" (o que negaria a doa€…o t•pica do amor,

modo de exprimir-se que constitui ainda uma controvérsia entre os teólogos"(H.U. von
BALTHASAR: Lasciatevi muovere dallo Spirito, o.c., p. 116).
506
DV n. 45: AAS 78(1986), p. 863.
507
Cf. especialmente DV 11-14.
508
Cf. DM n. 4 e DV n. 39.
509
DV n. 39.
510
Ibidem.
511
RH n. 9.
96

que em Deus se dƒ de modo perfeit•ssimo)512. Na verdade, o ensino de Jo…o


Paulo II preserva devidamente a imutabilidade e a liberdade divinas, que se
conjugam de modo admirƒvel no Ser de Deus. Diante deste mist‡rio, o Papa
volta-se • Revela€…o judaico-crist… e aos antigos Padres, que admitiam a
exist†ncia de     livres e inocentes em Deus, como sua alegria, compaix…o e
benignidade, que constituem o pathos divino: amor soberano, livre de qualquer
limite e car†ncia (diversamente do pathos humano, ferido pelo pecado)513.
Portanto, dolor Patris ‡ uma express…o da "onipot†ncia amorosa" de Deus514,
que se compadece da humanidade pecadora e transforma esta com-passio em
nova efus…o de amor:

No ser humano, a misericˆrdia inclui a dor e a compaix…o pelas mis‡rias do


prˆximo. Em Deus, o Esp•rito que ‡ Amor faz com que a considera€…o do
pecado se traduza em novas dƒdivas de amor salv•fico.515

Concluindo: "assim como a compaix…o ‡ uma perfei€…o nobil•ssima entre


os homens, existe tamb‡m em Deus - de modo eminente e sem qualquer
imperfei€…o - a mesma compaix…o: o inclinar-se por comisera€…o (e n…o por falta
de poder), sendo assim uma compaix…o conciliƒvel com sua eterna
felicidade"516.

VI
“Ecclesia necesse est testimonium misericordiae Dei”
A Igreja, testemunha da misericórdia divina:

A revela€…o do Pai e seu amor, em Cristo e a partir dele, inclui a


sacramentalidade da Igreja, que ‡ signum et instrumentum do mesmo amor no
mundo517. A trilogia retoma este enunciado do Conc•lio Vaticano II e confirma a

512
Cf. CTI: "Teología-Cristología-Antropología", Parte II-B, 4.2-4.2, in Documentos, p. 261-262.
513
Cf. Ibidem: Parte II-B, 3, p. 260.
514
DV n. 33.
515
DV n. 39.
516
CTI: "Teología-Cristología-Antropología", Parte II-B, 5.1, o.c., p. 262.
517
Nos termos de Lumen gentium n. 1: AAS 57(1965), p. 5.
97

importância do apostolado, pelo qual a Igreja colabora para que se realize o


desígnio de Deus: a comunhão dos homens entre si e destes com Deus Trino518.
Conseqüentemente, João Paulo II renova a profissão de fé no "Filho unigênito
que vive no seio do Pai"519, o qual constituiu a Igreja sacramento de nossa
"reconciliação com Deus"520. Desta reconciliação que abraça a humanidade
inteira, nasce a solicitude da Igreja pela pessoa humana enquanto "ser pessoal e
ao mesmo tempo comunitário-social, no âmbito das sociedades e de contextos
diversos, no âmbito da própria nação ou povo, enfim no âmbito de toda a
humanidade"521. Além do zelo afetivo, tal solicitude deve traduzir-se em
apostolado efetivo, nas diversas esferas da vida humana: promoção da justiça e
da paz, ecumenismo, diálogo com as religiões não-cristãs, promoção da
liberdade, desenvolvimento, defesa dos direitos humanos e busca da verdade522.

É, contudo, na Dives in misericordia que João Paulo II mais fala da Igreja


enquanto ministra e sinal do amor divino. Já no primeiro parágrafo, a Igreja é
descrita como comunidade peregrina que, seguindo as pegadas de Cristo,
caminha com a humanidade na direção do Pai:

Se é verdade que todos e cada um dos homens, em certo sentido, são o


caminho da Igreja - como afirmei da encíclica Redemptor hominis - também é
verdade que o Evangelho e toda a Tradição nos indicam constantemente que
devemos percorrer, com todos e cada um dos homens, este caminho, tal como
Cristo o traçou, ao revelar em si mesmo o Pai e seu amor. Em Jesus Cristo,
todos os caminhos em direção ao homem - tais como foram confiados de uma
vez para sempre à Igreja no contexto variável dos tempos - são ao mesmo
tempo um caminhar ao encontro do Pai e do seu amor.523

Linhas depois, a encíclica constata que os conflitos, a injustiça e as


múltiplas ameaças à vida são realidades tão dramáticas, que chegam "a tirar do

518
Cf. RH n. 3 e DV nn. 2 e 64.
519
RH n. 19; também DV nn. 7, 15, 16 e 64.
520
RH n. 7; também DM nn. 7-8.
521
RH n. 14.
522
Cf. RH nn. 6, 7, 11, 12 e 15-18. Trata-se do "diálogo de salvação" nas suas várias esferas,
atualizando a proposta de Paulo VI (Ecclesiam suam nn. 54-64) e do Concílio Vaticano II
(Lumen gentium nn. 14-17).
523
DM n. 1.
98

coração humano a própria idéia de misericórdia"524. Perdendo o sentido da


autêntica misericórdia, a humanidade nos faz notar duas outras carências: a
pouca assimilação do ethos evangélico na sociedade contemporânea, e a
necessidade da paternidade divina que deve caracterizar a experiência cristã de
Deus. A resposta a estas carências está na misericórdia mesma, tal qual Jesus
a propõe para nós: deixar-se "guiar na própria vida pelo amor e pela
misericórdia, que constitui a medula do ethos evangélico", e ser testemunhas do
"Pai, que é Deus rico em misericórdia, tornando-se para os homens um modelo
de amor misericordioso para com as demais pessoas"525. Se nós cristãos
assimilarmos o sentido evangélico da misericórdia e a praticarmos visivelmente -
como o fez Jesus na época de sua pregação - "do mesmo modo que os homens
de então, também os homens de nosso tempo podem ver o Pai, neste sinal
visível"526. João Paulo II coloca a misericórdia no centro da missão da Igreja e
reclama mais visibilidade neste sentido. Pois uma das finalidades principais do
apostolado eclesial, é fazer da Igreja um sinal eficaz da paternidade de Deus,
que "quer que todos os homens se salvem e alcancem o conhecimento da
verdade"(1Tm 2,4)527. Donde o apelo ao testemunho:

A Igreja deve dar testemunho da misericórdia de Deus revelada em Cristo ao


longo da sua missão de Messias, professando-a em primeiro lugar como
verdade salvífica necessária para uma vida coerente com a fé; depois
procurando introduzi-la e encarná-la na vida, tanto dos seus fiéis como, na
medida do possível, na vida de todos os homens e boa vontade. Enfim,
professando a misericórdia e permanecendo-lhe sempre fiel, a Igreja tem o
direito e o dever de apelar para a misericórdia de Deus, implorando-a perante
todas as formas de mal físico ou moral, diante de todas as ameaças que
obscurecem o horizonte de vida da humanidade contemporânea.528

A misericórdia é critério evangélico para o ser e agir eclesial: implica


tanto a verdade professada, quanto a prática pastoral e a contínua intercessão
do Povo de Deus (conforme o tríplice testemunho indicado: professar, encarnar

524
DM n. 2.
525
Palavras de DM n. 3.
526
DM n. 2.
527
Versículo citado em RH n. 4 e DV n. 64.
528
Prólogo do Capítulo VII: "A misericórdia de Deus na missão da Igreja".
99

e implorar a misericórdia divina). Isto requer o sincero compromisso da


consciência e da ação:

É preciso que a Igreja de nosso tempo tome consciência mais profunda e


particular da necessidade de dar testemunho da misericórdia de Deus, em toda
a sua missão, em continuidade com a tradição da Antiga e da Nova Aliança e,
sobretudo, no seguimento do próprio Cristo e dos seus apóstolos.529

A Igreja é chamada a professar, invocar e testemunhar a misericórdia,


fazendo-se ícone do Deus Compassivo, a exemplo de Cristo (cf. Col 1,15). ''Não
se trata somente de cumprir um mandamento ou uma exigência de natureza
ética, mas também de satisfazer a uma condição de capital importância, a fim de
Deus poder se revelar na sua misericórdia para com o ser humano"530. A este
propósito, o Papa indica algumas vias de testemunho:

- a compaixão para com os que sofrem, os infelizes e pecadores 531


- a encarnação da misericórdia na vida dos fiéis e, o quanto possível, na
vida de todos os homens de boa-vontade 532
- a contínua intercessão 533
- o anúncio da Palavra 534
- os sacramentos, sobretudo Eucaristia e Reconciliação 535
- a piedade autêntica 536
- o culto ao Coração de Cristo 537
- a prática do amor fraterno 538

529
Ibidem.
530
DM n. 3.
531
Cf. ibidem
532
Cf. prólogo do Capítulo VII.
533
Cf. ibidem.
534
DM n. 13.
535
Ibidem.
536
Ibidem.
537
Ibidem.
538
Ibidem.
100

Deste modo, a frase do Senhor: "Quem me vê, vê o Pai"(Jo 14,9) se


aplica também à Igreja, pois esta se faz sinal visível da misericórdia do Pai e
ministra de reconciliação para o mundo.

VII
“Pater futuri saeculi”
Em Deus, nossa esperança:

A expressão Pater futuri saeculi é usada uma só vez, no início da


Redemptor hominis539. Apesar da sobriedade, este título que Isaías atribui ao
Deus da Aliança anuncia a esperança que anima toda a trilogia. Chamar a Deus
de "Pai do futuro século" é proclamar seu divino poder, capaz de renovar
radicalmente a ordem cósmica e histórica, em vista do novo céu e da nova terra,
onde reinará a paz, o direito e a justiça para sempre. Assim se caracteriza o
tempo messiânico profetizado por Isaías, em quem João Paulo II se inspira (cf.
Is 9,1-6). Tempo de definitiva novidade, cujo único "garante" é Deus mesmo:

Ao criar o universo, Deus criou o tempo, assim como todo o seu percurso
sucessivo. Assim, o tempo é dom de Deus: criado continuamente por Deus, está
em suas mãos. Ele dirige seu desenrolar, de acordo com seus desígnios.540

Por isso, o título que Isaías atribui a Deus é traduzido também como
"Senhor onipotente" ou "Pai do mundo vindouro"541 - títulos soteriológicos, já que
a onipotência divina é sempre onipotência criadora e salvífica, que domina o
tempo e o espaço na sua mais vasta extensão. Possuidor deste domínio, o Pai
concede ao Filho o principado cósmico, pelo qual Cristo é constituído "centro do
cosmos e da história"542. Nesta perspectiva, dizer "mundo vindouro" é dizer
"salvação" (futura e definitiva). As encíclicas da trilogia seguem esta mesma

539
RH n. 7.
540
JOÃO PAULO II: Audiência Geral de 19-XI-1997, apud P. BETETA: El amor de Dios Padre
por los hombres en la enseñanza de Juan Pablo II, Madrid, 1998, p. 12-13.
541
Basta conferir as traduções da Vulgata, da Bíblia de Jerusalém e da TOB.
542
RH n. 1.
101

compreensão: não só professam o desfecho escatológico da Criação543, mas


nos convidam a esperar ativamente, com fé e obras dignas, o Reino que vem:
"renovação espiritual e adoração a Deus"544, "estima para com os outros
crentes"545, "caridade social"546, "desenvolvimento solidário"547, "prática da
misericórdia"548, "dedicação desinteressada à causa do ser humano"549,
"conversão e perdão dos pecados"550.

João Paulo II nos exorta a tais obras, sobretudo mirando ao Terceiro


Milênio551. Assim, testemunhamos a razão de nossa esperança: a convicção de
que o tempo presente já hospeda misteriosamente a eternidade que nos espera.
Pois a última palavra sobre o cosmos e o homem não vem da morte, mas é
proferida pelo Deus da Aliança552. Somente ele nos assegura o novum ultimum
prometido, o qual - no hodierno kairós da graça - nos é dado mediante Cristo
Ressuscitado, na força do Espírito Vivificante553. Animado por esta fé pascal,
João Paulo II vê o Novo Milênio sob o signo da esperança: trata-se, diz ele, de
"um novo advento da Igreja"554.

Com novos passos, a trilogia prossegue: faz memória da aliança555,


atesta a fidelidade de Deus ao seu plano salvífico556, contempla a Cristo
ressuscitado557 e professa o "amor" como "realização escatológica" da

543
Cf. RH n. 8
544
RH n. 10.
545
RH n. 11, referindo-se aos judeus e muçulmanos.
546
RH n. 14.
547
RH n. 16.
548
DM n. 14.
549
DM n. 7.
550
DV n. 42.
551
Cf, RH nn. 1 e 7,
552
Cf. DM n. 7.
553
Cf. DV nn. 22 e 49; também J. MOLTMANN: Theologie der Hoffnung, München, 1966, p.
157-165.
554
RH n. 7.
555
Cf. DM n. 7.
556
Cf. DM n. 4.
557
Cf. DM nn. 7-9.
102

humanidade reconciliada558. Compreendemos, então, que o Pater futuri saeculi é


o Pai justo e misericordioso, que exerce senhorio sobre a História e a conduz
providencialmente até sua plenitude. "O porvir do homem é, na verdade, o futuro
de Deus, no sentido de que só ele o conhece, prepara e realiza"559. Em outras
palavras, o "Pai do século futuro" é o Deus adventurus da esperança cristã, que
oferece à humanidade o futuro bem-aventurado. Mais: ele mesmo constitui este
futuro, pois é nele que farão morada todos os que foram "criados para a graça e
glória, desde o princípio"560. Por isso, respondendo ao Deus que vem em nosso
encontro, João Paulo II propõe a nossa peregrinação ao encontro do Pai. Esta é
a dinâmica da economia salvífica, especialmente desde a Encarnação: o
aproximar-se do Pai a nós, por Cristo, no Espírito Santo; e o nosso peregrinar ao
Pai, com Cristo, no mesmo Espírito561. Esses dois movimentos se encontram em
Jesus, o Verbo que veio para nos abrir o caminho de retorno ao Pai562. Em
termos definitivos, voltar ao Pai é repousar o coração n'Aquele que é origem e
fim de nossa esperança, o Deus das promessas (Deus promissionum) e Pai do
tempo vindouro (Pater futuri saeculi): "Fizestes-nos, Senhor, para vós, e o nosso
coração está inquieto, enquanto não repousa em vós"563.

558
Palavras de DM n. 8.
559
JOÃO PAULO II: Audiência Geral de 19-XI-1997: apud o.c., p. 13.
560
DM n. 7.
561
Cf. RH n. 13.
562
Cf. RH nn. 8, 9 e 13.
563
RH n. 18, onde o Papa cita esta sentença de Sto. Agostinho: Confessiones I, 1.
103

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113

ÍNDICE

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

1. Jesus Cristo, redentor do homem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


a. Deus quer que todos sejam salvos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
b. Em Jesus, nossa reconcilia€…o com o Pai . . . . . . . . . . . . . . . . .
c. O Verbo e o Esp•rito apontam para o Pai . . . . . . . . . . . . . . . . . .
d. A paternidade de Deus se reflete na miss…o da Igreja . . . . . . .
e. O amor do Pai manifesto na Eucaristia e em Maria . . . . . . . . .

2. Deus, rico em misericórdia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


a. Jesus Cristo, revela€…o-encarna€…o da misericˆrdia do Pai . . .
b. Paternidade de Deus e "ethos" do Evangelho . . . . . . . . . . . . . .
c. Nas Escrituras, a semŽntica do amor divino . . . . . . . . . . . . . . . .
d. Do filho prˆdigo ao Pai misericordioso . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
e. Mist‡rio Pascal: o amor do Pai "in actu salvationis" . . . . . . . . . .
f. A Igreja, •cone da misericˆrdia do Pai . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

3. Senhor que dá a vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


a. O protagonismo do Esp•rito e sua proced†ncia "a Patre" . . . . .
b. O “dar-se salv•fico” do Pai, no Filho e no Esp•rito . . . . . . . . . .
c. Nas profundezas de Deus hƒ um amor de Pai . . . . . . . . . . . .
(1) A quest…o do "dolor Patris" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(2) O amor salv•fico como "donatio" e "oblatio" . . . . . . . . . . . .
(3) A distin€…o das Pessoas divina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(4) A Cruz e o aspecto trinitƒrio do "dolor Dei" . . . . . . . . . . . . .
(5) Deus ‡ amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
114

Conclusão:
I. Em Jesus, o rosto do Pai . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
II. O Pai, amor fontal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
III. Deus é amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
IV. O Deus consolador
V. O amor compassivo do Pai . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
VI. A Igreja, testemunha da misericórdia divina . . . . . . . . . . . . .
VII. Em Deus, nossa esperança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Bibliografia

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