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Uma abordagem crítica da obrigatoriedade

do voto a partir da Constituição Federal de


1988

Por Benedito Antonio da Costa

Pós-graduando em Direito Constitucional


Eleitoral pela Universidade de Brasília.
Especialista em Direito Ambiental pela
Universidade do Estado de Mato Grosso.
Analista Judiciário do TRE-MT.

Certamente se faz uma avaliação positiva das mais de duas décadas da


promulgação da Constituição Federativa de 1988. Houve importantes avanços na proteção dos
direitos fundamentais e sociais. A cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo
político são princípios basilares fortemente protegidos e fomentados por todo o arcabouço de
valores, institutos e instituições do analítico documento constitucional brasileiro. A
efetividade de tais previsões exigiu, e exige ainda, a adequação gradativa de todo o
ordenamento jurídico subconstitucional,infraconstitucional, pois, não raramente, a ruptura
nominal com a ordem estatal autoritária não é senão uma autorização para que se perfaçam as
outras mudanças necessárias.

Na seara das instituições eleitorais tal reflexão se mostra ainda mais


relevante devido ao fato de que é por meio do arranjo eleitoral que se pretende transferir o
poder do povo, que o detém potencial e abstratamente, para os representantes eleitos, que o
exercem imediata e concretamente. É preciso, assim, que sejam identificadas as impregnações
advindas do modelo de Estado obsoleto autoritário para que se possa, ao expurgá-las,
substituí-las por previsões legais consentâneas é apropriado que façamos um exercício de
conformidade do principal instrumento de participação democrática nos destinos da
República: o voto.

Neste artigo abordaremos especificamente o atributo da obrigatoriedade.


Está a legislação eleitoral infraconstitucional referente à obrigatoriedade do voto em sintonia
com a Constituição Federal de 1988? Existem resquícios de autoritarismo a serem expurgados
do ordenamento eleitoral neste sentido?

1. Breves considerações sobre o alistamento e o voto

Voto é expressão material do direito de sufrágio e manifestação individual


da vontade popular, conforme se pode traduzir do caput do artigo 14 da Constituição Federal
de 1988.

Para que tenha valor democrático, o voto precisa revestir-se dos atributos de
sinceridade e autenticidade. Será sincero quando realmente for deveras expressão da vontade
do eleitor e repercutir na formação do Estado e do Governo e autêntico quando não for
falseada a intenção de quem o dá1. Para tanto, o sistema eleitoral brasileiro visa garantir a
imediaticidade do voto (este deve resultar “imediatamente” da manifestação da vontade do
eleitor, sem intervenção de “grandes eleitores” ou de qualquer vontade alheia), a liberdade de
voto (a ausência de coação física ou psicológica), o segredo do voto (pressupõe pessoalidade
e proibição de “sinalização” do voto) e a igualdade do voto (todos os votos devem ter uma
eficácia jurídica igual).2

Já o alistamento consiste "no reconhecimento da condição de eleitor, que


corresponde à aquisição da cidadania determinando a inclusão do nome do alistando no corpo
eleitoral”3. É procedimento administrativo de aferição dos requisitos necessários para o
usufruto da condição de eleitor.

No Brasil, o alistamento eleitoral e o voto são obrigatórios para os maiores


de dezoito anos e facultativos para os analfabetos, os maiores de setenta anos e os maiores de
dezesseis anos e menores de dezoito anos (Constituição Federal de 1988, Art. 14, § 1º). Trata-
se, portanto, de duas obrigatoriedades: do alistamento e do voto. Talvez tenha sido
desnecessária a previsão da obrigatoriedade do alistamento. Bastava a do voto, pois este
pressupõe o alistamento.

Tanto o alistamento quanto o voto carregam expressão da vontade do


cidadão dirigida à configuração política do Estado. O alistamento e o voto são expressões de
vontade com significados distintos e complementares, a depender de como são praticados:

(a) O que deixa de alistar-se exprime-se. Abstenção de alistar-se não é voto,


mas é vontade. Não inscrito nas listas eleitorais, o cidadão influi no
resultado: é menor o número que concorre contra alguém que não teria as
preferências do que se não alistou.

(b) O que vota e o seu voto é em branco: alistou-se, e compareceu. Foi


vontade, e foi voto sem decisão. Tôdas as vezes que a lei considera
pressuposto de alguma norma o comparecimento e a introdução da cédula
nas urnas, o cidadão influi. Aqui, não somente como vontade; mas sim como
simples votante que vota com indiferença.

(c) O que comparece e recusa votar também se exprime. A recusa é


inconfundível com o não-comparecimento, como o voto em branco, ou com
o não-alistamento.

(d) O que vota e não consegue que o seu candidato se eleja foi vontade e
voto; influi nos resultados, como o que se absteve e, mais, como o que votou
em branco. Tôdas as vezes que a lei considera pressuposto de alguma regra
jurídica o comparecimento e o voto em prêto, o eleitor que vota influi.

1 SILVA, 2005, p. 359.

2 CANOTILHO, 1993, p. 433.

3 RIBEIRO, 1996, p. 213.


Em todos os fatos que acima mencionamos - abstenção de alistar-se
(vontade), abstenção de comparecer (vontade inscrita), atitude do que
comparece e vota em branco (vontade inscrita, comparecimento, voto
indeciso), ou que comparece e recusa-se a votar (vontade inscrita,
comparecimento e recusa do voto), ou que vota e não elege (vontade,
comparecimento e voto) - a vontade está; portanto, o Povo. Essa é a
concepção de democracia mediata.4 (grifos do original)

Sendo expressões da vontade individual dos cidadãos que coletivamente


compõem o povo, o alistamento e o voto5 são pressupostos da democracia representativa
como forma de determinar a legitimidade e a governabilidade do Estado. O objetivo da
cláusula de obrigatoriedade do voto é assegurar o comparecimento eleitoral e, desta forma, "a
representatividade política e popular dos eleitos". Geralmente a obrigatoriedade do voto vem
do receio de que "as grandes abstenções poderiam levar ao poder minorias radicais e
comprometer a lisura dos pleitos devido à corrupção eleitoral", nos termos utilizados na
própria Assembléia Nacional Constituinte da qual se originou a atual Constituição. 6

2. Panorama internacional da obrigatoriedade do voto

No mundo, vários países utilizam a obrigatoriedade do voto como forma de


incentivo ao comparecimento eleitoral, com variadas espécies de sanções, que vão desde a
prisão até a pequenas multas quase irrelevantes.

A Bélgica é tida como a primeira nação a adotar a obrigatoriedade do voto,


no ano de 1892. Uma pequena multa é aplicada ao não votante que, se faltoso por quatro
eleições, pode perder o direito de votar por dez anos, tendo, então, dificuldades laborais no
setor público.7 A Constituição Belga (Art. 48, 2, revisão de 1893), onde “Lê vote este
obligatoire”8, é posta em prática pelo Código Eleitoral daquele país com as sanções já
mencionadas.9

4 MIRANDA, 1970, p. 555.

5 Quando nos referirmos, no texto, a "voto obrigatório", "obrigatoriedade do voto" ou


"voto compulsório", o leitor deve incluir na expressão a idéia da obrigatoriedade de
alistamento como procedimento administrativo necessário.

6 Assembléia Nacional Constituinte - Emenda: 01342. Apresentação: 1°/07/1987.

7 THE ELECTORAL COMISSION RESEARCH REPORT, 2006.

8 MIRANDA, 1970, p. 566.

9 O Código Eleitoral belga é considerado o primeiro a prever a necessidade de


justificação e a cominar multas gradativas aos não votantes, nestes termos:
CODE ELECTORAL. 12 AVRIL 1894.

TITRE VI. - DE LA SANCTION DE L'OBLIGATION DU VOTE.

Art. 207. Les électeurs qui se trouvent dans l'impossibilité de prendre part au scrutin peuvent faire connaitre
leurs motifs d'abstention au juge de paix, avec les justifications nécessaires.

(Sont présumées se trouver dans l'impossibilité de prendre part au scrutin les personnes qui sont le jour des
élections privées de leur liberté en vertu d'une décision judiciaire ou administrative.) <L 05-07-1976, art.
69>
Citadao como exemplo positivo de obrigatoriedade do voto, a Austrália
possui um sistema de voto obrigatório desde 1924, onde os não votantes são obrigados a se
justificar oficialmente e, se a justificativa não for aceita, devem pagar multa. Desde então 33
países adotam alguma forma de voto obrigatório10.

Nível de Breve descrição das sanções contra os não votantes


Coerção/País

Muito Rígida

Brasil As sanções incluem uma multa correspondente a uma pequena


porcentagem do salário mínimo da região onde o indivíduo alistou-se.
Os não votantes são impedidos de fazer exames profissionais, ou de
obter empréstimos ou passaportes.

O não exercício do voto em três eleições consecutivas, o não


pagamento das multas ou a não justificação da ausência dentro de seis
meses podem levar ao cancelamento do título eleitoral.

Austrália A inaptidão para prover uma razão suficiente para o não


comparecimento é penalizada com uma multa de $ 20.

Se procedimentos judiciais forem necessários, a multa pode chegar a $


50 e o não votante fica responsável por custos processuais. Em algumas
ocasiões, se a multa ainda não é paga, os faltosos têm sido presos por
desrespeito à ordem judicial.

Singapura Os nomes dos eleitores faltosos são removidos do corpo eleitoral.

[…]

Art. 210. Une première absence non justifiée est punie, suivant les circonstances, d'une réprimande ou
d'une amende (de cinq à dix francs). <L 30-07-1991, art. 46, 1°>

(En cas de récidive, l'amende sera de dix à vingt-cinq francs.) <L 30-07-1991, art. 46, 2°>

Il ne sera pas prononcé de peine d'emprisonnement subsidiaire.

(Alinéa abrogé) <L 30-07-1991, art. 46, 3°>

(Sans préjudice des dispositions pénales précitées, si l'abstention non justifiée se produit au moins quatre
fois dans un délai de quinze années, l'électeur est rayé des listes électorales pour dix ans et pendant ce laps
de temps, il ne peut recevoir aucune nomination, ni promotion, ni distinction, d'une autorité publique.) <L
30-07-1991, art. 46, 4°>

Dans les cas prévus par le présent article, (le sursis à l'exécution des peines ne peut être ordonné). <L 26-
06-1970, art. 1, § 1, 42>

La condamnation prononcée par défaut est sujette à opposition dans les six mois de la notification du
jugement. L'opposition peut se faire par simple déclaration, sans frais, à la maison communale.

O código eleitoral belga em francês pode ser encontrado em http://www.juridat.be/cgi_loi/loi_F.pl?


cn=1894041230.

10 International IDEA. Compulsory Voting. Disponível em


http://www.idea.int/vt/compulsory_voting.cfm. Último acesso em 23.04.2009
Aqueles que não apresentam justificação suficiente são obrigados ao
pagamento de S$5 para o Cartório de Registro a fim de que seus nomes
sejam novamente incluídos na lista de eleitores.

Peru De acordo com as leis peruanas, aqueles que não votam ficam
impedidos de utilizar o serviço bancário ou outras transações
administrativas e enfrentam uma pena financeira.

Rígido

Bolívia Os cidadãos não podem fazer transações bancárias por até três meses
depois do dia da votação se não providenciarem prova de que votaram.
Uma pena pecuniária determinada pela Corte Eleitoral Nacional ao
tempo de cada eleição pode também ser aplicada.

Nauru Uma multa é imposta se nenhuma razão legítima é fornecida.

Tailândia O eleitor faltoso pode perder certos direitos políticos, como por
exemplo o direito de iniciativa de projetos de lei, o direito de propor
impeachment de ministros ou sustentar cargos políticos.

Schaffhausen Uma pequena multa (três francos suíços) é cobrada de eleitores faltosos
pela polícia que vem recolher o cartão de legitimidade de voto de cada
(Cantão Suíço) cidadão. As sanções são aplicadas cada um dos não votantes, a menos
que sejam isentos.

Moderado

Bélgica Multas pelo não exercício do voto chegam a 50 euros para uma
primeira abstenção e 125 euros para uma segunda abstenção.

Luxemburgo De acordo com a legislação eleitoral as sanções incluem multas e


prisão, mas tais sanções nunca foram aplicadas.

Turquia Uma pequena multa é imposta se nenhuma razão legítima é


apresentada.

Chipre As sanções punitivas são multas de até £200 e/ou uma sentença de
prisão de até seis meses. Tem havido bem poucos processos como um
todo e nenhum desde as eleições gerais de 2001.

Chile O alistamento é voluntário, fazendo com que o voto obrigatório seja


difícil de ser aplicado. Na teoria, uma multa é aplicada àqueles que não
votam, com nomes sorteados de uma lista de pessoas que não votaram.
No entanto, na prática bem poucos são multados.

Liechtenstein Não votantes podem ser multados se não justificarem a contento. Em


setembro de 2003 a multa foi fixada em não mais do que 20 francos
suíços.

Fiji Ninguém foi processado desde a introdução da obrigatoriedade do voto


em 1997.

Equador Uma multa é imposta. O voto é facultative para analfabetos ou maiores


de 65 anos.

Paraguai Um apequena multa pode ser imposta ao não votante.

Bem moderado

Panamá Há provisões legais para o voto compulsório mas nenhuma penalidade é


aplicada.

Grécia Não há sanções específicas para o sistema de voto obrigatório – a


passagem relevante foi omitida da revisão constitucional de 2001.

Argentina Uma pequena multa é imposta se nenhuma justificação é apresentada

Nenhum

Egito Sem penalidades

Honduras Não efetividade

El Salvador Não efetividade

Costa Rica Não há previsão de penalidades

República Sem penalidades


Dominicana

Venezuela Embora o voto obrigatório seja previsto em lei, não foi, de fato,
implementado. Não há sanções específicas, e, portanto, não há
processamento.

México Não há sanção estabelecida


Em pesquisa comparativa realizada pelo Electoral Comission Research o
Brasil é listado entre os países que possuem um nível de coersãocoerção muito rígido, ao lado
da Austrália, Singapura e Peru. No caso australiano, uma possível prisão pode ocorrer no caso
de o eleitor não pagar a multa por desrespeito à ordem judicial, e não pela abstenção
simplesmente. Em Singapura o eleitor faltoso é excluído do corpo eleitoral, sendo uma nova
inclusão condicionada ao pagamento de multa. O Peru, além da multa, acrescenta restrições a
transações bancárias e administrativas. A citada pesquisa relaciona a Bolívia, Nauru,
Schaffhausen (Cantão Suíço) e Tailândia como tendo um sistema rígido de coação ao voto.
Na Bolívia os eleitores faltosos não podem fazer transações bancárias por até três meses
depois do dia da votação se não providenciarem prova de que votaram. Uma pena pecuniária
determinada pela Corte Eleitoral Nacional ao tempo de cada eleição pode também ser
aplicada. Em Nauru uma multa é imposta se nenhuma razão legítima é fornecida, ao passo
que na Tailândia uma pequena multa é cobrada de eleitores faltosos pela polícia, que vem
recolher o cartão de legitimidade de voto de cada cidadão. Em Schaffhausen o eleitor faltoso
pode perder certos direitos políticos, como, por exemplo, o direito de iniciativa de projetos de
lei, o direito de propor impeachment de ministros ou sustentar cargos políticos. São tidos pelo
instituto como moderadas as sanções impostas pela Bélgica, Luxemburgo, Turquia, Chipre,
Chile, Liechtenstein, Fiji, Paraguai e Equador, que prevêem geralmente pequena multa
(muitas vezes não cobrada) aos não votantes. Como bem moderado é classificado o sistema
de voto obrigatório do Panamá, da Argentina e da Grécia, onde pequena ou nenhuma multa é
alguma vez prevista ou cobrada. Não há registro de sanções no Egito, Honduras, El Salvador,
México, República Dominicana, Venezuela e Costa Rica. Em tais países, embora haja
previsões de obrigatoriedade do voto, não há sanções estabelecidas.11

Da tabulação acima transcrita nota-se que a grande maioria dos países


possui uma compulsão apenas nominal, em que a prescrição da obrigatoriedade do voto não é
plenamente eficaz. A existência do preceito serve mais para reforçar a idéia geral de
responsabilidade cívica do que realmente para instituir um sistema de coação contra os
indivíduos não votantes. de responsabilidade cívica do que para realmente obrigar ao voto.12

Em alguns países, como Portugal, o voto é considerado apenas "dever


cívico", desprovido de sanção jurídica negativa (art. 49 da Constituição Portuguesa de
1976)13.

3. Evolução da obrigatoriedade do voto no Direito brasileiro

11 Informações extraídas de The Electoral Comission Research Report on Compulsory


Voting around the World. United Kingdom. 2006, p. 7. Disponível em
http://www.argentinaelections.com/Compulsory%20voting%20around%20the
%20world_UK%20Commission.pdf. Acesso em 23 de abril de 2009. Tradução livre.

VOCÊ APENAS TRADUZIU /TRANSCREVEU ESTAS INFORMAÇÕES OU TAMBÉM AS


SISTEMATIZOU (POR EXEMPLO, SEGUNDO O GRAU DE RIGIDEZ)? ISSO DEVE FICAR
CLARO PARA O LEITOR

12 ELECTORAL REFORM SOCIETY. Compulsory voting. Disponível em


http://www.electoral-reform.org.uk/article.php?id=46. Último acesso em 23.04.2009

13 CANOTILHO, 1993, p. 434.


A tradição brasileira do voto obrigatório começou com a edição do Código
Eleitoral de 1932. A obrigatoriedade foi mantida no Código Eleitoral de 1965 e reafirmada na
Constituição Federal de 1988.

Na Constituição Imperial de 1824 o voto não era obrigatório. Ao contrário,


era censitário. Podiam votar apenas os cidadãos que tivessem censo de determinados bens,
que não fossem libertos ou que não que fossem acusados de crimes (art. 94 da Constituição
Imperial de 1824).

A primeira Constituição Republicana, de 1891, mantinha como condição


para ser eleitor apenas o alistamento dos cidadãos brasileiros maiores de 21 anos que não
fossem mendigos, analfabetos, "praças de pré" com exceção dos alunos das escola militares
de ensino superior e os religiosos (art. 70 da Constituição Republicana de 1891).

O status constitucional obrigatoriedade do voto veio primeiramente com a


Constituição de 1934, que impunha a obrigatoriedade do alistamento e de voto para homens e
mulheres que exercessem função pública remunerada, outorgando à lei a tarefa de prever
sanções e exceções (art. 109 da Constituição de 1934).

A Constituição de 1937 remete a questão de alistamento e voto inteiramente


à lei, vedando o voto aos analfabetos, aos militares em serviço ativo, aos mendigos e aos
privados dos direitos políticos.

Com a Constituição de 1946 a obrigatoriedade do alistamento e do voto


volta a ser novamente prevista constitucionalmente, sendo as disposições mantidas nas
constituições de 1967, 1969 e 1988.

Atualmente, vários projetos de emenda constitucional tramitam pelo


Congresso Nacional com o objetivo de abolir a obrigatoriedade do voto. Entende-se que não
estando incluído entre as chamadas “cláusulas pétreas”, o voto obrigatório poderá ser revisto
pelo Poder Constituinte reformador (Art. 60, § 4 da Constituição Federal de 1988).14 Os
defensores do voto obrigatório alegam, em geral, que a compulsão favorece a legitimidade
dos eleitos e tem efeito educativo sobre o eleitorado. O despreparo político da população é
também citada citado como um importante fator para que se mantivesse mantenha o voto
obrigatório no Brasil. A conveniência partidária também é considerada, pois, com a
obrigatoriedade do voto, os partidos não precisam despender seus recursos para convencer os
eleitores a votar.

14 Segundo o relatório final da Comissão Temporária Interna do Senado Federal


encarregada de estudar a reforma político partidária, existem pelo menos os seguintes
projetos de Emenda Constitucional relativas ao voto facultativo:
PROJETO AUTOR POSIÇÃO DO PARLAMENTAR PEC. 06/96 Sen. Carlos Patrocínio Favorável PEC.
40/96 Sen. José Serra Favorável PEC. 57/95 Dep. Emerson Olavo Pires Favorável PEC. 90/94 Dep.
Pedro Irujo Favorável PEC. 91/94 Dep. Valdemar Costa Neto Favorável, também a plebiscito e
referendo.PEC.25/96 Sen. Sebastião Rocha Plebiscito sobre extinção do voto obrigatório PDC
236/96 Dep. Luís Marinardi Plebiscito sobre extinção do voto obrigatório PEC.211/95 Dep. José
Jatene Favorável PEC.291/95 Dep. Osvaldo Reis Favorável - Alistamento facultativo para maiores
de 16 anos Disponível em
http://www.senado.gov.br/web/relatorios/CEsp/RefPol/relat09.htm, acesso em 27 de
abril de 2009.
Os argumentos contra a obrigatoriedade do voto geralmente incluem a
incompatibilidade com a idéia de liberdade democrática atrelada ao voto, nem combem como
a própria idéia de democracia, que põe o povo como detentor de todo o poder, não carecendo
de tutela estatal quando expressa seu poder. O voto obrigatório seria, para estes, fator de
deseducação, pois obrigaria mesmo os cidadãos indiferentes à política ou a uma eleição
específica a fazer uma escolha não comprometida, banalizando o processo eleitoral. A
tendência aos votos brancos e nulos também é trazida à atenção, pois num sistema de voto
facultativo a incidência seria bem menor.15

Embora citado como possuindo um sistema de coerção muito rígido quanto


ao voto obrigatório, a prática demonstra que também no Brasil a obrigatoriedade chega perto
de ser apenas nominal, no sentido de que as pesadas sanções previstas em lei não são
efetivamente aplicadas, podendo ser facilmente elididas pelo pagamento de multa ínfima,
como se verá abaixo.

4. A obrigatoriedade na Constituição: sanções apropriadas

Ao não exercício do sufrágio por meio do voto a Constituição Federal de


1988 liga determinadas conseqüências. Uma delas é a suspensão dos direitos políticos, sanção
esta vinda reflexamente por força do inciso IV do art. 15, onde se comina a perda ou a
suspensão de direitos políticos diante da recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou
prestação alternativa. Outra é a previsão, como condição de elegibilidade, do pleno exercício
dos direitos políticos, do alistamento eleitoral e da filiação partidária. Sem a condição de
eleitor votante o brasileiro perderá sua capacidade eleitoral passiva.

Além dessas, vislumbra-se outras restrições impostas ao eleitor faltoso,


como o impedimento de usufruir certos direitos cívicos que geralmente cabem ao eleitor
votante. Aí incluídos estão a iniciativa popular e a propositura de ação popular16.

Há base para a afirmação de que a própria constituição previu as sanções


apropriadas aos não votantes: restrições político-eleitorais. Dada a natureza do dever, faz
sentido que a constituição preveja apenas sanções político-eleitorais como conseqüência do
seu descumprimento, como de fato o faz.

Também um aspecto importante a ser analisado é a questão da autorização


constitucional para que a lei disponha a respeito da obrigatoriedade do voto. Diferentemente
do que fizeram as Constituições de 1934, que outorgou à lei a tarefa de prever sanções e
exceções, e a Constituição de 1937, que {falta um verbo aqui} remeteu a questão do voto
obrigatório inteiramente à lei, a Constituição Federal de 1988 não remeteu delegou à lei a
tarefa de prever sanções aos não votantes. Tal constatação é relevante porque, no que tange
aos direitos políticos, quando foi intenção da Constituição remeter à lei a tarefa de fazer
15 Em apertada síntese estes são os argumentos apresentados nos Projetos de Emenda
Constitucional citados na nota anterior.

16 A Lei 4.717/1965, que regula a ação popular, prevê que a prova da cidadania, para
ingresso em juízo em ação popular, será feita com o título eleitoral (art. 1º, § 3º). Já a
Lei 9.709/1998, que regulamenta o plebiscito, referendo e iniciativa popular requer
que, para a iniciativa popular, o projeto de lei apresentado à câmara seja subscrito por,
no mínimo, um por cento do eleitorado nacional (art. 13, caput).
provisões normativas ela o fez expressamente. A participação popular direta mediante
plebiscito, referendo e iniciativa popular se dará "nos termos da lei" (art. 14, caput). O mesmo
se observa quanto às condições de elegibilidade, cujos contornos finais seriam dados "na
forma da lei" (§ 3 do art. 14). Igualmente procedeu a Constituição quanto à inelegibilidade (§
9 do art. 14). Também no assunto análogo do serviço militar obrigatório, a Constituição
Federal de 1988 (art. 143, caput) remete à lei a tarefa de fixar-lhe os contornos. Mas o silêncio
da Constituição quanto à possibilidade de regulamentação do voto obrigatório por lei indica
fortemente que já bastam as previsões feitas nela.

Somando-se estes argumentos, pode-se chegar à conclusão de que a


Constituição já deu força aos seus preceitos por ela mesma prever as sanções cívicas
apropriadas à obrigatoriedade do voto, donde se culmina que nenhuma outra sanção seria
tolerável.

5. Análise crítica das sanções infraconstitucionais imputadas aos


não votantes

Na prática, considera-se recepcionado pelo ordenamento constitucional a


Lei nº. 4.737, de 15 de julho de 1965, que instituiu o vigente Código Eleitoral. Consideramos
apropriada uma análise histórica das circunstâncias de seu nascimento, o que explica, até certo
ponto, o teor de alguns de seus preceitos.

O Código Eleitoral foi editado pelos comandantes do Exército, da Marinha e


da Aeronáutica, e teve como fundamento de validade, segundo seu próprio preâmbulo, o Ato
Institucional de 9 de abril de 1964, conhecido como AI-1. O caráter antidemocrático de tal ato
institucional se manifesta quando relembramos que foi o mesmo que autorizou a suspensão
sumária dos direitos políticos de diversos cidadãos considerados opositores do regime,
estabeleceu as eleições indiretas para Presidente da República e, num ato supremo de
violência à democracia, suspendeu garantias da Constituição Federal de 1946. O AI-1
modificou substancialmente o processo legislativo da constituição Constituição então em
vigor, passando a concentrar poder quase absoluto para iniciativa e promulgação no Poder
Executivo. Não teve, portanto, tal norma, fundamento constitucional sadio.

O Código Eleitoral revogado (Lei nº. 1.164 de 24 de julho de 1950) previa


apenas multa para quem deixasse de se alistar como eleitor ou que tivesse deixado de votar
sem causa justificada (Art. 175). Tal previsão parece ter cumprido o mandamento
constitucional de obrigatoriedade do voto ao mesmo tempo em que mantinham intactos todos
os demais direitos e garantias previstos na Constituição Federal de 1946. Mas o Código
Eleitoral do regime militar acrescentou várias sanções aos não votantes, numa manifestação
no mínimo contraditória: ferindo direitos fundamentais com o pretexto de reforçar a
obrigatoriedade de ato cívico não valorizado pelo regime, que acabara de subverter a ordem
democrática!

A análise pontual de tais sanções revela seu caráter autoritário e também a


sua incompatibilidade com o ordenamento constitucional democrático vigente.
5.1. Multa

Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, Art. 7º, caput.

Art. 7º O eleitor que deixar de votar e não se justificar perante o


juiz eleitoral até 30 (trinta) dias após a realização da eleição,
incorrerá na multa de 3 (três) a 10 (dez) por cento sobre o salário-
mínimo da região, imposta pelo juiz eleitoral e cobrada na forma
prevista no art. 367.

A multa é a primeira das sanções previstas ao eleitor faltoso que não se


justificar perante o Juiz Eleitoral até trinta dias17 após a realização da eleição. O valor da
sanção pecuniária prevista pelo Código Eleitoral é de três a dez por cento sobre o salário
mínimo, valor este menor do que os cinco a vinte por cento previstos na redação original do
dispositivo.

Com a proibição de vinculação de valores ao salário mínimo foi necessária a


edição de norma integradora, que se deu com a Resolução 21.538 de 2003, do Tribunal
Superior Eleitoral. Tal resolução estabeleceu que a base de cálculo para as multas pelo não
exercício do voto poderá variar de 3 a 10 por cento do valor da UFIR multiplicado pelo fator
33,02, até a aprovação de novo índice. De tal operação resulta multa máxima no valor de R$
3,51 (três reais e cinqüenta e um centavos) por cada abstenção, valor este praticado até a
presente data. Cada turno é considerado como uma eleição, gerando uma multa independente.

O § 3 do artigo 367 do Código Eleitoral prevê, ainda, que o eleitor que


comprovar devidamente seu estado de pobreza, ficará isento de multa. Segundo a legislação
em vigor, para se fazer prova da pobreza, basta declaração firmada pelo próprio interessado
(Lei n 7.115/83, art. 1º), geralmente aceita pelos Cartórios Eleitorais.

As graves conseqüências que descreveremos mais adiante são facilmente


evitadas com o pagamento desta ínfima multa ou pela simples declaração de pobreza. Não é
fácil encontrar registro de cidadão que se recuse a quitar as multas eleitorais, preferindo se
submeter às outras penalidades.

O desinteresse do poder público em aplicar de fato uma penalidade


pecuniária substancial ao eleitor faltoso é evidente. As freqüentes anistias concedidas às
multas aplicadas pela Justiça Eleitoral são sinal de que se pretende manter nominalmente a

17 A Lei n. 6.091/1974 e a Resolução nº 21.538/2003 do TSE ampliaram este prazo


para sessenta dias e, no caso de eleitor que esteja no exterior, o prazo será de trinta
dias contados de seu retorno ao país.
obrigatoriedade do voto sem a imposição de nenhuma conseqüência relevante ao eleitor. Um
exemplo foi a Lei 9.996 de 14 de agosto de 2000, que anistiou as multas eleitorais aplicadas
em 1996 e 1998. Levada ao Supremo Tribunal Federal, a Corte decidiu pela
constitucionalidade da Lei.

No supracitado julgamento ficou registrada importante discussão reveladora


das opiniões do judiciário sobre a obrigatoriedade do voto. Vejamos alguns excertos:

O SENHOR MINISTRO NÉRI DA SILVEIRA - A hipótese não é válida


precisamente porque a lei existe e o Poder Judiciário se esforça para cumpri-
la. Toda a ação da Justiça Eleitoral é inócua, e sem razão de ser, é lírica,
porque não tem eficácia, diante da anistia.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM - Não radicalize! V. Exa. está


fazendo terrorismo. Não se resolve o problema da legitimidade do processo
eleitoral por meio de multas.

O SENHOR MINISTRO NÉRI DA SILVEIRA - Não estou fazendo


terrorismo. Depois de cada eleição vem a Lei da Anistia (...)

O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES - Nos Estados unidos, há


democracia e é facultativo o voto. Não é da essência do sistema democrático
haver a obrigatoriedade do voto com punição.

O SENHOR MINISTRO NÉRIDA SILVEIRA - É da essência do sistema


democrático que haja uma regularidade do processo eleitoral e que não se
cometam infrações. Quando se fala em eleições limpas e sem máculas, o que
sempre se apregoa e o que todos admitimos dentro de uma exigência
constitucional, não guarda correspondência com a possibilidade de,
simplesmente, após o pleito, anistiar todas as infrações.

O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES - Isso pode ser até crime.


Agora, multa administrativa para possibilitar processo eleitoral...

O SENHOR MINISTRO NÉRI DA SILVEIRA - Essas multas têm,


exatamente, o sentido de coibir tais ações. Quando se diz que isso pode ser
anistiado, não faz sentido algum com o sistema democrático e eleitoral
previsto na Constituição.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE -– {Quando oQuanto


ao?}Quanto ao art. 1º da Lei nº 9.996/2000, que trata da infração por
descumprimento da obrigatoriedade do voto, eu tenderia a admitir a anistia.
Agora, essa anistia de todas as infrações cometidas no curso de dois
processos eleitorais é demais...

O SENHOR MINISTRO NÉRI DA SILVEIRA - Ninguém pode descumprir


a legislação eleitoral, especialmente os candidatos que estão buscando o
poder. Essas infrações, todos sabemos, causam a desigualdade dentro do
processo eleitoral.
[...]

É um juízo de enfraquecimento do processo eleitoral, o que não contribui em


nada para a sua moralização.
[...]

Tudo aquilo que estiver em descompasso com os princípios da Constituição


não há de merecer acolhida.

O SENHOR MINISTRO MOREIRA ALVES - Por acaso o sistema


democrático necessita de voto obrigatório? Por que os países democráticos
não têm voto obrigatório? Se o voto não fosse obrigatório, não poderia haver
multa. [...] (grifo nosso)18

São particularmente interessantes as frases "não se resolve o problema da


legitimidade do processo eleitoral por meio de multas", "não é da essência do sistema
democrático haver a obrigatoriedade do voto com punição" e a de que "o sistema democrático
não necessita de voto obrigatório”.

O que se quer demonstrar é que nem o Poder Legislativo e nem o Poder


Judiciário demonstraram, na história recente do país, afeição às conseqüências pecuniárias
ligadas ao não exercício do voto.

Mas, tendo em vista a importância dada ao voto pelo ordenamento


constitucional, o valor ínfimo praticado atualmente como multa não parece apropriado como
sanção correspondente. Retira-se, com isso, até mesmo o valor educativo que a previsão de
obrigatoriedade do voto poderia ter, pois o cidadão é forçado a raciocinar: se o voto é tão
importante, porque pagarei uma multa tão pequena? Nem se diga que o valor ínfimo da multa
se justifica por conta da condição social dos eleitores, pois a própria possibilidade da alegação
de pobreza já impede tal raciocínio.

Se não se considerar as conseqüências previstas na própria constituição


Constituição como bastantes em si mesmas, a pena de multa se mostra uma das mais
apropriadas como fator de coerção ao não exercício do voto. Esta forma de sanção é escolhia
pela grande maioria dos países que adotam o sistema de voto compulsório. E é apropriada
porque, mantida em parâmetros sensatos, não ameaça nenhum direito fundamental protegido
constitucionalmente. A multa, uma vez transformada em dívida ativa pelo seu não
adimplemento, também tem o condão de, reflexamente, impedir a prática de muitos atos que
exigem quitação com a Fazenda Pública, o que aumentaria a intensidade da coerção sem ferir
frontalmente direitos fundamentais.

5.2. Restrição de acesso a cargos públicos

18 ADI 2306 - DF - Relatora Ministra Elllen Gracie - Publicada no DJ 31.10.2002


Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, Art. 7º, § 1º, I

[...]

§ 1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a


respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá
o eleitor:

I - inscrever-se em concurso ou prova para cargo ou função


pública, investir-se ou empossar-se neles;

[...]

Poder-se-ia pensar que a razão por trás de tal restrição é que, não sendo o
eleitor faltoso, por sua injustificada negligência em votar, um "cidadão exemplar", seria justo
que ficasse privado de concorrer a um cargo público. Mesmo se tal raciocínio for acolhido, tal
dispositivo precisa ser atualizado para apenas obstar a posse no cargo público, nunca impedir
a mera inscrição. A qualquer momento, antes da posse, pode o eleitor quitar seus débitos e
habilitar-se. De qualquer forma, esta norma geralmente não é obedecida, exigindo-se quitação
eleitoral apenas para os atos de admissão no serviço público.

Mesmo assim, apesar de a Constituição remeter à lei a tarefa de estabelecer


requisitos para o acesso aos cargos, empregos e funções públicas, não conseguimos conceber
qualquer relação entre a abstenção eleitoral e o serviço público a ser prestado pelo cidadão.

5.3. Proibição do recebimento de retribuição pecuniária por serviço


público

Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, Art. 7º, § 1º, II

[...]

§ 1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a


respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá
o eleitor:

[...]

II – receber vencimentos, remuneração, salário ou proventos de


função ou emprego público, autárquico ou paraestatal, bem como
fundações governamentais, empresas, institutos e sociedades de
qualquer natureza, mantidas ou subvencionadas pelo governo ou
que exerçam serviço público delegado, correspondentes ao
segundo mês subseqüente ao da eleição;
[...]
O próprio direito à vida é frontalmente atacado nestas disposições. A
retribuição pecuniária que o servidor público aufere dos serviços prestados ao Poder Público
tem obviamente natureza alimentar.

Se fosse objetivo do legislador impor embaraços razoáveis aos servidores


públicos não votantes, que os impedisse de receber promoções ou ocupar cargos de livre
nomeação e exoneração, como de fato faz o Código Eleitoral belga.19 Mas o salário, seja
proveniente de fonte pública ou privada, é ele mesmo protegido constitucionalmente, não
sendo razoável pensar que a própria constituição Constituição permita que se atente contra
ele, pois que ela mesma estabelece a proteção do salário, chegando ao ponto de criminalizar
sua retenção dolosa (Constituição Federal, Art. 5º, X).

Há, também, a Convenção nº 95 da OIT, de 1949, aprovada pelo Decreto


Legislativo n.º 24, de 1956 e promulgada pelo Decreto n.º 41.721, de 1957, que cuida da
proteção ao salário e estabelece várias garantias, inclusive sua impenhorabilidade.

Não seria coerente pensar que por um lado haja forte proteção ao salário e,
por outro, se permita a sua retenção por um fato pelo qual se comina multa tão ínfima. Salta
aos olhos a violência e completa incoerência desta disposição, que certamente destoa dos
preceitos constitucionais.

Como se pode permitir que, a pretexto de se forçar o cumprimento de um


“dever cívico”, se possa prejudicar a própria instituição familiar, e mesmo atentar diretamente
contra crianças e adolescentes, dependentes por certo do salário que o servidor público,
arrimo de família, recebe?

Conclui-se, portanto, que não há base para a retenção da remuneração


pecuniária do servidor público com base na legislação eleitoral. Qualquer tentativa que se faça
neste sentido será ato inconstitucional, atacável por mandado de segurança.

5.4. Proibição da participação em licitações públicas

Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, Art. 7º, § 1º, II

§ 1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a


respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá
o eleitor:

[...]

III – participar de concorrência pública ou administrativa da


União, dos Estados, dos Territórios, do Distrito Federal ou dos
Municípios, ou das respectivas autarquias;

Nada diz a Constituição sobre a licitação com órgãos públicos ser

19 Veja na nota número 9 o artigo 210 do Código Eleitoral da Bélgica.


condicionada ao cumprimento de obrigações eleitorais. O inciso XXI do Art. 37, ao tratar de
licitações públicas, apenas se refere a exigências de qualificação técnica e econômica
indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações, silenciando-se quanto aos demais
requisitos. Nem mesmo a Lei 8.666 de 1993, lei geral das licitações públicas, se refere a tal
requisito eleitoral, exigindo, em seu Art. 27, "exclusivamente" documentação relativa à
habilitação jurídica, técnica, econômico-financeira, regularidade fiscal e exigências
trabalhistas.

Efeito semelhante ao pretendido pelo dispositivo comentado seria


conseguido tão somente se a multa eleitoral fosse regularmente inscrita, dada a previsão, do
art. 27, III, da Lei 8666/96, que impõe a necessidade de regularidade fiscal como um dos
requisitos para a habilitação nas licitações.

Cremos que não subsiste mais esta restrição, tanto pelas disposições atuais
da Lei das Licitações, quanto pela falta de previsão constitucional.

5.5. Proibição de obter empréstimos públicos

Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, Art. 7º, § 1º, II

§ 1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a


respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá
o eleitor:
[...]

IV – obter empréstimos nas autarquias, sociedades de economia


mista, caixas econômicas federais ou estaduais, nos institutos e
caixas de previdência social, bem como em qualquer
estabelecimento de crédito mantido pelo governo, ou de cuja
administração este participe, e com essas entidades celebrar
contratos;
[...]

Percebe-se que o dispositivo objetiva vedar ao eleitor faltoso o acesso ao


dinheiro público, talvez pelo raciocínio de que o eleitor faltoso não é considerado “digno” de
se beneficiar dos empréstimos públicosde tais empréstimos.

Esqueceu a Junta Militar que mesmo o eleitor não votante, embora esteja
em débito com as obrigações relacionadas à sua participação política, pode estar em dia com
suas obrigações tributárias. O cidadão não votante, que cumprisse fielmente com suas
obrigações fiscais, estaria impedido de ter acesso a um serviço pelo qual contribuíra
normalmente. Não se pode considerar tal padrão de justiça como razoável.
Mais uma vez o legislador pecou pela disjunção entre a sanção e a sua
causa. Se o cidadão estiver em débito com o fisco de qualquer dos poderes, será um cidadão
não merecedor de receber empréstimos púbicos, porque se mostrou não confiável como
pagador. Se o cidadão não cumprir uma obrigação eleitoral, é justo que a constituição restrinja
seus direitos políticos passivos, pois se mostrou faltoso com suas obrigações eleitorais. Mas
uma conseqüência que não guarda relação com a sua causa é desproporcional e irracional,
devendo ser afastada do ordenamento.

5.6. Proibição de obter passaporte ou carteira de identidade

Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, Art. 7º, § 1º, II


[...]
§ 1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a
respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá
o eleitor:
[...]
V – obter passaporte ou carteira de identidade;
[...]

Mais uma previsão autoritária que não encontra eco no ordenamento


constitucional vigente. Vai de encontro ao princípio da liberdade de locomoção em todo o
território nacional em tempo de paz, assegurado pelo inciso XV do Art. 5º da Constituição
Federal de 1988, que também assegura que qualquer pessoa, nos termos da lei, pode entrar no
território nacional, permanecer ou sair dele com seus bens.

Na prática, se prevalecer o Código Eleitoral neste aspecto, o eleitor não


votante fica impedido de sair ou entrar no país. Tal conseqüência fere a Convenção
Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) ratificada pelo Brasil em
25 de setembro de 1992:

Artigo 22 - Direito de circulação e de residência

1. Toda pessoa que se encontre legalmente no território de um Estado tem o


direito de nele livremente circular e de nele residir, em conformidade com as
disposições legais.
2. Toda pessoa terá o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive de
seu próprio país.

3. O exercício dos direitos supracitados não pode ser restringido, senão em


virtude de lei, na medida indispensável, em uma sociedade democrática,
para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a
segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os
direitos e liberdades das demais pessoas. (grifo nosso)

Nos termos da convenção, portanto, toda a restrição do direito de


locomoção do cidadão somente poderá ser praticada na “medida do indispensável” para
impedir infrações penais, por razões de segurança nacional, segurança e ordem pública,
moral, saúde públicas e para proteger direitos e liberdades das demais pessoas. Não se inclui
dentre tais motivos “obrigações eleitorais”. A abstenção eleitoral certamente não é infração
penal, não fere a segurança nacional e não prejudica quaisquer direitos alheios, pois não
impede outros de votar.

A restrição da locomoção do eleitor faltoso também não guarda


relação lógica entre o objetivo da norma (fomentar o comparecimento eleitoral) e a sanção
imposta (restrição do direito de locomoção).

A questão fica ainda mais interessante quando se considera que a


Constituição Federal, em seu Art. 5º, § 3º, prevê que os tratados e convenções internacionais
sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois
turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais, sendo que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou que o Pacto de São
José da Costa Rica tem status de supralegalidade20. A prevalecer este entendimento, também
por este motivo deve o inciso do Código Eleitoral em comento ser afastado como
inconstitucionalnão recepcionado pela Constituição vigente, pois não está em consonância
com um tratado ratificado pelo Brasil, que teria (esta é a tendência) status supralegal.
Qualquer restrição do direito de locomoção pelo motivo de abstenção eleitoral deverá ser
questionada judicialmente por meio de habeas corpus.

A negativa de identificação civil tampouco nos parece meio razoável


de incentivo ao sufrágio, pois nenhuma correlação lógica é feitaguarda com o inadimplemento
de obrigações eleitorais. Negar ao cidadão a identificação civil e também não contribui para
acom a Administração Pública na medida em que impede uma importante identificação do
cidadão nos seus esforços de inclusão social e amparo material à população carente. Sendo a
realização dos direitos sociais mandamento constitucional, qualquer medida que venha a
obstaculizá-los irracionalmente deve ser questionada e rejeitada.

5.7. Restrições educacionais

Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, Art. 7º, § 1º, II

20 HC 87585/TO, rel. Min. Marco Aurélio, 3.12.2008.


§ 1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a
respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá
o eleitor:
[...]
VI – renovar matrícula em estabelecimento de ensino oficial ou
fiscalizado pelo governo;
[...]

Os resultados práticos de tal proibição é a vedação completa de educação


formal ao não votante, pois não há educação não formal que não seja fiscalizada pelo
governo21.

Para reforçar tal preceito de forte carga antidemocrática, a Lei nº.


6.236/1975 determina que se apresente o título de eleitor no ato de matrícula em qualquer
estabelecimento de ensino público ou privado (art. 1º).

Mais uma vez o raciocínio da lei eleitoral é falacioso e tacanho. Talvez


fosse sua intenção dificultar ao cidadão não votante o acesso a serviços custeados com os
tributos pagos pela população votante. Esqueceu o legislador militar que mesmo o eleitor não
votante poderia estar pagando regularmente seus tributos e estar sendo indevidamente privado
de um serviço pelo qual paga. Mas tendo em vista o grau de autoritarismo imperava na
promulgação do dispositivo, não é de se espantar que o legislador escolhesse a educação
como alvo de suas investidas contra direitos básicos.

E nNão é preciso muito esforço para sustentar a inconstitucionalidade


mácula do dispositivo em comento. A educação é direito social (Artart. 6º da Constituição
Federal de 1988), competindo aos entes políticos assegurar o acesso a ela; é direito de todos e
dever do Estado e da família “visando o pleno desenvolvimento da pessoa” e “seu preparo
para o exercício da cidadania” (Art. 205 da Constituição Federal de 1988). Seria grande
desserviço aos mandamentos constitucionais que se privasse o cidadão de uma educação que
justamente tem como um de seus objetivos “seu preparo para o exercício da cidadania”.

O dispositivo em comento é, portanto, inconsistente, incongruente e


completamente incompatível com a ordem constitucional vigente. inconstitucional.

5.8. Proibição genérica de praticar atos que exijam quitação militar ou


imposto de renda

Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, Art. 7º, § 1º, II

21 Ampla gama de controle é exercida pelos entes políticos em todos os níveis formais
de educação, conforme se depreende da leitura da Lei 9.394/1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional.
§ 1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a
respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá
o eleitor:
[...]
VII – praticar qualquer ato para o qual se exija quitação do
serviço militar ou imposto de renda.
[...]

Tal previsão é autoritária pela sua generalidade e despropósito. Quer o


Código Eleitoral que seja bastante que se exija, para absolutamente qualquer ato, quitação do
serviço militar ou imposto de renda, para que o não votante fique impedido de praticá-lo. Sem
suporte material ou nexo razoável com alguma causa que justifique a restrição, tal dispositivo
vai frontalmente contra o valor constitucional da livre iniciativa.

A redação do dispositivo é a mais autoritária possível. Não se lê "praticar


qualquer ato para o qual a lei exija", mas a previsão é frouxa: "para o qual se exija". Basta
uma simples exigência de quitação militar ou de imposto de renda, proveniente de qualquer
fonte, para que o não votante seja impedido de praticar ato. Intolerável uma previsão como
esta.

Embora fosse comum no regime autoritário, o ordenamento constitucional


vigente não permite mais previsões deste jaez. O princípio da legalidade impõe que, para que
se obrigue algum cidadão a fazer ou deixar de fazer "algum ato", primeiramente haja lei
escrita com os predicados mínimos de anterioridade, restrição e certeza. Qualquer lei que
tenha conteúdo tão impreciso e dilatado não é lei no sentido genuinamente constitucional,
pois "um meio cujos efeitos são indefinidos e um fim cujos contornos são indeterminados, se
não impedem a utilização da proporcionalidade, certamente enfraquecem seu poder de
controle sobre os atos do Poder Público"22.

6. Objeção de Consciência ao voto

Talvez devido à facilidade com que, no Brasil, os eleitores se livram


das conseqüências da abstenção eleitoral, raramente se discute uma possível objeção de
consciência ao voto. Mas esta possibilidade, como se evidenciará, deve ser considerada.
Cidadãos conscientes talvez dêem mais importância e significado ao voto do que a legislação
eleitoral infraconstitucional e, se isso resultar na decisão fundamentada de objeção completa
ao ato de votar, o instituto constitucional da objeção de consciência deve ser devidamente
considerado e a eles estendido.

A Constituição Federal de 1988, num raro exemplo de maturidade


22 ÁVILA, 2009, p. 163.
democrática e segurança quanto às instituições que criava, prevê em seu artigo 5º, inciso VIII
que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção
filosófica ou política”, excetuando-se o caso de recusa ao cumprimento de prestação
alternativa ofertada pela lei àquele que invocá-las para eximir-se de obrigação legal a todos
imposta.

6.1. Entendendo a objeção de consciência

Objeções de consciência, se entendidas como recusa fundamentada de


obediência a certos preceitos, tem existência antiga. Mudanças sociais, em última análise, são
feitas por objetores de consciência. Todos os responsáveis pelas grandes mudanças na
história, de uma forma ou outra, fizeram objeção às práticas que feriam suas consciências. Até
o estabelecimento dos modernos estados democráticos, tais objeções de consciência tinham
um custo muito alto: os bens, a liberdade e às vezes até a própria vida do desobediente. Basta
que nos lembremos dos cristãos do primeiro Século que, ao se recusarem a fazer parte de
determinadas facetas do império romano, sofriam conseqüências drásticas por agirem de
acordo com a consciência adquirida na novel religião 23 e também daqueles que dissentiram
do regime nazista ou de qualquer regime totalitário de Estado, além dos vários outros
exemplos históricos que se poderia citar.

Com a evolução da sociedade, e das instituições democráticas, cresceu


também o espaço para a discordância, a dissonância de entendimentos e o respeito às
minorias. Certo é que numa democracia é natural que a vontade vigiada de uma maioria
prevaleça. Tanto o sistema proporcional quanto o sistema majoritário privilegiam a formação
de maiorias. Mas o respeito às minorias dá o real sentido de Estado Democrático de Direito e
objetiva impedir que as instituições democráticas se degenerem em mob rules24.

Modernamente a previsão constitucional de escusa de consciência a


obrigações a todos imposta faz o que antes parecida coisa impossível: institucionaliza a
desobediência consciente e responsável do cidadão! E refletindo sobre a essência da
democracia podemos entender a profundidade de tal preceito.

A institucionalização da possibilidade de objeção de consciência é, ao final,


um reconhecimento de que a lei em vigor poderia ser outra, se a decisão final da maioria fosse
compatível com o conteúdo da objeção levantada. Tal raciocínio leva, obrigatoriamente, ao
cálculo da plausibilidade e razoabilidade das objeções. Quando a objeção for considerada
séria o suficiente para que possa ser ao menos cogitada a se tornar lei, pela sua
compatibilidade com princípios constitucionais fundamentais, pode-se afirmar que tal objeção
procede e deve-se propor o serviço alternativo previsto em lei. Este raciocínio, a contrariu
contrario sensu, foi analisado por LEONI25, quando escreveu que “parece ser inquestionável
que devamos rejeitar recorrer à legislação quando for utilizada somente como um meio de
subjugar as minorias para tratá-las como perdedoras em certo campo”. A objeção de

23 GIBBON, 2005, p. 328.

24 Termo de língua inglesa geralmente empregado para designar governo tirânico de


uma maioria, semelhante à palavra portuguesa oclocracia.

25 LEONI, 1961, p. 13.


consciência, seria, portanto, em ultima ratio, uma válvula de escape para que o cidadão se
mantenha na legalidade mesmo que rejeite veementemente uma obrigação imposta a todos.

A provisão constitucional de objeção de consciência é, conforme a


expressão de Canotilho26, um "direito de oposição democrática", possuindo também pontos de
convergência com a desobediência civil.

Trata-se de um problema de deveres conflitantes. Em que ponto o


dever de obedecer a leis estabelecidas por uma maioria do legislativo
(ou por iniciativa do executivo com o apoio dessa maioria) deixa de
ser obrigatório, em vista do direito de defender as liberdades pessoais
e do dever de se opor à injustiça? 27

No entanto, a característica marcante da objeção de consciência, e que a


distingue da evasão de consciência, é a ciência estatal, tanto da objeção quanto do objetor:

A objeção de consciência é a desobediência a uma injunção legal ou a


uma ordem administrativa mais ou menos direta. É uma recusa porque
uma ordem nos é endereçada e, dada a natureza da situação, as
autoridades sabem se a cumprimos ou não. Exemplos típicos são as
recusas dos primeiros cristão a executar certos atos de piedade
prescritos pelo Estado pagão, e a recusa dos testemunhas-de-jeová a
saudar a bandeira. Outros exemplos são a recusa de um pacifista a
servir às forças armadas, ou de um soldado a obedecer uma ordem que
ele julga abertamente contrária à lei moral em sua aplicação num
contexto de guerra.[...] Supõe-se que a ação de um indivíduo seja
conhecida pelas autoridades, por mais que, em alguns casos, se possa
desejar ocultar o fato. Onde a ação pode ser clandestina, poderíamos
falar de evasão em vez de objeção de consciência. Violações
clandestinas de uma lei sobre a fuga de escravos são exemplos de
evasão de consciência28.

Outras características importantes do instituto da objeção de consciência


prevista pela Constituição brasileira, conforme apontadas por José Carlos Buzanello, são o
desinteresse em agitações subversivas e a busca por uma alternativa que equivalha a
obrigação escusada.

A objeção de consciência, enquanto espécie do direito de resistência, é


a recusa ao cumprimento dos deveres incompatíveis com as
convicções morais, políticas e filosóficas, numa pretensão de direito
individual em dispensar-se da obrigação jurídica imposta pelo Estado
a todos, indistintamente. A objeção de consciência se caracteriza por
um teor de consciência razoável, de pouca publicidade e de nenhuma
agitação, objetivando, no máximo, um tratamento alternativo ou
mudanças da lei. Assente como direito fundamental na Constituição

26 CANOTILHO, 1993, p. 327.

27 RAWLS, 2002, p. 403.

28 RAWLS, 2002, p. 408.


de 1988, o instituto jurídico da objeção de consciência se dá em duas
perspectivas: uma, como escusa genérica de consciência (art. 5o, VIII,
CF), e outra, enquanto escusa restritiva ao serviço militar (art. 143, §
1o, CF). Pelo sistema constitucional, o preceito especial combina com
o preceito genérico, no caso, a objeção de consciência ao serviço
militar.29

A objeção de consciência é, portanto, uma provisão democrática para o


cidadão que, aberta e fundamentadamente, a critério vinculado da autoridade, pretende abster-
se de obrigação a todos imposta, submetendo-se a uma prestação alternativa, prevista em lei.

6.2. Objeção de consciência ao voto?

Quais seriam, então, possíveis motivos pelos quais um cidadão poderia


considerar que o exercício do voto, tal como é praticado no Brasil, feriria sua consciência?

A própria obrigatoriedade do voto poderia ser um motivo político-


filosófico alegado como não compatível com a consciência de algum cidadão.

Pode-se argumentar que, como direito, não é razoável que seja


exercido compulsoriamente. Ademais, a obrigatoriedade certifica a
imaturidade do povo, ainda merecedor da tutela estatal. Ademais,
afirma-se serem reduzidas as chances de "eleitores compulsórios"
votarelm em candidatos sérios e honestos, já que não participam
intensamente da vida política. Votam, pois, em qualquer um, no
primeiro que se apresenta ou no mais bem aparentado, isso quando
não negociam seus votos, transformando-os em mercadorias, já que só
comparecem as urnas compulsoriamente. 30

O sistema eleitoral vigente, pensamos, também pode parecer objetável ao


eleitor que conscienciosamente preferisse outro tipo de sistema, como o sistema distrital,
distrital misto, o sistema de listas fechadas ou qualquer outra particularidade do sistema
eleitoral. Pode-se pensar que, na atual configuração dos sistemas eleitorais brasileiros, as
escolhas políticas não refletiriam necessariamente a vontade popular, por isso sua consciência
o impediria de votar, pois assim estaria apoiando o sistema no qual não acredita.

O financiamento das campanhas eleitorais é outra questão que suscita


muitas controvérsias e poderia levar algum cidadão a questionar a própria prática do voto. Os
freqüentes casos de corrupção no financiamento das campanhas eleitorais, os “recursos não
contabilizados” e a força desigual do poder econômico podem fazer com que o cidadão fique
propenso a preferir o financiamento público de campanha, pois este seria o único a igualar os
partidos políticos.

29 BUZANELLO, 2009.

30 GOMES, 2008, p. 38
Motivos de índole religiosa também podem ser alegados. Um exemplo
prático pode ser encontrado na Suprema Corte brasileira, que no ano de 1986 tangenciou o
tema. Tratava-se de pedido de provimento cautelar em representação de inconstitucionalidade
do art. 144 do Código Eleitoral quanto ao horário de votação (das 8 às 17 horas) formulado
por pessoa de crença protestante adventista. Afirmava-se que a data das eleições gerais
daquele ano (15 de novembro, sábado) feriria a liberdade de crença dos adventistas sabatistas,
e pretendia-se a extençãoextensão do horário para além do pôr-do-sol. Evocava-se o § 5 do
Art. 153 da Constituição então em vigor, que garantia a liberdade de crença religiosa, e o § 6
do mesmo artigo, que vedava a privação de direitos por motivo de crença religiosa salvo se os
invocasse para eximir-se de obrigação legal a todos imposta.

O Tribunal, por entender ausentes os pressupostos, indeferiu a cautelar. Ao


proferir seu voto, o Sr. Ministro Rafael Mayer analisou a questão posta diante da previsão
constitucional da obrigatoriedade do voto e do instituto da escusa de consciência. Ao enfatizar
a laicidade do Estado brasileiro, arrazoou:

[...] O que me parece que está, realmente, em jogo, é a chamada


escusa de consciência, ou cláusula de consciência, ou objeção de
consciência que a nossa Constituição, no § 6 do art. 153 resguarda aos
cidadãos brasileiros, dando-lhes certas conseqüências.

[...] Então, todos os cidadãos estão obrigados a cumprir aquelas


normas gerais, com as exclusões das objeções de consciência, mas
com as implicações que daí decorra. O que cabe a esses eleitores, ao
meu ver, é, obviamente, diante da Justiça Eleitoral, se por este motivo
eles se recusarem ou se sentirem impedidos, por uma razão espiritual
ou íntima de consciência, a não comparecerem ao lugar de votação, é,
repito, diante da Justiça Eleitoral, alegarem objeção de consciência
para se exonerarem das responsabilidade que advêm do
descumprimento do dever eleitoral. – grifo nosso.31

Como visto, motivos para a objeção de consciência ao voto obrigatório


podem existir. Mas o ponto é como o assunto deve ser tratado à luz da Constituição?

Para clarear a análise que segue, deve-se distinguir a objeção de


consciência ao voto do simples abstencionismo eleitoral. A primeira é o exercício de um
direito previsto constitucionalmente. O segundo é o não cumprimento de uma obrigação
constitucional; uma falta, portanto. Enquanto para a objeção de consciência ao voto se liga

31 Representação nº 1371-5 - Distrito Federal – STF – 10.06.1988.


uma prestação alternativa, ao abstencionismo eleitoral se liga uma sanção. Quando alega
fundamentado imperativo de consciência e aceita a prestação alternativa, o objetor de
consciência está quite com suas obrigações eleitorais e não pode sofrer qualquer tipo de
sanção. Quando se abstém de votar imotivadamente, o eleitor está em débito com suas
obrigações eleitorais até que se redima cumprindo a sanção imposta.

6.3. O voto como obrigação a todos imposta e a natureza da prestação


alternativa ao voto

Apesar da origem constitucional da obrigatoriedade do voto, é a legislação


infraconstitucional que toma a peito (talvez presunçosamente, conforme apontamos), a tarefa
de reforçar tal previsão.

O voto é uma obrigação geral por excelência, dada a qualidade do sufrágio,


universal. Não é como a obrigatoriedade de pagar tributos, que atinge os praticantes dos fatos
geradores e não pode ser escusada, pois dificilmente haveria alternativa ao pagamento em
dinheiro aos cofres públicos. O voto obrigatório é ainda mais abrangente que o serviço militar
obrigatório, visto que a lei pode restringir a entrada dos cidadãos para o serviço militar, mas
não pode fazer isso em relação ao exercício do sufrágio por meio do voto.

Aliás, as duas principais obrigações a todos impostas na Constituição


Federal são o serviço militar e o voto. Para o primeiro a Constituição decide dar os contornos
do serviço alternativo a ser oferecido. Para a segunda não o faz. Conclui-se, então, que a
questão do voto está afeta à regra geral do art. 5º, VIII da Constituição Federal de 1988.

A natureza do serviço alternativo ao voto obrigatório começa a ser


esclarecida quando analisamos os termos utilizados pela Constituição. Como alternativa ao
serviço militar ela utiliza o termo “serviço alternativo” (Art. 143, § 1). Como alternativa à
objeção de consciência genérica ela utiliza o termo “prestação alternativa” (art. 5º, VIII).
Certamente isso não acontece em vão. O serviço alternativo ao serviço militar obrigatório,
dadas as especificidades da obrigação de servir às forças armadas, terá que ser compatível
com sua duração e complexidade e será sempre serviço, ou seja, o “"desempenho de funções
públicas", ”, um "“trabalho, ocupação”"32. Já para a objeção genérica a Constituição se
satisfaz com “prestação”, que certamente também guardará proporção com a complexidade,
importância e natureza da obrigação escusada. Ter utilizado “prestação” em vez de “serviço”
parece indicar que as possibilidades são maiores no caso da prestação alternativa à obrigação
a todos imposta diversa do serviço militar, podendo igualmente incluir um serviço mas não
necessariamente.

Nesta esteira de entendimento, a Lei 8.239, de 4 de outubro de 1991, que


dispõe sobre a prestação de serviço alternativo ao serviço militar obrigatório, no § 2º do seu
Art. 3º define o serviço militar alternativo como o exercício de atividades de caráter
"administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo" que substitua as atividades
essencialmente militares. Inclui-se (§ 3º) a possibilidade de convênio entre os Ministérios

32 DICIONÁRIO MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Edição


Eletrônica. São Paulo: Melhoramentos, 1998, verbete "serviço".
Civil Civis e os Ministérios militaresMilitares, respeitando-se as aptidões do convocado. O
ponto é que o serviço alternativo em questão terá caráter público e substituirá o serviço
militar, sendo individualizado.

Mas a obrigação de votar é de natureza diferente da obrigação militar. Ela se


completa quando o cidadão deposita na urna sua cédula (ou digita sua opção na urna
eletrônica), independentemente de sua opção eleitoral. Poderá votar em branco, votar nulo,
votar na legenda, votar em apenas um candidato ou votar em todos. O que se exige é o
simples comparecimento na cabine de votação e uma escolha dentre as opções postas.

Qualquer prestação alternativa ao voto obrigatório deverá equilibrar a


importância constitucional do ato de votar com sua efemeridade. Se o cidadão for, por razões
de foro íntimo, objetor de consciência ao voto, uma prestação alternativa imputada a ele não
poderá ser tão gravosa a ponto de ser desproporcional com o tempo gasto para votar. Deve-se
também evitar que a prestação alternativa seja excessivamente mais gravosa do que a multa
aplicada ao não votante, pois o objetor está apenas exercitando um direito, diferentemente do
eleitor faltoso, que não cumpriu o seu dever.

Analisando-se o caráter da obrigação escusada, a dificuldade em exercê-la e


as sanções pelo descumprimento simples e puro da obrigação eleitoral, podemos chegar ao
entendimento de que qualquer prestação alternativa deverá 1) ser compatível com a seriedade
do voto 2) não ser excessivamente maior do que a pena pecuniária aplicada ao não votante 3)
não impor ao objetor prestação que lhe consuma tempo excessivamente maior do que se
valeria para votar. Pensamos que tais balizas devem nortear o estabelecimento da prestação
alternativa ao voto.

Quanto à efetividade do direito de escusa de consciência, trata-se de norma


de eficácia contida segundo a classificação de José Afonso da Silva33, que considera a regra
do inciso VIII do Art. 5º da Constituição Federal de 1988, como plenamente eficaz até que
uma lei não lhe restrinja seu alcance. Significa dizer que, enquanto não houver lei fixando
serviço alternativo ao voto obrigatório, e se tal objeção for considerada legítima pela
autoridade competente (o juiz da zona eleitoral ao qual o cidadão estivesse vinculado), seria
inconstitucional qualquer restrição de direito imposta ao objetor de consciência ao voto.

Conclusões

Chega-se à conclusão de que a obrigatoriedade do voto no Brasil, tal como é


colocada em prática pelo ordenamento infraconstitucional, está desvirtuada por não atender
aos fins almejados pela Constituição, que já prevê, ela mesma, os meios necessários para a
implementação de seus preceitos, sendo qualquer outra medida neste sentido questionável. A
constituição não autoriza expressamente o legislador ordinário a estabelecer qualquer tipo de
sanção pelo não exercício do voto.

A multa aplicada aos não votantes é de efetividade duvidosa, causando

33 SILVA, 2007, p. 104.


apenas o incômodo de obrigar o eleitor efetuar o pagamento de um valor ínfimo ou de alegar
estado de pobreza. Perde-se, assim, muito do valor educativo que a instituição do voto
obrigatório poderia ter no convencimento do cidadão da necessidade de participação nas
decisões políticas de seu país. As demais sanções previstas pelo Código Eleitoral vigente aos
eleitores faltosos também não são compatíveis com a Constituição Federal de 1988, sendo
fruto de um modelo de Estado autoritário e não comprometido com os direitos e garantias
individuais. As proibições de inscrever-se em certames públicos, de receber valores salariais
do Estado, de obter empréstimos públicos, de obter passaporte ou carteira de identidade, o
impedimento de renovar matrícula em estabelecimentos de ensino e a proibição genérica de
praticar qualquer ato para o qual se exija quitação do serviço militar ou imposto de renda, não
estão em harmonia com os princípios e valores da Constituição, podendo ser considerados
como não recepcionados. Tais ranços do autoritarismo devem ser expurgados das previsões
legais relacionadas com a obrigatoriedade do voto.

Falta, também, ao legislador ordinário, prover prestação alternativa ao


cidadão que tiver objeção de consciência ao voto. A abstenção eleitoral não se confunde com
a escusa de consciência ao voto. A prestação alternativa a ser proposta ao objetor de
consciência deverá ser compatível com as características peculiares da obrigação de votar.
Sendo a previsão genérica de escusa de consciência uma norma constitucional de eficácia
contida, já produz todos os seus efeitos até que a lei lhe defina os contornos, não podendo o
cidadão ser privado de direitos pela escusa de consciência ao voto enquanto não for editada lei
que preveja o serviço alternativo adequado.

Em suma: todas as provisões infraconstitucionais relacionadas à


obrigatoriedade do voto falham, ou pela falta, ou pelo excesso.
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