Autor de uma “Supra-realidade da realidade “ onde todo o leitor se encontra seja
intelectual ou inculto
“Evocar Miguel Torga “ é uma obrigação de todos. A mim, que gosto de me
vangloriar intimamente de ser o seu mais incondicional admirador, fazê-lo, neste contexto, afigura-se-me como algo inevitável apesar do risco. Inicio esta minha humilde e incipiente evocação, consciente de que nunca conseguirei exprimir metade do tumulto de ideias, sentimentos e emoções que os textos de Miguel Torga desencadeiam em mim (ele que é o escritor que revisito vezes sem conta, nos mais variados momentos e estados de espírito). Esperando que haja neste acto (re) criativo (ou talvez apenas recreativo) “ uma parte imprevisível que [surja] […] de uma dinâmica que se cria”, nas palavras de Siza Vieira, que “ as ideias [venham] imateriais e mexam com o papel branco” e que haja “desenvolvimentos, soluções que [saiam] do interior” desta simples intenção, (apesar de este Poeta / Exímio Contador de Histórias ter sobre mim o efeito que Garcia Llorca tinha sobre ele, salvaguardadas as devidas distâncias, de “ seca [r] nos olhos de quem o procura/ A cor possível de outra inspiração”), parto para esta aventura quase suicida, apenas porque tenho as palavras do poeta a encorajar-me dizendo-me repetidamente que “ Em qualquer aventura/ O que importa é partir, não é chegar”e que “ Aprendo a conhecer o meu tamanho/ Pela maneira como perco ou ganho”, tanto mais que " Nenhum triunfo vale o sol que o doira/ E nenhuma derrota o é na morte/ Que temos certa.". Tentar mostrar em poucas páginas o colosso que foi Miguel Torga como criador, e a importância que tem a sua obra para uma maior compreensão da alma portuguesa, que afinal não é diferente d'A Alma Humana, é realmente um quase atrevimento, pois que, na minha opinião, a sua obra não se trata, de facto, de “ uma mera celebração literária para iniciados, mas de um sincero esforço de comunhão universal.” Depois de lido e relido, nas linhas e entrelinhas fica claramente provada uma das teorias em que gostava de acreditar de que “ a arte [deve ser - e a sua é-o -] o mais pura possível nos meios e o mais larga possível nos fins”. Parto do pressuposto de que há diferentes tipos de leitor, a quem correspondem diferentes propósitos de leitura, e de que há leitores hedonistas a quem satisfazem textos simples, fáceis, desprovidos de artifícios, cujo conteúdo possa ser “ digerido” sem esforço, aos quais os textos de Miguel Torga parecem, por vezes, de forma enganosa, dirigir-se, exclusivamente, tal a aparente simplicidade que revelam. É evidente que Miguel Torga – Contador de Histórias proporcionará momentos de prazer, eventualmente, comoção, a muitos desses leitores, porém, a esta simplicidade transparente, aparentemente superficial, da forma, que parece dizer tudo nas linhas e nada ter para transmitir nas entrelinhas, corresponde uma grande complexidade de sentidos. Ainda nas palavras de Siza Vieira, que parece ter conquistado, na arquitectura, essa capacidade de tornar simplicíssimo na aparência, o que é extremamente complexo na essência, “ A naturalidade, a simplicidade, é uma conquista muito difícil e muito laboriosa…”. Penso que o segredo do sucesso da obra de arte, estando na conjugação perfeita de vários factores, é certo, está, essencialmente, no facto de o artista ter conseguido exprimir da forma mais simples as ideias mais profundas. De " criar uma supra-realidade da realidade, onde todos os homens se encontrem, quer sejam intelectuais, quer não..." e este, que era afinal o seu intento, foi plenamente conseguido por Miguel Torga: - Serve-se, de forma exímia, do vocabulário diariamente usado pelos seu vizinhos iletrados, em articulação perfeita com recursos linguísticos sofisticadíssimos. Parecendo falar simplesmente a língua daqueles, combina-a na perfeição com a elegância artística da linguagem mais sofisticada. Faz uma selecção, de tal maneira cuidada, de expressões diaria, e distraidamente usadas pelo seu povo, que o resultado é da mais surpreendente espontaneidade - o seu espírito sensível e educado cria autênticas pérolas de uma beleza extraordinária. Todavia a sua simplicidade é de tal ordem, que me pergunto, quem não compreende e não se comove até às lágrimas com o drama vivido por Madalena? - Essa personagem, como tantas outras em Miguel Torga, cuja grandeza consiste em, nas palavras de Milan Kundera, "carrega[r] [admiravelmente] com o seu destino como Atlas carregava aos ombros a abóbada dos céus". Essa personagem indefesa, qual gazela, vítima do frio e interesseiro predador indiferente ao seu sofrimento. E quem não conhece esta natureza, toda ela feita de predadores e de vítimas, representada de forma inteira por Miguel Torga, com as suas forças benignas tão caras aos seres humanos, e com as suas forças malignas tão incompreensíveis, por vezes, tão injustificadas? -Esta natureza de que Madalena é parte integrante , com a qual ainda não rompeu laços, porque se encontra ainda no mais perfeito estado de inocência, que lhe serve de única companhia e testemunha da sua grandeza interior,( no fim afinal não somos só nós e o universo infindo?... ), e que com ela resiste estoicamente aos golpes fatais do destino que lhe coube em sorte, é apresentada em perfeita sintonia com o seu sofrimento para que se não sinta tão negligenciada! Por isso, enquanto ela sofria violentamente com as " guinadas"provocadas pelas dores do parto e com a sede insuportável que o esforço desumano lhe causava "As urzes torciam-se [com ela] à beira do caminho, [ como ela] estorricadas".Em simultâneo, sem dar tréguas ,(como a própria vida), paralelamente, implacável, " Queimava. O sol amarelo..." " Parecia que o saibro duro do chão lançava baforadas de lume". Não faltava, a este quadro de forças antagónicas, neste mundo onde tudo acontece ao mesmo tempo, inexoravelmente, o lado mesquinho, obscuro, da natureza (também humana), do carrasco, muitas vezes nascido da fraqueza da vítima , (tipo humano muito querido do autor e tão generosamente apresentado n' O leproso), representado por " uma giesta miudinha, negra, torrada do calor [ que] cobria de tristeza rasteira o descampado" ( votado à mais absoluta solidão!) Também não faltava o seu lado arbitrário, simplesmente traidor e frio, de serpente despeitada por ter nascido para rastejar, e " Debaixo dos pés o cascalho soltava risadas escarninhas". E assim, " Ao tormento do cansaço e à crueldade das guinadas traiçoeiras que a anavalhavam quando menos esperava, juntara-se uma sede funda, grossa, que a reduzia inteira a uma fornalha de lume". Aos outros leitores, também hedonistas, que procuram no texto a fruição, um tipo de prazer menos imediato, mais profundo, que procuram a beleza da forma, a riqueza das imagens, a harmonia das frases, a melodia das palavras, Miguel Torga agrada inequivocamente, pois " deslumbra-lhes os sentidos" como também era sua pretensão, através de imagens belas, onde todos os cinco sentidos são estimulados de forma impressionante. Escolhi, este, poderia ter escolhido muitos outros para ilustrar um dos quadros de natureza existencial que nos é magistralmente pintado por Miguel Torga. Nele, a solidão humana parece gritar-nos que " A vida humana começa do outro lado do desespero", para que tomemos consciência de que "estamos absolutamente por nossa conta, [de que] temos liberdade total para escolher a nossa vida em cada momento, (estará o autor também certo de "que somos finitos e nada nos espera no fim da linha"?) O que parece , sem dúvida, certo é de que " é deste mesmo desespero que partimos para sermos livres e responsáveis pelas nossas escolhas e pela nossa vida". Aos leitores mais severos, aos que buscam na leitura a Verdade, os fundamentos do universo, as razões para o sofrimento, ou eco do seu próprio sofrimento, aos leitores com pretensões mais filosóficas que buscam, quiçá, Deus, a quem interessam textos profundos, complexos, que exijam reflexão, por vezes até, um certo compromisso, também Miguel Torga chama para o círculo dos seus fiéis seguidores . Por toda a sua obra poética, nos seus " Diários",( onde o " Poeta , prosador" encontra " descanso[ para] as [suas] [...] angústias" " na letra redonda") ou nos seus contos, sob a aparência de histórias simples, que qualquer criança pode compreender, perpassam perfeitos tratados de cariz filosófico que nos despertam a consciência para questões profundas, como a da eutanásia, por exemplo, que , de forma arrepiante , nos é apresentada n' "O Alma Grande", aquele " pai da morte" " Alto, mal encarado, de nariz adunco"com " cara seca [de] [...] abafador " que " passava guia ao moribundo" com " a tenaz das suas mãos e o peso do seu joelho"." impávido e silencioso" ( sinistro!) e que " Saía com uma paz no rosto[...] igual à que tinha deixado ao morto." Ou a questão do dever( que tanto me atormenta!) e da fidelidade a princípios ( quais princípios? Como estabelecer uma hierarquia de importâncias? Quem escolher? - O indivíduo ou a sociedade? ...)( a velhíssima questão tão bem abordada por Shakespeare), que , também de forma simplicíssima, é abordada em " Fronteira" onde o Robalo, um" rapaz[ ...] do Minho , acostumado ao positivismo da sua terra" ,uma personagem que tão bem representa o chamado " universal singular" , (o quase chavão usado a propósito de Miguel Torga que toda a gente, mesmo quem nunca leu uma linha sua, conhece), fica estupefacto porque a idiossincrasia de uma aldeia inteira entra em total contradição com a sua própria forma de estar e de pensar, herança de tempos imemoriais, e que ele, por uma questão de princípio, decide impor aos demais porque " só ele marcha bem" . Por isso," Pelo ribeiro fora parecia um cão a guardar"e aqui, como no mundo do nosso dia a dia ,quaisquer meios pareciam justificar os fins " Em quinze dias foram dois tiros no peito do Fagundes, um par de coronhadas no Albino, e ao Gaspar teve-o mesmo por um triz[...] a bala passou-lhe a menos de meio palmo das fontes." ( a paz de todos, das sociedades, - ou de quem manda nas sociedades? - a justificar os crimes , as guerras..e lembro que este conto foi escrito e publicado em plena vigência do regime fascista!), e uma vez mais aqui Miguel Torga concede a salvação ao homem que vive na " fronteira" entre a civilização e a barbárie dando à civilização a vitória " porque o coração dos homens, por mais duro que seja, tem sempre um ponto fraco por onde lhe entra a ternura" , esperança também tão comoventemente exposta no conto " Repouso" onde o Joaquim Lomba que " quase não trabalhava" porque "ninguém o queria, nem a dias nem de empreitada." e que levava " uma existência negra[...]sozinho, sujo, coberto da sombra do medo e da desconfiança dalgumas léguas em redor"e " trazia estampada no rosto a ferocidade" que fazia correr " por todos um calafrio de pavor" , mas a quem " Mazombo, ensimesmado, a marca que sentia na cara dava [...] uma tristeza funda, de revolta esganada.” E em quem " Em certas horas, uma humanidade estuante, larga, generosa, que também nele morava, queria mostrar-se à luz do sol", sem que contudo lhe fosse dada qualquer oportunidade, pois " o primeiro a quem dava os bons dias cortava-lhe aquela onda fraternal em bocados"( como a fronteira entre a virtude e o defeito é afinal ténue!) e há aqui como que uma génese do ódio, da raiva, naqueles a quem por vezes não resta alternativa ao " vazio, um desespero sem remédio, um abandono maior do que o das pedras, prefigura[ndo-lhe][...] o inferno" . E também este é salvo pela corajosa inocência, pela bondade primordial representada pelo " garoto" "com nove anos " que defendia com "decisão" a sua " quimera" a cuja coragem o Joaquim Lomba se rendeu " comovido" murmurando " Chegou para mim" , contente por ser finalmente tratado como um igual... E assim desfilam perante os nossos olhos seres humanos para quem as nossas dúvidas, as nossas angústias, as nossas certezas e convicções, o nosso conceito de honradez, a nossa ideia de direito, de justiça, e de tantas outras questões que só aos humanos perturbam, são o pão-nosso de cada dia, e não nos sentimos tão sós. Fica-me uma imensa pena, de, por falta de espaço e de tempo, não poder referir-me a cada um deles detalhadamente, e mostrar aqui, o que eu vejo em cada um de belo (na sua quase perfeição, quase imperfeição de deuses terrenos). Que pena tenho de não poder mostrar o quanto me impressiona a grandiosidade da figura da Maria Lionça, que escolheu sempre o outro para servir serenamente, sem queixas nem revolta; da Mariana, que inocentemente viveu a vida, de forma espontânea, límpida, transparente, alheia a segundas intenções, indiferente ao interesse humano, como uma verdadeira e autêntica força da natureza; do caçador, a quem só a velhice, por vir acompanhada de fraqueza roubou a inocência e consequentemente a alegria espontânea de viver; do povo de Saudel, que à força de ser paternalizado, infantilizado, deixou, como as crianças, de ser capaz de distinguir realidade de ficção; e de tantos, tantos outros que me servem de referência vezes sem conta! A mim, que leio por prazer, por necessidade imperiosa, por impulso incontido, por uma mão cheia de razões, a mim que não sei quem sou, que me procuro nos textos, que como Fernando Pessoa (salvas as devidas distâncias) também sou " um espalhamento de cacos ", que busco nos textos respostas para as minhas inúmeras perguntas, solução para dilemas sem solução, companhia, consolo, justificação para um sem número de incapacidades, que busco, enfim, a felicidade que não existe senão em sonho, Miguel Torga, a quem eu muito devo, oferece-me um pouco de tudo: Companhia, (fazendo sentir ridícula e mesquinha a minha solidão ao lado das suas personagens " que se purificam com sofrimento universal num purgatório de chamas transmontanas "), consolo, porque também eu que, nas palavras de Fernando Pessoa, sinto que" Venho de longe e trago no perfil, / Em forma nevoenta e afastada, / O perfil de outro ser que desagrada/ Ao meu actual recorte humano e vil." E que por isso " trago às costas esta maldição/ De sofrer com razão ou sem razão / E de não ter alívio nas lágrimas que choro!" e Miguel Torga ajuda a atenuar a minha culpa ao redimir todos os homens, fazendo-me crer que " assim vivo infeliz. / Desesperado só por ser humano, / E humano sem saber, como é que fiz."), Afinal, " Todo de carne e osso, / como posso/ transfigurar-me?" Assim, não como " Leitor do pitoresco ou do estranho, mas como sensível criatura tocada pela magia da arte e chamada pelos imperativos da vida " hoje regalo-me com os seus textos, amanhã comovo-me, depois cismo, e fico dias e dias ensimesmada, responsável pela " salvação da casa que, por arder, [me] [...] deslumbra os sentidos", e ganho força redobrada para " cortar as ondas sem desanimar" apesar de " A revolta imensidão / transforma [r] dia a dia a embarcação numa errante e alada sepultura...", porque " A honra é lutar sem esperança de vencer". E ganho coragem para continuar a não "contornar" o " muro" nem tentar" ultrapassá-lo de qualquer maneira", porque, nesta medida também toda a sua obra é exemplar como os contos de Sophia. Nas crises, ele ajuda-me invariavelmente a crivar o trigo para o separar do joio, com a sua enorme sabedoria. Se assim não fosse, que difícil seria, para mim, " Nesta selva de caminhos, de veredas, de confusa vegetação! [onde é] tão fácil perdermo-nos! (como tão bem disse Vergílio Ferreira na Aparição) escolher qualquer deles.
Nota: As citações que não são retiradas dos contos referidos, foram-no de alguns dos prefácios que fazia à sua própria obra ou de poemas seus, nomeadamente “Medida”, “Viagem”, “ Depoimento”,” A Garcia Lorca, em Granada”, “ Drama”