Mariana Filgueiras fim não lhe mete medo. Nem a morte: Para celebrar a data, o Jornal do
– Como pegar a voz de um – É preciso fazer parte da natureza Brasil propôs ao poeta que respon-
peixe? Todos os dias, no quintal de casa, em que nem um cisco faz, que nem uma desse a algumas de suas próprias pro-
– Mais difícil do que pegar na meio ao Pantanal, Manoel de Barros cis- ema faz. Depois do cisco e da ema, falta vocações deixadas em forma de poe-
fala dos peixes é o pegar na fa- ma de inventar as tardes a partir de uma pouco. sia. Os versos de seus livros editados
la das coisas. Francis Ponge garça. Ou de um bem-te-vi. Vê um peixe E o que esperar daqui para frente? pela Record foram transformados em
tinha o gosto de pegar na voz e quase lhe pega a voz. Perto de comple- Manoel faz graça: perguntas. Diante do desafio, Manoel
das coisas. É necessário cul- tar 90 anos, nesta terça, o senhor de fala – Quero um DVD do último filme de de Barros riu. Disse não ter tanta ins-
tivar o peixe em casa para se pausada conhece como ninguém as inti- Fassbinder, um CD de Nelson Freire piração assim. Pediu permissão aos
conseguir pegar na voz dele. midades da natureza. Confessa: falta com músicas de Bach e a mais recente sapos, retirou-se do quintal e respon-
Há que domesticar o peixe. muito pouco para tornar-se árvore. O edição da obra de Guimarães Rosa. deu às questões.
Eu, certa vez, criei um peixe
no bolso. Ele pedia pra sair do ARQUIVO
É necessário
“
bolso e cair n’água. Mas há
que insistir em prendê-lo no cultivar o peixe
bolso. Assim o peixe implora.
E nós podemos agarrar na em casa para se
voz. Não é fácil. Ele soletra as conseguir pegar
águas antes de falar. na voz dele. Há
– Qual lado da noite que domesticar o
umedece primeiro? peixe. Eu, certa
– Certa vez, um garoto falou vez, criei um
que do lado da Bolívia estava
a se formar uma chuva. Seria
peixe no bolso
o lado oeste de onde estáva-
mos. As chuvas sempre se
formavam do lado da Bolívia.
Vi um bem-te-vi
“
Por isso se falava no galpão
que aquele era o lado mais em cima de uma
úmido da noite. E como nin-
guém contestasse ficou sen- pedra. Ele estava
do. Mas isso terá vindo a ver- fascinado pela
so depois de 30 anos. solidão da pedra.
– O que falta ao poeta para
Estou relendo o
ser árvore? profeta Jeremias,
– Falta se entregar à natureza que teve uma
moda um sapo, moda uma pe- visão: as pedras
dra, moda um rio, moda um
pássaro. É preciso fazer parte da rua choravam
da natureza que nem um cis-
co faz, que nem uma ema faz.
Depois do cisco e da ema falta Nem o ver é fundamental. O – O vôo do jaburu é mais – São as dálias lésbicas? cisei de aprender absurdez.
pouco. ver também é acessório. encorpado do que o vôo das – Quando as dálias se encon- Falo e escrevo fluentemente
Quem manda é a visão. A vi- horas? tram, elas se amam. Todas as em absurdez. Por isso desco-
– O homem que toca a são vem completada de lou- – A hora voa sem asa, por is- flores se amam de flor em bri que o sol tem perfume.
existência num fagote tem curas, fantasias e bobagens so não dá para a gente sa- flor. Isso uma verbena me
salvação? profundas. Foi a visão que ber. Acho que o vôo do jabu- contou. Não posso garantir – Ainda dá tempo de inventar
– Acho que o verso fala da sal- achou jacintos crescendo em ru é mais encorpado. O vôo nem desmentir. uma tarde a partir de uma
vação pelo amor, pelo gosto minhas palavras. Acho que os das horas, a gente não vê. garça?
de estar ouvindo e cantando jacintos ainda crescem nelas. Eu tenho vontade de con- – Ainda sente o cheiro do – Ontem eu vi um bem-te-vi
no fagote. Mas eu não tenho cretizar uma hora. Eu bota- sol, a 15 metros do em cima de uma pedra. Ele
fagote. Só o outro do poeta to- – As palavras ainda têm ria osso na hora. E botaria ar co-íris? estava fascinado pela solidão
ca fagote. carne e a cor do êxtase? asas. Só de peraltice com as – Sei que as perguntas são pa- da pedra. Estou relendo o
– Poesia é armação de pala- palavras. Depois eu faria ra experimentar meus absur- profeta Jeremias. As suas la-
– Os jacintos ainda crescem vras com um canto dentro. uma pandorga da hora, para dos. Já confessei algumas ve- mentações pelas desgraças
sobre as suas palavras? Sempre armei os versos ela voar. Mas eu não deixa- zes que gosto mais de brincar da sua Jerusalém. No fim, ele
– Em poesia, a razão é acessó- meus com as aflições e os êx- ria que a hora escapasse de com as palavras do que pen- teve esta visão: até as pedras
rio. Quem manda é a visão. tases do ser humano. mim. sar com elas. Para tanto pre- da rua choravam.