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“A ESCRITORA IGNORA INTEIRAMENTE A GRAMÁTICA”

Cecília Romana, seu Relato e a Ordem dos Pregadores


Carolina Coelho Fortes – PEM/PPGH-UFF

Ao longo do século XIII, uma nova ordem se configurava. Nova ordem essa, tanto
no sentido mais amplo – as transformações que vinham ocorrendo pelo menos desde o
século XI agora atingiam contornos claros – quanto no sentido mais restrito – surgia a
Ordem dos Irmãos Pregadores. Esse primeiro século de existência da Ordem instituida por
Domingos de Gusmão foi marcado por sucessos e reveses, lutas internas e embates com o
papado, os clérigos seculares e outras ordens mendicantes. A produção literária nessas
décadas foi considerável. Assim, podemos ter acesso a variadas perspectivas do processo
de institucionalização da Ordem Dominicana.
Nesta breve apresentação, preocupa-nos analisar uma dessas visões a respeito da
Ordem, que toma como ponto central a figura de seu fundador. Nesse sentido, buscaremos
no chamado “Relato dos Milagres Operados por Santo Domingo em Roma” elementos que
indiquem as posições de seu meio de produção no que tange à identidade institucional da
Ordem, e às relações de gênero.

1. Cecília
Surgem, em 1219, as primeiras controvérsias sobre a incorporação dos monastérios
femininos que pediam para se agregar à nova ordem dos pregadores. Inclusive nas
modalidades mais informais de relação entre os homens e as mulheres, como é o caso da
assistência espiritual respresentada pela confissão, por exemplo, os frades discordavam
entre si. Mas, apesar da resistência de muitos em agregar as monjas à Ordem, é fundado
em 1221 o convento de Santa Inês de Bolonha, cujos alicerces haviam sido lançados pelo
próprio Domingos um ano antes.
O papa Honório III, no fim de 1219, havia legado à Domingos a instituição de um
grande monatério para onde confluiriam as monjas sediadas nos antigos cenóbios romanos,
reformando a observância segundo um critério de rigorosa clausura. Durante sua estada em
Roma no verão de 1218, Domingos já havia estabelecido uma forte ligação com a
comunidade feminina de Santa Maria in Tempulo, casa vizinha de São Sixto, quartel-
general dominicano em Roma. Aquele grupo de mulheres, acompanhadas por algumas

1
monjas do convento de Santa Bibiana, reuniram-se em S. Sixto em fevereiro de 1221: é o
que atesta a pequena obra de irmã Cecília.
Em uma carta à Diana de Andaló, redigida provavelmente na véspera de sua vestição
durante a Ascensão de 1223, Jordão da Saxônia, há um ano o novo mestre geral dos
pregadores, a notificava que em breve chegariam à Bolonha algumas irmãs de Prouille para
instruir as noviças de Sta. Inês nos preceitos da vida claustral. A crise atravessada naquele
momento pelo mosterio de Toulouse talvez tenha impedido a realização do projeto
imaginado por Jordão. Por isso ele tem que enviar a Roma alguns frades para pedirem ao
convento de S. Sixto instrutoras para a nova casa de Bolonha. O pedido é atendido, apesar
de uma provável resistência do próprio Honório III, e antes de junho de 1225 já estão ali
quatro irmãs romanas, entre elas Cecília, que permaneceria no convento bolonhês até sua
morte, em 1290.
Será ela a responsável por descrever as passagens de Domingos por Roma, pelo
menos no que tange a seus feitos extraordinários, testemunha direta de maior parte desses
milagres. A religiosa era membro de uma conhecida família aristocrática de Roma, os
Cesarini. É provável que tenha nascido em 1203, já que afirma em seus relatos, ter feito a
profissão de fé em S. Sixto, pelas mãos de Domingos, aos dezessete anos. Nessa ocasião,
no entanto, já era monja beneditina no convento de Santa Maria in Tempulo, onde
ingressou aos quatorze anos de idade. Sua mudança para São Sixto foi motivada
justamente pela ordem de Honório III, que visava colocar sob estreita observância em uma
mesma casa todas as monjas dispersas em diferentes mosteiros de Roma.

2. A Obra
A Relação dos Milagres feitos por Santo Domingos em Roma é a obra que ditou
Cecília no mosteiro de Santa Inês em Bolonha a outra monja também ali residente,
Angélica. Não se coloca em dúvida sua autenticidade. Ao contrário, há consenso em
atribuir à Cecília esta obra, a última escrita por alguém que conhecera Domingos. Sua
composição deve ter ocorrido nos últimos anos de vida de Cecília. 1 É provável que ela
tenha ditado suas lembranças em momentos diferentes e que Angélica não as tenha
ordenado cronologicamente. Esses milagres deveriam ser lidos, ou melhor, cantados, no

1
Explicar o pq dessa datação.

2
coro ou no refeitório no dia da festa de Domingos, no monastério de Sta. Inês, segundo se
deduz da pontuação que tem para o canto na segunda redação.2
O relato dos milagres é colocado como uma série de testemunhos, sempre afirmados
ao final de cada relato, onde Cecília nomeia suas fontes. São sempre frades e monjas que
presenciam os episódios narrados, o que já indica tanto uma rede de relações sociais
bastante estrita da religiosa, quanto – e é isso que defendemos – a fidedignidade e o caráter
privilegiado das testemunhas de feitos excepcionais. É interessante notar que estes últimos,
são quase todos ambientados nos conventos romanos de S. Sixto e Sta. Sabina e ocorrem
entre os anos de 1220 e 1221, os últimos da vida de Domingos, nos quais, ao que tudo
indica, desenvolve-se mais intensamente seu ministério pastoral entre as monjas.
Não sabemos se Cecília recebeu alguma solicitação dos dirigentes da Ordem para
redigir suas memórias sobre Domingos. Na verdade, tal fato é bastante improvável.
Primeiro porque dificilmente legariam a uma mulher a responsabilidade pela redação sobre
os feitos milagrosos do fundador, já que há apenas alguns anos haviam confiado a frades
como Constatino de Orvieto e Gerard de Frachet a tarefa de integrar à biografia litúrgica de
Domingos novos eventos prodigiosos que teriam escapado aos hagiográfos precedentes.3
Devemos lembrar também que depois de 1260, com a aprovação e imposição exclusiva do
legendário umbertino, o cânone hagiográfico de Domingos já estava largamente fixado, e
os capítulos gerais, a instância legislativa máxima da Ordem, devia ponderar, validar e,
conforme o caso, até censurar qualquer iniciativa que se colocasse em concorrência ou em
desacordo com as diretivas oficiais sobre a natureza e os usos litúrgicos e pastorais das
eventuais adições à legenda do santo patriarca.4
No entanto, esses fatores não impediram a inclusão dos Miracula na compilação
hagiográfica composta por volta de 1290 pelo frade turingiano Teodorico de Apoldia,
escrita por ordem do mestre geral, Muño de Zamorra.5 É provável que Cecília tenha sido
movida por pedidos dos frades que acudiam a Bolonha para celebrar os capítulos gerais ou
visitar o túmulo de Domingos. Entre os visitantes, é provável que por ela tenha passado
Teodorico de Apoldia, em 1288, a caminho do capítulo de Lucca.

2
GELABERT, M.; MILAGRO, J. & GARGANTA, J. (eds.) Santo Domingo de Guzmán visto por sus
contemporaneos. Madri: BAC. 1947, p. 458.
3
Hagiografias de Constatino de Orvieto e Gerad de Frachet
4
Canetti, p. 164.
5
Obra de Teodorico de Apoldia.

3
Esse fato, juntamente com o uso dos Miracula por dois grandes eruditos dominicanos
do século XIV – Bernardo Gui e Galvão Fiamma - ,6 explica porque a tradição manuscrita
direta das lembranças de Cecília é tão exigua. O manuscrito mais antigo, e provavelmente
original, esteve no arquivo do convento de Sta. Inês em Bolonha até 1798, quando passou
para a biblioteca do convento de São Domingos. Encontra-se um manuscrito do século
XIII na biblioteca da Universidade de Wurzburgo. Há, ainda, uma versão castelhana do
século XIII, encontrada no convento de S. Domingos el Real, em Madri.7
Não obstante a mediação redacional de Angélica, já que Cecília era provavelmente
semi-analfabeta ou de idade bastante avançada para poder escrever de próprio punho, é
possível perceber as expectativas e o olhar restrospectivo desta última. Não completamente
inserida na literatura mistica que abundava naquelas décadas (lembremo-nos de Clara de
Assis, Angela de Foligno, Juliana de Norwich – as criadoras de uma nova linguagem
espiritual que se inscreve sobre o corpo), a visão de Cecília se coloca como
conscientemente representativa de uma comunidade de monjas animadas por expectativas
semelhantes, e objeto das mesmas diretivas. Ou seja, é claro no relato de Cecília a posição
que sua comunidade ocupava dentro do sistema institucional dominicano: a de um grupo
eleito e guiado pelos preceitos estabelecidos pelo próprio fundador. Eleição e lideranças
estas que se concretizam e ganham autoridade por meio das ações taumatúrgicas levadas a
cabo por Domingos. Tais milagres, acreditamos, voltam-se para sedimentar a edificação e
a consciência de pertencimento àquela comunidade eleita.
Para a legitimação de tal relato, recorre-se à uma série de topoi literários próprios da
hagiografia, mas, como podemos ler no epílogo, ostenta-se os critérios de verificação e
testemunho que buscavam estabelecer a autenticidade dos registros da irmã acreditando-se
no valor paradigmático para edificação espiritual das futuras gerações de monjas e frades.8
Faz-se uso, como já dissemos, da recorrente menção à observação direta valorizada não só
pela datação, mas igualmente pela santidade e pela devoção de um testemunho que, apesar
da declarada ignorância da gramática, não deixa de ter seu valor, e por isso merece ser
redigido. Caso voltemo-nos para o conteúdo dos milagres, depararemo-nos com mais
elementos para a legitimação da escrita: o silência que tantas vezes Domingos impunha
sobre suas realizações prdigiosas corresponde ao difuso topos hagiográfico de matriz

6
Obras de Bernardo Gui e Galvão Fiamma que usam os Miracula.
7
GELABERT, M.; MILAGRO, J. & GARGANTA, J. (eds.) Santo Domingo de Guzmán visto por sus
contemporaneos. Madri: BAC. 1947, p. ? A edição que utilizamos aqui é baseada no códice de Sta. Inês.
8
Canetti.

4
evangélica. Nas palavras de Canetti, uma discretio da qual resulta, por paradoxo, uma
maior glória do taumaturgo,9 espécie de relíquia viva da qual as pessoas arrancavam
pedacinhos de manto e de escapulário, a ponto de deixá-lo com os joelhos a mostra.10
O frei Alonso Getino levanta um argumento que nos interessa particularmente. “As
pupilas daquela venerável anciã, que vira levantar-se a Ordem desde o estado pobre e
rudimentar dos primeiros dias até o cume das grandezas, tinham que estar demasiadamente
impregnadas de ouro e azul para não ver o taumaturgo em seu todo, esquecida do homem,
que é o que mais interessa à história.”11 Em outras palavras, Cecília, que havia se unido à
Ordem, a partir de uma imposição papal, inicialmente, mas que, como mostra em sua obra,
escolhe não uma, mas três vezes, participar daquela comunidade em formação,12
testemunhara seu crescimento. Ingressou em S. Sixto em 1221, mudou-se para Sta. Inês em
1225, onde morreu em 1290. Nesse período a ordem se expandiu enormemente. Quando da
morte de Domingos, em 1221, existiam 20 priorados e talvez 300 frades. Já em 1303,
haviam 590 priorados e por volta de 13 mil frades. Em relação às casas femininas, eram
apenas quatro em 1221, número que saltou para 141 em 1303.13 Mesmo que em Bolonha,
as monjas vivessem uma vida de reclusão, sabemos dos abundantes contatos com o mundo
exterior,14 o que possibilitava o conhecimento de notícias sobre a Ordem. Em suma, a vida
da longeva Cecília abarcara o que os historiadores dominicanos chamam de “século de
ouro”, o que, defendemos, atesta-se nas entrelinhas das narrativas da monja.

3. Milagres, gênero e identidade


No que tange aos milagres relatados por Cecília à Angélica, pretendemos agora dar
um visão geral, buscando entrever neles uma relação intrínseca com a experiência
testemunhada por Cecília, qual seja, a do processo de institucionalização da Ordem dos
Pregadores.15 Tal processo se concretiza por meio, e paralelamente, a construção de uma
identidade dominicana em face às outras ordens e a própria Cúria, bem como através da

9
Canetti.
10
Passagem da fonte
11
GETINO, Origen del Rosario y leyendas castellanas del siglo XIII sobre Santo Domingo de Guzman.
Vergara, 1925, p. XV-XVI.
12
Passagem da fonte
13
HINNEBUSCH, W. The Dominicans. A Short History.
internet:http://www.op.org/domcentral/trad/shorthistory/default.htm Acesso em 25.11.2007
14
Cartas de Jordão à Diana por exemplo.
15
Desnecessário enfatizar que a mesma fonte contem elementos suficientes para que outros temas sejam
trabalhados, como faz Canetti, em seu artigo XXXX, ao ver ali mais um indício da missão evangelizadora
dos frades pregadores. Poderíamos, igualmente, ver nos relatos de Cecília, um exemplo bastante peculiar da
hagiografia medieval, por conta da recorrência, quase obcecada pelos testemunhos.

5
distinção entre frades e monjas. Para pensar esses múltiplos movimentos, nos baseamos
nos conceitos de identidade, segundo Woodward,16 e de gênero, segundo Scott.17
São quatorze os pequenos relatos que compõem a obra ditada por Cecília. Com
exceção do último deles, a famosa descrição da aparência física de Domingos,18 é possível
depreender de todos relação entre os milagres e algum elemento marcante da identidade da
Ordem. Podemos contabilizar 21 manifestações “maravilhosas”,19 dentre as quais as mais
frequentes são as revelações divinas, o conhecimento de fatos corriqueiros antes do
ocorrido ou concomitante a eles, que acontecem cinco vezes em toda a narrativa. Além
disso, o demônio é derrotado por quatro vezes, como são quatro as menções à algum tipo
de intervenção milagrosa na ordem natural. Temos ainda três aparições benfazejas, duas de
anjos e uma de santas, duas curas e duas ressurreições.
Cada um desses eventos relaciona-se mais ou menos diretamente a algum elemento
característico da identidade dominicana. Dentre os elementos identitários discernimos
aspectos relativos à organização administrativa da ordem, ou ao pertencimento de novos
conversos, que recebem oito menções. São feitas, ainda, referências à pregação (oito
vezes), à assistência espiritual de monjas ou reclusas (quatro vezes), e à mendicância (uma
única vez).
Observemos, por exemplo, o principal dos elementos que marcam a identidade
dominicana: a pregação. Durante os sermões de Domingos, fossem públicos ou
conventuais, ele expulsa demônios de um mulher que acabaria entrando para a Ordem, a
mesma que provavelmente é citada depois em uma das cartas de Jordão para Diana,
chamada Amada; ressucita o filho de uma mulher que havia deixado a criança em casa
para ouvir o fundador falar; ressucita igualmente Napoleão, sobrinho de Estevão, um de
seus auxiliares designados por Honório III na unificação das casas femininas em Roma;
afoga um amendrontador lagarto negro, de duas cabeças e duas caldas, que atrapalha seu
sermão para as monjas ainda alocadas em Sta. Maria in Tempulo; e depena um passarinho
que faz o mesmo numa situação parecida, mas agora já em S. Sixto. Além disso, alguns
fatos maravilhosos servem de pretexto para a pregação: depois de ser visitado pela Virgem,
santa Catarina e santa Cecília, Domingos profere um sermão exaltando o amor e a

16
Identidade - Woodward
17
Gênero - Scott
18
Descrição essa confirmanda há algumas décadas por estudos feitos com os restos mortais do santo.
19
Le Goff.

6
reverência à Maria; depois da multiplicação do pão e vinho no convento de Sta. Sabina,
Domingos prega sobre a confiança na providência divina.
Entendemos a recorrente associação de eventos excepcionais e pregação como uma
forma de sedimentar não só a importância desta última como o principal aspecto identitário
da Ordem, mas também como uma das atividades que mais aproximava o fundador e seus
seguidores das mulheres.20 Mas, por outro lado, é também esse traço da identidade
dominicana que mais afasta homens e mulheres, pelo fato de que àquelas a pregação era
completamente negada. No entanto, essas relações desiguais permitem complementaridade
– eles falam, elas escutam – e não concorrência. O que ocorria, por exemplo, entre
dominicanos e franciscanos.
É bem verdade que o “campo de batalha” por excelência das duas maiores ordens
mendicantes durante o século XIII eram as universidades.21 Mas um traço bem destacado
da hagiografia que aqui analisamos não pode ser deixado de lado. Todos os animais citados
nos relatos de milagres são representações demoníacas. Já nos referimos ao lagarto e ao
passarinho que perturbam as pregações de Domingos, mas ainda há mais uma aparição
demoníaca-animalesca, a de uma macaquinha que faz piruetas e canta versos burlescos
enquanto Domingos tenta escrever, ato que o caracteriza como letrado, ao mesmo tempo
em que enfatiza uma ação relacionada a organização da Ordem. O que Domingos escrevia,
afinal? Uma carta para um frade enviado em missão, um sermão? O que quer que fosse,
imagina-se ser referente à Ordem. De qualquer maneira, lá está a macaca tentando
atrapalhá-lo. Ele a usa como candelabro, mandando que ficasse imóvel e quando ela
começa a queimar-se, gritando de dor (como, aliás, também fez o passarinho ao ser
depenado), Domingos arremete contra ela com seu cajado, fazendo-a desaparecer.
Como nos lembra Curtius em sua clássica obra Literatura Européia e Idade Média
Latina, o macaco é uma imagem recorrente para o demônio em toda a literatura medieval.
Era costume, a partir do século XII, usar a palavra simia para designar, entre outras coisas,
um imitador sem inteligência.22 Mas temos pelo menos dois representantes do mundo
animal, já que o lagarto é mais um monstrengo do que um bicho. Então como não nos
lembrar do sermão de Francisco aos animais, ao qual se refere, entre outros, Tomas de
Celano?23 E como, nesse sentido, não ver nessas menções algo da disputa por audiência,

20
Em História das mulheres no ocidente acho que a casagrande fala sobre isso. Verificar.
21
Brigas universitárias entre franciscanos e dominicanos.
22
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura e Idade Média Latina. São Paulo: HUCITEC/Edusp, 1996. p. 655-658.
23
Tomas de Celano, vida I. caps. 21, 28 e 29.

7
naquelas décadas intermediárias do século XIII, entre irmãos menores e irmãos
pregadores? Afinal, Cecília vivia em Bolonha, o segundo maior centro universitária da
Europa de então.24
Cecília também faz numerosas referências ao carinho e cuidado que Domingos nutria
pelas monjas e pelas reclusas. É de extrema delicadeza a sua recordação sobre as colheres
de madeira que Domingos havia levado para as monjas de Sta. Maria in Tempulo, quando
retorna de uma viagem à Espanha. Além disso, são várias as menções à unificação das
casas femininas, e sobre a constante presença de Domingos junto às monjas. Em dado
momento, Cecília relata:

A noite ia até as monjas e, em presença dos frades, conversava ou pregava e


as instruía sobre a Ordem, pois nunca tiveram outro mestre que as doutrinasse em
coisas da Ordem.25

Ou ainda:

Quando o bem-aventurado Domingos pregava de tarde às monjas – os frades


fora e as monjas dentro – acendiam grandes tochas, de tal maneira que muito bem
se podia ver tudo quanto se fazia dentro da igreja.26

Cecília dá a entender que Domingos estava sempre junto às religiosas, amparando-as


espiritualmente e operando milagres. É de se notar, no entanto, que ele era sempre
acompanhado por outros frades, ou seja, nunca ficava sozinho com elas. Essas referências
indicam a necessidade de atestar a seriedade do fundador, que assim evitava oportunidades
de tentação, ou tão somente impedia rumores maldosos.27 Tais narrativas podem estar
relacionadas aos momentos de incerteza pelos quais passaram as religiosas dominicanas
durante todo o século XIII. Em outra ocasião já discutimos os acontecimentos da chamada
Querela da Ordem Segunda, o desacordo entre os frades e a Cúria a respeito da
responsabilidade sobre as religiosas afiliadas aos pregadores.28 A insistência de Cecília em
mostrar Domingos sempre preocupado com as religiosas dá razão, baseada na autoridade
incostente do fundador, para a existência do braço feminino da Ordem.
24
Universidade de Bolonha
25
p. 469.
26
P. 477.
27
Como acontece com Robert d´Arbrissel, por exemplo.
28
Artigo sobre a querela

8
Talvez mais distante da realidade de Cecília, mas ainda assim marcando presença nas
suas memórias, é a relação de Domingos com Honório III, que havia especificamente
escolhido o novo fundador para organizar os conventos femininos romanos. São cinco as
referências a esse fato ao longo do relato. Essa associação frequente entre Domingos e o
papado fundamenta o papel de importantes colaboradores da Cúria que os dominicanos
assumiram a partir da segunda metade do século.

4. Conclusão
Podemos entender os Miracula de Cecília como uma celebração ao grandioso
sucesso da Ordem dos Irmãos Pregadores, que havia crescido vertiginosamente sob os
olhos da monja. Tal vitória é comemorada, assim, com narrativas excepcionais do seu
fundador, que o pintam como um taumaturgo dedicado à missão dominicana. Esta estaria,
nos idos da década de vinte do século XIII, ainda a se delinear. E encontra em Cecília, uma
anciã vivendo no centro do mundo dominicano – Bolonha – , uma via adequada para
estabelecer aquilo que, no fim do “período de ouro”, acreditava-se ser o lugar da Ordem na
Cristandade.

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