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Alfredo Bosi
Alfredo Bosi
Talvez o mais adequado seja trocar de lentes quando necessário. Por ex-
emplo, começar pela análise da forma, no caso, da construção ou do fraseio
do romance, continuar pela leitura e escuta das vozes das personagens, com
suas perspectivas e tons existenciais peculiares, perseguindo, a certa altura,
a integração dos aspectos particulares no contexto maior, histórico e social.
E finalmente, como postulava Leo Spitzer, falando do círculo hermenêutico,
voltar aos detalhes de forma e estilo para ver se as hipóteses iniciais saem
confirmadas ou infirmadas. Spitzer fala de um ir e vir das partes ao todo e
do todo às partes.
O que se propõe, em princípio, é levar em consideração três dimensões
presentes em toda obra literária, e que, a rigor, já foram definidas ao longo
da história da Estética, de Aristóteles aos tempos modernos: construção, ex-
pressão, representação.
Podemos iniciar a leitura das Memórias póstumas de Brás Cubas valendo-
nos ora de um ora de outro desses registros analíticos e interpretativos. To-
dos têm algo importante a revelar. Mas todos conhecem igualmente limites,
que só o recurso aos demais registros pode ultrapassar. Há uma interação
entre os três modos de ler, mas, indo ao fundo do método, trata-se de uma
dialética inter-dimensional, pois cada versão supera (conservando hegelia-
namente) o horizonte de cada uma das outras; horizonte que se arrisca a
tornar-se fechado e redutor sempre que considerado isoladamente.
A múltipla determinação propicia a formação do conceito concreto, ao
passo que a determinação unilateral tende a fi xar uma leitura abstrata.
rente a este ou aquele traço estilístico, e que afinal seria preciso captar o
desenho e o tom da narrativa inteira, ouvir a melodia do começo ao fim, e
não ater-se somente a uma ou outra imagem, a uma ou outra nota, a uma ou
outra frase do texto. Ou seja, começamos a nos perguntar: o que esses vários
traços estilísticos exprimem? O que, afinal, quer dizer o desenho que presi-
diu à construção da obra? Entramos assim no cerne da segunda dimensão
mencionada.
palavra-chave foi cunhada por Alcides Maia, que, por sua vez, inspirou a
leitura de Augusto Meyer: humor.
Comentando o achado crítico de ambos, pude escrever:
Humor que oscila entre a móvel jocosidade na superfície das palavras e um
sombrio negativismo no cerne dos juízos.
Humor cuja ‘aparência de movimento’ feita de piruetas e malabarismo mal
disfarça a certeza monótona do nada que espreita a viagem que cada homem
empreende do nascimento à hora da morte.
Humor que decompõe as atitudes nobres ou apenas convencionais, pondo a
nu as razões do insaciável amor-próprio, das quais a vaidade é o paradigma
e a veleidade o perfeito sinônimo.
Humor que mistura a convenção e o sarcasmo na forma de máximas
paradoxais.
Humor, enfim, que parodia as doutrinas do século, positivismo e evolu-
cionismo, sob o nome de Humanitismo, e as traz na boca de um mendigo
aluado”. (“Brás Cubas em três versões” 29–30).
Diremos que, levando ao extremo a sua caracterização expressiva, Au-
gusto Meyer conclui de modo que não sabemos se justo ou injusto, mas sem-
pre incisivo e problematizador dos nossos fetichismos: “A unidade de tom,
nos livros da última fase, chega a ser simples monotonia” (22).
Um novo horizonte se abriu, de todo modo, envolvendo o anterior e con-
ferindo-lhe novo sentido. Estávamos convencidos de que havia, de fato, uma
vontade-de-estilo na feitura das Memórias póstumas, que resultara na forma
livre e arbitrária do defunto autor. Mas agora estamos igualmente persuadi-
dos de que, apesar da vigência explícita desses padrões, dos quais Sterne é o
mais relevante, o tom, a expressão, numa palavra o processo existencial que
se formulou naquelas cadências de estilo, não reproduzia passivamente os
seus paradigmas, na medida em que era peculiar ao novo projeto ficcional
do narrador machadiano.
O humor de Machado tem uma força destrutiva e dissolvente, amarga
e áspera, que não se reconhece na tradição menipéia nem tampouco nas
estrepolias de Tristram Shandy. É machadiano, não tem antecedentes nem
descendentes próximos diretos. Trata-se de um narrador que se dobra so-
bre si mesmo, refletindo à luz fria da morte o que fizera e dissera quan-
do vivo.
Mas . . . a universalidade que se capta a partir de uma leitura existencial
radical como a de Augusto Meyer (que soube comparar o homem subter-
râneo de Machado ao Dostoiévski das Memórias do subsolo, e aproximar o
analista de si mesmo da personagem pirandelliana) atinge outra dimensão
quando atentamos para a particularidade dos estímulos sociais locais. Ou
seja, o horizonte existencial ganha em concretude histórica quando o inte-
gramos no registro representativo ou mimético do texto narrativo.
Notas
Trabalhos citados
Bosi, Alfredo. Brás Cubas em três versões. Estudos machadianos. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2006.
———. “Figuras do narrador machadiano.” Cadernos de Literatura Brasileira.
Machado de Assis. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2008. 126–61.