Resumo
Um primeiro lugar, para que possam ser percebidas as limitações das auditorias
tradicionais e as vantagens das auditorias de qualidade, é importante a compreensão
do processo que leva à execução da obra e, também, do seu comportamento ao longo
da sua vida útil. Deve-se ter em mente a existência de três fases distintas da vida de
uma obra e, a partir daí, precisar a responsabilidade das partes intervenientes em cada
uma delas. As 3 fases da vida de uma obra são: projeto, execução e manutenção
(NOGUEIRA E CALADO, 2003a e 2003b).
Fase de projeto: muitos dos problemas e acidentes que ocorrem em obras públicas
são decorrentes de erros de detalhamento ou erros de concepção no projeto. Há um
equivocado e pernicioso entendimento por parte das empresas e de muitos órgãos
públicos de que o projeto básico “serve apenas para licitar” (TCU, 2004). Em
Pernambuco, na auditoria de uma obra de recuperação de uma ponte, contratou-se,
inicialmente, um projeto, fez-se a licitação baseada em um segundo e, por fim, a obra
foi executada através de um terceiro projeto. Existe, também, em muitos órgãos, uma
política de ressuscitar projetos antigos para, após revisões superficiais, viabilizar o
investimento (rectios: a dilapidação) de novas dotações orçamentárias. Em face disso,
seria fortemente aconselhável que fossem adotadas medidas no sentido de obrigar
efetivamente a feitura do projeto básico1 e, em obras maiores, obrigar uma dúplice
verificação dos projetos antes do início da construção. Assim, após a conclusão de um
projeto básico por um engenheiro ou uma firma projetista, ele seria remetido a outro
engenheiro ou a outra firma idônea para que fosse verificado. Com isso reduzir-se-ia
em muito o risco de acidentes decorrentes de problemas no projeto e reduzir-se-ia,
também, a possibilidade de que fossem perpetradas fraudes (e.g., jogo de planilha)
através de projetos adredemente preparados. Entretanto, apesar de todas as cautelas,
seria muito difícil, ou mesmo impossível, verificar a viabilidade, a adequação, a
correção de projetos de engenharia usados nas obras públicas. Por mais minuciosa e
precisa que seja a auditoria de obra realizada, dificilmente um projeto seria
completamente verificado pelo auditor. Por um lado, tal tarefa demandaria plenos
conhecimentos acerca de todas as matérias relacionadas aos projetos (fundações,
cálculo estrutural, pavimentação, etc.), por outro, ainda que superada a primeira
dificuldade, face à discrepância entre o número de auditores e o número de obras
auditadas, não haveria condições de efetivo acompanhamento de todos os projetos
executados pelo Poder Público. Dessa forma, a efetiva verificação do projeto se dá
1 o
Lei 8.666/93: Art. 6 Para os fins desta Lei, considera-se: (...) IX - Projeto Básico - conjunto de
elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para caracterizar a obra ou
serviço, ou complexo de obras ou serviços objeto da licitação, elaborado com base nas indicações dos
estudos técnicos preliminares, que assegurem a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto
ambiental do empreendimento, e que possibilite a avaliação do custo da obra e a definição dos métodos
e do prazo de execução, devendo conter os seguintes elementos: (...)
através do pleno funcionamento da obra por um período de tempo razoavelmente
longo2.
2
Adiantando matéria a ser tratada no item “Lapsos Temporais para Responsabilização da Construtora”
abaixo, pergunta-se: Qual deve ser a de vida útil de uma obra qualquer? E qual deve ser a de uma obra
pública?
O pedaço de concreto na extremidade superior da estrutura de contenção do aterro do
pequeno viaduto, não resistiu sequer ao peso do engenheiro que inspecionava a obra.
O pedaço rompeu e se precipitou.
3
MacGregor, J. G., Reinforced Concrete, Prentice Hall, 1997:88; Collins, M. P., Mitchell, D., Prestressed
Concrete Structures, Prentice Hall, 1991:310
À esquerda, podem ser vistos restos de madeira e aço usados na construção, deixados
incrustados na obra depois de sua conclusão. À direita, o deslocamento do aparelho
elastomérico indica o deslocamento dos apoios.
É lícito concluir, a partir da análise das 3 fases acima citadas e consoante acima
exposto, que as auditorias tradicionalmente realizadas em obras públicas não se
prestam à verificação de diversos fatores que vão ter grande importância na terceira
fase da obra, i.e., na fase de manutenção, após a entrega. Observe-se, ainda, que as
inspeções realizadas após o término da construção das obras se prestam à verificação
– não somente dos aspectos relacionados às garantias – mas também de fatores que
podem comprometer, a curto, médio ou longo prazo, o funcionamento das mesmas.
Assim, em uma rodovia, por exemplo, inspeções posteriores à entrega se prestam, não
somente à verificação de rachaduras, fissuras, panelas, deslizamentos de taludes
(problemas estes, a princípio, de responsabilidade do construtor); mas também à
verificação de obstruções no sistema de drenagem, atos de vandalismo na sinalização
vertical, tráfego caminhões com carga acima do permitido (problemas relacionados à
omissão o ente público ou privado responsável pela estrada). Assim, com a realização
das inspeções de auditoria da qualidade, realizadas nas obras prontas, há duas
grandes vantagens. A primeira, e principal, se relaciona ao chamamento das
construtoras à responsabilidade pelos problemas de suas obras; a segunda se
relaciona à adoção, pelo ente a quem a obra foi confiada, das medidas cabíveis para
que a obra tenha um funcionamento seguro e duradouro. Observe-se desde já que um
dos aspectos mais importantes das responsabilidades que fundamentam as auditorias
de qualidade propostas no presente artigo é a delimitação, a fronteira, a separação,
entre o que é de responsabilidade da construtora e o que é de responsabilidade da
Administração Pública. Em se constatando que houve um deslizamento de talude à
margem de uma rodovia, deve-se atribuir a responsabilidade à construtora (que não
teria efetuado o corte adequadamente) ou à Administração (que se omitiu do dever de
desobstruir o sistema de drenagem)? Tais problemas, conforme exposto no item
abaixo, se resolve a partir de presunções de culpa.
4
O conceito de ruína funcional, aquela decorrente da inadequação da obra para o fim a que se destina, é
reconhecido por jurisprudência e doutrina alienígena (e.g., ERVITI, F. G., Compendio de Arquitectura
Legal, Madri, Mairea/Celeste, 2.001:155 SS )
Código Civil, mais precisamente nos artigos 6185, 186 6 e 9277, e no Código de Defesa
do Consumidor.
5
Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro
de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança
do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo. Parágrafo único. Decairá do direito
assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e
oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito.
6
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e
causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
7
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos
especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por
sua natureza, risco para os direitos de outrem.
relevância o fortuito interno”. (Cavalieri Fo., S.,
Programa de Responsabilidade Civil, 4a. ed., São
Paulo, Malheiros Editores, 2003:342)
Os gestores públicos que gerem recursos relacionados a obras públicas têm por
obrigação, não só a correta aplicação de recursos públicos durante a contratação e
execução das obras, mas também – e principalmente – após a entrega das mesmas. O
fato é que uma obra, e.g., superfaturada e de qualidade, certamente trará menor
prejuízo à população e ao Poder Público contratante que uma obra com preços
compatíveis e sem qualidade. Não se está aqui a defender superfaturamento de obra,
mas o fato é que uma obra sem qualidade tem potencial para causar prejuízo ao erário
muito maior do que causaria o “simples” fato de ser superfaturada. Uma obra sem
qualidade implica: custos associados à correção de seus defeitos, contratações
emergenciais de soluções paliativas, acidentes (e indenizações) envolvendo
particulares, e, muitas vezes, uma nova execução de toda a obra.
Após os 5 anos, o construtor pode, ainda, ser acionado, mas desde que reste
provada a sua responsabilidade pelo problema que a obra apresentou. Inexistem, após
os 5 anos, as presunções de responsabilidade do construtor. A sua culpa, agora, deve
ser provada.
Por fim, após o término dos 5 anos, em se constatando algum defeito na obra,
não podem os gestores públicos, como soem fazer, açodar-se em contratar outra
empreiteira para novamente fazer a obra. Deve-se proceder a uma investigação, ainda
que sumária, das causas dos problemas achados na obra. Em se constatando que o
defeito foi causado por vício construtivo, ainda que o mesmo se tenha manifestado
após o lustro, deve o construtor ser acionado.
Conclusões
Referências:
8. Pereira, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil; Vol. III – Fontes de
Obrigações, 10a. ed., Editora Forense, Rio de Janeiro, 1996.
10. Pontes de Miranda, F., Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Tomo XLIV,
Ed. Borsoi, Rio de Janeiro, 1963.
11. TCU, Auditoria de Qualidade das Obras Rodoviárias Federais, Brasília: 2004.