O golpe de 1964 : luta de classes no Brasil a propósito de "Jango", de Silvio
Por Tendler
ADRIANO NERVO
CODATO
Professor de Ci ência
A Cinemateca de Curitiba e a Universidade Federal do Paraná realizaram, na semana do 31 de março de
Política na Universidade
Federal do Paran á (UFPR), 2004, a mostra "Silvio Tendler – cineasta da história brasileira" e, junto com ela, o ciclo de palestras
editor da Revista de dedicado aos "40 anos do Golpe de 64". O filme mais emblemático e que documentou com mais detalhes
Sociologia e Política e a vida política nacional dos anos 60 foi sem dúvida "Jango" (35 mm., 117 min., 1984). Assistilo é ver (ou
coordenador do N úcleo de rever) todos os conflitos que deixaram expostos os motivos da luta social no Brasil sem que seja preciso
Pesquisa em Sociologia
Política Brasileira da reavivar o debate no seio da esquerda sobre a pergunta renitente: "Por que perdemos?".
UFPR. Para as pessoas da minha geração, que crescemos no Brasil dos anos 70, e que tínhamos uma vaga curiosidade por
política (que depois se transformaria num interesse vivo e, em alguns casos, numa disposição para a ação militante
nos anos 80), os filmes de Sílvio Tendler cumpriram admiravelmente a função que os aparelhos
ideológicos não podiam cumprir durante a ditadura. (Uma observação aqui de passagem: já está
mais do que na hora de chamarmos as coisas pelo seu nome – que história é essa de “regime
militar”?).
Na escola (com exceções, evidentemente), a história política e social brasileira variava do
oficialismo militaresco ao ufanismo anedótico, seja em nome das homenagens aos "heróis da
pátria", seja pela admiração obrigatória da exuberância da "nossa natureza". Nos meios de
comunicação (penso aqui na televisão, em primeiro lugar, mas também nos jornais diários), primeiro o apoio aberto ao
golpe de Estado, depois a autocensura em nome dos "ideais da Revolução", depois a censura política prévia nas
redações, depois a autocensura ideológica já no fim do regime impuseram sobre a política nacional e, principalmente,
sobre o período pré1964 uma barreira quase intransponível. No campo artístico ainda era possível fazer referências
veladas à situação, manter certas ambigüidades, forjar sentidos codificados que lançassem uma ponte à política, mas
sempre à política do presente. Recordese as telenovelas de Dias Gomes, as músicas de Chico Buarque, alguns
ensaios de arteengajada e etc. Mas o que era definitivamente interditado era toda referência ao passado recente: ao
regime populista e a seu cortejo de males ("o caos, a desordem e a instabilidade") fruto da integração irresponsável do
"povo" na vida política, juntamente com "a corrupção e a demagogia" dos "políticos profissionais" – João Goulart e JK à
frente.
O impacto sobre essa geração – que só conhecia o lado oficial da política – ao assistir pela primeira vez o
documentário "Os anos JK. Uma trajetória política" em 1980 foi fascinante. Pudemos nós todos ver pela primeira vez a
política dos políticos e, com esta fita, ter uma dimensão menos abstrata das mobilizações políticas de massa, o que
se não tramava o fio que ligava essa geração de jovens ao velho populismo e ao seu estilo político démodé, evocado por
um carisma então esmaecido (e quase sem suportes sociais), instaurava em todos um entusiasmo revolucionário e
romântico pelo «povo». Por isso, o cinema de Sílvio Tendler convertiase na via mais rápida para restaurar na memória
política nacional um pedaço de tempo que fora violentamente banido.
Quatro décadas depois do golpe políticomilitar de 1964 como assistir ao «Jango» (o filme) e como situar Jango (o
político) naquela conjuntura crítica? Acredito que se possa tentar responder essas duas quest ões de maneira direta
através de três teses.
Em primeiro lugar, "Jango" é um filme que vê e mostra João Goulart a partir de uma certa mitologia política construída
nos anos oitenta.
O filme não é apenas o retrato (tratase enfim de um documentário) de uma época histórica, ou seja, o retrato objetivo
daquele ciclo longo da política brasileira que vai de agosto de 1954 (o suicídio de Getulio Vargas) ao início do ano de
1984 (o movimento das diretasjá), mas ele mesmo já é (em 2004) um documento histórico. O filme pode também ser
lido assim. Há um clima no filme que é o clima de uma época – o início dos anos oitenta no Brasil. Não apenas a trilha
sonora denuncia isso (Milton Nascimento, Wagner Tiso), não apenas o texto narrado denuncia isso (tratase de um
texto crítico ao regime dos generais, onde todos os termos já se haviam convertido na linguagem comum das camadas
médias intelectualizadas), mas principalmente as expectativas pol íticas, as apostas sobre o futuro e o projeto nacional
que vão sendo reconstruídos através da fusão entre a biografia de João Goulart e a antiga forma de participação popular
na política depois de vinte anos de ditadura, terror e arbítrio revelam certas promessas que ficaram suspensas no ar –
um tipo de "capitalismo social" – que seria preciso enfim opor ao "capitalismo selvagem".
Não se trata, evidentemente, de um programa para restaurar o populismo tal e qual, mas é preciso reconhecer a nota
do diretor/autor. Na conjuntura que vai de fins dos anos setenta ao início dos oitenta havia pelo menos quatro projetos
políticos no seio da esquerda, seja para superar a ditadura militar, seja para "construir um país", segundo a expressão
da época. Havia o projeto dos políticos moderados reunidos na sigla do PMDB, que aceitavam uma transição
negociada, mesmo às custas do adiamento da via eleitoral; havia o projeto do novo sindicalismo do ABC paulista – cujo
representante político era o PT – que juntos desejavam realizar duas rupturas: com o sindicalismo de Estado e com as
formas tradicionais de relação entre os políticos (carismáticos, "populistas") e as massas (agora definitivamente
convertida em "classe"); havia também o projeto político da extremaesquerda (PCBR, PRC, Libelu (e demais
tendências trotskistas) e até mesmo algumas tendências anarquistas como o "Luta e Prazer") que pretendiam fundir a
transição da ditadura para a democracia com transformação do capitalismo em socialismo; e finalmente havia o projeto
político dos herdeiros da política trabalhista (à esquerda: Leonel Brizola (PDT); à direita: Ivete Vargas (PTB)), que
reclamavam a realização da herança de Getúlio Vargas – justiça social com desenvolvimento sob a regência do
nacionalismo econômico (uma das primeiras e mais impactantes seqüências da fita é justamente a da cerimônia de
sepultamento de Getúlio). A posição de Jango no filme, entre a esquerda (que gostaria de acabar com o capitalismo) e
a direita (que gostaria de não acabar com o capitalismo) ilustra bem esse último projeto. Tratavase, numa palavra, de
"humanizar o capitalismo" pela via do trabalhismo e da política de conciliação de classes.
Em segundo lugar, penso que "Jango" é um filme que ilustra e dramatiza de forma paradigmática os limites da
democracia brasileira no pré1964. Esses limites são de dois tipos: há um limite «social» e um limite propriamente
"político".
Há uma menção, ainda que rápida na fita, ao inesquecível "Manifesto dos Coronéis". Esse talvez seja o documento
mais eloqüente (do ponto de vista ideológico) da rejeição das camadas médias ao «populismo» e à sua dimensão
"social". Se a majoração do salário mínimo no Primeiro de Maio de 1954, determinada pelo Ministro do Trabalho de
Getúlio Vargas, o próprio João Goulart, obedece ao ritual da "doação de direitos", a reação à medida é a oração mais
sincera da disposição das cúpulas das Forças Armadas para manter seus privilégios de classe – seu status, sua
distinção social, sua diferença diante do "povo" através do valor de seus ordenados.
Os limites políticos da democracia brasileira estão definidos, nessa conjuntura, por duas impossibilidades. Pela
impossibilidade de origem antiliberal para aceitar as "regras do jogo" (daí a campanha direitista pela renúncia de
Vargas e a campanha militar para impedir a posse de João Goulart após a renúncia de Janio Quadros). E pela
impossibilidade de origem antirepublicana para aceitar a legitimidade do conflito político como constituinte da própria
"social". Se a majoração do salário mínimo no Primeiro de Maio de 1954, determinada pelo Ministro do Trabalho de
Getúlio Vargas, o próprio João Goulart, obedece ao ritual da "doação de direitos", a reação à medida é a oração mais
sincera da disposição das cúpulas das Forças Armadas para manter seus privilégios de classe – seu status, sua
distinção social, sua diferença diante do "povo" através do valor de seus ordenados.
Os limites políticos da democracia brasileira estão definidos, nessa conjuntura, por duas impossibilidades. Pela
impossibilidade de origem antiliberal para aceitar as "regras do jogo" (daí a campanha direitista pela renúncia de
Vargas e a campanha militar para impedir a posse de João Goulart após a renúncia de Janio Quadros). E pela
impossibilidade de origem antirepublicana para aceitar a legitimidade do conflito político como constituinte da própria
Democracia. Por isso que, para as camadas médias tradicionais, para as cúpulas das Forças Armadas e para a
burguesia brasileira, toda contestação aparecia como "desordem", todo movimento social conduzia à "instabilidade" e
tudo isso junto instaurava o "caos". Não foi essa justamente a percepção da "sociedade" depois do outubro de 1963
(quando o governo assume defintivamente uma postura mais à esquerda) até o "Comício das Reformas" em 13 de
março de 1964?
Por último, podese dizer que "Jango" é um filme que dá à crise de 1964 sua dimensão essencial: mais que uma crise
institucional (seja política, seja militar, seja parlamentar), ou uma crise econômica, a crise de 1964 é a expressão
limite da luta de classes no Brasil.
O resultado do golpe de 1964 é muito menos a saída desastrada de mais uma crise do populismo conduzida pela
inabilidade de um político – Jango – sem disposição para ativar o "dispositivo militar" e resistir a mais um golpe de
Estado, e sim a reação política mais ou menos organizada de uma parte da sociedade brasileira à ameaça (ou melhor,
à percepção subjetiva da ameaça) de uma "república sindical" ou, na pior das hipóteses, da instauração do
"comunismo". Essa percepção estava ligada a três processos: o crescimento da pressão operária sobre o Estado em
nome da «proteção social» diante de um capitalismo em rápida transformação. Daí o número crescente de greves e o
reforço do movimento sindical urbano; a radicalização ideológica do movimento nacionalista, liderada pelo ISEB e pelo
PCB; e o questionamento efetivo da estrutura agrária através das Ligas Camponesas no Nordeste. É justamente a
perda de controle dos políticos populistas diante da ascensão do movimento de massas, e não a sua
instrumentalização maquiavélica pelos "demagogos", que está no centro da ruptura dessa estrutura de poder. É ela
que, no fim das contas, põe em xeque o compromisso assumido em 1930 e instiga o conjunto das classes dominantes
a solicitar às Forças Armadas e restauração da "ordem social".
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