Trata-se de mandado de segurança, aparelhado com pedido
de medida liminar, impetrado por Joarez Maia Sobrinho contra ato do Conselho Nacional de Justiça. Ato consubstanciado em decisão do Corregedor Nacional de Justiça, datada de 09 de julho de 2010. 2. Argui o autor que o Conselho Nacional de Justiça, em 21 de janeiro de 2010 e nos termos do art. 2º da Resolução CNJ 80/2009, declarou a vacância da serventia extrajudicial de que é escrevente substituto (Cartório do 1º Ofício da Comarca de Uruçuí/PI), com o fundamento de que o impetrante não prestou concurso público. Declaração que o impetrante impugnou, de acordo com o parágrafo único do art. 2º da mencionada resolução. Impugnação, porém, que foi desprovida. 3. Sustenta o impetrante violação a seu direito líquido e certo. É que o ato de sua designação para responder, interinamente, pelo Cartório do 1º Ofício da Comarca de Uruçuí/PI, datado de 09/04/2002, não seria passível de anulação oito anos depois, quando já consumada a decadência de que trata o art. 54 da Lei 9.784/99. Isso em respeito aos princípios constitucionais da segurança jurídica e da boa-fé. Por fim, o ato coator determinou o depósito da renda da serventia em conta do Estado e proibiu a contratação de novos prepostos e aumento de salários, o que infringiria o caráter privado do exercício dos serviços notariais e de registro. Daí requerer a concessão de liminar para suspender os efeitos do ato impugnado. 4. Feito esse aligeirado relato da causa, passo à decisão. Fazendo-o, pontuo, de saída, que o poder de cautela dos magistrados é exercido num juízo delibatório em que se mesclam num mesmo tom a urgência da decisão e a impossibilidade de aprofundamento analítico do caso. Se se prefere, impõe-se aos magistrados condicionar seus provimentos acautelatórios à presença, nos autos, dos requisitos da plausibilidade jurídica do pedido (fumus boni juris) e do perigo da demora na prestação jurisdicional (periculum in mora), perceptíveis de plano. Requisitos a ser aferidos primo oculi, portanto. Não sendo de se exigir, do julgador, uma aprofundada incursão no mérito do pedido ou na dissecação dos fatos que a este dão suporte, senão incorrendo em antecipação do próprio conteúdo da decisão definitiva. 5. No caso, tenho por ausentes os requisitos para a concessão da liminar. É que a Magna Carta prescreve, desde 05 de outubro de 1988, em dispositivo auto-aplicável (ADI 126, Rel. Min. Octavio Gallotti; ADI 3.978, Rel. Min. Eros Grau), que “o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses”. Noutros termos, tanto para ingresso na atividade notarial quanto para remoção é indispensável a realização do concurso. Concurso que deve conferir a todos os interessados na delegação da serventia condições iguais de concorrência. Isso em clara homenagem aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade, da eficiência e da igualdade. 6. Ora, não é o que se vê no caso dos autos: o impetrante, sem que haja prestado concurso público, foi designado para responder interinamente pela serventia extrajudicial. Interinidade, por óbvio, que indica situação precária, transitória. Caráter transitório, porém, que o autor pretende agora transformar em definitivo. Mas o fato é que a Carta da República exige a abertura de concurso público, exatamente para evitar desvios ao princípio da impessoalidade. 7. Quanto a alegação de decadência de que trata o art. 54 da Lei 9.784/99, tenho, pelo menos neste juízo provisório, que não é de ser acatada. É que, no específico caso dos autos, a investidura da autor se deu na qualidade de interino, “até ulterior deliberação”. Daí não poder alegar nem direito adquirido à titularidade do serviço extrajudicial nem violação ao subprincípio da proteção da confiança. 8. No que se refere à incidência do teto remuneratório dos servidores públicos, começo por dizer que a correta solução deste mandado de segurança passa pela análise da natureza jurídica dos serviços que a Lei Maior da República sintetizou sob o nome de “serviços notariais e de registro” (art. 236, cabeça e § 2º). Quero dizer, a formulação de qualquer juízo, ainda que provisório, deve ser precedida da análise do tratamento constitucional conferido às atividades notariais e de registro (registro “público” já é adjetivação feita pelo inciso XXV do art. 22 da Constituição, versante sobre a competência legislativa que a União detém com privatividade). Com esse propósito, reproduzo trecho do voto que proferi na ADI 3.089, in verbis:
“(...) anoto que as atividades em foco deixaram de
figurar no rol dos serviços públicos que são próprios da União (incisos XI e XII do art. 21, especificamente). Como também não foram listadas enquanto competência material dos Estados, ou dos Municípios (arts. 25 e 30, respectivamente). Nada obstante, é a Constituição mesma que vai tratar do tema já no seu derradeiro título permanente (o de nº IX), sob a denominação de “DISPOSIÇÕES GERAIS”, para estatuir o seguinte:
‘Art. 236. Os serviços notariais e de registro são
exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. § 1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciários. § 2º. Lei federal estabelecerá normais gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. § 3º. O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.’
14. Mas não fica por aqui a regração
constitucional-federal sobre a matéria, porque o ADCT também dispôs sobre o mesmo assunto, nos seguintes termos:
‘Art. 32. O disposto no art. 236 não se aplica aos
serviços notariais e de registro que já tenham sido oficializados pelo poder público, respeitando-se o direito de seus servidores.’
15. Pois bem, daqui se infere que, tirante os
serviços notariais e de registro já oficializados até o dia 05 de outubro de 1988, todos os outros têm o seu regime jurídico fixado pela parte permanente da Constituição Federal. Mais precisamente, os demais serviços notariais e de registro têm o seu regime jurídico centralmente estabelecido pelo art. 236 da Lei Republicana. Um regime jurídico, além do mais, que pensamos melhor se delinear pela comparação com o regime igualmente constitucional dos serviços públicos, versados estes, nuclearmente, no art. 175 da Lei Maior. Por isso que, do confronto entre as duas categorias de atividades públicas, temos para nós que os traços principais dos serviços notariais e de registro sejam os seguintes:
I – serviços notariais e de registro são atividades
próprias do Poder Público (logo, atividades de natureza pública), porém obrigatoriamente exercidas em caráter privado (CF, art. 236, caput). Não facultativamente, como se dá, agora sim, com a prestação dos serviços públicos, desde que a opção pela via estatal (que é uma via direta) ou então pela via privada (que é uma via indireta) se dê por força de lei de cada pessoa federada que titularizar tais serviços;
II - cuida-se de atividades estatais cuja prestação é
traspassada para os particulares mediante delegação. Não por conduto dos mecanismos da concessão ou da permissão, normados pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dos serviços públicos;
III – a delegação que lhes timbra a funcionalidade
não se traduz, por nenhuma forma, em cláusulas contratuais. Ao revés, exprime-se em estipulações totalmente fixadas por lei. Mais ainda, trata-se de delegação que somente pode recair sobre pessoa natural, e não sobre uma “empresa” ou pessoa mercantil, visto que de empresa ou pessoa mercantil é que versa a Magna Carta Federal em tema de concessão ou permissão de serviço público;
IV – para se tornar delegatária do Poder Público, tal
pessoa natural há de ganhar habilitação em concurso público de provas e títulos. Não por adjudicação em processo licitatório, regrado pela Constituição como antecedente necessário do contrato de concessão ou de permissão para o desempenho de serviço público;
V – está-se a lidar com atividades estatais cujo
exercício privado jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, e não sob órgão ou entidade do Poder Executivo (sabido que por órgão ou entidade do Poder Executivo é que se dá a imediata fiscalização das empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos). Atividades, enfim, que não se remunera por “tarifa” ou preço público, mas por uma tabela de emolumentos que se pauta por normas gerais estabelecidas em lei federal. Características de todo destoantes daquelas que são inerentes ao regime dos serviços públicos.
16. Numa frase, então, serviços notariais e de
registro são típicas atividades estatais, mas não são serviços públicos, propriamente. Categorizam- se como função pública, a exemplo das funções de legislação, justiça, diplomacia, defesa nacional, segurança pública, trânsito, controle externo e tantos outros cometimentos que, nem por ser de exclusivo senhorio estatal, passam a se confundir com serviço público. Quero dizer: cometimentos que se traduzem em atividades jurídicas do Estado, sem adentrar as fronteiras da prestação material em que os serviços públicos consistem.
17. Em palavras outras, assim como o inquérito
policial não é processo judicial nem processo administrativo investigatório, mas inquérito policial mesmo (logo, um tertium genus); assim como o Distrito Federal não é um Estado nem um Município, mas tão- somente o próprio Distrito Federal; assim como os serviços forenses não são mais uma entre tantas outras modalidades de serviço público, mas apenas serviços forenses em sua peculiar ontologia, ou autonomia entitativa, também assim os serviços notariais e de registro são serviços notariais e de registro, simplesmente, e não qualquer outra atividade estatal. (...).”
9. Como se vê, os serviços notariais e de registro, ainda que
exercidos em caráter privado, são típicas atividades estatais. Embora o exercício dessas atividades esteja a cargo de particulares, desvestidos da condição de servidores públicos, a titularidade dos serviços continua com o Estado. Tanto que se faz necessária a “delegação do poder público” (caput do art. 236 da CF). Delegação que se faz em favor de pessoa natural devidamente aprovada em concurso público de provas e títulos. Delegatário que, nesta condição, faz jus “à percepção dos emolumentos integrais pelos atos praticados na serventia” (art. 28 da Lei 8.935/94). 10. O que se dá, porém, quando uma serventia fica vaga, sabido que “o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos”? Noutros termos: enquanto não se tem o vencedor do certame, quem responde pela atividade notarial? Pois bem, em homenagem ao princípio da continuidade do serviço, assim dispõe o § 2º do art. 39 da Lei 8.935/94:
“ § 2º. Extinta a delegação a notário ou a oficial de
registro, a autoridade competente declarará vago o respectivo serviço, designará o substituto mais antigo para responder pelo expediente e abrirá concurso.” 11. Cabe, portanto, ao substituto mais antigo, com todos os ônus e bônus da atividade, manter a serventia extrajudicial enquanto o novo titular não se investe na delegação estatal. Situação que, neste meu juízo prefacial, não viola a exigência do concurso público para ingresso na atividade notarial e de registro. Primeiro, porque o substituto exerce a atividade em caráter precário, jamais podendo invocar qualquer direito adquirido. Segundo, porque o próprio dispositivo legal determina a imediata abertura de concurso público, no que, aliás, afina com a parte final do § 3º do art. 236 da Constituição Federal (“não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses”). 12. Não é raro, no entanto, que se esgotem os seis meses de que trata o § 3º do art. 236 da Constituição Federal (prazo máximo considerado razoável para a realização de concurso público) sem que o novo delegatário assuma as respectivas funções. Nesse caso, a condição do substituto passa de transitória a indefinida, já não mais se legitimando o exercício da função notarial e de registro sem aprovação em concurso público de provas e títulos. O que fazer, então, quando a Administração judiciária se vê diante de tal quadro? Não há delegatário regularmente constituído e já se esvaiu o tempo de transição constitucionalmente aceito (seis meses) para a designação precária do substituto. 13. Tenho que, neste juízo prefacial, a solução adotada pelo Conselho Nacional de Justiça é a mais adequada. Ainda que heterodoxa e precariamente, dá-se uma reversão do serviço ao Poder Público. Reversão que, além de não poder se protrair no tempo (sob pena, inclusive, de responsabilização administrativa da autoridade), gera as consequências versadas no ato tido por coator, notadamente no que concerne à renda e à administração da serventia. Solução diversa acabaria por beneficiar indevidamente alguém escolhido por critérios subjetivos, sem observância dos princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade. Em situações extremas como a deste processo, prefiro abrandar, excepcional e temporariamente, a regra do caráter privado do exercício dos serviços notariais e de registro do que abalroar os princípios fundamentais da impessoalidade e da moralidade. 14. Por fim, anoto que, no caso dos autos, a interinidade do impetrante já dura mais de seis meses. 15. Ante o exposto, indefiro a liminar, sem prejuízo de u'a mais detida análise quando do julgamento do mérito. 16. Notifique-se a autoridade apontada como coatora para que preste, no prazo de 10 (dez) dias, as informações que entender necessárias (inciso I do art. 7º da Lei 12.016/2009). 17. Oficie-se ao Advogado-Geral da União para que a pessoa jurídica interessada, querendo, ingresse no processo (inciso II do art. 7º da Lei 12.016/2009). 18. Dê-se vista dos autos ao Procurador-Geral da República. 19. Intime-se o Advogado-Geral da União desta decisão. Publique-se. Brasília, 22 de novembro de 2010.