O bairro da Serafina foi. O bairro da Liberdade não. O bairro da Liberdade começa logo
a partir dos anos 20. Tem a ver com as pessoas que vêm fundamentalmente das Beiras e do
Minho para Lisboa à procura de trabalho.
Mas vivia-se algum tempo de crise para as pessoas migrarem desta forma?
Não tem a ver como uma crise, tem a ver com outra coisa. O êxodo da população rural
para a cidade tem a ver com a revolução industrial. Antes desta revolução as pessoas
trabalhavam no campo, viviam da agricultura. Havia pessoas que tinham grandes propriedades
e a maior parte do povo trabalhava para elas, desde a idade média que era assim. Com a
máquina começam a produzir-se bens industriais e é preciso pessoas para trabalhar com elas.
Na altura as fábricas encontravam-se na zona oriental de Lisboa e em Alcântara, não existindo
portanto muitas em Campolide. A ocupação das pessoas que vêm para Lisboa trabalhar nas
indústrias acontece primeiro nos bairros centrais, como o Bairro Alto, o bairro da Graça ou até
o de Alfama, sendo que só depois é que começam a ser ocupadas as zonas mais da periferia,
como a zona de Campolide.
Esta migração deve-se ao facto de as pessoas do campo viverem mal, viverem mesmo
muito mal. Elas viviam da agricultura, mas passavam todo o tempo a trabalhar, nasciam e
morriam pobres, enquanto que quem tinha a terra continuava a nascer e a morrer rico, a
história é esta. Quem trabalhava na terra começou a descobrir que vinha para a cidade para
ter melhor vida, aliás, o que é ridículo é que isto ainda se passa hoje. Ainda há muitos jovens
da vossa idade que vêm para Lisboa para estudar ou até trabalhar, esperando um futuro
garantido.
Com a revolução industrial passou-se para um processo de urbanização acelerada. No
princípio do séc. XX a taxa global de urbanização no nosso país era de cerca de 10%, e hoje é já
de 80%. A necessidade de trabalhar aumentou, e sucedeu o que se verificou no bairro da
Liberdade, construído sem grande planeamento, pela regra do “desenrasca”, feito sem
técnicos, arquitectos ou engenheiros, mas com pedreiros da altura. Houve de facto alguém
mais esperto que agarrou no terreno que não era seu e começou a vendê-lo, e depois
começou-se a construir. O bairro da Liberdade foi sendo ocupado assim, embora não fosse
aquela ocupação muito densa como por exemplo já havia em Inglaterra 100 anos antes, não
era uma coisa tão industrial nem tão optimizada. Os “slums” (bairros operários ingleses) eram
promovidos pelos industriais, e em grande escala. A ocupação inicial deixava sempre alguns
espaços livres. Porém, nos anos 70, assistiu-se a um novo fluxo de pessoas a dirigir-se para a
cidade e a emigrar, e aí enquanto foi possível construir mais uma casa ia-se construindo; a
população foi-se densificando até atingir o seu máximo, cerca de 120000 pessoas quando eu
vim para aqui (finais de 70). Quem vinha para trabalhar mas não estava sujeito a viver um
bairro sem condições, sem WC nem janelas, comprava uma casinha para o Cacém, para a
Amadora ou Queluz, e foi assim que a cidade de Lisboa começou a crescer. Agora aqui,
enquanto coube, construiu-se. E quem vinha para aqui? A família da família da família,
geralmente.
Tudo isto foi em relação ao bairro da Liberdade. O bairro da Serafina teve origem num
programa chamado de “programa das casas económicas”, criado no Estado Novo pelo
Governo de Salazar em 1933. E o seu objectivo era basicamente criar casas para quem era
trabalhador e se “portava bem”. Estas habitações sociais foram então criadas para os
sindicatos, portanto, só gente organizada é que tinha acesso às casas. Os critérios que eles
utilizavam eu não sei, o meu avô era tipógrafo e beneficiou deste programa, mas nunca
cheguei a perguntar-lhe porquê, pois morreu 20 anos antes de eu nascer. Mas deve ter sido
um bocado à maneira que se faz hoje, ou seja, ele pertencia a um sindicato, era bem
relacionado lá dentro, chegou-se à frente e foi dos primeiros a escolher uma casa na Serafina,
escolheu uma casa mesmo no sítio central. Portanto, eles escolhiam entre eles, basicamente
era assim. Este bairro foi fundamentalmente distribuído por tipógrafos, padeiros, polícias e
mais umas quantas profissões. Este bairro é um dos 12 bairros do programa das casas
económicas. O bairro da Calçada dos Mestres correu melhor que este, pois fica mais perto do
centro da cidade, e por isso as casas valem bastante mais do que valem aqui. Além disso o
desenho fez-se todo, ao contrário do desenho deste bairro, que acabou por não ser finalizado;
parte dos terrenos do bairro da Liberdade já estavam ocupados clandestinamente, e o Estado
já não lhes pegou porque significava que tinham de demolir as casas, mandar as pessoas
embora e isto implicava uma data de chatices. Eles podiam, mas não era prático, e assim só se
construiu a metade superior, o actual Bairro da Serafina, planeado por um arquitecto chamado
Paulino Montez. Importante também salientar que as casas não eram dadas, as pessoas
tinham de pagar por elas. A habitação social hoje é feita por arrendamento, mas no caso deste
programa as pessoas pagavam todos os meses uma prestação, que amortizava a compra da
casa. Ao fim de 20 anos a casa estava paga, e passava a pertencer a quem pagou. O Estado
investia dinheiro e queria recebê-lo. E são estas as diferenças.
Eu acho que isso é uma boa pergunta, já que nessa altura o governo era muito
autoritário, mas a minha impressão é que foi por uma questão de pragmatismo. As pessoas já
cá estavam, na prática, e faziam falta, o governo também queria que a indústria tivesse mão-
de-obra. Eu acho que foi tolerado por aí, o governo reconhecia que não tinha capacidade para
estar a dar casa a toda a gente e eu penso que por isso foi sempre tolerando que fossem
ficando, penso que seja esta a resposta, não encontro outra.
Até agora temo-nos referido apenas ao Bairro da Liberdade. A partir de que altura e
por que razões surgiu o Bairro da Serafina?
Os dois bairros foram evoluindo e crescendo até finalmente convergirem entre si.
Nessa altura era passível de se afirmar que muitas diferenças separavam estes habitantes da
Liberdade e Serafina?
Sociologicamente havia uma diferença. Vamos supor que o meu avô tinha um vizinho
(o seu avô foi um dos primeiros a conseguir uma casa no Bairro da Serafina, com o Programa
das Casas Económicas. Antes disso morava no Bairro Alto) que morava na casa ao lado, no piso
de baixo ou piso de cima, não interessa. O meu avô muda-se do Bairro Alto e vem para aqui
(Serafina) para uma casa com o dobro ou triplo do tamanho da casinha em que ele vivia,
enquanto que o seu vizinho também deixa a casa e vem viver para um “cochicho” aqui para
um pátio na Liberdade. Se o outro tipo deixou a casa que tinha no Bairro Alto e veio viver para
este sítio, que é pior, é porque não lhe estava a correr bem a vida, porque a renda num pátio
aqui era para aí metade da renda no “cochicho” no Bairro Alto. O que é que isto quer dizer?
Sociologicamente, as pessoas não tinham o mesmo estatuto nem o mesmo rendimento. Quem
conseguiu uma casa destas no Bairro da Serafina dava ao Estado e ao banco uma garantia que
podia pagar, os de lá de baixo não (Liberdade). Não é bem a mesma gente, há sempre um
certo antagonismo porque as pessoas que conseguem vir viver para uma casa melhor têm que
a pagar e conseguir pagá-la.
A diferença entre a população destes dois bairros hoje já não é tão notória, já houve
muita gente que saiu do Bairro da Liberdade e veio morar cá para cima porque lhes correu
bem a vida, alguns sabe-se porquê, outros não se percebe muito bem, mas não interessa, é a
lei da vida.
Piorou, mas já havia. É assim, este bairro sempre foi interessante para a marginalidade,
embora nos anos 30, 40 e 50 fosse muito mais sossegado, ou seja, se havia marginais nessa
altura era o “trafulha”, aquele que vivia de expedientes, que não trabalhava. A população
inserida nestes bairros era maioritariamente trabalhadora. Aliás, eles vinham aqui viver para
estarem perto do trabalho e de ter meios para se deslocarem até ele. Toda a gente de manhã
apanhava o comboio, ia trabalhar e só voltava a noite, e quando mais tarde começaram a
surgir as carreiras de autocarros também.
Mais tarde, a partir dos anos 60 e 70, registou-se novamente um enorme fluxo de
migração das pessoas do Norte e das Beiras e de repente as pessoas passaram a existir em
maior número do que o trabalho que havia para dar, e a malta precisou de arriscar, de maneira
que a má fama, os ladrões apareceram mais nos anos 70. Algumas figuras que surgiram nesta
época, “gangsters”, tinham a convicção de viver daquilo e pronto, fomentavam um gangue
entre eles e foi aí que se iniciou uma marginalidade a sério e numa altura inoportuna, aquando
da revolução do 25 de Abril. Após a revolução desaparece a repressão, enfraquece a
autoridade da polícia e dos tribunais, e de facto passaram-se uns anos muito complicados.
Estas pessoas começavam já a andar armadas e, um tempo mais tarde, já nos finais dos anos
80, as drogas pesadas apareceram. O fenómeno da cidade é assim, pouco conseguimos fazer.
Quando o João Soares se tornou presidente da câmara e decidiu acabar com o Casal
Ventoso, ele supostamente acabaria com dois problemas, com o problema do tráfico e com o
problema das pessoas que viviam com dificuldades. O problema é que o tráfico não
desaparece, o tráfico muda-se e o sítio propício mais próximo éramos “nós”. Aliás, nem foi
assim tão mau porque o tráfico não se redireccionou todo para cá, parte foi para a Ajuda, para
o bairro Dois de Maio. O nosso sítio era um sítio comercialmente atraente devido à linha de
comboio e o pessoal que já vendia aqui mantinha relações comerciais com o Casal Ventoso, já
havendo, portanto, um intercâmbio entre eles.
Que medidas foram aplicadas para terminar com o risco de abatimento do Bairro da
Liberdade?
Sim, a maioria das construções é ainda ilegal. A sua legalização passaria por exigências
funcionais e de salubridade contemporâneas, e verifica-se que isto é quase impossível na
maioria dos casos. Existe nova legislação que permitiria o processo de reconversão em novos
moldes, mas os proprietários não estão interessados, em especial neste contexto económico
tão negativo.