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I SIMPÓSIO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS do PROGRAMA DE PÓS-

GRADUAÇÃO EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS SAN TIAGO DANTAS (UNESP,


UNICAMP e PUC-SP)

12 a 14 de novembro de 2007
______________________________
O Percurso do Conceito de Paz: de Kant à atualidade

Nome: Ariana Bazzano de Oliveira


Orientador: Prof° Dr. Elve Miguel Cenci
Universidade Estadual de Londrina

INTRODUÇÃO

A paz é sem dúvida uma das grandes preocupações deste novo milênio, é
questão de interesse da opinião pública em geral, de políticos, religiosos, instituições
internacionais e nacionais, etc. Esta preocupação generalizada da sociedade fez – e faz –
surgir estudos, na sua maioria interdisciplinares, relacionados com os temas paz, violência e
conflitos. Esta interdisciplinaridade permitiu a ampliação de conceitos, objetivos, propostas
metodológicas e epistemológicas novas, além de compartilhar com outras ciências e
disciplinas a inquietude das sociedades humanas.
Dados estes parâmetros, esta pesquisa irá apresentar uma revisão
bibliográfica, dentro da produção acadêmica, da qual se espera demonstrar a trajetória do
conceito de paz. Especialmente, de como, no discurso filosófico, este conceito sofreu uma
ampliação, passando da compreensão da paz como ausência de guerra, para depois, da paz
como ausência de violência, para, por fim, atualmente, ser compreendida como a realização
de uma cultura de paz.
Inicia-se o estudo, no século XVIII, tendo o autor Immanuel Kant como
referência, pois, foi um dos primeiro autores, a tratar da questão da paz, de forma a garanti-la
perpetuamente, em contextos políticos e jurídicos. Com Kant, a paz deixa de ser tratada de
forma religiosa, para receber um tratamento jurídico-político. E também, é a partir da
proposta kantiana de paz que começa a ser utilizada a idéia da construção para definir a obra
da paz. Até então, paz e guerra eram consideradas realidades inalteráveis na filosofia, no
direito e na moral. A paz como uma idéia ligada à construção social é o ponto em comum dos
autores apresentados nesta pesquisa.
Pode-se afirmar que nos dois últimos séculos, principalmente no século XX,
ocorreu uma mudança na compreensão da paz nas mais diversas disciplinas, tais como, na
Filosofia, na Ciência Política e nas Relações Internacionais. Pode-se dizer que até o século
XX, predominava uma concepção restrita e negativa de paz, para a qual, a paz era ausência de
guerra. A partir do século XX, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, surgiu uma
nova área de estudos, chamada Estudos de Paz ou conhecida também, pelo seu nome inglês
Peace Research.
Esta nova disciplina procura entender as raízes dos conflitos e quais são os
passos necessários para a sua superação. Assim, dentro desse contexto, Galtung postula um
novo conceito de paz, que pode ser dividido em duas categorias: a paz negativa, que é a
ausência de violência direta e a paz positiva, que é a ausência de violência estrutural.
No mesmo período, em 1945, funda-se a Organizações das Nações Unidas
(ONU) e a sua agência especializada em educação, a Organização das Nações Unidas para
Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), ambas com a tarefa de “preservar as futuras
gerações do flagelo da guerra”1, pois já “que as guerras nascem nas mentes dos homens, é na
mente dos homens que devem ser erguidas as defesas da paz”2, assim, ao acreditar que a paz é
uma realidade a ser construída, ela também necessita da ciência, da educação e da cultura.
A partir da década de 90, a concepção de paz passa por um novo
alargamento, pois a paz não poderia mais, ser ausência de guerra ou ausência de violência, ela
teria que possuir uma dimensão própria, dessa forma, passa-se a falar da necessidade de se
construir uma cultura de paz. Segundo Federico Mayor, ex-diretor geral da UNESCO, cultura
de paz são ações, maneiras de vida, comportamentos, hábitos e atitudes que favorecem a paz.

1 – TEORIA KANTIANA DA PAZ

De acordo com Bobbio (2000, p.511), “o homem começou a refletir sobre a


paz partindo do estado de guerra”, pois a guerra colocava em perigo o maior bem do homem,
a sua própria vida. Dessa maneira, os pensadores da paz apresentaram suas primeiras
reflexões sobre o tema influenciados pelos horrores das guerras. A guerra, de certa maneira,
permitiu que as reflexões sobre a paz, começassem a sair do âmbito estritamente religioso. As
conseqüências das guerras eram tamanhas, que não se podia mais, esperar a pós-morte, para
se viver em paz. Os homens necessitavam aprender a viver em paz, sem a ajuda ou com a
intervenção divina.
A historiografia tem sido predominantemente um relato de guerras e isto
não foi diferente com a história da filosofia, de acordo com Bobbio (2000), “sempre existiu
uma filosofia da guerra, enquanto é bem mais recente a filosofia da paz, da qual o primeiro

1
Constituição das Organizações das Nações Unidas, 1945.
2
Constituição da UNESCO, 1945.
grande exemplo é Kant” (p.512). Bobbio afirma que a filosofia da paz surge quando a
filosofia da guerra esgota todas as suas possibilidades e ao mesmo tempo mostra a sua
impotência em relação ao aumento quantitativo e qualitativo das guerras.
A filosofia da guerra tem por princípio que as relações entre os homens e os
povos são, na sua essência, relações de violência, hostilidade e animosidade. Entre os autores
desta corrente destaca-se Maquiavel, Hobbes e Carl Schmitt. Em Maquiavel, esse princípio
aparece na fundamentação da autoridade política: “É necessário àquele que estabelece um
Estado e lhe confere uma constituição pressupor que todos os homens são maus” (apud
CASTILLO, 2001, p.06). Hobbes afirmava que todos os homens são naturalmente inimigos,
dessa forma, o estado natural dos homens, era a guerra de todos contra todos. Mais
contemporaneamente, na década de 30, Carl Schmitt afirma que “a política não tem outro
papel além de identificar o inimigo, de conferir sua unidade e sua identidade a um povo,
qualificando-o como seu inimigo e, portanto, suas razões de praticar a guerra” (CASTILLO,
2001, p.06-07). Assim, para Schmitt, o outro, o estrangeiro é o inimigo, pois o outro é aquele
com o qual não se pode entrar em acordo.
Já a filosofia da paz acredita que a guerra não é o estado habitual das
relações humanas e que é possível estabelecer a paz, como uma situação habitual das relações
entre os povos. Pode-se afirmar que a filosofia da paz nasceu no século XVIII, com o Projeto
para tornar a paz perpétua na Europa, de Charles Frené Castel, mais conhecido como abade
de Saint-Pierre (1658 - 1743). O livro foi escrito em 1713 e nele o autor defendia o princípio
de uma aliança perpétua entre os Estados soberanos que, obrigados por um tratado
internacional, deveriam submeter todas as suas contendas ao juízo de todos os outros Estados
reunidos em assembléia permanente3. Destaca-se desta proposta, a preocupação com a
vinculação dos Estados as exigências da paz na esfera internacional. O consenso e a formação
de alianças internacionais são descritos pelo abade de Saint-Pierre como meios necessários
para se alcançar a paz entre os Estados europeus. O abade de Saint-Pierre inova ao fazer da
paz um objetivo político, que estaria acima do interesse privado dos governantes, porém ele
acreditava que a moral, especialmente, a moral religiosa cristã faria com que os homens
abandonassem a guerra por uma paz fraternal.
O primeiro autor que se afasta das valorações de cunho religioso, no terreno
da filosofia política e para a qual, a reflexão político-filosófica sobre a paz encontra uma
importante e decisiva contribuição é com os escritos de Immanuel Kant. Este foi o primeiro
grande filósofo da paz, que publicou, em 1795, em forma de tratado internacional, um
3
BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUIM, 2000, p. 875.
opúsculo intitulado Projeto para a paz perpétua. Uma entre outras justificativas para conferir-
lhe tal título, é o fato de que Kant busca conferir à paz um fundamento jurídico, pois não se
trata de bondade ou filantropia, mas de direito. Além do que, Kant foi pioneiro na vinculação
de uma organização internacional com o pacifismo pela razão.
Segundo Rohden, ao se analisar a História, por uma perspectiva empírica,
ela é entendida até o século XIX como a história de guerras. Porém, ao se analisar por uma
perspectiva transcendental, isto é, a priori kantiana, a História passa a ser entendida como a
história da liberdade, “a partir da qual a paz se torna uma tarefa e um dever, de cuja
consciência mais do que nunca depende o nosso futuro” (ROHDEN, 1997, p.14). Rohden
afirma que do ponto de vista teórico a filosofia política kantiana sobre o tema da paz,
apresenta-se

como um processo de instauração progressiva do direito e, de um ponto de vista


prático, como uma tarefa comprometida com cada instituição do Estado. Por isso a
instituição de uma paz universal e duradoura não é apenas o objetivo último do
Direito das gentes, mas é o fim terminal de toda a Doutrina do direito, concernente à
relação racional do homem com todo outro (idem, p.11).

O princípio do qual partia Kant era o de que existiria uma tendência da


história humana de tornar realidade uma sociedade jurídica cada vez mais vasta, pois ele
acreditava que o direito constituía um conjunto de condições capazes de tornar possível a
coexistência pacífica das liberdades exteriores: um fim que poderia ser alcançado por uma
confederação de Estados livres quando cada Estado tivesse adotado uma forma republicana,
na qual o poder de decidir a guerra ou a paz não coubesse ao monarca, mas ao povo. Kant
supera as idéias do abade de Saint-Pierre ao associar a paz a uma organização internacional,
pois Kant acreditava nas instituições e não, nos homens.
Rohden afirma que para melhor compreender a concepção de paz de Kant,
também é necessário que se detenha no adjetivo “perpétua”, pois este é um elemento
imprescindível do conceito kantiano de paz. De acordo com o autor, uma paz que não seja
perpétua, é um armistício, que mesmo sem uma hostilidade declarada, pode-se identificar um
estado de guerra4, como afirma Kant, no seu primeiro artigo preliminar da Paz Perpétua
(idem, p.13). Segundo Guimarães, Kant distingue o armistício (adiamento das hostilidades) de
paz (fim de todas as hostilidades) e afirma que para autor, do mesmo modo como os homens
livres se associam para instaurar a paz, os Estados deveriam se confederar para instituir a paz
perpétua. “Formariam, assim, uma federação de paz distinta do pacto de paz, uma vez que

4
A Guerra Fria, ocorrida no século XX, é bom exemplo do que Kant aponta como um armistício.
este simplesmente procura pôr fim a uma guerra, enquanto aquela intenta acabar com todas as
guerras para sempre” (cf. GUIMARÃES, 1999).
Para ser algo mais que um armistício, a paz deve ser uma nova etapa do
mundo, que consiste segundo Kant, a sair do estado de natureza entre os Estados (anarquia
internacional), que é a situação de conflito permanente. Este raciocínio de Kant contribui para
desqualificar a guerra, pois a ela não pode representar um direito, já que se opõe inteiramente
ao direito de surgir relações de direito entre os povos.
Além do que uma paz perpétua, a preservaria das maquinações e manobras
políticas que a subordinariam aos interesses do poder e para Kant, a paz tem quer estar acima
dos interesses do poder, pois não pode ser um objetivo circunstancial ou provisório, a paz é
um fim supremo (CASTILLO, 2001, p.32).
Segundo Nour, a concepção de guerra e paz de Kant tem um caráter
estrutural, pois se vinculam à estrutura jurídica institucional. Para Kant, violência estrutural
“significa que, num estado não-jurídico, pessoas e povos isolados não estão seguros nem
contra a violência dos outros, nem para fazer ‘o que lhes parece justo e bom’” (NOUR, 2003,
p.11).
Kant considerava que o estado de natureza entre os homens era de guerra e
não de paz, dessa forma, no estado de natureza, embora nem sempre ocorra hostilidades,
existe uma ameaça constante de que elas ocorram. Por isso, a paz necessita ser instaurada,
pois só se pode ter segurança num estado jurídico, pois neste, pode-se tratar como inimigo
apenas aquele que lesa de fato, enquanto que, no estado de natureza, o outro pode lesar a
outrem, pois a simples existência do outro, implica num perigo a sua sobrevivência. Assim,
segundo Nour, “o estado de natureza, portanto, é um estado de ausência de direito” (ibidem).

A paz deve portanto ser assegurada por estruturas jurídicas institucionais, ou seja, o
estado de paz deve ser fundado por meio do direito público, “o que significa sair do
estado de natureza” e entrar num estado civil, no qual é legalmente definido o que é
de cada um (ibidem).

De acordo com Guimarães, Kant enfatiza a noção de aliança e de pacto, pois


acreditava que a paz não era uma situação natural dos homens. O autor aponta que o texto
Projeto para a paz perpétua, de Kant, contém o subtítulo de “um projeto filosófico” e foi
escrito em forma de um tratado, com artigos preliminares, artigos definitivos, cláusulas
secretas e apêndice. Para Guimarães, este estilo de escrever de Kant é a expressão do
pensamento moderno que acreditava que “a paz nasce de um pacto, portanto, fruto de uma
decisão racional”. E como a omissão de hostilidades não é a garantia de paz, era preciso
descrever detalhadamente em consistiria o estado da paz internacional (cf. GUIMARÃES,
1999).
Rohden afirma que para Kant, a paz só seria instaurada quando se instalasse
uma ordem jurídica, “fundada sobre os princípios de liberdade, dependência de uma
legislação comum e igualdade entre os cidadãos. Estes são os princípios de uma constituição
republicana ou de um Estado democrático” (ROHDEN, 1997, p.13). Assim, se um Estado não
cumpre um destes princípios, as hostilidades entre as pessoas que vivem neste Estado, podem
deflagrar um conflito.

Estado de paz é o estado civil fundado na idéia a priori de um contrato social


originário, mensurável a qualquer momento em seu estágio de aproximação a ela.
Esse estado só se institui progressivamente na medida do reconhecimento dos
direitos de cada indivíduo em uma sociedade organizada autonomamente. Isto é, a
paz instaura-se e torna duradoura num estado de direito democrático. A instituição
da paz emerge da pacificação interna em um Estado. Mas devido à necessária
interdependência dos homens e Estados dentro de uma esfera limitada da Terra, ela
só se perfaz mediante um direito internacional e um direito cosmopolita. A paz é
coextensiva à idéia de uma humanidade civilizada (ibidem).

Para Kant, portanto, é preciso um esforço consciente e racional dos


governantes e governados, para controlar e extinguir as causas das guerras. Esse esforço se
daria principalmente, num aperfeiçoamento das instituições humanas, como o direito, pois
seriam elas as garantidoras e mantedoras da paz.
Entretanto, de acordo com Guzmán, para os homens se aproximarem do
ideal moral de uma convivência em paz, não é suficiente apenas o estabelecimento de
constituições republicanas dentro dos Estados e o estabelecimento de um direito internacional
entre os Estados. Para o autor, de acordo com Kant, é necessário uma democracia e um direito
cosmopolita fundamentados na idéia regulativa da paz perpétua. Diz Kant:

Ora, como se chegou tão longe com o incremento em geral da comunidade (mais
estreita ou mais ampla) entre os povos da Terra que a violação dos direitos em um só
lugar da Terra é sentida em todos os outros: assim, a idéia de um direito cosmopolita
não é nenhuma espécie de representação fantástica e excêntrica do direito, porém
um necessário complemento de um código não escrito, tanto do direito público
como do direito das gentes para o direito público da humanidade em geral e, por
conseguinte, um complemento para a paz perpétua, de cuja contínua aproximação só
é possível lisonjear-se sob esta condição (KANT, 2004, p.54).

Segundo Messari e Nogueira, a origem da relação entre democracia e paz


está na obra Projeto para a Paz Perpétua, de Kant, pois é nesse texto, que ele formula o
conceito de federação pacífica, para se referir ao “conjunto de Estados que compartilham uma
forma republicana de governo” (2005, p.64). Para os autores, os princípios que regem as
repúblicas, de acordo com Kant, incluem: a proteção dos direitos individuais, o estado de
direito, a legitimidade do governo com base na representação e no consenso, a transparência e
a publicidade nas decisões do Estado (ibidem).
Messari e Nogueira afirmam que para Kant, a origem das guerras estava,
principalmente, nas formas de governo imperfeitas. Nos Estados despóticos, os monarcas não
precisavam prestar contas aos seus súditos a respeito das decisões de política externa e
interna. As ambições territoriais dos monarcas quase sempre se confundiam com os interesses
pessoais e feudais e segundo os autores, não se considerava as conseqüências dessas
investidas militares sobre o bem-estar do próprio Estado e da população em geral, sobre a
qual, recaíam os custos da guerra (ibidem). Os autores apontam que para Kant, nas repúblicas
o poder seria baseado na representação de interesses coletivos, o que tornaria mais difícil
qualquer decisão de se fazer a guerra.

Se, de fato, o governo fosse exercido em nome da cidadania, ou da maioria dela,


uma iniciativa que colocasse em risco as vidas e o patrimônio desses cidadãos
deveria ser objeto de ampla discussão e de uma justificativa racional e legítima.
Conseqüentemente, a política externa de regimes republicanos tenderia a ser muito
mais prudente e resguardada por ser mais comprometida com os interesses da
sociedade em geral (idem, p. 64-65).

Messari e Nogueira ainda ressaltam que, para Kant, as repúblicas seriam


mais pacíficas, em virtude de suas instituições e à observância do estado de direito. Kant não
acreditava que os indivíduos tornar-se-iam mais pacíficos por meio de algum processo
educativo, cultural ou espiritual. Kant afirmava que até uma “nação de demônios” seria
pacífica se bem-ordenada pelos princípios republicanos. Além do que, o respeito a um regime
jurídico constitucional, segundo os autores, estimula a crença na eficácia do direito
internacional como mecanismo de resolução de conflitos.

Nesse sentido, sociedades democráticas buscariam resolver suas diferenças mútuas


pacificamente por meio do direito internacional, porque reconheceriam umas nas
outras o mesmo compromisso com regras e instituições que reduzem a possibilidade
de uma agressão armada. Além disso, a semelhança das instituições políticas
favoreceria o intercâmbio econômico, político e cultural, criando laços de
familiaridade e eventualmente, de amizade que limitariam as fontes de conflito
(idem, p.65).

Portanto, de acordo com Messari e Nogueira, a visão kantiana da paz,


principalmente, nas Relações Internacionais, significava criar uma estrutura supranacional – a
Confederação – e fortalecer o Direito Internacional como mecanismo capaz de solucionar as
controvérsias de forma pacífica (idem, p.71).
Para Habermas, a condição cosmopolita deve se distinguir da condição
jurídica do interior de cada Estado, pois sob uma condição cosmopolita, os Estados não se
submeteriam a um poder superior, tal como fazem os cidadãos em particular em relação às
leis coativas, mas cada qual mantém sua independência. A federação de Estados livres
renunciaria, de uma vez por todas, ao instrumento da guerra para a relação dos Estados entre
si, e deve manter intacta a soberania de seus membros. Em lugar de uma república mundial
surge uma aliança de Estados que refuta a guerra (HABERMAS, 2002, p.197).
Para Kant, o Estado é uma sociedade autônoma de seres humanos e a sua
base funda-se na idéia racional de um contrato originário – fonte de todo o direito. O autor
define o direito à paz e este necessita de três condições: 1) o direito de estar em paz quando na
vizinhança há guerra, ou seja, o direito à neutralidade; 2) o direito à durabilidade da paz
contraída, isto é, o direito à garantia; 3) o direito à vinculação recíproca (confederação) entre
diversos Estados para defender-se comunitariamente contra eventuais ataques externos
(ROHDEN, 1997, p.234). Esta segurança contra a guerra assenta-se num estado legal, pois
fora dessa legalidade, cada vizinho ou povo é inimigo um do outro e a sua simples presença,
torna-se uma ameaça. Diz Kant: “no estado de paz estou seguro pelo meu direito; no estado
natural somente por minha violência” (apud ROHDEN, 1997, p.234).
Guimarães ressalta a importância de Kant ter conferido à paz perpétua o
estatuto de projeto filosófico, pois ao definir a paz como um projeto, Kant redefiniu a própria
idéia de paz. Ao fazer diversas distinções ao longo do texto - entre armistício e paz, entre
omissão de hostilidades e garantia de paz, entre tratado de paz e liga de paz – Kant mostra a
sua recusa com o conceito de paz, em vigor na sua época, compreendida apenas como uma
obscura rede de astúcias, derivada do jogo do poder e vazia de conteúdo. Kant acredita que a
paz é “uma tarefa que, solucionada pouco a pouco, aproxima-se continuamente de seu fim
(porque os tempos em que iguais progressos acontecem tornar-se-ão Oxalá cada vez mais
curtos)” (apud GUIMARÃES, 1999).
Além disso, para Guimarães, quando Kant define a paz como um projeto
filosófico, ele a torna um tema filosófico relevante, pois retira o “tema da paz do domínio
religioso, do imaginário utópico e do sentimento comum, dota-o de racionalidade e incorpora-
o na filosofia crítica” (ibidem). E como projeto filosófico, segundo Guimarães, a paz assume
uma perspectiva transcendental consolidando sua essência no sujeito racional e livre.
No segundo artigo definitivo, Kant afirma que “a razão, do alto de seu trono
de supremo poder legislativo moral, simplesmente condena a guerra como via do direito e faz,
em contrapartida, um dever imediato do estado de paz” (KANT, 2004, p.48). E no apêndice
que Kant trata da discordância entre a moral e a política, o autor confere à paz perpétua não
apenas o estatuto de um bem físico, mas também um estado proveniente do reconhecimento
do dever (idem, p.75-76). Desta forma, Guimarães afirma que é a partir destes fundamentos
filosóficos que começa a ser utilizado o símbolo da construção para definir a obra da paz.

Até então, paz e guerra eram considerados realidades inalteráveis na filosofia,


direito e moral. O máximo que se podia fazer era erguer as bandeiras brancas,
quando os víveres, as munições ou a resistência se esgotavam, e a derrota
apresentava-se como iminente. A bandeira da paz era, neste contexto, ao mesmo
tempo, afirmação da paz e da guerra, da paz na guerra, mas não da paz contra a
guerra. O Iluminismo começou a duvidar da inevitabilidade da guerra e pesquisar as
bases de uma ordem de paz baseada na razão. A paz passou a fazer parte do projeto
da modernidade de vencer a barbárie (cf. GUIMARÃES, 1999).

De acordo com Habermas, Kant inovou a teoria do direito ao argumentar


que um direito cosmopolita poderia garantir paz perpétua aos povos, porém, Habermas
ressalta que Kant determinava a paz, somente por vias negativas, “não deve haver guerra”,
“deve-se dar fim ao funesto guerrear” – afirmava Kant.
Habermas afirma que Kant busca uma paz desse tipo com referência aos
males5 ocasionados pelas guerras que os príncipes da Europa travavam na época, com o
auxílio dos exércitos mercenários. Esse panorama é o da guerra restrita que, no âmbito do
direito das gentes, fora institucionalizado no sistema das potências internacionais, como
instrumento legítimo para a solução de conflitos. O encerramento de uma guerra como essa
define a situação de paz.
Para Habermas, Kant pode se contentar com o conceito negativo de paz.
Contudo, para o autor, hoje esse conceito é insuficiente, não só por causa do descomedimento
na condução da guerra, mas, sobretudo porque o surgimento das guerras tem raízes sociais. A
complexidade das causas das guerras exige uma concepção de paz, que seja compreendida de
um processo que decorre sem violência, mas que não objetiva simplesmente a preservação do
poder, e sim o cumprimento de pressupostos reais para o convívio livre de tensões entre
grupos e povos. As regulamentações implementadas não podem ferir a existência e a honra
dos envolvidos, nem podem restringir demais os interesses vitais e as noções de justiça, ao
ponto de que as partes conflitantes voltem a recorrer à guerra, caso se esgotem as

5
Exemplos de males: pilhagens, empobrecimento do país por causa do custo da guerra, subjugação, perda da
liberdade, brutalização dos costumes, espionagem, atirador de elite, assassinos profissionais, etc.
possibilidades de ação. Dessa maneira, as políticas que se orientam segundo um conceito de
paz mais amplo, poderão recorrer a todos os meios antes do uso do poder militar (idem,
p.216).
Kant foi um marco para a filosofia política e disciplinas afins, por ser o
primeiro autor a sistematizar na forma de um tratado jurídico-político, as condições para se
garantir a paz perpétua entre as nações. As idéias kantianas de paz ficaram estacionadas até o
século XX, pois eram consideradas como ideais utópicas e inalcançáveis. Porém, com a
Primeira Guerra Mundial, em 1914, e suas posteriores conseqüências, demonstraram que a
paz não podia preservar-se somente por meio de um sistema de equilíbrio de forças. Assim,
neste período, as teses kantianas sobre a paz ganham respeitabilidade, porque tanto a Liga das
Nações, como as Organizações das Nações Unidas (ONU), se fundamentaram filosófica e
juridicamente sobre a idéia de que a guerra só pode ser evitada ou limitada, a partir da criação
de um organismo internacional que tivesse como objetivo, garantir a paz entre os povos.

2 – SÉCULO XX: O NASCIMENTO DA CIÊNCIA DA PAZ

Em virtude dos acontecimentos do século XX, tais como a Primeira e a


Segunda Guerra Mundial, ocorreu uma mudança significativa na maneira de se compreender
o que é paz. Pode-se afirmar que nunca o tema paz foi tão discutido e estudado como
começou a sê-lo a partir do século XX. Isto não significa que nos séculos anteriores não se
estudasse a paz: o ponto é que no século XX houve um empenho maior das ciências em
refletir profundamente a respeito da temática da paz e dos seus correspondentes, violência e
guerra. Estes estudos consistiram, sobretudo, numa maneira de se contrapor às conquistas das
ciências que foram rotineiramente adotadas pelas Forças Armadas do mundo inteiro, o que
tornou a guerra mais letal e mais destrutiva do que nunca. Assim, compreender o que é a paz e
como consolidá-la se tornou uma questão mais urgente no século XX, do que nos séculos
anteriores.
Após a Primeira Guerra Mundial, surgem às primeiras pesquisas sobre a
paz, que nascem da necessidade de encontrar um equivalente moral e cientifico à guerra, com
o objetivo de por fim a ela. Desenvolve-se a Pedagogia da paz, disciplina que estuda os
comportamentos agressivos e violentos dos seres humanos e o desafio dessa nova
especialidade era identificar e/ou elaborar forma de socialização e educação diferentes que
tornassem as pessoas mais livres, responsáveis e criativas.
A antropologia, com os estudos da estadunidense Margaret Mead (1901-
1978), contribuiu para a percepção da guerra e da violência como construções culturais. A
psicologia desafiou o ponto de vista simplista de que a guerra é o resultado inevitável da
natureza humana ao trazer novos elementos para sua compreensão, especialmente pela
contribuição de William James (1842-1910), considerado o primeiro psicólogo para a paz por
ter proposto encontrar uma moral que substituísse a da guerra. Também Sigmund Freud
(1856-1939), em sua famosa carta a Albert Einstein, contrapõe ao instinto de destruição –
Tânatos — o instinto de vida — Eros — mediado seja pelas relações humanas — "tudo o que
favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra"
(apud GUIMARÃES, 2002, p. 20) — seja pela cultura — "tudo o que estimula o crescimento
da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra" (ibidem).
Nestes primeiros anos de desenvolvimento da pesquisa sobre a paz, ela
ficou sujeita a explicar os conceitos de violência, de guerra, de conflitos, além de estudar as
formas de armamentos, contabilizar o número de mortos em guerras etc. Segundo Martínez e
Muñoz, um balanço a ser feito pelas quatro décadas de desenvolvimento da pesquisa sobre a
paz é o avanço substancial nas ciências humanas, pois promoveu uma renovação dos estudos
em campos como a ciência política, a sociologia, a filosofia, as relações internacionais, etc.,
fomentando uma cooperação internacional entre os investigadores das ciências humanas e de
também de outras ciências, tais como a Física (MARTÍNEZ; MUÑOZ, 2000, p.21).
Depois de 1945, constituiu-se uma ciência para estudar a paz, a guerra e os
conflitos — denominada polemologia (estudo dos conflitos) por alguns, irenologia (estudos
de paz) por outros, ou, ainda, sob a designação de estudos de paz (peace studies e peace
research) —, o que gerou a criação de uma série de centros de pesquisa em nível universitário
e o avanço de estudos sobre a temática, sob a perspectiva plural de diversas ciências.
Os estudos de paz surgem como uma contraposição teórica ao
conservadorismo realista e behaviorista das Relações Internacionais, corrente predominante
desde a década de 30. Estas novas pesquisas sobre a paz também promoveram uma análise
crítica dos estudos anteriores sobre a temática, acusando os seus antecessores de formalistas e
conservadores, visto que se concentravam no estudo da gestão dos conflitos internacionais,
sem buscar as causas das estruturas produtoras de conflitualidade.
Já os Estudos de paz assumem-se como um corpo teórico que possui
consciência de que as raízes reais da violência se encontram na pobreza, na desigualdade
sócio-econômica e na cultura dos povos. Por isso, pode-se afirmar que essa escola possui
quatro características básicas: 1) a superação do paradigma estatocêntrico e a sua substituição
por uma visão antropocêntrica, no qual a pessoa e a humanidade passam a ser as referências
básicas; 2) orientação normativa, isto é, recusa do positivismo e da pretensa neutralidade das
ciências sociais em favor de uma ambição transformadora, guiada pela paz como um valor a
atingir; 3) transdisciplinaridade, como método de tratamento das múltiplas dimensões da
questão da paz; e 4) orientação para a ação: do estudo à práxis da paz (PUREZA, 1998).
Segundo Gúzman, os Estudos de paz abordam temas como a agressão e a
violência direta, ou seja, estuda-se desde os conflitos humanos interpessoais até os bélicos. E
como parte dos estudos da guerra se relaciona com os estudos humanitários, que atende a
pessoas e a coletividades humanas em situação de catástrofes, este também é um dos temas
dos estudos de paz. Além disso, trata-se também da violência estrutural com reflexos sobre as
necessidades básicas, o desenvolvimento, a pobreza e a justiça social; da violência cultural
que inclui as legitimações discursivas e em geral, simbólicas das violência estrutural e direta
(GÚZMAN, 2001, p.61).
Pode-se situar o início dessa escola em 1959, com a fundação do
International Peace Research Institute de Oslo, pôr Johan Galtung, sociólogo norueguês.
Galtung é uma das figuras líderes e pioneira nos estudos de paz, inspirou-se na ética pacifista
de Gandhi e ficou mundialmente conhecido pela análise do que chama de “violência
estrutural” na política global, além de ter criado uns dos conceitos mais famosos de paz
atualmente, o qual é dividido em duas categorias: a paz negativa e paz positiva. De forma
resumida, pode-se dizer que paz negativa é a ausência de guerra e a paz positiva é a ausência
de violência.
Para Galtung, a guerra é um tipo de violência, mas não o único. Para ele,
ocorre violência quando uma pessoa não realiza tudo aquilo que potencialmente poderia
realizar. Nas suas palavras: “a violência está presente quando os seres humanos são
persuadidos de tal modo que suas realizações efetivas, somáticas e mentais, ficam abaixo de
suas realizações potencias” (apud CIIIP/UPAZ, 2002, p. 24).
Segundo Pureza, essa amplitude do conceito de paz tem relação direta com a
amplitude conferida pelos estudiosos de paz à violência, pois além da violência pessoal ou
direta, existe a violência estrutural, resultante da desigualdade de poder e da injustiça social.
Galtung afirma que a violência estrutural

está edificada dentro da estrutura e se manifesta como um poder desigual e,


conseqüentemente, como oportunidades de vida distintas. Os recursos são
distribuídos de forma desigual, como ocorre quando a distribuição de renda é muito
distorcida, ou quando a alfabetização/educação é distribuída de forma desigual, ou
quando os serviços médicos existentes em determinadas zonas são apenas para
certos grupos, etc. Acima de tudo, quando o poder de decisão acerca da distribuição
dos recursos está distribuído de forma desigual (apud JARES, 2002, p.124).

Galtung ressalta que a violência não é uma característica biológica humana.


O autor explica que os seres humanos possuem um potencial para a violência, assim como
possuem um potencial para a amizade, por exemplo, contudo são as circunstâncias que
condicionam a realização desse potencial. Ele afirma que a violência não é como a
alimentação ou o sexo, comuns em todo o planeta, já as grandes variações da violência,
podem ser explicadas, segundo o autor, em função da cultura e da estrutura:

violência cultural e estrutural causam violência direta, e começam como


instrumentos de atores violentos que se rebelam contra as estruturas e esgrimem a
cultura para legitimar o seu uso da violência. Obviamente, a paz também deve ser
construída a partir da cultura e da estrutura, e não só na mente humana 6 (cf.
GALTUNG, 2004).

Segundo Griffiths, o enfoque de Galtung além de ser mais amplo, também


se preocupa com os efeitos da violência estrutural sobre as vítimas. Por isso, Galtung
diferencia em quatro tipos de violência que ocorrem na política global. O primeiro tipo é a
violência direta, que se refere à imposição deliberada de dor, como na guerra, na tortura ou na
agressão física. O segundo tipo está relacionada à miséria ou privação de nossas necessidades
materiais básicas, como alimentação e moradia. O terceiro se refere à repressão, isto é, a perda
da liberdade humana de escolher suas crenças e expressá-las. E por fim, o quarto tipo que está
associado à alienação, pois atenta contra a identidade e necessidades não-materiais de ter uma
comunidade e relações com os outros indivíduos. Dessa forma, o segundo, o terceiro e o
quarto tipo está associado à violência estrutural. Para Galtung, a violência estrutural não é
somente observada quando há um agressor e uma vítima, ela pode estar integrada numa
ordem social ou numa estrutura política e econômica (2004, p.193).
E além da violência direta e da violência estrutural, também existe, segundo
Galtung, a violência cultural que se traduz no sistema de normas e comportamentos que
legitimam socialmente as duas violências anteriores. Para Galtung, a violência cultural é
formada por todos os discursos, símbolos, metáforas, representações, hinos patrióticos ou
religiosos, que legitimam tanto a violência estrutural, como a violência direta. Pureza afirma:
“A primeira é um facto, a segunda um processo e a última uma invariância, uma
permanência”.

6
Tradução livre
Galtung explica que a violência direta, física e/ou verbal é visível porque ela
se manifesta através do comportamento humano. Porém, a ação humana possui as suas bases,
que para o autor são duas: a cultura de violência (patriarcado, racismo, xenofobia, etc.) e a
estrutura violenta, que permite a repressão, exploração e a alienação dos povos (cf.
GALTUNG, 2004).
No seu livro Peace by peaceful means, de 1996, Galtung sintetiza de forma
quase matemática essa amplitude do seu conceito de paz: “Paz= paz direta + paz estrutural +
paz cultural”. E afirma:

A paz positiva direta consistiria na bondade física e verbal, boa para o corpo, a
mente e o espírito do próprio e do outro; seria orientada para todas as necessidades
básicas, a sobrevivência, o bem-estar, a liberdade e a identidade (...) A paz positiva
estrutural substituiria a repressão pela liberdade, e a exploração pela equidade,
reforçando-as com diálogo em vez de imposição, integração em vez de
segmentação, solidariedade em vez de fragmentação e participação em vez de
marginalização (...) A paz positiva cultural substituiria a legitimação da violência
pela legitimação da paz na religião, no direito e na ideologia; na linguagem; na arte e
na ciência; nas escolas, universidades e media; construindo uma cultura de paz
positiva” (apud PUREZA, 2001, p.13).

Logo, a paz positiva seria a ausência de violência estrutural. E esta só


poderia ser instaurada por meio de uma mudança social que, por sua vez, implica ajuda
mútua, educação e interdependência dos povos. Além disso, a paz positiva deve avançar lado
a lado com a promoção da justiça social e com o desenvolvimento político e econômico dos
países subdesenvolvidos. E o que Galtung chama de paz cultural têm também um sinônimo
que ficou mundialmente famoso, a cultura de paz. Ela seria a alternativa para violência
cultural, pois tentaria legitimar a paz direta e a paz estrutural.
Para Galtung, a paz negativa é simplesmente a inexistência da guerra e da
violência física, o que não necessariamente se traduz em cooperação entre povos e nações.
Aliás, a predisposição para a guerra, a rivalidade entre as nações e a falta de cooperação
podem continuar a existir na paz negativa. Conseqüentemente, a paz negativa é omissa em
relação aos problemas mundiais. Pois visa, quase exclusivamente, à solução dos problemas
locais. Por outro lado, a paz positiva pressupõe, além do abandono definitivo da idéia de
guerras e de rivalidade, a idéia de cooperação entre povos e nações com vistas à integração da
sociedade humana. Portanto, a paz positiva é conseqüência de ações contra a violência e a
guerra, por meio da proteção dos direitos humanos, do combate às injustiças
socioeconômicas, do desarmamento e da desmilitarização. A violência estrutural, segundo
Galtung, deriva dos conflitos resultantes das disparidades e tensões socioeconômicas.
Por esse motivo, a violência estrutural implica oportunidades de vida
distintas que supõem um acesso diferenciado aos benefícios do desenvolvimento, uma
distribuição desigual de recursos e um poder variável de influência nas instâncias que
decidem a distribuição dos recursos. Desta maneira, a não realização dessas dimensões supõe
que os indivíduos se encontram impossibilitados de obter níveis minimamente satisfatórios de
qualidade de vida e, por este motivo, essa problemática faz parte da discussão que envolve
paz e violência.
Muito já se discutiu para saber se convinha ou não utilizar o mesmo
conceito de violência para designar simultaneamente ações violentas e situações de injustiça.
A intenção de destruir da ação violenta é altamente perceptível, mas é mais difícil de detectar
nas situações de injustiça. Todavia, não há dúvida de que as vítimas dessas situações sofrem
uma violência que atenta contra a sua dignidade e liberdade, e que pode fazer cair sobre elas
uma real ameaça de morte. Pois parte-se do pressuposto de que a violência é tudo aquilo que
impede a auto-realização humana (satisfação das necessidades básicas, materiais e não-
materiais). Dessa maneira, a opressão, exploração e a alienação passam a ser ações violentas.
Contudo, apesar da identificação dos diferentes tipos de violência feita por
Galtung, ter representado um avanço significativo nos estudos de paz, uma das críticas feita
ao autor afirmam que os seus conceitos de paz encontram-se muito ligados a uma visão
negativa de paz, a sua definição de paz sempre parte do que é a violência. “De fato, definir a
paz positiva como a ausência de tipos de violência que não sejam a guerra, ou outros tipos de
violência direta, implica a possibilidade de confundir o que necessariamente deve ser
diferenciado” (CIIIP/UPAZ, 2002, p.25). Até mesmo o próprio Galtung afirmou anos mais
tarde que:

É evidente que tenho plena consciência das mudanças ocorridas nestes conceitos
desde a sua elaboração e acredito no surgimento de novas formulações com base nas
aqui apresentadas. (...) Neste momento, identifico a ‘paz positiva’ principalmente
com a ‘justiça social’, (...) mas penso que deveríamos estar abertos à inclusão de
outras propostas, uma vez que a definição de violência é ampla o bastante para
apontar em outras direções (apud CIIP/UPAZ, 2002, p.26).

3 – O FINAL DA GUERRA FRIA E A CULTURA DE PAZ

A discussão sobre as causas da guerra ganhou força após a Segunda Guerra


Mundial, em virtude do grande número de mortos, das sociedades inteiras que ficaram em
ruínas, do holocausto e dos efeitos de uma bomba nuclear. A força militar e econômica de
certos Estados foi identificada como uma das causas da guerra e os países vitoriosos uniram-
se para estabelecer um sistema que pudesse controlar novas manifestações de agressão, assim,
formou-se a ONU, como uma organização multilateral que tem por objetivo prevenir novas
guerras e conflitos violentos. A UNESCO, fundada no mesmo período, nasce com a
responsabilidade de promover uma educação que crie um ambiente propício à paz e este
compromisso está na sua Constituição de 1945, “já que as guerras nascem na mente dos
homens, é na mente dos homens que devem ser erguidas as bases da paz”. Esta afirmação
destaca que a guerra é uma construção humana e este será o eixo central para o
desenvolvimento de uma cultura de paz nas décadas seguintes.
Com o fim da Guerra Fria, direitos humanos, desenvolvimento e democracia
constituíram-se como idéias políticas hegemônicas na esfera das relações internacionais
(DONNELY, 1998, p.167). Nesse contexto, o discurso internacional sobre a cultura da paz
torna-se mais intenso e para os analistas internacionais, a década de 90 é considerada como
um período promissor para os debates dos grandes temas sociais. Segundo Alves, a Carta das
Nações Unidas não desvincula a paz do contexto socioeconômico e as grandes conferências
da década de 1990 abordaram os múltiplos fatores dos respectivos temas em suas
interconexões, “inserindo o local no nacional e este no internacional, com atenção para as
condições físicas e humanas do espaço em que se concretizam” (ALVES, 2001, p. 34).
Para a UNESCO, a simples assinatura de acordos e tratados é insuficiente
para estabelecer a paz, pois os fatores que permitem e favorecem a eclosão das guerras têm
permanecido inalterados. Ou seja, para esta organização quando a cultura, em seus diversos
aspectos econômicos, políticos, sociais, emocionais, morais, etc., mantém seus valores de
violência e dominação, a paz se torna apenas o intervalo entre guerras. Diz a Constituição da
UNESCO (1945):

(...) uma paz fundada exclusivamente sobre acordos políticos e econômicos,


celebrados entre governos, não conseguirá assegurar a adesão unânime, duradoura e
sincera de todos os povos e, por conseguinte, para que a paz subsista deverá assentar
na solidariedade intelectual e moral da humanidade. (...) a paz não é somente a
ausência de conflitos, ela requer também um processo positivo, dinâmico e
participativo em que se promova o diálogo e se solucionem os conflitos num espírito
de entendimento e cooperação mútuos.

O programa da UNESCO parte da premissa de que a maior garantia de uma


paz firme e duradoura é que esta se converta em cultura dos povos. Isto é, que a cultura de
paz substitua nas mentes, nos comportamentos e nas instituições a hegemonia da cultura de
guerra. Segundo Francisco Lacayo Parajón7 (1999, p.23), a cultura é a personalidade histórica
de um povo ou de uma sociedade. Assim, a cultura não é expressa somente nas belas artes, no
artesanato, na linguagem e nos campos do patrimônio cultural, mas também inclui os valores,
os modelos de comportamento, as instituições, as normas, as formas de convivência social,
política e econômica, etc. Dessa maneira, a cultura é compreendida, nos documentos oficiais
da UNESCO, de forma viva, dinâmica e aberta.
A partir dessa definição de cultura, pode-se compreender melhor o que é
cultura de violência e cultura de paz. Uma cultura de violência é constituída por valores que
permeiam as relações sociais e impelem os indivíduos a (re)agirem por meio da força, da
imposição, da opressão e da desigualdade. O Estado, nesta perspectiva, também contribuiu
para a consolidação da cultura de guerra, ao adotá-la como forma primordial de resolução de
conflitos. O Estado mantém uma relação intrínseca com a violência e esta, em suas múltiplas
formas de manifestação, permaneceu arraigada como maneira habitual, institucionalizada e
moralmente valorizada de soluções de conflitos tanto internos àquela sociedade quanto
externos a ela (cf. PINHEIRO, p.106).
Por sua vez, a cultura de paz é uma proposta para que as relações humanas
sejam permeadas pelo diálogo, pela tolerância, pela consciência da diversidade dos seres
humanos e de suas culturas. Segundo Federico Mayor,

A cultura de paz é a paz em ação; é o respeito aos direitos humanos no dia-a-dia; é


um poder gerado por um triângulo interativo de paz, desenvolvimento e democracia.
Enquanto cultura de vida, trata-se de tornar diferentes indivíduos capazes de
viverem juntos, de criarem um novo sentido de compartilhar, ouvir e zelar uns pelos
outros, e de assumir responsabilidade por sua participação numa sociedade
democrática que luta contra a pobreza e a exclusão; ao mesmo tempo em que
garante igualdade política, eqüidade social e diversidade cultural.

Com base na definição acima, observa-se que o conceito de cultura de paz


reconhece que a paz possui, além de raízes sociais, econômicas e políticas, uma base cultural.
A cultura, tal como a UNESCO compreende, diz respeito às expressões produzidas e criadas
pela humanidade e, portanto, como uma realidade ligada ao ato de aprender, transmitir,
educar.
Segundo David Adams8, para a UNESCO, a cultura de paz está
intrinsecamente relacionada à prevenção e à resolução não-violenta dos conflitos, pois é uma

7
Ex-diretor do escritório regional da UNESCO em ciência e tecnologia para a América Latina e o Caribe
8
Consultor responsável pelo desenho do Programa de Cultura de Paz da UNESCO em 1992, membro sênior da
equipe gestora do programa de 1993 a 1997 e Diretor do Ano Internacional pela Cultura de Paz de 1998 até
2001.
cultura baseada na tolerância e na solidariedade. Além do mais, é uma cultura que respeita os
direitos individuais e se empenha em prevenir conflitos resolvendo-os em suas fontes, já que
estas também englobam as novas ameaças não-militares para a paz e para a segurança, tais
como a exclusão, a pobreza extrema e a degradação ambiental. A cultura de paz procura
resolver os problemas por meio do diálogo, da negociação e da mediação, de forma a tornar a
guerra e a violência inviáveis.
O termo Cultura de Paz foi mundialmente apresentado em julho de 1989,
alguns meses antes da queda do muro de Berlim, durante o Congresso Internacional para a
Paz na Mente dos Homens, em Yamassoukro (Costa do Marfim). Segundo Rayo, na
declaração desse Congresso tenta superar as diferentes concepções de paz (paz como ausência
de guerra, paz como equilíbrio de poder, paz negativa e paz positiva, etc.) ao considerar que a
paz é:

a) essencialmente o respeito à vida;


b) o bem mais precioso da humanidade;
c) mais do que o fim dos conflitos armados;
d) um comportamento;
e) uma adesão profunda do ser humano aos princípios de liberdade, justiça,
igualdade e solidariedade entre todos os seres;
f) também uma associação harmoniosa entre a humanidade e a natureza (RAYO,
2004, p.32).

Além disso, nesse mesmo congresso foi apresentada a Declaração de


Sevilha sobre a Violência, de 1986, que afirmava que a violência não tem nenhum
fundamento biológico, sendo portanto, um produto da cultura. A UNESCO adotou essa
declaração como o fundamento para a cultura de paz.
A Declaração de Sevilha demonstrava cientificamente que a guerra se funda
em fatores culturais ao invés de biológicos. Não foi por acaso que esse tema foi colocado pela
antropóloga Margaret Mead, que afirmava que o individuo é fundamental na aplicação da
violência, contudo, ela acreditava que as tendências negativas e agressivas dos seres humanos
podem mudar ou se transformar através da educação, pois o ser humano cresce e se expressa
dentro de um contexto cultural dado. Assim, dentro dessa perspectiva, a guerra seria uma
possível conseqüência da conduta humana, mas não inevitável. Esse encontro de especialistas
em Sevilha foi composto tanto, por cientistas sociais, quanto por cientistas da área de
biológicas, tais como, a etologia, neurofisiologia, comportamento animal e genética. Todos
concordaram que dentro da biologia não se conhece qualquer fato que impeça a abolição da
guerra.
Afirma a Declaração de Sevilha:
(...)
a) é cientificamente incorreto dizer que herdamos de nossos ancestrais animais
uma de fazer à guerra (...) ;
b) é cientificamente incorreto dizer que a guerra ou o comportamento violento está
programado nos genes humanos (...);
c) é cientificamente incorreto dizer que a seleção natural da evolução, selecionou a
agressão e o comportamento violento (...);
d) é cientificamente incorreto dizer que temos um “cérebro violento” (...);
e) é cientificamente incorreto dizer que a guerra se faz por instinto ou qualquer
outro fator singular (...)

Ao analisar a Declaração de Sevilha, tem-se o suporte científico para refutar


o determinismo biológico e compreender a violência como um exercício de poder.
Consequentemente, a violência pode ser prevenida combatendo-se as suas causas econômicas,
sociais e culturais.
A Organização das Nações Unidas (ONU) definiu cultura de paz na
Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz, em 13 de setembro de 1999, da
seguinte maneira:

Uma Cultura de Paz é um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e


estilos de vida baseados: No respeito à vida, no fim da violência e na promoção e
prática da não-violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação; No
pleno respeito aos princípios de soberania, integridade territorial e independência
política dos Estados e de não ingerência nos assuntos que são, essencialmente, de
jurisdição interna dos Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e o
direito internacional; No pleno respeito e na promoção de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais; No compromisso com a solução pacífica dos
conflitos; Nos esforços para satisfazer as necessidades de desenvolvimento e
proteção do meio-ambiente para as gerações presente e futuras; No respeito e
promoção do direito ao desenvolvimento; No respeito e fomento à igualdade de
direitos e oportunidades de mulheres e homens; No respeito e fomento ao direito de
todas as pessoas à liberdade de expressão, opinião e informação; Na adesão aos
princípios de liberdade, justiça, democracia, tolerância, solidariedade, cooperação,
pluralismo, diversidade cultural, diálogo e entendimento em todos os níveis da
sociedade e entre as nações; e animados por uma atmosfera nacional e internacional
que favoreça a paz.

Nesta mesma Declaração também foram definidos os oito campos de ação


em que o Estado e a sociedade civil devem atuar para garantir a promoção da cultura de paz.
São eles: educação para a paz; desenvolvimento econômico e social sustentável; direitos
humanos; igualdade entre os gêneros; participação democrática; compreensão, tolerância e
solidariedade; comunicação participativa e livre circulação de informação e conhecimento;
paz e segurança internacionais.
Na esfera das relações internacionais, foi a primeira vez que os Estados
nacionais, de diferentes regiões do mundo, se reuniram para discutir conjuntamente a questão
da formulação de uma cultura de paz. Também se destaca a atuação de movimentos sociais
mundiais e ONGs de âmbito internacional que passaram a ocupar um lugar de destaque, na
década de 90, junto aos espaços de diálogo internacional. Em 1992, o Secretário Geral da
ONU, na sua Agenda para a paz, afirmou: “A paz, no sentido mais amplo, não pode ser
assegurada pelo sistema das Nações Unidas ou só pelos próprios governos, (...) as
organizações não-governamentais devem estar prontas para contribuir” (apud PÉTRIS, 1999,
p.300). Além disso, o papel dos meios de comunicação, da família, da escola, enfim, de todos
os indivíduos e instituições se comprometerem com a promoção da cultura de paz.
A UNESCO ressalta que o fato de existir um projeto de cultura de paz não
significa que se deva homogeneizar a sociedade. Uma cultura de paz não fará desaparecer os
conflitos e diferenças naturais que existem em todas as sociedades, porém, a cultura de paz
poderá ajudar a identificar os interesses comuns fundamentais, isto é, criar um consenso que
pode impedir a desintegração da sociedade e permitir que se construa um futuro justo e
eqüitativo para todos, além de contribuir para que os conflitos sejam solucionados de forma
não-violenta.
Este consenso pressupõe que as diferentes partes em conflito, a partir cada
um de seus princípios e em coerência com eles, reconheçam a necessidade de um projeto
nacional acordado, em alguns temas econômicos, sociais e políticos fundamentais. A cultura
de paz não nega as diferenças, mas as considera enriquecedoras.
A cultura de paz é também, a promoção de certos valores que se consideram
fundamentais para uma convivência pacíficas entre os seres humanos. Sabe-se que a
promoção de certos valores num nível macro ou internacional é um tema polêmico, como por
exemplo, o debate sobre os direitos humanos como um conceito imposto pelo Ocidente. A
promoção da cultura de paz corre o mesmo risco de ser uma imposição de valores que
possivelmente não representem ou não existam em todas as culturas ou em todas as
sociedades. Na discussão sobre os direitos humanos, as maiores partes das críticas vêem de
países menos industrializados, principalmente dos países muçulmanos, que assinalam a falta
de respeito às práticas culturais e tradicionais em sociedades não-ocidentais (DANIELSEN,
2005, p.20).
Contudo, é interessante notar que a resistência à promoção da cultura de
paz, tanto a nível institucional da ONU, como na implementação das recomendações feitas
aos Estados-membros, partem dos países mais industrializados, como os Estados Unidos e a
União Européia. Nos debates informais sobre a resolução da cultura de paz na Assembléia
Geral da ONU, de 1999, a União Européia insistiu que se removesse da resolução a referência
a uma “cultura de guerra”, pois segundo eles, isto não existia. Além disso, o embaixador dos
Estados Unidos na ONU afirmou durante os mesmos debates que o seu país era contra a
resolução, porque se fosse adotada, seria mais difícil de fazer a guerra. No entanto, com a
pressão de vários líderes de países menos industrializados, a resolução foi adotada com
consenso no último dia pela Assembléia Geral naquele ano (idem, p.21).
É compreensível a resistência dos países desenvolvidos em se promover a
cultura de paz, pois ela implica em se mudar de maneira contundente as estruturas, os
sistemas e as culturas deles. Muitas sociedades não-ocidentais vêm-se como vítimas da
cultura violenta existente no Ocidente, além disso, muitos argumentam em favor da cultura de
paz, já que os valores principais que sustentam a cultura de paz vão ao encontro com seus
próprios valores de coletividade e solidariedade. Além disso, as divisões na discussão não
ocorrem somente entre países e nacionalidades, várias divisões se definem por classes sócio-
econômicas, religiões, gênero, comportamento sexual, entre outros. Contudo, apesar do apoio
dos países em desenvolvimento à promoção de uma cultura de paz, esses Estados também não
têm dado contribuições significativas de forma a garantir e a colocar em práticas as
recomendações feitas pela ONU.
No entanto, como os atores dominantes no sistema internacional são os
Estados mais poderosos, mais armados e mais ricos, não é surpreendente que estes países não
priorizem em suas relações internacionais uma cultura de paz que tenha como objetivo reduzir
e delegar seus poderes, diminuir o seu armamento e distribuir as suas riquezas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste novo milênio, os desafios a se enfrentar são muitos. Porém, depois de


todos os conflitos vividos no século XX e da real possibilidade de extinção da vida no planeta
Terra, a humanidade se fez uma pergunta: O que é Paz?
A história já comprovou – como, por exemplo, na Primeira e na Segunda
Guerra Mundial - que a simples assinatura de acordos e tratados é insuficiente para
estabelecer a paz, pois os fatores que permitem e favorecem a eclosão das guerras têm
permanecido inalterados. Ou seja, quando a cultura, em seus diversos aspectos – econômicos,
políticos, sociais, emocionais, morais, etc. – mantém seus valores de violência, dominação e
conflito, a paz se torna apenas o intervalo entre guerras.
No final deste milênio, a humanidade passou a discutir e a perceber que a
paz não está ligada à ausência de conflitos: eles são fatores constitutivos da vida social.
Nenhuma relação, seja entre os indivíduos, comunidades, partidos políticos ou nações,
permanece a mesma, dia após dia. Novas situações estão sempre surgindo e destas, tensões e
problemas que necessitam de uma resolução. E é justamente nas resoluções destas situações
que se demonstra em que paradigma se vive: se no paradigma da força e da intolerância, na
cultura de violência; ou se no paradigma do diálogo e da compreensão, a cultura de paz.
Com base nisto, um número cada vez maior de pessoas passam a entender
que paz não é ausência de conflito ou uma condição de passividade. A paz é um tipo de
mentalidade, uma forma de agir cotidianamente. Assim, a paz é um tipo de mentalidade pelo
qual países, comunidades, partidos e indivíduos buscam resolver suas diferenças por meio de
acordos, negociações e concessões, e não com ameaças, imposições e violência.
De acordo com Gert Danielsen, coordenador no Brasil do Relatório Mundial
sobre a Cultura de Paz de 2005, muitos governos não têm feito o suficiente para promover a
cultura de paz, como se comprometeram no ano de 1999. Contudo, é a sociedade civil que
tem contribuído de maneira extensa ao Relatório. Para ele, é importante mostrar que a
sociedade civil segue sendo um fator chave na promoção da cultura de paz, tanto no Brasil
quanto em outros países do mundo.
Segundo o Relatório Mundial da Cultura de Paz9, de 2005, o movimento
mundial por uma cultura de paz está em constante avanço. Esta é a conclusão da maioria de
organizações de todo o mundo que avaliaram os avanços e os obstáculos para uma promoção
da cultura de paz durante os primeiros cinco anos da Década Internacional de uma Cultura de
Paz e Não Violência para as Crianças do Mundo. Este relatório consta de mais de 3.000
páginas de informação, entregue por 700 organizações de mais de 100 países, inclui as
informações recolhidas e apresentadas pelas organizações, que analisaram as atividades
realizadas para promover uma cultura de paz e não violência, bem como o progresso feito
durante a primeira metade da Década Internacional.

O progresso é especialmente notável se tivermos em conta que só decorreram cinco


anos desde que a resolução A/53/243 da Assembléia Geral da ONU fez um primeiro
apelo à constituição de um movimento mundial por uma cultura de paz. E é tanto
mais surpreendente quanto, tal como é feito saber de todo o mundo, os meios de
comunicação não difundiram informação acerca da cultura de paz através dos
noticiários e as Nações Unidas e a agência que lidera a Década, a UNESCO, lhe
prestaram muito pouca atenção. No Brasil, onde quinze milhões de pessoas
9
RELATÓRIO MUNDIAL DE CULTURA DE PAZ - Relatório da sociedade civil a meio da Década de Cultura
de Paz - de acordo com o convite do parágrafo operativo 10 da Resolução da Assembléia Geral A/59/143.
Íntegra do Relatório em <www.decade-culture-of-peace.org>
assinaram o Manifesto 2000, é reconhecido o mérito do Ano Internacional da
Cultura de Paz por ter lançado o movimento no ano 200010.

A importância do Estado se comprometer com a promoção da cultura de paz


repousa no fato de que sem essa institucionalização as ações que visam a essa promoção
podem correr o risco de permanecer no voluntarismo. Como escreve Habermas:

O que nós necessitamos é de um pouco mais de práticas solidárias; sem isso, o


próprio agir inteligente permanece sem consistência e sem conseqüências. No
entanto, tais práticas necessitam de instituições racionais, de regras e formas de
comunicação, que não sobrecarreguem moralmente os cidadãos e sim elevem em
pequenas doses a virtude de se orientar pelo bem comum (apud GUIMARÃES,
2004, p.118).

Um ponto interessante dessa pesquisa é observar que mesmo o conceito de


paz passando por várias acepções durante a história, as três referências teóricas deste trabalho
– Immanuel Kant, Johan Galtung e a UNESCO – possuem um ponto em comum: a instituição
da paz é um processo contínuo da humanidade e justamente por ser um processo, “a paz
permanecerá sempre um projeto inacabado de uma humanidade civilizada, cuja segurança
dependerá da institucionalização do direito mediante o engajamento de todos os homens”
(ROHDEN, 1997, p.14).
Outro fato que chama a atenção nessa pesquisa é o fato das convenções
internacionais elaboradas pela ONU ainda não reconhecerem a paz como um dos direitos
humanos. Pois sendo um direito dos povos, a paz se torna uma questão de âmbito interno de
cada Estado, o que de certa forma, preserva o direito à guerra e o interesse das indústrias
bélicas e de armamentos, que são uma das maiores do mundo, tanto em movimentação
financeira quanto em influência política.
Contudo, apesar da paz não ser reconhecida pelas esferas internacionais
como um direito humano, cada vez mais ela é reconhecida como um valor universal, dessa
maneira, da mesma forma como a liberdade e a igualdade foram reconhecidas como um
direito humano, a paz também necessita dessa positivação, para se haver ações mais efetivas
no âmbito internacional para a garantia e a preservação da paz.
Portanto, este trabalho entende que para construir uma cultura de paz é
necessário promover as transformações necessárias e indispensáveis para que a paz seja o
princípio regente de todas as relações humanas e sociais. E essas transformações vão desde a
dimensão dos valores, atitudes, estilos de vida até as estruturas políticas, econômicas,
10
Idem, p.09.
jurídicas e as relações políticas internacionais. Enfim, promover a cultura de paz significa e
pressupõe trabalhar de forma integrada a favor das grandes mudanças desejadas por uma
imensa parte da humanidade: justiça social, igualdade entre os sexos, eliminação do racismo,
tolerância religiosa, respeito às minorias, educação universal, equilíbrio ecológico e liberdade
política. A cultura de paz poderia se transformar no elo que interliga e abrange todos esses
ideais num único processo de transformação, como esta pesquisa procurou demonstrar e
sustentar.

REFERÊNCIAS:

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2003. <www.comitepaz.org.br> 20/07/07, 13:54 hs.

ALVES, José Augusto Lindgren. Relações Internacionais e Temas Sociais: A década das
conferências. Brasília: IBRI, 2001.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUIM, Gianfranco. Dicionário de Política,


Brasília: Ed. UNB: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: A filosofia e as lições dos clássicos. Rio de
Janeiro: Ed. Campus, 2000.

CASTILLO, Monique. A Paz: razões de Estado e soberania das nações. RJ: DIFEL, 2001.

CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO PARA A PAZ


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