12 a 14 de novembro de 2007
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O Percurso do Conceito de Paz: de Kant à atualidade
INTRODUÇÃO
A paz é sem dúvida uma das grandes preocupações deste novo milênio, é
questão de interesse da opinião pública em geral, de políticos, religiosos, instituições
internacionais e nacionais, etc. Esta preocupação generalizada da sociedade fez – e faz –
surgir estudos, na sua maioria interdisciplinares, relacionados com os temas paz, violência e
conflitos. Esta interdisciplinaridade permitiu a ampliação de conceitos, objetivos, propostas
metodológicas e epistemológicas novas, além de compartilhar com outras ciências e
disciplinas a inquietude das sociedades humanas.
Dados estes parâmetros, esta pesquisa irá apresentar uma revisão
bibliográfica, dentro da produção acadêmica, da qual se espera demonstrar a trajetória do
conceito de paz. Especialmente, de como, no discurso filosófico, este conceito sofreu uma
ampliação, passando da compreensão da paz como ausência de guerra, para depois, da paz
como ausência de violência, para, por fim, atualmente, ser compreendida como a realização
de uma cultura de paz.
Inicia-se o estudo, no século XVIII, tendo o autor Immanuel Kant como
referência, pois, foi um dos primeiro autores, a tratar da questão da paz, de forma a garanti-la
perpetuamente, em contextos políticos e jurídicos. Com Kant, a paz deixa de ser tratada de
forma religiosa, para receber um tratamento jurídico-político. E também, é a partir da
proposta kantiana de paz que começa a ser utilizada a idéia da construção para definir a obra
da paz. Até então, paz e guerra eram consideradas realidades inalteráveis na filosofia, no
direito e na moral. A paz como uma idéia ligada à construção social é o ponto em comum dos
autores apresentados nesta pesquisa.
Pode-se afirmar que nos dois últimos séculos, principalmente no século XX,
ocorreu uma mudança na compreensão da paz nas mais diversas disciplinas, tais como, na
Filosofia, na Ciência Política e nas Relações Internacionais. Pode-se dizer que até o século
XX, predominava uma concepção restrita e negativa de paz, para a qual, a paz era ausência de
guerra. A partir do século XX, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, surgiu uma
nova área de estudos, chamada Estudos de Paz ou conhecida também, pelo seu nome inglês
Peace Research.
Esta nova disciplina procura entender as raízes dos conflitos e quais são os
passos necessários para a sua superação. Assim, dentro desse contexto, Galtung postula um
novo conceito de paz, que pode ser dividido em duas categorias: a paz negativa, que é a
ausência de violência direta e a paz positiva, que é a ausência de violência estrutural.
No mesmo período, em 1945, funda-se a Organizações das Nações Unidas
(ONU) e a sua agência especializada em educação, a Organização das Nações Unidas para
Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), ambas com a tarefa de “preservar as futuras
gerações do flagelo da guerra”1, pois já “que as guerras nascem nas mentes dos homens, é na
mente dos homens que devem ser erguidas as defesas da paz”2, assim, ao acreditar que a paz é
uma realidade a ser construída, ela também necessita da ciência, da educação e da cultura.
A partir da década de 90, a concepção de paz passa por um novo
alargamento, pois a paz não poderia mais, ser ausência de guerra ou ausência de violência, ela
teria que possuir uma dimensão própria, dessa forma, passa-se a falar da necessidade de se
construir uma cultura de paz. Segundo Federico Mayor, ex-diretor geral da UNESCO, cultura
de paz são ações, maneiras de vida, comportamentos, hábitos e atitudes que favorecem a paz.
1
Constituição das Organizações das Nações Unidas, 1945.
2
Constituição da UNESCO, 1945.
grande exemplo é Kant” (p.512). Bobbio afirma que a filosofia da paz surge quando a
filosofia da guerra esgota todas as suas possibilidades e ao mesmo tempo mostra a sua
impotência em relação ao aumento quantitativo e qualitativo das guerras.
A filosofia da guerra tem por princípio que as relações entre os homens e os
povos são, na sua essência, relações de violência, hostilidade e animosidade. Entre os autores
desta corrente destaca-se Maquiavel, Hobbes e Carl Schmitt. Em Maquiavel, esse princípio
aparece na fundamentação da autoridade política: “É necessário àquele que estabelece um
Estado e lhe confere uma constituição pressupor que todos os homens são maus” (apud
CASTILLO, 2001, p.06). Hobbes afirmava que todos os homens são naturalmente inimigos,
dessa forma, o estado natural dos homens, era a guerra de todos contra todos. Mais
contemporaneamente, na década de 30, Carl Schmitt afirma que “a política não tem outro
papel além de identificar o inimigo, de conferir sua unidade e sua identidade a um povo,
qualificando-o como seu inimigo e, portanto, suas razões de praticar a guerra” (CASTILLO,
2001, p.06-07). Assim, para Schmitt, o outro, o estrangeiro é o inimigo, pois o outro é aquele
com o qual não se pode entrar em acordo.
Já a filosofia da paz acredita que a guerra não é o estado habitual das
relações humanas e que é possível estabelecer a paz, como uma situação habitual das relações
entre os povos. Pode-se afirmar que a filosofia da paz nasceu no século XVIII, com o Projeto
para tornar a paz perpétua na Europa, de Charles Frené Castel, mais conhecido como abade
de Saint-Pierre (1658 - 1743). O livro foi escrito em 1713 e nele o autor defendia o princípio
de uma aliança perpétua entre os Estados soberanos que, obrigados por um tratado
internacional, deveriam submeter todas as suas contendas ao juízo de todos os outros Estados
reunidos em assembléia permanente3. Destaca-se desta proposta, a preocupação com a
vinculação dos Estados as exigências da paz na esfera internacional. O consenso e a formação
de alianças internacionais são descritos pelo abade de Saint-Pierre como meios necessários
para se alcançar a paz entre os Estados europeus. O abade de Saint-Pierre inova ao fazer da
paz um objetivo político, que estaria acima do interesse privado dos governantes, porém ele
acreditava que a moral, especialmente, a moral religiosa cristã faria com que os homens
abandonassem a guerra por uma paz fraternal.
O primeiro autor que se afasta das valorações de cunho religioso, no terreno
da filosofia política e para a qual, a reflexão político-filosófica sobre a paz encontra uma
importante e decisiva contribuição é com os escritos de Immanuel Kant. Este foi o primeiro
grande filósofo da paz, que publicou, em 1795, em forma de tratado internacional, um
3
BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUIM, 2000, p. 875.
opúsculo intitulado Projeto para a paz perpétua. Uma entre outras justificativas para conferir-
lhe tal título, é o fato de que Kant busca conferir à paz um fundamento jurídico, pois não se
trata de bondade ou filantropia, mas de direito. Além do que, Kant foi pioneiro na vinculação
de uma organização internacional com o pacifismo pela razão.
Segundo Rohden, ao se analisar a História, por uma perspectiva empírica,
ela é entendida até o século XIX como a história de guerras. Porém, ao se analisar por uma
perspectiva transcendental, isto é, a priori kantiana, a História passa a ser entendida como a
história da liberdade, “a partir da qual a paz se torna uma tarefa e um dever, de cuja
consciência mais do que nunca depende o nosso futuro” (ROHDEN, 1997, p.14). Rohden
afirma que do ponto de vista teórico a filosofia política kantiana sobre o tema da paz,
apresenta-se
4
A Guerra Fria, ocorrida no século XX, é bom exemplo do que Kant aponta como um armistício.
este simplesmente procura pôr fim a uma guerra, enquanto aquela intenta acabar com todas as
guerras para sempre” (cf. GUIMARÃES, 1999).
Para ser algo mais que um armistício, a paz deve ser uma nova etapa do
mundo, que consiste segundo Kant, a sair do estado de natureza entre os Estados (anarquia
internacional), que é a situação de conflito permanente. Este raciocínio de Kant contribui para
desqualificar a guerra, pois a ela não pode representar um direito, já que se opõe inteiramente
ao direito de surgir relações de direito entre os povos.
Além do que uma paz perpétua, a preservaria das maquinações e manobras
políticas que a subordinariam aos interesses do poder e para Kant, a paz tem quer estar acima
dos interesses do poder, pois não pode ser um objetivo circunstancial ou provisório, a paz é
um fim supremo (CASTILLO, 2001, p.32).
Segundo Nour, a concepção de guerra e paz de Kant tem um caráter
estrutural, pois se vinculam à estrutura jurídica institucional. Para Kant, violência estrutural
“significa que, num estado não-jurídico, pessoas e povos isolados não estão seguros nem
contra a violência dos outros, nem para fazer ‘o que lhes parece justo e bom’” (NOUR, 2003,
p.11).
Kant considerava que o estado de natureza entre os homens era de guerra e
não de paz, dessa forma, no estado de natureza, embora nem sempre ocorra hostilidades,
existe uma ameaça constante de que elas ocorram. Por isso, a paz necessita ser instaurada,
pois só se pode ter segurança num estado jurídico, pois neste, pode-se tratar como inimigo
apenas aquele que lesa de fato, enquanto que, no estado de natureza, o outro pode lesar a
outrem, pois a simples existência do outro, implica num perigo a sua sobrevivência. Assim,
segundo Nour, “o estado de natureza, portanto, é um estado de ausência de direito” (ibidem).
A paz deve portanto ser assegurada por estruturas jurídicas institucionais, ou seja, o
estado de paz deve ser fundado por meio do direito público, “o que significa sair do
estado de natureza” e entrar num estado civil, no qual é legalmente definido o que é
de cada um (ibidem).
Ora, como se chegou tão longe com o incremento em geral da comunidade (mais
estreita ou mais ampla) entre os povos da Terra que a violação dos direitos em um só
lugar da Terra é sentida em todos os outros: assim, a idéia de um direito cosmopolita
não é nenhuma espécie de representação fantástica e excêntrica do direito, porém
um necessário complemento de um código não escrito, tanto do direito público
como do direito das gentes para o direito público da humanidade em geral e, por
conseguinte, um complemento para a paz perpétua, de cuja contínua aproximação só
é possível lisonjear-se sob esta condição (KANT, 2004, p.54).
5
Exemplos de males: pilhagens, empobrecimento do país por causa do custo da guerra, subjugação, perda da
liberdade, brutalização dos costumes, espionagem, atirador de elite, assassinos profissionais, etc.
possibilidades de ação. Dessa maneira, as políticas que se orientam segundo um conceito de
paz mais amplo, poderão recorrer a todos os meios antes do uso do poder militar (idem,
p.216).
Kant foi um marco para a filosofia política e disciplinas afins, por ser o
primeiro autor a sistematizar na forma de um tratado jurídico-político, as condições para se
garantir a paz perpétua entre as nações. As idéias kantianas de paz ficaram estacionadas até o
século XX, pois eram consideradas como ideais utópicas e inalcançáveis. Porém, com a
Primeira Guerra Mundial, em 1914, e suas posteriores conseqüências, demonstraram que a
paz não podia preservar-se somente por meio de um sistema de equilíbrio de forças. Assim,
neste período, as teses kantianas sobre a paz ganham respeitabilidade, porque tanto a Liga das
Nações, como as Organizações das Nações Unidas (ONU), se fundamentaram filosófica e
juridicamente sobre a idéia de que a guerra só pode ser evitada ou limitada, a partir da criação
de um organismo internacional que tivesse como objetivo, garantir a paz entre os povos.
6
Tradução livre
Galtung explica que a violência direta, física e/ou verbal é visível porque ela
se manifesta através do comportamento humano. Porém, a ação humana possui as suas bases,
que para o autor são duas: a cultura de violência (patriarcado, racismo, xenofobia, etc.) e a
estrutura violenta, que permite a repressão, exploração e a alienação dos povos (cf.
GALTUNG, 2004).
No seu livro Peace by peaceful means, de 1996, Galtung sintetiza de forma
quase matemática essa amplitude do seu conceito de paz: “Paz= paz direta + paz estrutural +
paz cultural”. E afirma:
A paz positiva direta consistiria na bondade física e verbal, boa para o corpo, a
mente e o espírito do próprio e do outro; seria orientada para todas as necessidades
básicas, a sobrevivência, o bem-estar, a liberdade e a identidade (...) A paz positiva
estrutural substituiria a repressão pela liberdade, e a exploração pela equidade,
reforçando-as com diálogo em vez de imposição, integração em vez de
segmentação, solidariedade em vez de fragmentação e participação em vez de
marginalização (...) A paz positiva cultural substituiria a legitimação da violência
pela legitimação da paz na religião, no direito e na ideologia; na linguagem; na arte e
na ciência; nas escolas, universidades e media; construindo uma cultura de paz
positiva” (apud PUREZA, 2001, p.13).
É evidente que tenho plena consciência das mudanças ocorridas nestes conceitos
desde a sua elaboração e acredito no surgimento de novas formulações com base nas
aqui apresentadas. (...) Neste momento, identifico a ‘paz positiva’ principalmente
com a ‘justiça social’, (...) mas penso que deveríamos estar abertos à inclusão de
outras propostas, uma vez que a definição de violência é ampla o bastante para
apontar em outras direções (apud CIIP/UPAZ, 2002, p.26).
7
Ex-diretor do escritório regional da UNESCO em ciência e tecnologia para a América Latina e o Caribe
8
Consultor responsável pelo desenho do Programa de Cultura de Paz da UNESCO em 1992, membro sênior da
equipe gestora do programa de 1993 a 1997 e Diretor do Ano Internacional pela Cultura de Paz de 1998 até
2001.
cultura baseada na tolerância e na solidariedade. Além do mais, é uma cultura que respeita os
direitos individuais e se empenha em prevenir conflitos resolvendo-os em suas fontes, já que
estas também englobam as novas ameaças não-militares para a paz e para a segurança, tais
como a exclusão, a pobreza extrema e a degradação ambiental. A cultura de paz procura
resolver os problemas por meio do diálogo, da negociação e da mediação, de forma a tornar a
guerra e a violência inviáveis.
O termo Cultura de Paz foi mundialmente apresentado em julho de 1989,
alguns meses antes da queda do muro de Berlim, durante o Congresso Internacional para a
Paz na Mente dos Homens, em Yamassoukro (Costa do Marfim). Segundo Rayo, na
declaração desse Congresso tenta superar as diferentes concepções de paz (paz como ausência
de guerra, paz como equilíbrio de poder, paz negativa e paz positiva, etc.) ao considerar que a
paz é:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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