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Bernard-Marie Koltès

Na solidão dos campos de algodão


(Tradução de Mariana Nunes e Celso R Braida, versão 1.0 Beta)

Um deal é uma transação comercial acerca de valores proibidos ou estritamente controlados, e que se
conclui nos espaços neutros, indefinidos, e não previstos para esse uso, entre fornecedores e solicitantes,
por entendimento tácito, signos convencionais ou conversação com duplo sentido – com o objetivo de
contornar os riscos de traição e trapaça que uma tal operação implica –, a não importa qual hora do
dia ou da noite, independentemente das horas de abertura regulamentar dos lugares de comércio
homologados, mas sobretudo nas horas de fechamento destes.

O fornecedor (Le dealer)


[9] Se você caminha pela rua, a esta hora e neste lugar, é que você deseja algo que você não tem e, esta coisa, eu, eu
posso fornecê-la a você; pois se eu estou neste lugar há mais tempo que você e por mais tempo que você, e que mesmo
esta hora, que é a hora das relações selvagens entre os homens e os animais, não me pega, é que eu tenho o que é
preciso para satisfazer o desejo que passa diante de mim, e é como um peso do qual é preciso que eu me descarregue
sobre qualquer um, homem ou animal, que passe diante de mim.
É por isso que eu me aproximo de você, apesar da hora que é esta onde ordinariamente o homem e o animal se
jogam selvagemente [10] um sobre o outro, eu me aproximo, eu, de você, de mãos abertas e as palmas viradas para
você, com a humildade daquele que propõe frente aquele que compra, com a humildade daquele que possui frente
aquele que deseja; e eu vejo o seu desejo como se vê uma luz que se acende, em uma janela bem ao alto de um edifício,
no crepúsculo; eu me aproximo de você como o crepúsculo aproxima esta primeira luz, lentamente, respeitosamente,
quase afetuosamente, deixando, bem embaixo na rua, o animal e o homem puxarem suas coleiras e mostrarem-se
selvagemente os dentes.
Não que eu tenha adivinhado o que você pode desejar, nem que eu tenha pressa em conhecê-lo; pois o desejo do
comprador é a coisa mais melancólica que há, que se contempla como um pequeno segredo que não quer senão ser
aberto e que se siga o próprio ritmo antes de abrir; como um presente que se recebe embalado e que se segue o próprio
ritmo ao tirar o barbante. Mas é que eu mesmo desejei, desde o tempo que eu estou neste lugar, tudo o que todo homem
ou animal pode desejar nesta hora de obscuridade, e que o faz sair [11] da sua casa apesar dos grunhidos selvagens dos
animais insatisfeitos e dos homens insatisfeitos; eis porque eu sei, melhor que o comprador inquieto que guarda ainda
um tempo seu mistério como uma pequena virgem educada para ser puta, que o que você me pediria eu já tenho, e que a
você basta, a você, sem se sentir ferido pela aparente injustiça que há em ser o pedinte frente aquele que propõe, pedi-lo
a mim.
Já que não há verdadeira injustiça sobre esta terra outra que a injustiça da terra ela mesma, que é estéril pelo frio ou
estéril pelo calor e raramente fértil pela doce mistura do quente e do frio; não há injustiça para quem caminha sobre a
mesma porção de terra submetida ao mesmo frio ou ao mesmo calor ou à mesma doce mistura, e todo homem ou animal
que pode olhar um outro homem ou animal nos olhos é seu semelhante pois eles caminham sobre a mesma linha fina e
plana de latitude, escravos dos mesmos frios e dos mesmos calores, ricos da mesma forma e, da mesma forma, pobres; e
a única fronteira que existe é esta entre o comprador e o vendedor, mas [12] incerta, os dois possuindo o desejo e o
objeto do desejo, às vezes vazio e saliente, com menos injustiça ainda que existe em ser macho ou fêmea entre os
homens ou os animais. É porque pego emprestado provisoriamente a humildade e eu vos empresto a arrogância, afim de
que a gente se distingua um do outro nesta hora que é inelutavelmente a mesma para você e para mim.
Diga-me então, virgem melancólica, neste momento onde grunhem surdamente homens e animais, diga-me a coisa
que você deseja e que posso fornecer a você, e eu a fornecerei suavemente, quase respeitosamente, talvez com afeição,
então, depois de ter preenchido os vazios e aplanado os montes que estão em nós, nós nos distanciaremos um do outro,
em equilíbrio sobre o magro e plano fio de nossa latitude, satisfeitos entre os homens e os animais insatisfeitos de serem
homens e insatisfeitos de serem animais; mas não me peça para adivinhar seu desejo; eu seria obrigado a enumerar tudo
o que possuo para satisfazer aqueles que passam diante de mim desde o momento que estou aqui, e o tempo que seria
[13] necessário para esta enumeração dessecaria meu coração e cansaria sem dúvida sua esperança.

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O cliente (Le client)
Eu não caminho em um certo lugar e em uma certa hora; eu caminho, simplesmente, indo de um ponto a outro, por
questões privadas que se tratam nestes pontos e não em percurso; não conheço nenhum crepúsculo nem nenhum tipo de
desejo e quero ignorar os acidentes do meu percurso. Eu ia desta janela iluminada, atrás de mim, lá em cima, a esta
outra janela iluminada, lá em baixo diante de mim, seguindo uma linha bem reta que atravessa você porque é onde você
está deliberadamente localizado. Ora, não existe nenhum meio que permita, à quem se leva de uma altura a outra altura,
evitar de descer para ter que subir em seguida, com a absurdidade de dois movimentos que se anulam e o risco, entre os
dois, de esmagar a cada passo os restos jogados pelas janelas; mais mora-se no alto, mais o espaço é são, mais a queda é
difícil; e quando o elevador lhe deixou embaixo, [14] ele lhe condena a caminhar no meio de tudo o que não se quis lá
em cima, no meio de uma pilha de lembranças nojentas, como, no restaurante, quando o garçom anota o pedido e
enumera, nas suas orelhas enojadas, todos os pratos que você digere já há algum tempo.
Aliás, teria sido preciso que a obscuridade fosse ainda mais densa, e que eu não pudesse nada perceber do seu rosto;
então eu teria podido, talvez, me enganar sobre a legitimidade da sua presença e da distância que você percorria para
colocar-se no meu caminho e, por minha vez, percorrer uma distância que se acomodasse ao seu; mas qual obscuridade
seria suficientemente densa para fazer você parecer menos obscuro que ela? não existe noite sem lua que não pareça ser
meio-dia se você por ela passeia, e este meio-dia aqui me mostra suficientemente que não é o acaso dos elevadores que
colocou você aqui, mas uma imprescindível lei da gravidade que lhe é própria, que você carrega, visível, sobre os
ombros como um saco, e que lhe ata a esta hora, neste lugar de onde você avalia suspirando a altura dos imóveis.
Quanto ao que eu desejo, se fosse algum [15] desejo do qual eu pudesse me lembrar aqui, na obscuridade do
crepúsculo, no meio de grunhidos de animais dos quais não notamos nem mesmo o rabo, além deste tão certeiro desejo
que tenho em ver você deixar de lado a humildade e que você não me libere da arrogância – pois se tenho alguma
fraqueza pela arrogância, odeio a humildade, em mim e nos outros, e esta troca me desagrada –, o que eu desejaria, você
certamente não teria. Meu desejo, se existe um, se eu o expusesse a você, queimaria seu rosto, você faria retirar as mãos
com um grito, e você fugiria na obscuridade como um cachorro que corre tão rápido que não notamos o rabo. Mas não,
a perturbação deste lugar e desta hora me faz esquecer se eu já tive algum desejo de que eu pudesse me lembrar, não, eu
não tenho mais do que ofertas a fazer pra você, e será preciso que você percorra uma distância para que eu não tenha
que fazê-lo, que você mude do eixo que eu seguia, que você se anule, pois esta luz, lá em cima, no alto do imóvel, onde
se aproxima a obscuridade, continua imperturbavelmente a brilhar; ela fura esta [16] obscuridade, como um fósforo
aceso fura o pano que pretende sufocá-lo.

O fornecedor
Você tem razão em pensar que não desço de nenhum lugar e que não tenho nenhuma intenção de subir, mas você se
enganaria ao acreditar que eu me desgosto com isso. Evito os elevadores como um cão evita a água. Não que eles se
recusem a me abrir suas portas nem que eu a entrar; mas os elevadores em movimento me fazem cócegas e lá eu perco
minha dignidade; e, se eu gosto de sentir cócegas, gosto de poder não mais senti-las desde que minha dignidade o exija.
Os elevadores são como certas drogas, o uso exagerado torna você flutuante, nunca encima nunca embaixo, tomando
linhas curvas por linhas retas, e congelando o fogo no seu centro. No entanto, desde quando estou nesse lugar, eu sei
reconhecer as chamas que, de longe, atrás dos vitrais, parecem congeladas como crepúsculos de inverno, do qual basta
se aproximar, lentamente, talvez afetuosamente, para lembrar-se que não existe nenhum luar [17] definitivamente frio,
e meu objetivo não é alcançar você, mas abrigar você do vento, e secar a umidade da hora no calor desta chama.
Pois, o que quer que você diga, a linha sobre a qual você caminhava, de tão reta que era, se tornou torta já que você
me notou, e captei o momento exato que você me notou pelo exato momento onde seu caminho se torna curvo, e não
curvo para se afastar de mim, mas curvo para vir a mim, senão nós nunca teríamos nos encontrado, mas você teria se
afastado mais de mim, pois você caminha na velocidade daquele que se desloca de um ponto a outro; e eu nunca o teria
alcançado porque eu me desloco apenas lentamente, tranquilamente, quase imovelmente, no passo daquele que não vai
de um ponto a outro mas que, em um lugar invariável, espreita aquele que passa diante dele e espera que ele modifique
levemente seu percurso. E seu eu digo que você fez uma curva, e que [18] sem dúvida você vai fingir que era uma
distância para me evitar, e que eu afirmaria em resposta que este fora um movimento para aproximar você, sem dúvida
é porque no fim das contas você nada desviou, que toda linha reta existe apenas relativamente a um plano, que nós
[nos] mexemos de acordo com dois planos distintos, e que no fim de todas as contas existe apenas o fato que você me
olhou e que interceptei este olhar ou o inverso, e que, partindo, absoluta que era, a linha sobre a qual você se deslocava
tornou-se relativa e complexa, nem reta nem curva, mas fatal.

O cliente
No entanto eu não tenho, para lhe agradar, desejos ilícitos. Meu comércio, eu o faço nas horas homologadas do dia,
nos lugares de comércio homologados e iluminados pela claridade elétrica. Talvez eu seja prostituto, mas se o sou, meu
puteiro não é deste mundo; ele se estabelece, o meu, pela luz legal e fecha suas portas de noite, selado pela lei e
clareado pela luz elétrica, pois mesmo a luz do sol não é confiável e tem condescendências. O que espera você, você, de
um homem que não dá um passo que não seja [19] homologado e selado e legal e inundado de luz elétrica nos seus
cantos mais mínimos? E se estou aqui, em percurso, em espera, em suspensão, em deslocamento, fora do jogo, fora da
vida, provisório, praticamente ausente, por assim dizer não aqui – pois diz-se de um homem que atravessa o Atlântico
de avião que ele está num determinado momento na Groenlândia, e está de fato? ou no coração tumultuado do oceano?
– e se tomei distância, assim como minha linha reta, do ponto de onde eu venho ao ponto para onde vou, não há razão,

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nenhuma, para ser entortada, é que você me bloqueia o caminho, cheio de intenções ilícitas e de suposições a meu
respeito de intenções ilícitas. Ora, saiba que o que mais me repugna no mundo, mais até que a intenção ilícita, mais que
a atividade ilícita ela mesma, é o olhar daquele que presume você cheio de intenções ilícitas e familiar por tê-las; não
somente por causa deste olhar mesmo, então turvo ao ponto de tornar turvo um torrente de montanha, – e seu olhar
sobre você faria subir o lodo do fundo de um copo de água – mas porque, só o peso deste olhar sobre mim, a [20]
virgindade que existe em mim se sente de repente violentada, a inocência culpada, e a linha reta, feita para me levar de
um ponto luminoso a um outro ponto luminoso, por sua causa passa a ser curva e labirinto obscuro no obscuro território
onde me perdi.

O fornecedor
Você procura colocar um espinho sob a sela do meu cavalo para que ele fique nervoso e se abale; mas, se meu
cavalo é nervoso e às vezes indócil, eu o seguro com uma rédia curta, e ele não se abala tão facilmente; um espinho não
é uma lâmina, ele sabe a espessura do seu couro e pode se conformar com a irritação. No entanto, quem conhece de fato
os humores dos cavalos? Às vezes eles suportam uma agulha nas entranhas, às vezes uma poeira que tenha ficado no
arreio pode fazê-los coicear rolar sobre eles mesmos e desmontar o cavaleiro.
Saiba então que se eu falo com você, nesta hora, assim, lentamente, talvez ainda com respeito, não é como você:
pela força das coisas, de acordo com uma linguagem que lhe [21] faz ser reconhecido como aquele que tem medo, um
pequeno medo agudo, insensato, muito visível, como o de uma criança de um possível murro do seu pai; eu, eu tenho a
linguagem daquele que não se faz reconhecer, a linguagem deste território e desta parte do tempo onde os homens
avançam sobre a coleira e onde os porcos esbarram suas cabeças nas cercas; eu, eu seguro minha língua como um
poltrão pela rédea para que não se jogue sobre a égua, pois se eu soltasse a rédea, se eu a folgasse levemente a pressão
dos meus dedos e a tração dos meus braços, minhas palavras me desmontariam a mim e se jogariam em direção ao
horizonte com a violência de um cavalo árabe que sente o deserto e que nada mais pode frear.
É por isso que sem lhe conhecer eu lhe tenho, desde a primeira palavra, tratado corretamente, desde o primeiro passo
que eu dei em sua direção, um passo correto, humilde e respeitoso, sem saber se o que quer que seja em você merecia
respeito, sem nada conhecer de você que pudesse me levar a saber se a comparação de nossos dois estados autorizava
que eu fosse humilde e você arrogante, eu vos deixei a arrogância por causa da hora [22] do crepúsculo a qual nós nos
aproximamos um do outro, porque a hora do crepúsculo a qual você se aproximou de mim aquela onde a correção não é
obrigatória e passa a ser então necessária, onde nada é mais obrigatório que uma relação selvagem na obscuridade, e eu
teria podido cair sobre você como um pano sobre a chama de uma vela, teria podido tê-lo pego pelo colarinho da
camisa, de surpresa. E esta correção, necessária mas gratuita, que eu ofereci para você, liga você a mim, não seria isso
unicamente porque eu teria podido, por orgulho, caminhar sobre você como uma bota esmaga um papel sujo, pois eu
sabia, por causa do tamanho que faz nossa diferença primeira – e nesta hora e neste lugar somente o tamanho faz a
diferença – nós sabemos ambos quem é a bota e quem, o papel sujo.

O cliente
Se de qualquer modo eu o fiz, saiba que eu teria preferido não ter visto você. O olhar passeia e se coloca e acredita
estar em terreno neutro e livre, como uma abelha em um campo de flores, como o focinho de uma vaca no [23] espaço
cercado de um prado. Mas que fazer do seu olhar? Olhar em direção ao céu me torna nostálgico e fitar o chão me
entristece, arrepender-se de alguma coisa e lembrar-se que não a temos são ambos igualmente arrebatadores. Então é
preciso olhar pra diante de si, à sua altura, qualquer que seja o nível onde o pé está provisoriamente assentado; é porque
quando eu caminhava lá onde eu caminhava naquele momento e onde eu estou neste momento parado, meu olhar devia
chocar cedo ou tarde qualquer coisa colocada ou caminhante na mesma altura que eu; ora, pela distância e as leis da
perspectiva, todo homem e todo animal está provisoriamente e aproximativamente na mesma altura que eu. Talvez, de
fato, a única diferença que nos resta para nos distinguir, ou a única injustiça se assim você preferir, é aquela que faz que
um tenha vagamente medo de um possível murro do outro; e a única semelhança, ou única justiça se assim você
preferir, é a ignorância onde se está do grau em relação ao qual este medo é compartilhado, do grau de realidade futura
desses murros, e do grau respectivo de sua violência.
Assim, não façamos nada além de [24] reproduzir a relação ordinária dos homens e dos animais entre eles nas horas
e nos lugares ilícitos e tenebrosos que nem a lei nem a eletricidade investiram; e é porque, por raiva dos animais e por
raiva dos homens, prefiro a lei e prefiro a luz elétrica e tenho razão em acreditar que toda luz natural e todo ar não
filtrado e a temperatura das estações não corrigidas faz do mundo arriscado; pois não tem nenhuma paz ou direito nos
elementos naturais, não tem comércio ilícito, tem apenas a ameaça e a fuga e o golpe sem objeto a vender e sem objeto
a comprar e sem moeda válida e sem escala dos preços, trevas, trevas dos homens que se abordam na noite; e se você
me abordou, é porque finalmente você quer me bater; e se eu lhe perguntasse porque você quereria me bater, você me
responderia, eu sei, que é por uma razão secreta sua, que não é necessário, sem dúvida, que eu conheça. Então eu não
lhe perguntarei nada. Fala-se com uma telha que cai do teto e vai nos quebrar o crânio? Somos uma abelha que [25]
pousou sobre a flor errada, somos o focinho de uma vaca que quis pastar do outro lado da cerca elétrica; nos calamos ou
fugimos, nos arrependemos, esperamos, fazemos o que podemos, motivos insensatos, ilegalidade, trevas.
Coloquei o pé em um riacho do estábulo onde escorrem mistérios como dejetos de animais; e é deste mistério e
desta obscuridade que são seus que está sustentada a regra que quer que entre dois homens que se encontram deva-se
sempre escolher ser aquele que ataca; e sem dúvida, nesta hora e nestes lugares, deveria aproximar-se de todo homem
ou animal sobre o qual o olhar colocou-se, batê-lo e dizer a ele: não sei se era da sua intenção bater em mim, por uma

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razão insensata e misteriosa que de qualquer modo você não teria acreditado necessário fazer-me conhecê-la, mas, seja
o que for, preferi fazê-lo primeiro, e minha razão, se ela é desatinada, ao menos não é secreta: é que flutuava, pela
minha presença e pela sua e pela conjunção acidental de nossos olhares, a possibilidade que você me batesse primeiro, e
eu preferi ser mais a telha que [26] cai do que o crânio, mais a cerca elétrica do que o focinho da vaca.
Senão, se fosse verdade que nós somos, você o vendedor de posse de mercadorias tão misteriosas que você se recusa
a revelá-las e que eu não tenho nenhum meio de descobrir, e eu o comprador com um desejo tão secreto que o ignoro eu
mesmo e que eu precisaria, para me assegurar que tenho um realmente, esfregar minha memória como uma crosta para
fazer correr o sangue, se isso é verdade, por que você continua a mantê-las ensacadas, as suas mercadorias, agora que
eu parei, que eu estou aqui, e que aguardo? como num grande saco, fechado, que você carrega sobre as costas, como
uma impalpável lei de gravidade, como se elas não existissem e não deveriam ser senão na forma de um desejo;
semelhante aos promoters na frente dos bordéis, que lhe puxam pelo braço, quando você está voltando para casa, à
noite, para dormir, e que lhe assopram na orelha: ela está aí, essa noite. Assim que, se você me as mostrasse, se você
desse um nome à sua oferta, coisas lícitas ou ilícitas, mas nomeadas e assim julgáveis ao menos, se você [27] me as
nomeasse, eu saberia dizer não, e eu não me sentiria mais como uma árvore sacudida por um vento vindo de nenhuma
parte e que retorce suas raízes. Pois eu sei dizer não e eu amo dizer não, eu sou capaz de lhe fascinar com meus nãos, de
lhe fazer descobrir todas as maneiras que há de dizer não, que começam por todas as maneiras que há de dizer sim,
como os estetas que provam todas as camisas e todas os calçados para não escolher nenhum, e o prazer que eles tem em
prová-las todas não é feito senão do prazer que eles tem em recusá-las todas. Decida-se, mostre-se: você é o bruto que
gasta a calçada, ou você é comerciante? nesse caso mostre logo sua mercadoria, e nós nos demoraremos em olhá-la.

O fornecedor
É porque eu quero ser comerciante, e não bruto, mas comerciante verdadeiro, que eu não digo o que eu possuo e que
eu lhe proponho, pois eu não quero suportar uma recusa, que é a coisa do mundo que todo comerciante teme mais, por
que é uma arma de que ele mesmo não dispõe. Assim eu, eu não aprendi jamais a dizer não, e não quero nunca
aprender; mas todos os tipos de sim, eu os sei: sim espero um pouco, espere muito, espere comigo uma eternidade aí;
sim eu tenho, eu terei, eu tinha e terei novamente, eu não tive jamais mas terei para você. E que venham me dizer:
digamos que alguém tem um desejo, que o confesse, e que você não tenha nada para o satisfazer? eu direi: eu tenho
aquilo que é preciso para o satisfazer; se alguém me diz: imagine que você não o tivesse? – mesmo na imaginação, eu o
teria sempre. E que alguém me diga: suponhamos que no final das contas esse desejo seja tal que absolutamente você
não queira mesmo ter idéia do que seria preciso para o satisfazer? Eh bem, mesmo não querendo, malgrado isso, eu
tenho o que é preciso, mesmo assim.
Mas, quanto mais um vendedor é correto, tanto mais o comprador é perverso; todo vendedor procura de satisfazer
um desejo que ele não conhece ainda, enquanto que o comprador submete sempre seu desejo primeiro à satisfação de
poder recusar aquilo que se propõe a ele; assim seu desejo inconfesso é exaltado pela recusa, e ele esquece seu desejo
no prazer que ele tem de humilhar o vendedor. Mas eu não sou da raça dos comerciantes que invertem suas tabelas para
satisfazer o gosto dos clientes pela cólera e indignação. Eu não estou aqui para dar prazer, mas para preencher o abismo
do desejo, relembrar o desejo, obrigar o desejo a ter um nome, abaixá-lo até a terra, lhe dar uma forma e um peso, com
a crueldade obrigatória que há no dar uma forma e um peso ao desejo. E porque eu vejo o seu aparecer como o da saliva
no canto dos seus lábios que seus lábios engolem, eu esperarei que ele escorra ao longo de seu queixo ou que você o
cuspa antes de lhe dar um lenço, porque se lhe der cedo demais, eu sei que você o recusaria, e é um sofrimento que não
quero sofrer de jeito nenhum.
Pois o que todo homem ou animal receia nessa hora onde o homem caminha na mesma altura que o animal e onde
todo animal caminha na mesma altura que todo homem, não é o sofrimento, pois o sofrimento se mede, e a capacidade
de infligir e de tolerar o sofrimento se mede; aquilo que ele receia acima de tudo, é a estrangeireza do sofrimento, e de
ser levado a suportar um sofrimento que não lhe seja familiar. Assim, a distância que se manterá sempre entre os brutos
e as senhoritas que povoam o mundo não vem da avaliação das respectivas forças, por que então o mundo se dividiria
muito simplesmente entre os brutos e as senhoritas, todo bruto se jogaria sobre cada senhorita e o mundo seria simples;
mas o que mantém o bruto, e o manterá ainda por eternidades, à distância da senhorita, é o mistério infinito e a infinita
estrangeireza das armas, como essas pequenas bombas que elas carregam nas suas bolsinhas, de que elas jogam o
líquido nos olhos dos brutos para os fazer chorar, e se vê bruscamente os brutos chorarem diante das senhoritas, toda
dignidade destruída, nem homem, nem animal, tornar-se nada, apenas lágrimas de vergonha na terra de um campo. Por
isso é que os brutos e as senhoritas se temem uns aos outros igualmente, por que não se infringe senão os sofrimentos
que se pode por si mesmo suportar, e não se teme senão os sofrimentos que não se é capaz de infringir.[30]
Portanto, não me recuse de me dizer o objeto, eu lhe imploro, da sua febre, de seu olhar sobre mim, a razão, de me
dizê-la; e se se trata de não macular sua dignidade, eh bem, diga-a como se a diz a uma árvore, ou diante de um muro de
uma prisão, ou na solidão de um campo de algodão dentro do qual se caminha, nu, à noite; de me dizê-la sem mesmo
me olhar. Pois a verdadeira e única crueldade dessa hora do crepúsculo onde nós nos encontramos ambos os dois não é
que um homem fira o outro, ou o mutile, ou o torture, ou lhe arranque os membros e a cabeça, ou mesmo lhe faça
chorar; a verdadeira e terrível crueldade é aquela do homem ou do animal que torna o homem ou o animal inacabado,
que lhe interrompe como os pontos de suspensão no meio de uma frase, que se afaste dele após ter-lhe olhado, que faz,
do animal ou do homem, um erro do olhar, um erro do julgamento, um erro, como uma carta que se começou e que se
rasga brutalmente pouco após se ter escrito a data. [32]

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O cliente
Você é um bandido muito estranho, que não rouba nada ou demora em roubar, um gatuno excêntrico que à noite se
introduz nos pomares para sacudir as árvores, e que se vai sem levar os frutos. Você é que é familiar desse lugares e eu
sou o estrangeiro; eu sou aquele que tem medo e que tem razão de ter medo; eu sou aquele que não lhe conhece, que
não pode lhe conhecer, que não faz senão supor vossa silhueta na escuridão. Cabe a você adivinhar, nomear alguma
coisa, e, então, talvez, com um movimento de cabeça, eu terei aprovado, por um sinal, você saberia; mas eu não quero
que meu desejo seja completado por nada como do sangue de uma terra estrangeira. Você, você não arrisca nada; você
conhece de mim a inquietude e a hesitação e a desconfiança; você sabe de onde eu venho e para onde eu vou; você
conhece essas ruas, você conhece essa hora, você conhece seus planos; eu, eu não conheço nada e eu, eu arrisco tudo.
Diante de você, eu sou como [alguém] diante desses homens travestidos de mulheres que se maquiam de homem, e no
final, não se sabe mais onde está o sexo.[33]
Pois sua mão tocou em mim como aquela do bandido sobre sua vítima ou como aquela da lei sobre o bandido, e
depois enquanto eu sofro, ignorante, ignorante de minha fatalidade, ignorante se eu sou acusado ou cúmplice, de não
saber isso de que eu sofro, eu sofro de não saber qual dano você me fez e por onde se esvai meu sangue. Talvez você
não seja mesmo estranho, mas astucioso. Talvez você seja um servidor da lei disfarçado como a lei em segredo à
imagem do bandido para caçar o bandido. Talvez você seja, finalmente, mais legal do que eu. E agora por nada, por
acidente, sem que tenha dito nada nem querido nada, porque eu não sabia quem você era, porque eu sou o estrangeiro
que não conhece a língua, nem os costumes, nem o que aqui é mal ou conveniente, o torto ou o direito, e que age como
fascinado, perdido, é como se eu lhe tivesse perguntado a pior das coisas que seja e eu fosse culpado de ter perguntado.
Um desejo como o sangue aos seus pés correu para fora de mim, um desejo que eu não conheço e não reconheço, que
você é o único a conhecer, e que você julga. [34]
Se é assim, se você se esforça, com o empenho suspeito da traição, de me levar a agir com ou contra você para que,
em todo caso, eu seja culpado, se é isso, então, reconheça ao menos que eu não agi de modo algum ainda nem por nem
contra você, que não há nada para me reprovar, que eu permaneci honesto até esse instante. Testemunhe por mim que
eu não cai na obscuridade onde você me levou, que eu não cai senão por que você pôs a mão sobre mim; testemunhe
que eu apelei à luz, que eu não me introduzi na obscuridade como um ladrão, por minha vontade e com intenções
ilícitas, mas que eu fui surpreendido e que eu gritei, como uma criança no seu leito cuja lâmpada se apaga de repente.

O fornecedor
Se você me toma animado de tendências de violência a seu respeito – e talvez você tenha razão –, não dê muito
rápido nem um gênero nem um nome a esta violência. Você nasceu com o pensamento de que o sexo de um homem se
esconde num lugar preciso e que ali permanece, e você [35] guarda com precaução esse pensamento; ao contrário, eu
sei, eu – embora nascido da mesma maneira que você –, que o sexo de um homem, com o tempo que ele passa a esperar
e a esquecer, demorando-se sentado na solidão, se move docemente de um lugar a um outro, jamais escondido num
lugar preciso, mas visível ali onde não se o procura; e que nenhum sexo, passado o tempo quando o homem apreendeu a
se limpar e a repousar tranquilamente na sua solidão, não se parece com nenhum outro sexo, não mais que um sexo
macho se assemelha a um sexo fêmeo; que não se trata de disfarce de uma coisa como essa, mas uma doce hesitação das
coisas, como as estações intermediárias que não são nem o inverno disfarçado de verão, nem o verão de inverno.
Entretanto uma suposição não merece que se amole por ela; deve-se ter a própria imaginação como sua pequena
noiva: se é bom de vê-la vagabundear, é mau deixá-la perder o sentido das conveniências. Eu não sou astucioso, mas
curioso; eu coloquei minha mão sobre seu braço por pura curiosidade, para saber se, a uma carne que tem a aparência
daquela [36] da galinha depenada, corresponde o calor da galinha viva ou o frio da galinha morta, e agora, eu sei. Você
sofre, seja dito sem lhe ofender, do frio como a galinha viva meio depenada, como a galinha depenada, corresponde o
calor da galinha viva ou frio da galinha morta, e agora, eu sei. Você sofre como a galinha tomada, no sentido estrito do
termo, da sarna depenante; e, quando eu era pequeno, eu corria atrás delas no galinheiro para as tocar e descobrir, por
pura curiosidade, se a sua temperatura era aquela da morte ou da vida. Hoje quando eu lhe toquei, eu senti em você o
frio da morte, mas eu também senti o sofrimento do frio, como apenas um vivente pode sofrer. Foi por isso que estendi
minha roupa para lhe cobrir os ombros, pois eu não sofro, eu, do frio. E eu jamais sofri, a ponto de ter sofrido por não
ter conhecido este sofrimento, ao ponto de apenas sonhar que eu sentia, quando eu era pequeno – desses sonhos que não
são objetivos mas prisões suplementares, que são o momento onde a criança apercebe-se das barreiras de sua primeira
prisão, como aqueles que, nascidos escravos, sonham que eles são filhos de senhores –, meu sonho para mim era de
conhecer a neve e [37] o gelo, de conhecer o frio que é o seu sofrimento.
Se eu lhe emprestei apenas minha roupa, isso não foi porque eu percebi que você sofre do frio não apenas do alto de
seu corpo, mas, seja dito sem lhe ofender, do alto ao baixo e talvez mesmo um pouco além; e, no que me diz respeito,
eu sempre pensei que se devia ceder ao friorento a peça de vestimenta correspondente ao lugar onde se tem frio, com o
risco de se ficar nu, de alto a baixo e talvez mesmo um pouco além; mas minha mãe, que não era mesquinha não, mas
provida de senso de conveniências, me disse que se era louvável dar sua camisa ou sua roupa ou não importa o que que
cubra o alto do corpo, deve-se sempre hesitar longamente em dar as botas, e que não é em nenhum caso conveniente
ceder suas calças.
Ora, do mesmo modo que eu sei – sem me explicar mas com uma certeza absoluta – que a terra sobre a qual nós
estamos você e eu e os outros está ela mesma posta em equilíbrio sobre a guampa de um touro e mantida nessa posição
pela mão da providência, [38] do mesmo modo eu me esforço, de qualquer modo sem saber porque mas sem hesitação,
de permanecer nos limites do que é conveniente, evitando o inconveniente como uma criança deve evitar de se inclinar

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na borda do telhado antes mesmo de compreender a lei da queda dos corpos. E mesmo que a criança creia que se lhe
proíbe de se inclinar na borda do telhado para impedí-la de voar, eu acreditei por muito tempo que se proibia ao jovem
de ceder suas calças para lhe impedir de revelar o entusiasmo ou a grandeza de seus sentimentos. Mas hoje que eu
compreendo melhor as coisas, que reconheço melhor as coisas que eu não compreendo, que eu permaneci nesse lugar e
nessa hora por tanto tempo, que eu vi passar tantos passantes, que eu os olhei e que talvez eu tenha posto minha mão
sobre seus braços, tantas vezes, sem compreender nada e sem querer compreender nada mas sem renunciar por isso de
lhes olhar e de tentar por minha mão sobre seus braços – pois é mais fácil apanhar um homem que passa do que uma
galinha em seu galinheiro –, eu seu bem que não há nada de inconveniente nem no entusiasmo nem [39] na grandeza
que se deve esconder, e que se deve seguir a regra sem saber porque.
Ademais, seja dito sem lhe ofender, eu esperava, ao cobrir seus ombros com minha roupa, tornar sua aparência mais
familiar à minha vista. Muita estrangeireza pode me deixar tímido, e, em vos vendo vir a mim toda hora, eu me
perguntei porque o homem não doente se vestia como uma galinha tomada pela sarna e que perde suas penas e continua
andando no galinheiro com as penas fixadas sob ela apesar da doença; e sem dúvida, por timidez, eu me teria
contentado de me coçar a cabeça e de fazer um desvio, para lhe evitar, se eu não tivesse visto, no seu seu olhar fixo
sobre mim, o brilho daquele que vai, no sentido estrito de termo, pedir qualquer coisa, e esse brilho me distraiu do seu
modelito.

O cliente
O que você espera tirar de mim? Todo gesto que eu tomo por um golpe se acaba como uma carícia; é inquietante ser
acariciado quando se deveria apanhar. Eu exijo que ao [40] menos você desconfie, se você quer que eu me demore.
Pois se você por acaso pretende me vender qualquer coisa, por que não duvidar logo se eu tenho com que pagar? meus
bolsos, talvez, estejam vazios; teria sido honesto que você me pedisse primeiramente para expor meu dinheiro sobre o
balcão, como se faz com os clientes duvidosos. Você não me pediu nada disso: que prazer você tira do risco de ser
abusado? Eu não vim nesse lugar para encontrar a doçura; a doçura despedaça, ela ataca por partes, ela destrói as forças
como um cadáver na sala de medicina. Eu tenho necessidade de minha integridade; a maldade, ao menos, me manterá
inteiro. Irrite-se: senão, onde eu aumentarei minha força? Irrite-se: nós ficaremos mais próximos de nossos negócios, e
estaremos seguros de que tratamos ambos os dois do mesmo negócio. Pois, se eu compreendo de onde eu tiro meu
prazer, eu não compreendo de onde você tira o seu.

O fornecedor
Se eu tivesse por um instante duvidado de que você não possuísse [41] o que é preciso para pagar o que você veio
procurar, eu teria feito um desvio quando você se aproximou de mim. Os comerciantes vulgares exigem que seus
clientes dêem provas de solvabilidade, mas as butiques de luxo advinham e não pedem nada, nem se abaixam jamais a
verificar o montante do cheque e a conformidade da assinatura. Os objetos estão à venda e os objetos para comprar tal
que não se põe a questão de saber se o comprador será capaz de pagar o preço nem quanto tempo ele levará para se
decidir. Assim eu sou paciente porque não se ofende um homem que se afasta quando se sabe que ele vai retomar o
caminho. Não se pode retroceder de um insulto, enquanto se pode retroceder de uma gentileza, e é melhor abusar desta
do que usar uma só vez o outro. Por isso eu não me irritarei ainda, porque eu tenho tempo de não me irritar, e eu tenho
o tempo de me irritar, e eu me irritarei talvez quando todo esse tempo tiver transcorrido.

O cliente
E se – por hipótese – eu admitisse que eu [42] não usei da arrogância – sem gosto – senão porque você me tinha me
pedido para usá-la quando você se aproximou de mim por qualquer objetivo que eu não adivinho ainda – pois eu não
sou dotado para adivinhar – e que me retém ainda aqui? se por hipótese eu lhe dissesse que o que me retém aqui é a
incerteza na qual me encontro sobre seus objetivos, e o interesse que lhe prende? Na estrangeireza da hora e na
estrangeireza do lugar e da estrangeireza do seu avanço sobre mim eu me avancei sobre você, movido por um
movimento conservado em toda coisa de maneira indelével enquanto um movimento contrário não lhe seja imprimido.
Se fosse por inércia que eu me aproximei de você? levado para baixo não por vontade própria mas por essa atração que
sentem os príncipes que vão se emporcar nos albergues, ou a criança que desce escondida ao porão, a atração do objeto
minúsculo e solitário pela massa obscura, impassível que está na sombra; eu teria vindo a você, medindo tranquilamente
a moleza do ritmo de meu sangue nas minhas veias, com a questão de saber se essa moleza seria excitada ou calada
[43] inteiramente; lentamente talvez, mas pleno de esperança, privado de desejo formulável, pronto a me satisfazer com
aquilo que me propusessem, por que, o que me propusessem, seria como o sulco de um campo por muito tempo estéril
por abandono, que não faz diferença entre os grãos quando eles caem sobre ele; pronto a me satisfazer com tudo, na
estrangeireza de nossa aproximação, de longe eu teria crido que você se aproximava de mim, de longe eu tinha a
impressão que você me olhava; então, eu me teria aproximado de você, eu teria lhe olhado, eu teria estado perto de
você, esperando de você – muitas coisas – muitas coisas, não que você adivinhasse, pois eu não sei eu mesmo, eu não
sei eu mesmo adivinhar, mas eu esperaria de você e o gosto de desejar, e a idéia de um desejo, o objeto, o preço, e a
satisfação.

O fornecedor
Não há vergonha em esquecer à noite o que nos lembraremos de manhã; a noite é o momento do esquecimento, da
confusão, do desejo tão aquecido que se torna vapor. Todavia, [44] a manhã o recolhe como uma grande nuvem acima

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da cama, e seria tolo não prever à noite a chuva da manhã. Então, se por hipótese você me dissesse que você está por
agora desprovido de desejo a expressar, por fadiga ou por esquecimento ou por excesso de desejo que leva ao
esquecimento, por hipótese de retorno eu lhe diria para não se cansar mais com isso e tomá-lo emprestado de um outro
qualquer. Um desejo se rouba mas não se o inventa; ora, a roupa de um homem continua quente vestida por um outro, e
um desejo se empresta mais facilmente que um hábito. Já que a qualquer preço eu devo vender e que a qualquer preço
você deverá comprar, eh bem, compre para outros além de você – não importa qual desejo que passa e que você recolha
resolverá o problema –, para alegrar por exemplo e satisfazer aquele que acorda próximo de você pela manhã nos seus
lençóis/, uma namoradinha que desejará ao acordar qualquer coisa que você ainda não tem, que você terá prazer em lhe
oferecer, e que você será feliz por possuir porque você comprou de mim. É a fortuna do comerciante que existam tantas
pessoas [45] diferentes tantas vezes enamoradas de tantos objetos diferentes de tantas maneiras diferentes, pois a
memória de uns é revezada pela memória dos outros. E a mercadoria que você vai me comprar poderá bem servir a não
importa qual outro se – por hipótese – você não tiver um uso para ela.

O cliente
A regra quer que um homem que encontra um outro acabe sempre por lhe dar um tapa nos ombros e lhe falando de
mulher; a regra quer que a lembrança da mulher sirva de último recurso aos combatentes cansados; a regra quer isso, a
sua regra; eu não me submeterei a isso. Eu não quero que nós encontremos a nossa paz na ausência da mulher, nem na
lembrança de uma ausência, nem na lembrança do que quer que seja. As lembranças me desgostam e as ausências
também; à comida digerida, eu prefiro os pratos nos quais ainda não se tocou. Eu não quero uma paz vinda de não
importa onde; eu não quero que encontremos a paz.
Mas o olhar do cão não contém nada [46] além da suposição que tudo, ao seu redor, é cão com toda evidência.
Assim você supõe que o mundo sobre o qual nós somos, você e eu, é mantido na ponta do chifre de um touro pela mão
de uma providência; ora eu sei, eu, que ele flutua, pousado sobre as costas de três baleias; que não há providência nem
equilíbrio, mas o capricho de três monstros idiotas. Nossos mundos não são, então, os mesmos, e nossa estranheza está
misturada às nossas naturezas como a uva ao vinho. Não, eu não levantarei a pata, na sua frente, na sua direção; eu não
sofro da mesma gravidade que você; eu não saí da mesma fêmea. Porque não é pela manhã que eu me acordo, e não é
nos lençóis que eu durmo.

O fornecedor
Não se irrite, paizinho, não se irrite. Eu não passo de um pobre vendedor que não conhece senão esse pedaço de
território onde eu espero para vender, que não conhece nada além do que sua mãe lhe ensinou; e como ela não sabia
nada, ou quase, eu não sei nada [47] também, ou quase. Mas um bom vendedor tenta dizer o que o comprador quer
ouvir, e, para tentar adivinhá-lo, ele deve lhe lamber um pouco para reconhecer o cheiro. O seu cheiro não me foi nada
familiar, com efeito nós não fomos paridos da mesma mãe. Mas afim de poder se aproximar de você, eu supus que você
saiu mesmo de uma mãe, você assim como eu, supus que sua mãe lhe deu irmãos como a mim, em número incalculável
como um ataque de soluços depois de uma grande refeição, e que o que nos aproxima em todo caso, é a ausência de
raridade que nos caracteriza a ambos os dois. E eu me agarrei a esse pouco que nós temos em comum, pois se pode
viajar muito tempo no deserto sob a condição de ter um ponto de referência em qualquer lugar. Mas se eu me enganei,
se você não saiu de uma mãe, e se ninguém lhe deu irmãos, se você não tem uma namoradinha que se acorda consigo de
manhã nos seus lençóis, paizinho, eu lhe peço perdão.
Dois homens que se cruzam não têm outra escolha senão se baterem, com a violência [48] do inimigo ou a doçura
da fraternidade. E eles escolhem no final, no deserto dessa hora, evocar o que não está ali, do passado ou do sonho, ou
da falta, pois não se afronta diretamente a por demais estranheza. Diante do mistério convém se abrir e se desvelar por
inteiro afim de forçar o mistério a se desvelar por sua vez. As lembranças são as armas secretas que os homens portam
sobre ele quando é despido, a derradeira franqueza que obriga a franqueza de volta; a plena nudez derradeira. Eu não
tiro disso que eu sou nem glória nem confusão, mas porque você me é desconhecido, e mais desconhecido ainda a cada
instante, eh bem, como minha roupa que eu tirei e que eu lhe estendi, como minhas mãos que eu lhe mostrei
desarmadas, se eu sou cão e você humano, ou se eu sou humano e você outra coisa diferente, de qualquer raça que eu
seja e de qualquer raça você seja, a minha, ao menos, eu a ofereço ao seu olhar, eu lhe deixo tocá-la, me apalpar e se
habituar a mim, como um homem se deixa revistar para não esconder suas armas.
[49] É por isso que eu lhe proponho, prudentemente, gravemente, tranquilamente, de me olhar com amizade, porque
se faz melhores negócios sob o abrigo da familiaridade. Eu não tento lhe enganar não, e não peço nada que você não
queira dar. A única camaradagem que vale a pena se engajar não implica agir de uma certa maneira, mas não agir
simplesmente; eu lhe proponho a imobilidade, a infinita paciência e cega injustiça do amigo. Pois não há justiça entre
quem não se conhece, e não há amizade entre quem se conhece, não mais do que não há ponte sem barranco. Minha
mãe sempre me disse que era tolo recusar um guarda-chuva quando se sabe que vai chover.

O cliente
Eu o preferia astuto mais que amigável. A amizade é mais sovina que a traição. Se fosse um sentimento que eu
tivesse necessidade, eu lhe teria dito, eu lhe teria perguntado o preço, e eu o teria pago. Mas os sentimentos não se
trocam senão com os seus semelhantes; é o falso comércio com a [50] falsa moeda, um comércio de pobre que
macaqueia o comércio. Troca-se um saco de arroz por um saco de arroz? Você não tem nada a propor, é por isso que

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você joga seus sentimentos no balcão, como os maus comércios fazem o desconto com a muamba, e depois não é mais
possível reclamar do produto. Eu, eu não tenho sentimentos para lhe dar de volta; dessa moeda aí, eu sou desprovido, eu
não pensei em trazê-la comigo, você pode me revistar. Então, guarde a sua mão no seu bolso, guarde sua mãe na sua
família, guarde suas lembranças para sua solidão, é a menor das coisas.
Eu não quero jamais dessa familiaridade que você tenta, escondida, instaurar entre nós. Eu não quis a sua mão sobre
meu braço, eu não quis a sua roupa, eu não quero o risco de ser confundido com você. Pois saiba que, se você foi
surpreendido há pouco por meu porte, e você não achou bom esconder sua surpresa, minha surpresa por mim foi ao
menos tão grande ao olhar você se aproximar de mim. Mas, em terreno [51] estrangeiro, o estrangeiro perde o hábito de
esconder seu espanto, porque para ele toda esquisitice torna-se costume local, e ele deve se acomodar como ao clima ou
ao prato regional. Mas se eu lhe levasse entre os meus, e que você fosse, você, o estrangeiro forçado a esconder seu
espanto, e nós os nativos livres para o mostrar, nós lhe cercaríamos lhe apontando o dedo, nós seguramente lhe
tomaríamos por um carrossel de feira, e eles me perguntariam onde se compram os bilhetes.
Você não está aqui para o comércio. Você se arrasta aqui mais para a mendicância, e para o roubo que a sucede
como a guerra às discussões. Você não está aqui para satisfazer os desejos. Porque os desejos, eu os tinha, eles caíram
ao nosso redor, nós os pisoteamos; os grandes, os pequenos, os complicados, os fáceis, seria suficiente que você se
abaixasse para pegá-los aos punhados; mas você os deixou rolar para a sarjeta, porque mesmo os pequenos, mesmo os
fáceis, você não tem como os satisfazer. Você é pobre, e você está aqui não por gosto mas por pobreza, [52]
necessidade e ignorância. Eu não finjo que compro imagens piedosas nem que pago os acordes miseráveis de uma
guitarra num canto de rua. Eu faço a caridade se eu bem quiser fazê-la, ou eu pago o preço das coisas. Mas que os
mendigos mendiguem, que eles ousem estender a mão, e que os ladrões roubem.
Eu não quero, eu, nem lhe insultar nem lhe agradar; eu não quero ser nem bom, nem mau, nem bater, nem ser
batido, nem seduzir, nem que você tente me seduzir. Eu quero ser zero. Eu receio a cordialidade, eu não tenho a
vocação para o parentesco, e mais que aquela dos golpes eu temo a violência da camaradagem. Sejamos dois zeros bem
redondos, impenetráveis um ao outro, provisoriamente justapostos, e que rolam, cada um na sua direção. Aqui, que nós
estamos sós, na infinita solidão dessa hora e desse lugar que não são nem uma hora nem um lugar definíveis, porque
não há razão para que eu lhe encontre nem razão para que você cruze por mim nem razão para a cordialidade nem cifra
razoável para nos preceder e que nos dê um sentido, sejamos simples, solitários e orgulhosos zeros.

[p53]
O fornecedor
Agora é tarde demais: a conta está fechada e é melhor que ela seja liquidada. É justo afanar de quem não quer ceder
e guarda com inveja nos seus cofres para seu prazer solitário, mas é grosseiro afanar quando tudo está à venda e tudo
para comprar. E se, provisoriamente, é conveniente estar devendo a alguém – o que não passa de um prazo justo
acordado –, é obsceno dar e obsceno aceitar que lhe dêem gratuitamente. Nós nos encontramos aqui para o comércio e
não para a batalha, logo não é justo que haja um perdedor e um ganhador. Você não vai sair como um ladrão com
bolsos cheios, você esquece o cão que guarda a rua e lhe morderá o cu.
Já que você veio aqui, no meio da hostilidade dos homens e dos animais em cólera, para não procurar nada de
tangível, já que você quer ser ferido por não sei qual obscura razão, você terá, antes de virar as costas, de pagar, e
esvaziar os bolsos, afim de que nada seja devido e nada seja dado. Desconfie do comerciante: o [54] comerciante
roubado é mais invejoso que o proprietário que é pilhado; desconfie do comerciante: o seu discurso tem a aparência da
humildade, a aparência do amor, apenas a aparência.

O cliente
O que é então que você perdeu e que eu não ganhei? porque eu vasculhei bem a minha memória, eu não ganhei
nada, eu. Eu quero pagar sim o preço das coisas; mas eu não pago o vento, a obscuridade, o nada que está entre nós. Se
você perdeu qualquer coisa, se a vossa fortuna está mais leve do que ela estava antes, depois de me ter encontrado, para
onde foi o que nos falta a nós dois? Mostre-me. Não, eu não gozei de nada, não, eu não pagarei nada.

O fornecedor
Se você quiser saber o que estava escrito desde o início sobre sua fatura, e que você deverá pagar antes de me virar
as costas, eu lhe diria que é a espera, e a paciência, e [55] o artigo que o vendedor faz ao cliente, e a esperança de
vender, sobretudo a esperança, que faz de todo homem que se aproxima de todo homem com uma demanda no olhar já
um devedor. De toda promessa de venda se deduz a promessa de comprar, e há a multa a pagar para quem rompe a
promessa.

O cliente
Nós não estamos, você e eu, perdidos sozinhos no meio dos campos. Se eu chamasse desse lado, para esse muro,
para cima, para o céu, você veria as luzes brilharem, os passos se aproximarem, o socorro. Se é difícil odiar sozinho, em
grupo isso se torna um prazer. Você se ataca mais aos homens do que às mulheres, porque você teme o grito das
mulheres, e você supõe que todo homem achará indigno gritar; você conta com a dignidade, a vaidade, a mudez dos
homens. Eu lhe faço um presente com essa dignidade. Se é o mal que você me deseja, eu chamarei, eu gritarei, eu
pedirei por socorro, eu vou lhe fazer ouvir todas as maneiras que há de se chamar por socorro, pois eu as conheço todas.
[56]

8
O fornecedor
Se não é a desonra da fuga que lhe impede, porque você não foge? A fuga é um meio sutil de combate; você é sutil;
você deveria fugir. Você é como essas senhoras gordas nos salões de chá que passam entre as mesas derrubando as
cafeteiras: você leva o seu cu atrás de si como um pecado pelo qual tem remorso, e você se vira para todas as direções
para fazer crer que seu cu não existe. Mas você pode fazer o que bem quiser, vão lhe morder mesmo assim.

O cliente
Eu não sou da raça daqueles que atacam primeiro. Talvez fosse melhor, finalmente, nos catar os piolhos do que nos
morder. Eu peço um tempo. Eu não quero ser atropelado como um cão distraído. Venha comigo; procuremos as
pessoas, pois a solidão nos cansa. [57]

O fornecedor
Há esta roupa que você não apanhou quando eu lha estendi, e agora, vai ser necessário que você se abaixe para
apanhá-la.

O cliente
Se todavia eu cuspi sobre alguma coisa, eu o fiz sobre banalidades, e sobre um hábito que não é senão um hábito; e
se foi na sua direção, não foi contra você, e você não tinha de fazer nenhum movimento para evitar o escarro; e se você
fez um movimento para recebê-lo na cara, por gosto, por perversidade ou por cálculo, nada impede que seja apenas por
esse pedaço de pano que eu mostrei algum desprezo, e um pedaço de trapo não pede a conta. Não, eu não curvarei as
costas diante de você, isso é impossível, eu não tenho a destreza de palhaço de feira. Há movimentos que o homem não
pode fazer, como o de lamber-se o próprio cu. Eu não pagarei uma tentação que eu não tive. [58]

O fornecedor
Não é conveniente para um homem permitir insultar seu hábito. Pois, se a verdadeira injustiça desse mundo é a do
azar do nascimento de um homem, o azar do lugar e da hora, a única justiça, é a sua vestimenta. O hábito de um homem
é, melhor que ele mesmo, o que ele tem de mais sagrado: ele mesmo que não sofre; o ponto de equilíbrio onde a justiça
compensa a injustiça, e não se deve maltratar esse ponto. Por isso é que se deve julgar um homem por seu hábito, não
por sua aparência, nem por seus braços, nem por sua pele. Se é normal cuspir sobre o nascimento de um homem, é
perigoso cuspir sobre sua rebelião.

O cliente
Eh, bem, eu lhe proponho a igualdade. Uma roupa na poeira, eu a pago com uma roupa na poeira. Sejamos iguais,
na igualdade do orgulho, na igualdade da impotência, igualmente desarmados, sofrendo igualmente do frio e do calor. A
vossa meia nudez, vossa metade de humilhação, eu as pago com a metade das minhas. Nos resta uma outra metade,
bastante [59] suficiente para ousar ainda se olhar e para esquecer o que nós perdemos ambos os dois por inadvertência,
por risco, por esperança, por distração, por azar. A mim, me restará ainda a inquietude persistente do devedor que já
pagou.

O fornecedor
Por que, o que você pede, abstratamente, intangivelmente, a esta hora da noite, por que, isso que você teria pedido a
um outro, por que não me teria pedido a mim?

O cliente
Desconfie do cliente: ele tem o ar de procurar uma coisa enquanto ele quer uma outra, que o vendedor não
desconfia, e que ele obterá finalmente.

O fornecedor
Se você fugisse, eu lhe seguiria; se você caísse sob meus golpes, eu ficaria perto de você para o seu despertar; e se
você decidisse não despertar, eu ficaria ao seu [60] lado, no seu sono, no seu inconsciente, no outro lado. No entanto,
eu não desejo lutar com você.

O cliente
Eu não temo lutar, mas eu receio as regras que eu não conheço.

O fornecedor
Não há regras; não há senão meios; não há senão armas.

O cliente
Tente me atender, você não conseguirá; tente me ferir: quando o sangue corresse, seria dos dois lados e,
inelutavelmente, o sangue nos uniria, como dois índios, no círculo do fogo, que trocam seu sangue no meio dos animais
selvagens. Não há amor, não há amor. Não, você não poderá atingir nada que já não foi, porque um homem morre
primeiro, depois procura sua morte e a reencontra finalmente, por azar, sobre o trajeto azaroso de uma luz a outra luz, e

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ele diz: então, não era senão isso. [61]

O fornecedor
Por favor, na gritaria da noite, você não disse nada que você desejasse de mim, e que eu não tivesse atendido?

O cliente
Eu não disse nada; eu não disse nada. E você, você não me propôs nada, na noite, na obscuridade tão profunda que
ela exige muito tempo para que a gente se habitue, que eu não tenha adivinhado?

O fornecedor
Nada.

O cliente
Então, qual arma?

* * *
* *
*

[Florianópolis, maio de 2007]

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