04 01:17 Page 1
Resumo Abstract
Introdução
O objetivo deste artigo é o de revisar e The objective of this paper is to review and Na última década, pesquisas clínicas e pré-
descrever as principais alterações neuro- describe the main neuropharmacological clínicas, na área da dependência química, per-
farmacológicas causadas pela exposição changes caused by the chronic use of alco-
mitiram um grande avanço na compreensão
crônica ao álcool, assim como os fenô- hol and those observed during its with-
menos ocorridos durante o período de drawal period. The results show interna- dos seus mecanismos cerebrais subjacentes,
abstinência. São apresentados dados refer- tional data referring to the involvement of caracterizando-a como um transtorno da
entes às alterações neuroadaptativas e de monoamine systems, neurotransmitters plasticidade neural, responsável pela neu-
tolerância ocorridas nos principais sis- and calcium channels in both neuroadapta- roadaptação à exposição crônica às drogas.1
temas de monoaminas, aminoácidos neuro- tion and tolerance to alcohol effects and A neuroadaptação e outras alterações quími-
transmissores e canais de cálcio, o que withdrawal. Relevant studies showing the cas causadas pelo consumo crônico de etanol
está relacionado a uma piora no prognósti- participation of other systems in those geram déficit cognitivo, tolerância e
co de portadores de comorbidades mechanisms, as opioids and other sub- dependência física que, por sua vez, con-
psiquiátricas com o consumo de álcool. São stances, are also shown. The article rein- tribuem para a manutenção do uso da droga.
também descritos alguns estudos rele- forces the importance, for both physicians A cessação da ingestão crônica de álcool ou
vantes que demonstram o envolvimento de and researchers, of an always growing até mesmo uma queda súbita nos níveis plas-
outros mecanismos de ação do álcool no understanding of alcohol central mecha-
máticos de etanol, pode provocar sintomas de
sistema nervoso central, como o envolvi- nisms of action. This understanding is nec-
intensidade variada diagnosticados pela CID-
mento de opióides, entre outras substân- essary to new pharmacological options to
cias. O artigo reafirma a importância, para alcohol harm reduction as well as to alco- 10 (Classificação Internacional de Doenças,
clínicos e pesquisadores, de um sempre hol withdrawal treatment. 10ª Revisão, da OMS) e pela DSM-IV (Diagnostic
maior entendimento do mecanismo de and Statistical Manual of Mental Disorders, 4ª
ação central do álcool, pois dele depende a Keywords. Alcoholic beverages. Drug toler- ed., da Associação Psiquiátrica Americana),
busca por novas opções farmacológicas, ance. Substance withdrawal syndrome. como a Síndrome de Abstinência do Álcool
tanto para a redução dos danos provoca- Neurotransmitters. (SAA).
dos pelo seu uso crônico, como para o Tomaremos como modelo dos acontecimen-
tratamento da síndrome de abstinência a tos neuroquímicos da exposição crônica ao
esta substância. etanol a Síndrome de Abstinência do Álcool,
que define a dependência física a essa sub-
Descritores: Bebidas alcoólicas. Tolerância stância, contém mecanismos comuns com o
a drogas. Síndrome de abstinência a sub-
fenômeno de tolerância funcional ou farma-
stâncias. Neurotransmissores.
codinâmica e envolve alguns dos processos
que resultam no déficit cognitivo do alcoolista
crônico.
ações fisiológicas e farmacológicas do etanol, tais como monoaminas, A exposição crônica ao etanol pode resultar em uma modificação na
acetilcolina e aminoácidos neurotransmissores, além de canais de cál- estrutura da proteína G estimulatória (Gs) ou alterar as interações
cio, entre outros mecanismos de ação. entre as subunidades da proteína G. Essas alterações interferem na
O complexo mecanismo de ação do álcool explica porque mesmo a estimulação da adenilato ciclase e na produção de AMPc, e parecem
sua ingestão em doses moderadas pode levar o indivíduo com comor- estar relacionadas ao desenvolvimento da tolerância ao álcool.21 No
bidades psiquiátricas a conseqüências mais sérias do que as vistas na entanto, outros estudos sugerem que, não apenas um, mas múltiplos
população geral.4 processos podem estar envolvidos na regulação da atividade de
segundos mensageiros pelo álcool.22
1. Álcool e monoaminas
Tem sido demonstrado que o etanol influencia a liberação dos princi- Síndrome de Abstinência do Álcool (SAA)
pais neurotransmissores presentes no SNC: dopamina5, serotonina (5- Os sintomas da SAA estão diretamente relacionados ao desenvolvi-
HT)6, noradrenalina7 e peptídeos opióides8. O etanol ativa o disparo mento da neuroadaptação do SNC à exposição crônica ao etanol. A
neuronal dopaminérgico na área tegmental ventral do mesencéfalo e seguir, veremos a relação entre a SAA e os principais mecanismos de
também a liberação dopaminérgica no núcleo accumbens – estruturas ação central do álcool.
que fazem parte da via mesolímbica, essencial para os efeitos de rec-
ompensa do etanol.9 1. SAA e monoaminas
As ações do etanol sobre o sistema dopaminérgico parecem ativar Com relação às monoaminas, os sintomas da SAA estão ligados, prin-
indiretamente vias serotoninérgicas, uma vez que podem ser atenu- cipalmente, à alteração dos níveis de liberação de noradrenalina e
adas por antagonistas do receptor 5-HT3.10 A relação entre etanol e dopamina. Alguns trabalhos demonstram que a hiperestimulação
receptores 5-HT3 também tem sido demonstrada em trabalhos centra- adrenérgica, que pode ser intensa nesse período, deve-se a uma
dos na teoria de que baixos níveis de 5-HT no cérebro podem ser um redução da atividade de adrenoceptores inibitórios pré-sinápticos do
fator de risco para o alcoolismo.11 subtipo a2, um fenômeno conhecido como down-regulation.23 Esses
receptores controlam, por retroalimentação, a liberação de monoam-
2. Álcool e aminoácidos neurotransmissores inas na fenda sináptica. Se não funcionam, a liberação é excessiva.
Recentemente, vários autores têm estudado as ações do álcool em Esses efeitos são responsáveis por um grande número de reações
sistemas de aminoácidos neurotransmissores. Nesses trabalhos, fisiológicas, incluindo as cardiovasculares, tais como taquicardia por
destaca-se o papel do principal neurotransmissor excitatório do SNC ativação de receptores beta-adrenérgicos; hipertensão por ativação de
de mamíferos, o glutamato, especialmente através do receptor gluta- vias alfa-adrenérgicas; e aumento da força de contração do músculo
matérgico N-metil-D-aspartato (NMDA) e do neurotransmissor cardíaco devido à ação adrenérgica inotrópica positiva. Outros sin-
inibitório ácido gamma-aminobutirico (GABA), através dos receptores tomas devidos à hiperatividade adrenérgica incluem náuseas e vômi-
GABAA e GABAB.12,13 tos, devido à redução do esvaziamento gástrico; piloereção; midríase;
O complexo receptor NMDA é controlado por vários sítios regu- tremores, pela facilitação da neurotransmissão muscular; aumento do
latórios. Para a abertura do canal iônico do receptor NMDA é consumo de oxigênio e aumento da temperatura corporal em até 2°C.
necessária a presença da glicina, um aminoácido que possui um sítio O papel da serotonina no reforço pelo álcool é complexo, em função
próprio, atuando como co-agonista. Tem sido demonstrado que o da variedade de tipos e subtipos de receptores para este neurotrans-
álcool pode atuar no sítio de ligação da glicina, inibindo a função do missor. Vários desses receptores produzem inibição comportamental,
receptor NMDA.14 Também foi postulado que esse receptor está explicando como o aumento de sua função com as drogas inibidoras
envolvido em processos de aprendizagem e memória e no fenômeno da recaptação de 5-HT teriam ação inibitória sobre o comportamento
da tolerância ao álcool.15 de beber. Por outro lado, os receptores 5-HT3 são diferentes, porque
A modulação da transmissão glutamatérgica com antagonistas do são excitatórios e parecem estar envolvidos no aumento de dopamina
receptor NMDA é postulada como uma nova alternativa para o trata- no núcleo accumbens. Portanto, uma ação agonista em nível desses
mento do alcoolismo. Alguns autores propõem que os antagonistas receptores poderia ter um efeito inverso, aumentando o consumo.24
NMDA podem apresentar diferentes papéis no tratamento do alcoolis-
mo, incluindo a atenuação dos efeitos da abstinência.16 2. SAA e aminoácidos neurotransmissores
Com relação aos fenômenos de excitação do SNC, sabemos que o
3. Álcool e canais de cálcio etanol atua como um antagonista de receptores NMDA.25 O consumo
O etanol também influencia o fluxo de cálcio (Ca++) através da mem- crônico de bebidas alcoólicas provoca um aumento na densidade dos
brana celular, reduzindo-o, no período de intoxicação, por uma ação receptores NMDA. Na retirada da droga, em conseqüência desse
nos canais de cálcio do tipo-L. No período de abstinência alcoólica, há aumento, ocorre uma resposta aumentada ao neurotransmissor fisio-
um aumento do influxo de Ca++ através desses canais, contribuindo logicamente liberado. Acontece, então, uma hiperatividade de recep-
para seus sintomas. Esse efeito compensatório pode ser reduzido, em tores NMDA glutamatérgicos, responsáveis pelo aparecimento das
animais de laboratório, pela administração de antagonistas de canal crises convulsivas características do período de abstinência e pos-
de Ca++, como a nifedipina.17 sivelmente também pela morte neuronal. A atenuação dessa hiperex-
citabilidade seria um dos principais mecanismos de ação do acam-
4. Álcool e outros mecanismos de ação prosato, que evitaria sintomas tanto da abstinência imediata quanto
Estudos que avaliam funções cognitivas associam a ingestão crônica da tardia – cujos sintomas são menos intensos (irritabilidade,
de etanol com a redução na concentração cerebral de acetilcolina, ansiedade) mas podem contribuir para as recaídas.
tanto em humanos quanto em ratos, causada por degeneração do teci- O aumento de excitabilidade do SNC deve-se, também, à hipoatividade
do cerebral.18 gabaérgica. No período de abstinência do álcool, o GABA deixa de
Antagonistas de colecistocininas reduzem os efeitos convulsivantes exercer sua atividade inibitória, especialmente em nível dos recep-
da abstinência alcoólica em camundongos19 e o antagonista opióide tores GABAA. A redução parece ocorrer mais em nível funcional, uma
naltrexona tem ampla utilização clínica no tratamento do alcoolismo, vez que, diferentemente do que ocorre com os receptores NMDA, não
auxiliando na prevenção da recaída.20 há evidências de alteração no número de receptores GABAA durante a
SI 44
Art. 09 - NOVO LAYOUT 29.04.04 01:17 Page 3
Correspondência
Marcos Zaleski
Rua Itapecerica,14 Itacorubi
88034-420 Florianópolis, SC, Brasil
Tel.; (48) 222-4218/ (48) 9972-6313
E-mail: mzaleski@terra.com.br
SI 46