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Número 01 Fevereiro de 2008

NESTA EDIÇÃO:

Aguinaldo Peres

Carlos Relva

Charles Dias

Joshua Falken

Distribuição por

Leonardo Carrion
www.creativecommons.org.br

Ubiratan Peleteiro
sta revista nasceu de um projeto criado e coordenado por
escritores amadores.

A idéia inicial era bastante simples. Imagens de ficção científica


foram capturadas na Internet e sorteadas entre os participantes.
Dentro de um prazo determinado, cada participante teve de
escrever um conto, usando a imagem como tema.

Enquanto os contos eram devidamente preparados por uma


revisora profissional, o formato da revista começou a ser definido.
O resultado é este, a primeira edição da revista de ficção científica
Black Rocket: 100% brasileira, do visual ao conteúdo.

Você também pode participar da próxima edição. Veja como, no


nosso site: www.black-rocket.blogspot.com

2O MERCENÁRIO E O ABISMO
Revista de Ficção Científica
Número 01 - Fevereiro 2008

Editorial 04

Coordenador e Editor
O Fantasma da CHARLES DIAS
charlesdias@gmail.com

Doca 6
Aguinaldo Peres 06 Revisão
BIA NUNES DE SOUSA
bcnsousa@terra.com.br
cascodatartaruga.blogspot.com

Robby
Editoração
Carlos Relva 12
CARLOS RELVA
carlosrelva@gmail.com
www.carlosrelva.com

Demônios do
Passado Para contatar os autores
Charles Dias 18 Aguinaldo Peres
aiperes@sti.com.br

A Solução por Carlos Relva


um Fio carlosrelva@gmail.com

Joshua Falken 26
Charles Dias
charlesdias@gmail.com

Cidade Joshua Falken


Suspensa richter_winsock@yahoo.com

Leonardo Carrion 32
Leonardo Carrion
leocarrion@hotmail.com

O Mercenário e
Ubiratan Peleteiro
o Abismo upeleteiro@yahoo.com.br

Ubiratan Peleteiro 39
3
EDITORIAL
No universo da literatura há, basicamente, dois tipos de escritores. De um
lado estão os que sonham com o estrelato, fama e dinheiro, os que querem
ser escritores profissionais. Do outro lado estão os que só querem ter suas
histórias lidas e apreciadas: esses são os escritores amadores. Ser escritor
amador não é fácil, ainda mais quando o gênero escolhido é a ficção cien-
tífica. Por que? Simples: por conta do preconceito que ainda
ronda esse gênero, seja no meio editorial e cultural, ou mesmo entre leito-
res. É só alguém dizer que gosta de ficção científica para que quem esteja
perto torça o nariz (exceto se também apreciarem o gênero, claro).
Mas o preconceito não é o maior culpado de a ficção científica ser um
micro-nicho literário no Brasil. A culpa também não é das editoras, que
não acreditam ou apostam no gênero. A culpa não é dos leitores, que não se esfor-
çam para acabar com o estigma de que ficção científica é coisa de louco ou nerd.
Infelizmente, a maior parcela da culpa por essa realidade é dos escritores brasilei-
ros de ficção científica.
Se sortearmos um leitor de ficção científica brasileiro e pedirmos para dizer o nome
de três escritores do gênero, as chances dele citar um autor brasileiro são mínimas;
com certeza, irá citar escritores norte-americanos como Asimov ou Clarke. Se fi-
zermos a mesma coisa com um argentino, ele, com certeza, citará um autor argen-
tino; se for um francês, idem. Será porque não temos escritores de ficção científica
no Brasil? Claro que não. Temos vários, excelentes, que não deixam nada a desejar
para escritores de qualquer outro país. Então, o que acontece?
Quando alguém abre uma nova empresa de varejo, seja um cinema, uma loja de
eletrodomésticos ou uma operadora de celular, a principal providência é fazer pro-
paganda do novo negócio - afinal de contas, a propaganda é a alma do negócio. Só
que a maioria dos escritores brasileiros de ficção científica simplesmente não dão
bola para isso. O resultado é que pouca gente teve a oportunidade de conhecer e
apreciar a ficção científica brasileira, que se tornou uma loja que pouca gente sabe
que existe e que, mesmo assim, continua não fazendo propaganda.
Por incrível que pareça, a Internet não ajudou muito a mudar esse quadro. Muita
gente que escrevia ficção científica antes da Era Digital simplesmente desprezou
esse novo meio de comunicação. Quem começou a escrever depois ainda não se
mobilizou para mudar as coisas. Enquanto há abundância de contos e livros digi-
tais de ficção científica em inglês, espanhol, francês, russo e japonês, em português
a produção literária digital do gênero é mínima e com divulgação limitadíssima.
A Black Rocket é uma tentativa de fazer a diferença nessa realidade patética, o
resultado da união de escritores amadores de ficção científica que acreditam que a
Internet é uma ótima forma de espalhar seus escritos, e que isso pode ser bem feito,
com qualidade e bom gosto. Torcemos para que sejamos somente a primeira de
muitas revistas digitais de literatura de ficção científica e fantasia a mostrar o talen-
to dos escritores amadores brasileiros.

Charles Dias
Coordenador e Editor
charlesdias@gmail.com

4
O MERCENÁRIO E O ABISMO
5
O Fantasma
da Doca 6
Aguinaldo Peres

Havia alguma coisa de muito estranho na doca 6,


algo que por quase dois séculos escapou ao en-
tendimento de humanos e robôs. O que estaria
causando aquelas anomalias, aqueles sons estra-
nhos, aqueles alertas sem motivo aparente? O que
há de tão estranho na doca 6?

6
[22 de junho de 2134]
Com um estalo, o equipamento de escuta começou a transmitir:
— Emergência! ... particular ... solicita liberação ... atracar na doca 6. Problema nos ...
manobradores ... citamos equipe de emerg ... Repetin ...
A única pessoa presente na sala tentou responder, porém tudo o que conseguiu foi fechar o
canal de comunicação e acidentalmente apagar a chamada dos registros, antes de fugir com
medo de ser responsabilizado.
Quando o controlador retornou à sala com seu cartão de crédito, viu a embalagem de mini-
pizza sobre a bancada, mas não viu o entregador. Deu de ombros e guardou o cartão no bolso do
macacão. Com o sindicato dos estivadores em greve, nem se importou em checar o equipamento
de rádio e se pôs a comer. Estava no terceiro pedaço quando todos os alarmes dispararam.

[6 de janeiro de 2136]
Do lado de fora da doca 6, onde ocorrera o grande acidente de 2134, Cintya vestia o traje
pressurizado sobre o maiô e reclamava.
— Por que eu?
— Porque você é uma das poucas engenheiras com certificado de operação no vácuo.
— Mas vivemos numa colônia espacial! É como morar numa ilha e não saber nadar...
Luther apenas sorriu. Havia outros profissionais aptos à tarefa, porém gostava de apreciar a
forma como o traje justo realçava as curvas da colega. Ele a ajudou a colocar o colete com o
reservatório de oxigênio e os módulos de bateria. Depois, verificaram juntos a integridade do
traje e seus sistemas.
A engenheira atravessou a câmara de descompressão instalada há um mês pela turma de
manutenção e caminhou cuidadosamente pelos escombros deixados pelo acidente; vigas torci-
das e chapas de aço rasgadas. O resto havia sido levado pelas equipes de resgate, pelas segurado-
ras e pelos catadores de sucata.
— Até aqui está tudo normal. Vou seguir agora para o local onde o pessoal de manutenção
estava.
— O.k. Caminhe com cuidado.
As docas ocupavam o último nível da gigantesca estrutura onde a gravidade era apenas três
quintos da gravidade terrestre. Isso facilitava a carga e descarga dos cargueiros comerciais nos
hangares e também a manutenção nas docas. Cintya avançou para o centro onde o piso de metal
fora parcialmente seccionado com o impacto.
— Nada ainda.
— Tente fazer alguma coisa, barulho, sei lá.
Em resposta ao pedido, chutou uma placa de aço que saiu rodopiando silenciosamente na
baixa gravidade, ergueu-se um pouco do chão e ricocheteou numa parede até parar. Cintya sorriu
por trás da máscara. Ela se lembrava das muitas teorias esdrúxulas propostas pelos colegas do
curso de engenharia que iam de alienígenas a fantasmas. No final das contas, a história do Fan-
tasma da doca 6 era apenas uma história.

O FANTASMA DA DOCA 6 7
Olhou para o alto, onde podia ver o tremeluzir do brilho do campo eletromagnético da
colônia através da rede metálica que cobria o rombo deixado pelo iate espacial. Fora muita sorte
não existirem vítimas da colisão. Não havia ninguém na instalação, por causa de uma greve, e
nem na pequena nave.
— Nada. Nem sons de correntes, nem uivos espectrais, nem luzes piscantes. Vou até o
outro lado da estrutura apenas por desencargo de consciência.
— O.k!
Enquanto caminhava ela pensava no grande mistério: como uma nave sem tripulantes e
com o piloto automático desligado poderia ter deixado a órbita de Ganímedes e voado quase
quatro unidades astronômicas para atingir exatamente o centro da doca 6? Cintya quase podia
ver a simulação da caixa-preta: o iate, em trajetória elíptica para a Terra, mudando subitamente
de direção e aproximando-se da colônia espacial. Ajustara a direção e a velocidade conforme o
manual de procedimentos e, por fim, atravessara a porta da doca. A nave arrastara os braços de
atracação, cortando o metal ao mesmo tempo em que sua carcaça era rasgada e uma grande
língua de fogo formada por ar e plasma escapava para o espaço. Fim.
Ou assim se pensava até que, há um mês, após meses de investigação e de um demorado
processo de licitação, o trabalho de reconstrução fora iniciado e interrompido. Motivo: atividade
paranormal. E lá estava ela, como a heroína de algum filme B de terror, caçando fantasmas. Teria
rido se...

[24 de janeiro de 2227]


Beto encostou a testa reverentemente no metal frio. Finalmente havia encontrado a lendária
doca 6, abandonada e soterrada por novas camadas metálicas enquanto a colônia espacial se
ampliava.
— Roy, comece a gravar.
O pequeno robô customizado ergueu dois braços munidos com holofotes para iluminar o
rapaz de 16 anos, fantasiado de explorador do século XIX.
— Sou Humberto Bisk Teixeira, da Sociedade Mitológica do Espaço Profundo. Após
infindáveis meses de pesquisa, conseguimos localizar a doca 6, apagada dos registros históricos
há dezenas de anos. Atrás desta porta de aço, ocultam-se segredos e mistérios que as gerações
passadas acharam por bem relegar às trevas. Mas nós, da SoMEP, lançaremos uma luz nessa
escuridão.
— Mas antes de abrirmos a porta para os mistérios da doca 6, irei vestir essa máscara.
Afinal, não sabemos em que condições se encontra o ar no interior — Beto colocou a máscara,
fez sinal de positivo para a câmera e liberou o mecanismo da tranca da porta estanque. A chapa
de aço deslizou para o lado, o silvo do ar escapando, um ar frio que fez a pele do rapaz se arrepiar.
Próximo ao chão uma nuvem de pó se ergueu.
A um sinal, o robô avançou iluminando o interior do hangar.
— Como podem ver, o chão está coberto por uma camada de poeira e não existe qualquer
marca de pés ou rodas, o que testemunha o abandono do local. Me sinto como os antigos explo-
radores, entrando numa primitiva catacumba perdida. Agora, seguiremos os passos da engenheira
Cintya Luther, a última pessoa a testemunhar fenômenos sobrenaturais que ela relatou, de forma

8 AGUINALDO PERES
oficiosa, a uma de suas netas.
Sobre seus quatro pequenos pneus, o robô deslizou lentamente para dentro, sempre filman-
do os locais que iluminava. Humberto sentia orgulho de si, sua voz continuava firme apesar do
medo que sentia, pois nunca estivera em um nível tão baixo. Na verdade, era um nível há muito
abandonado e somente liberado para as equipes de manutenção. Respirou fundo e seguiu seu
robô, mantendo-se dentro do halo de luz. Afinal, se quisesse tornar-se um verdadeiro jornalista
investigativo precisava ter a coragem de enfrentar o desconhecido e quebrar algumas regras.
O robô parou no centro do hangar, apenas o leve zumbido do motor elétrico marcando o
silêncio. Beto se posicionou sob a luz.
— Estamos exatamente no centro da doca 6. — Sua voz baixa e solene ecoava nas paredes
distantes. — É a partir deste ponto que todos os relatos afirmam que estranhos eventos ocorre-
ram. Ilusões psicossomáticas? Histeria coletiva? Manifestações sobrenaturais? Ou interferência
alienígena? Tirem suas próprias conclusões. Abram seus olhos e ouvidos e preparem-se para o
extraordinário.
O rapaz gesticulou e o robô se pôs em movimento. Ele seguia bem próximo do robô, o
sangue pulsando como um tambor em seus ouvidos. E então, a escuridão. Cego, Humberto agar-
rou-se ao robô, suas mãos tateavam desesperadas pelo botão de liga/desliga pressionando-o vári-
as vezes, sem sucesso. A respiração ofegante embaçou a máscara e lágrimas já escorriam pelo
seu rosto quando a luz voltou.
— Maldita lata-velha! — Socou, aliviado, a carenagem de plástico.
As luzes iluminaram Humberto e a cabeça do robô girou para focar a câmera do rosto do rapaz.
Uma voz metálica vibrou no alto-falante:
— Quem é você?

[7 de novembro de 2291]
— Ei, chefe! Tem uma porta trancada aqui.
— Trancada? Impossível! — o líder da equipe checou a fechadura eletrônica que havia sido
deliberadamente travada. — Maldição! Algum espertinho trocou as senhas. — retirou um decoder
da cintura e reconfigurou as senhas.
A porta se abriu e um pequeno robô saiu bamboleando pela porta. Era um modelo antiqua-
do, enferrujado. Tinha o plástico manchado, um dos pneus furado e um fio ligava-o a algum
ponto no interior escuro.
— Levem-me ao seu líder. — O som saiu chiando do alto-falante.
— Mas que porcaria é essa?!?
— Parece ser o brinquedo de alguma criança, chefe. O que vamos fazer com ele?
O responsável olhou carrancudo para o subordinado e para o robô, indeciso entre qual deles
seria o mais inútil.
— Carlão, o que a gente veio fazer aqui?
— Ué, chefe, viemos abrir todas as portas e desligar os circuitos elétricos, antes de inundar o
anel do nível 11.

O FANTASMA DA DOCA 6 9
— Exato. Então pega essa coisa e joga no lixo com o resto da sucata, enquanto eu desativo
esta seção.

[27 de fevereiro de 2292]


Apesar de não existir na colônia espacial o que a sociedade convencionou a chamar de dia,
o tempo continuou a ser medido em períodos de 24 horas, divididos em três turnos que recebiam
o nome de 'Manhã', 'Tarde' e 'Noite' por conveniência. E foi o controlador do período noturno
quem recebeu a transmissão.
— Transportador de sucata, prefixo CCS-64DK, com destino a Terra, pede autorização para
deixar a Doca 6.
O controlador estranhou a voz do piloto automático, mas não o suficiente para interromper
o procedimento de decolagem.
— CCS-64DK, autorização concedida, liberando garras de atracação. Aguarde a abertura
total do portão.
A mão do controlador ficou suspensa sobre o painel de controle, indeciso. O colega ao lado
comentou:
— Mas nós não temos uma doca de número seis.
Os dois ainda se encaravam quando os alarmes soaram.

10 AGUINALDO PERES
11
Robby
Carlos Relva

Um robô pode amar? A paixão pode encontrar mo-


rada em um peito de engrenagens e circuitos?
Cientistas dizem que não, estudiosos dizem que sim.
O que realmente importa é que aquele robô acredi-
tava que amava e lutaria para defender seu objeto
de adoração, nem que para isso precisasse matar.

12
Creio que robôs não se recordam, mas apenas acessam arquivos antigos. A diferença pode
parecer insignificante ou sem sentido para um humano, mas é fundamental para uma máquina. E
para embasar melhor minha afirmação, tenho quatro fatos a apresentar:

Primeiro fato
Ao contrário do homem, é muito complicado para nós, robôs, recordarmos sozinhos nossas
lembranças porque temos registros demasiadamente detalhados de tudo o que vivemos. É grande
a dificuldade em discernir os aspectos mais relevantes de um momento vivenciado. Sempre
precisamos do foco de um ser humano.
Sei que essa dificuldade pode lhe parecer estranha, mas vou dar um exemplo simples que
talvez ilustre bem o problema: um beija-flor visitando um canteiro de flores. O que é mais impor-
tante? O belo e rápido movimento do beija-flor, que se assemelha ao vôo dos insetos? A polinização
da flor, que garante a perpetuação da planta? O maravilho artifício da natureza, que desenvolve
flores que atraem a ave? Ou a incrível aerodinâmica de todas as aves, que proporciona sua fantás-
tica capacidade de voar? Você consegue entender? Para um robô, todas as informações são im-
portantes. Podemos, após observar, relacionar os dados de uma cena e cruzá-los com informações
antigas chegando a resultados infinitos! Deixe um robô em frente a um cenário com muitas
informações e o verá entrar em estado contemplativo por tempo indeterminado. Humanos riem
dessa aflição robótica!

Segundo fato
A capacidade de reviver intensamente as recordações pode acarretar, em alguns robôs,
outro problema muito mais sério do que o de não definir relevâncias: perder-se em suas próprias
lembranças e acreditar que tudo o que recorda está acontecendo no momento presente. É um tipo
de psicose cibernética que não tem como ser revertida nos casos mais acentuados, obrigando os
proprietários do robô a deletar todas as memórias. Acho que conseguem compreender que essa
ação significa para nós a própria morte, não?

Terceiro fato
Existem ainda casos mais graves, quando robôs crêem que lembranças alheias são suas.
Suponho que uma boa analogia para essa falha no processamento de dados seria um humano
com um distúrbio de troca de personalidade. Mas é muito raro, com apenas dois casos registrados
em robôs.
Mas, acreditem, nem todas as lembranças de um robô precisam ser digitais. Alguns de nós
guardamos um ou outro objeto físico. A explicação para isso? Um capricho robótico ou uma
mania de colecionar suvenires com a desculpa de serem lembranças físicas. Afinal, como as
recordações são tão fielmente cristalizadas em nossas mentes, não há outra explicação para isso.
“Focar uma lembrança?”, você poderia arriscar. Definitivamente, não. Esses objetos são apenas
troféus de um momento inesquecível, entre todos os momentos inesquecíveis que é a mente de
uma máquina.
O meu troféu é uma fotografia.

ROBBY 13
Quarto fato
E, finalmente, o quarto e raríssimo fato, que antes de ter acometido minha mente era apenas
descrito em teorias ciberfilosóficas: as chamadas memórias fragmentadas.
Antes que eu explique o que é isso, gostaria de finalmente me apresentar. Eu sou Robby e
apesar de o trabalho de juntar os fragmentos do meu passado ter sido muito árduo durante os
últimos anos, acho que consegui montar um panorama razoavelmente coeso da minha própria
história. O começo é bem fácil de contar e, ironicamente, o mal em minha mente – a fragmenta-
ção da minha memória –, contribuiu para que eu pudesse definir as relevâncias!
Pois bem. Fui construído no quarto planeta da grande estrela Altair, na constelação de
Aquilae. Meu criador foi o dr. Edward Morbius, que usou a tecnologia ancestral dos antigos
Krells, uma civilização extremamente avançada e já extinta. Minha finalidade? Servir ao doutor
e a sua adorável filha, Altaira Morbius.
Como disse, minha lembrança física é uma fotografia, que guardo desde meus tempos em
Altair-4. É uma foto que me mostra junto da bela Altaira. A composição me retrata ligeiramente
inclinado, colocando um sapato em um dos delicados pés da filha do doutor. Foi obtida com uma
câmera antiga, uma verdadeira relíquia de um dos tripulantes da nave Belerophon, que levou
Morbius e sua esposa para o planeta. Mas quem tirou a foto não foi seu antigo dono, que já se
encontrava morto, e sim o próprio doutor, em um de seus raros momentos de bom humor.
Havia um perigo adormecido em Altair-4, um monstro criado pelos pesadelos da tripulação
da Belerophon. Quando os homens da nave C-57-D dos Planetas Unidos, comandada pelo co-
mandante J. J. Adams, vieram resgatar os sobreviventes, encontrando apenas Morbius, sua filha
e eu, o monstro voltou a agir implacavelmente. Esses desagradáveis problemas resultaram na
morte do doutor Morbius. Eu e sua filha acabamos a bordo da nave de resgate.
Servi na nave como uma espécie de segundo navegador. Era um trabalho interessante que
ocupava meus circuitos integralmente. Infelizmente, meus dias no cruzador estavam contados,
devido ao sentimento de ciúmes que o comandante alimentava. Não consigo definir claramente
como isso aconteceu, mas estava ligado a meu relacionamento com Altaira, por quem ele estava
apaixonado.
Após a minha expulsão da nave, arquitetada por Adams, que alegava que eu oferecia risco
aos tripulantes devido às minhas características Krell, minha memória começou a se fragmentar.
São recordações frágeis e nebulosas, trechos de aventuras em planetas estranhos, galáxias dis-
tantes e realidades alternativas que povoam e confundem minha mente digital. Lembro-me de
computadores que queriam dominar mundos, de famílias perdidas no espaço. Terras devastadas
onde homens e mulheres vagavam em arcas modernas, levando um pouco de esperança aos
menos afortunados. Ou heróicas amazonas quase tão belas e formosas quanto a pequena Altaira.
Altaira, minha adorável menina, que eu acreditava estar definitivamente afastada de mim, pela
vastidão do espaço e inclemência do tempo...
Nunca me desfiz da fotografia.

O reencontro
Desafiando todas as probabilidades, hoje vou rever Altaira! Estou a caminho de sua nova
casa no planeta Terra, uma bela residência com grandes janelas panorâmicas e uma vista privile-
giada. Já é noite. Toco a campainha e prontamente o portão se abre. Fico entusiasmado com a

14 CARLOS RELVA
idéia de que ela também esteja ansiosa por me rever. Subo as escadas e chego à sala principal.
Altaira está lá. Ela veste um traje simples, mas elegante. Está linda.
— Robby, que prazer em vê-lo! — diz Altaira. — Foi o estúdio que te mandou aqui?
Neste instante entra no recinto um homem de porte atlético. É o comandante Adams! Ele se
aproxima de Altaira, parece aflito, e tenta afastá-la de mim. “Não! Desta vez, não a perderei!”,
pensei.
Nos momentos seguintes uma sensação estranha percorreu meus circuitos. Seguro firme-
mente o braço de Adams e arremesso o seu corpo em direção à janela. O vidro tenta conter o
impacto bravamente, contorcendo-se como borracha, mas acaba espatifando em inúmeros frag-
mentos arredondados. O corpo do comandante cai no piso da garagem. Altaira corre em minha
direção aos prantos. Ela está confusa e assustada. Bate em mim várias vezes com os punhos
fechados. Abraço-a forte, como um namorado apaixonado, apertando seu peito contra o meu,
sentindo o ar esvair de seus pulmões rapidamente.
Quando Altaira já está desfalecida a porta atrás de mim é arrombada e sinto um disparo
paralisante. Por um momento, tudo se torna escuridão. Quando recobro parcialmente os sentidos
visuais e auditivos, percebo que a sala está repleta de policiais. Um dos homens se dirige para a
janela já totalmente restituída.
— Foi uma queda e tanto, detetive! — diz um policial de cabelos grisalhos. — Ele é um dos
atores do novo filme, não é?
— É; assim como ela — diz outro homem, agachado ao lado de Altaira. — Ambos partici-
param da refilmagem de “O Planeta Proibido”. A segunda refilmagem, se não me engano. E
então, como o cara está?
— Todo arrebentado, mas vai sobreviver. Já chamaram a equipe médica e...
Apesar de imobilizado, visualizo um pequeno veículo aéreo pousando na garagem, próxi-
mo ao comandante Adams.
— O plano de saúde desses caras deve ser muito bom! Os médicos já chegaram. — diz o
policial. — E a atriz?
— Teve sorte, também está desmaiada, mas não sofreu tantos ferimentos.
Então, o velho policial se aproxima de mim.
— Esse robô foi usado no novo filme?
— Não, — diz o detetive — é uma cópia com inteligência artificial de “Robby, o Robô”, de
1956. Estava na exposição dedicada ao robô, durante o coquetel de lançamento do novo longa-
metragem, junto com figurinos e cenários inspirados no filme original e uma lista completa de
todos os filmes de que Robby participou.
— Acha que é por isso que o robô pirou? — pergunta o policial. — Pensou que era real-
mente Robby?
— Acredito que sim. Ele fugiu da exposição e veio direto para cá. Liguei para avisá-los do
perigo, mas o ator que me atendeu não teve tempo de se proteger ou à namorada. O robô já estava
na casa.
— E como você descobriu que ele atacaria a atriz principal do filme?
— Uma das atrações da exposição é um álbum de fotografias da produção do clássico de

ROBBY 15
1956. Percebi que uma das fotos, a de Robby com a atriz Anne Francis, havia sido arrancada.
Como Anne interpretou Altaira, supus que o robô enlouquecido poderia estar no encalço da atriz
que reencarnou o papel.
— Uma bela dedução. E salvou a vida de duas pessoas! — congratulou o policial. — Mas
esse robô não me parece completamente desligado...
— E não está, o cérebro mnemônico continua ativo. Mesmo se o robô for desligado, isso
continua funcionando. Fica constantemente processando dados, cruzando informações. Já vem
assim de fábrica. Provavelmente foi aí que o problema começou e a pobre máquina nem se deu
conta. Quando os registros caem nessa plataforma secundária, o robô nem fica ciente disso.
— Poderíamos, então, dizer que é o subconsciente dele?
— De certa forma, sim.
Mergulhei novamente na escuridão e não emergi mais.

O sonho
A radiação dos primeiros raios do sol de Altair-4 é captada pelos meus sensores internos de
calor. Como Morbius programou, é hora de despertar. Estou novamente em meu verdadeiro lar.
— Acordou, dorminhoco? — diz Altaira. — Venha, quero dar um passeio no jardim. Está
um dia maravilhoso!
É realmente uma manhã radiante. Posso ouvir o canto dos pássaros que sobrevoam o jar-
dim de Morbius. Posso ver as flores desabrochando. E tenho a certeza íntima que o velho doutor
não está em casa. Não há mais ninguém no planeta, apenas eu e Altaira.
Sei que o que aconteceu na casa da atriz e aquele diálogo entre o detetive e o policial não
foram um devaneio. É o registro mais concreto e fidedigno que tenho armazenado em minha
mente há tempos. Também acredito na possibilidade de minhas divagações sobre as dificuldades
de um robô recordar lembranças serem apenas alucinações na mente de uma inteligência artifici-
al, que busca desesperadamente a solução para montar uma realidade própria e coesa.
Por que minhas idéias fluem melhor agora? Será por causa do coma a que fui induzido? E
essa realidade fantástica num planeta concebido pela criatividade humana? É minha mente se-
cundária? Estou sendo completamente deletado e desativado? Ou tudo já ocorreu e os técnicos
estão carregando minhas memórias novamente?
Altaira está se banhando no lago. Seu frágil corpo nu nada com a desenvoltura de um peixe.
Enquanto a vejo, minhas dúvidas vão perdendo importância. Acredito que isto é o mais próximo
que um robô pode chegar de sonhar. E podem ter certeza de que vou viver esse sonho intensa-
mente, enquanto durar.

16 CARLOS RELVA
17
Demônios do
Passado
Charles Dias

Em um mundo que começa a esquecer seu passado


sangrento e violento, a esperança convive com a de-
vastação, a prosperidade se sobrepõe a velhos pecados
de guerra. Nesse mundo de contrastes, uma mulher,
acostumada a apagar o passado em nome do futuro,
terá de se confrontar com seu maior pesadelo.

18
“A Grande Invasão foi um capítulo especialmente sangrento em nossa história. Os
Invasores surgiram das profundezas do espaço e tomaram nosso mundo de assalto.
Por falha deles e sorte nossa, não foram rápidos o suficiente para evitar que focos
de resistência fossem formados. Em um segundo momento, a resistência se coorde-
nou e conseguiu, após anos de luta, expulsar os Invasores não só de nosso planeta,
mas de todo o sistema solar.
Ainda hoje, uma década depois do Dia da Libertação, a presença dos Invasores se
faz sentir nas velhas feridas de guerra, nos milhões de desaparecidos e, principal-
mente, na presença vestigial de sua mais infame arma de dominação: soldados
clonados de nosso próprio DNA, idiotizados para aceitarem seu comando e que,
abandonados à própria sorte, continuam lutando, como se seus senhores ainda do-
minassem o planeta”.
Trecho do prefácio de “História comentada da Grande Invasão”

***

A chuva cai pesada sobre as ruínas da cidade destruída, imersa na escuridão da noite. Um
vulto caminha silenciosamente por entre restos de carros e prédios demolidos. Então fica imóvel,
como um animal farejando. De repente, algo grande e pesado ataca, saltando no escuro. Encontra
somente o chão, um segundo antes de receber uma violenta descarga elétrica que ilumina a noite
com um brilho azulado e o arremessa contra uma parede. Outros dois atacantes surgem das
sombras. Movimentos rápidos e violentos na escuridão. Nova descarga elétrica arremessa mais
um atacante desacordado ao ar. Finalmente um último clarão, e está tudo acabado.
Uma nave surge no céu com os faróis ligados e gira sobre os escombros. Assim que pousa,
um homem desembarca:
— Dessa vez você teve sorte, esses clones são mais idiotas que de costume — brincou.
— O que importa é que eu os cacei em uma hora e quarenta minutos. Isso significa que
você perdeu a aposta. Estou errada, Mariko? — disse a mulher, vestida com uma armadura tática
flexível negra como a noite. Sentada sobre um grande bloco de concreto, ela tem a seus pés três
homens com rostos idênticos, imundos e desacordados.
— De jeito nenhum, chefe — respondeu a piloto da nave.
— Isso que dá trabalhar com mulheres, elas sempre se unem contra os homens — reclamou
o homem, em tom de brincadeira.
— Vamos levá-los para o distrito e depois você vai pagar a aposta que perdeu — concluiu
a mulher, saltando graciosamente ao chão.

***

No bar lotado, as garçonetes tinham de se contorcer para levar as grandes bandejas carrega-

DEMÔNIOS DO PASSADO 19
das de bebidas. Uma banda se apresentava em um pequeno palco tocando velhas músicas de
rock, as mesas estavam todas ocupadas e uma pequena multidão se acotovelava ao longo do
comprido balcão de alumínio, bebendo e conversando.
— Que tal oferecer uma bebida a um irmão de armas, major? — Irina ouviu uma voz
masculina sobre seu ombro. Ao virar, deparou-se com um rosto que não via há muito tempo.
— Mayers, é você mesmo? — perguntou a mulher, reconhecendo seu sargento dos tempos
da guerra.
— Sim, senhor — respondeu, fazendo uma continência.
— Deixe de bobagem e vamos tomar algo pelos velhos tempos — convidou Irina.
Assim que chegaram à mesa onde estavam Mariko e Lopez, Irina fez as apresentações.
Mayers continuava o mesmo homem forte de sorriso largo. Um homem de aspecto inteligente o
acompanhava e foi apresentado como seu empregador.
— Ouvi dizer que você está no ramo da captura de clones — disse Mayers, antes de tomar
um gole de cerveja.
— É um bom negócio, rendoso e ajuda a manter a forma. Lopez cuida do equipamento,
Mariko pilota e eu caço — respondeu Irina.
— É exatamente por isso que estamos aqui. Phil, os detalhes são com você — disse o ex-
sargento. O estranho que acompanhava Mayers limpou a garganta antes de falar:
— Tenho uma fábrica de processadores quânticos em Chatakawa e estamos enfrentando
um problema sério com clones. Contratei Mayers como chefe de segurança e ele sugeriu procurá-
la para cuidar do problema.
— Por que alguém abriria uma fábrica em Chatakawa? Naquele lugar só tem areia e sol
escaldante — perguntou Lopez.
— Estamos lá exatamente pelo sol. Nossa planta é totalmente alimentada por energia solar
e não há melhor lugar para instalar painéis solares que em Chatakawa — respondeu Phil.
— E qual é o problema com os clones? — perguntou Irina, fazendo sinal para a garçonete
trazer outra rodada de bebidas.
— Recentemente, terminamos de instalar um novo campo de coletores solares e desde
então já sofremos dois ataques de um bando de clones que não sabíamos que existia na região.
Por sorte, não conseguiram fazer estragos consideráveis, até agora — respondeu o empresário.
— Pensava que Chatakawa já tivesse sido declarada livre de clones — comentou Mariko.
— Eles estão em todos os lugares, esses malditos sabem se esconder — respondeu Mayers,
com desgosto.
— Vocês não têm seguranças para cuidar disso? — perguntou a ex-major.
— Já enviamos várias equipes atrás do bando sem sucesso. Por isso Mayers sugeriu que o
melhor seria procurarmos você e sua equipe — respondeu Phil.
— Vai custar caro — disse Irina.
— Dinheiro não é problema — respondeu o empresário com a certeza de quem pode gastar
grandes somas sem pensar muito.

20 CHARLES DIAS
O restante da noite foi, para Irina, uma mistura de presente e passado. Alegria por estar viva
e dor pelas feridas que nunca cicatrizavam por completo. Quando chegou em casa, tomou um
banho demorado e chorou amigos que viu tombar. Somente com a ajuda de dois tranqüilizantes
conseguiu pegar no sono, já tarde da noite.

***

Alguns dias depois da conversa no bar, o grupo viajou para Chatakawa em uma grande
nave de transporte. Durante o vôo, reuniram-se para tratar dos detalhes do trabalho.
— Vocês já nos mostraram mapas, fotos dos estragos causados, um punhado de informa-
ções inúteis, mas onde estão as gravações em vídeo dos ataques? — perguntou Irina, irritada.
— Não temos nenhuma — respondeu Phil, visivelmente constrangido.
— A primeira coisas que os clones fizeram foi destruir as câmeras de segurança —comple-
tou Mayers.
— Clones não costumam fazer esse tipo de coisa quando atacam — disse Lopez, em tom
preocupado.
— A não ser que sejam clones de segunda geração — disse Irina, com desgosto.
— Como assim? Há mais de um tipo de clone? — perguntou Phil.
— Nos últimos meses da guerra, os Invasores usaram uma nova geração de clones, híbridos
com alguma raça alienígena, mais fortes, inteligentes e perigosos que os clones comuns. Quando
foram expulsos, os Invasores deixaram todos os clones para trás. Desde então, a prioridade do
Comando Militar foi caçá-los e abatê-los antes dos clones de primeira geração. Esses são mais
um incômodo do que um perigo. Acreditava-se que a segunda geração havia sido extinta, mas
esses ataquem indicam que alguns conseguiram escapar. Por algum motivo, somente agora vol-
taram a agir — explicou Irina.
A reunião terminou muito antes da viagem e depois de um rápido almoço, cada um procurou
um lugar onde pudesse tirar um cochilo ou fazer alguma outra coisa para passar o tempo. Irina
sentou-se junto a uma das grandes escotilhas redondas e ficou observando a paisagem, enquanto
tentava descobrir o que a incomodava naquela missão. Sabia que alguma coisa não fazia sentido
naqueles ataques, mas não conseguiu precisar o que era. Isso a fez pensar que precisariam de muito
mais informações do que tinham antes que pudesse pensar em um plano de ação.
Os dias seguintes à chegada na fábrica foram de planejamento e preparação, até que final-
mente estavam prontos para começar a trabalhar. Numa noite escura com ventos fortes, Irina partiu
com sua equipe e Mayers em uma nave de transporte rápido. Foram em direção a uma velha cidade
abandonada, ao sul da fábrica, e que a ex-major acreditava ser o provável esconderijo do bando de
clones. Quando já estavam perto da cidade, Mayers foi chamado por Phil pelo rádio.
— Mayers, fomos atacados novamente, dessa vez no portão cinco. Conseguimos conter o
ataque. Eles fugiram rumo ao sul, em direção à cidade abandonada — comunicou Phil, nervoso,
pelo rádio.
— Irina, essa é nossa chance de pegar esses desgraçados — disse Mayers, animado.
— Lopez e eu ficaremos na cidade, você volta com Mariko e os segue a partir da fábrica,

DEMÔNIOS DO PASSADO 21
com seu pessoal. Se não encontrarmos nada aqui, vamos ao seu encontro e então os pegamos em
duas frentes — respondeu a ex-major com tranqüilidade.
A nave sobrevoou baixo a cidade abandonada para que os dois vultos saltassem, e então
tomou rumo norte.

***

A ventania produzia sons estranhos na cidade abandonada. Com o auxílio de uma série de
filtros visuais não demorou muito para que a Irina captasse uma leitura térmica anormal em um
dos velhos prédios abandonados, intensa demais para ser um dos pequenos animais do deserto,
mas muito fraca para ser um clone.
— Captei uma leitura térmica anormal em um prédio ao sul — disse a ex-major pelo
comunicador.
— Você não é a única, também detectei uma flutuação magnética ao norte da cidade que é
bem estranha — respondeu Lopez.
— Eu verifico a leitura térmica e você, a flutuação magnética. Não vá bancar o herói. Se
suspeitar de algum perigo, faça contato imediatamente — ordenou Irina, enquanto caminhava
com cuidado em direção à rua larga varrida pelo vento.
O prédio estava meio enterrado na areia e todas as entradas estavam bloqueadas. Com
agilidade, Irina saltou para o telhado, onde encontrou uma telha solta que retirou sem dificulda-
de. Antes de saltar para dentro do prédio, checou a carga elétrica da armadura para ter certeza de
que poderia se defender se fosse preciso. Por alguma razão, que ela mesma não compreendeu,
ajustou a descarga para potência máxima, o suficiente para derrubar meia dúzia de clones gran-
des de uma só vez.
Era um grande armazém vazio. O filtro infravermelho mostrava somente uma mancha co-
lorida a algumas dezenas de metros, era a fonte de calor que havia captado. Depois de tentar mais
alguns filtros, Irina teve certeza de que poderia ligar as lanternas da armadura sem que isso
representasse perigo. Caminhou com cuidado em direção a fonte de calor, monitorando ao seu
redor para o caso de alguma armadilha. À medida que se aproximava, conseguiu vislumbrar uma
coluna mais ou menos da sua altura. Quando se aproximou o suficiente, as luzes mostraram uma
coluna formada por um feixe de hastes de metal, emaranhado com grossos cabos que serpentea-
vam pelo chão. Ali, estava empalado um torço de metal fosco com somente um braço, encimado
por uma cabeça sem nariz ou boca e, no lugar dos olhos, duas grandes esferas de cristal negro
com uma luz vermelha mortiça no interior. Um Invasor.
Irina sentiu como se uma bomba de gelo explodisse em seu estômago e teve de usar todo o
seu autocontrole para não entrar em pânico. Deu um passo vacilante para trás, as pernas moles,
as mãos trêmulas. Pensou que aquilo só podia ser um pesadelo. Dez anos de lembranças de
Invasores trazendo morte e sofrimento a assaltaram. Não teve dúvida; ordenou que sua armadura
lhe injetasse uma dose de tranqüilizante de combate, pois tinha certeza de que não conseguiria
manter o controle por muito mais tempo.
— Lopez, você já checou aquela flutuação magnética? — perguntou a ex-major com uma
calma artificial.

22 CHARLES DIAS
— É um túnel com cabos de transmissão de energia ativos. Isso não deveria estar aqui, não
havia nada disso nos mapas... — começou a responder, quando foi interrompido pela ex-major:
— Esqueça isso e venha para minha posição agora mesmo, encontrei algo muito mais
estranho — disse, sem tirar os olhos do Invasor que continuava inerte.
Pouco depois, Lopez chegou ao armazém, vindo pelo mesmo caminho que Irina. Quando
viu o Invasor, deixou escapar uma série de impropérios.
— Pensei que nunca mais veria um desses malditos — disse, quando finalmente conseguiu
articular uma frase, com o medo impresso na voz.
— Você não é o único. Agora me diga: o que é que essa coisa está fazendo espetada aí? —
ordenou Irina com uma frieza que assustou a ela mesma. Lopez examinou o estranho achado com
as mãos trêmulas. Então deu um salto para trás, caindo no chão pesadamente quando perdeu o
equilíbrio. Mesmo assim, continuou a se afastar rastejando pelo chão coberto de poeira grossa.
— Droga, essa coisa não está morta! — gritou.
— Como assim? — perguntou Irina.
— Você me ouviu. Essa coisa está viva. Esses cabos o estão alimentando com energia,
devem ser os mesmos cabos que achei no túnel fora da cidade — respondeu o velho engenheiro,
com a boca seca.
Tudo aconteceu muito rápido. Um estrondo de várias telhas desabando nos fundos do ar-
mazém fez Irina se virar com um salto. Pouco depois, ouviu um grito de dor de Lopez. Quando se
virou, viu o amigo no chão. De pé ao lado dele, um Invasor segurava-lhe o pulso com força, o
braço torcido, obrigando-o a permanecer no chão com uma arma apontada para a cabeça. Um
tremor involuntário percorreu sua espinha ao encarar os olhos vermelhos do Invasor fixos nela.
Para Irina o tempo pareceu congelar, e nada mais existia além daqueles demônios do passa-
do que voltavam para assombrá-la. A soldado se preparou para tentar livrar Lopez daquele abraço
mortal, quando uma série de pequenas explosões arruinou sua concentração. Por um enorme
buraco aberto numa das paredes, em meio a um turbilhão de areia, surgiram três outros pares de
olhos, vermelhos como ferros em brasa. Outros Invasores. A ex-major sentiu que aquele era o
melhor momento para fazer alguma coisa. Quando deu o impulso para saltar com fúria sobre o
invasor que prendia Lopez, sentiu algo agarrar-lhe com força o pescoço, puxando-a para trás.
Debateu-se para entender o que estava acontecendo e só então viu seu captor: o Invasor empalado,
que usava seu único braço para subjugá-la.
Ainda se debatendo, Irina conseguiu ver quando a cabeça do Invasor que mantinha Lopez
imóvel explodiu. Logo depois, ouviu o estampido inconfundível de um rifle de precisão. En-
quanto o corpo sem cabeça do Invasor abatido desmoronava, ela sentiu o braço que a mantinha
presa afrouxar. Aproveitou aquela chance inesperada para girar o corpo o máximo que pôde e,
com a mão esquerda, agarrou o feixe de cabos que subia para o tronco do Invasor. Então, acionou
o gatilho junto ao seu queixo e disparou a descarga elétrica de sua armadura. Uma explosão a
arremessou no ar violentamente e a ex-major sentiu a dor se espalhar pelo corpo quando caiu
desajeitada no chão a uma dezena de metros de onde estava. Ainda assim, virou-se o mais rápido
que pôde, pronta para disparar novamente, mas somente viu de relance os três outros Invasores
saltarem para dentro do buraco no fundo do armazém.
Lopez ajudou-a a se levantar, os analgésicos injetados pela armadura já faziam efeito. Mayers

DEMÔNIOS DO PASSADO 23
se juntou a eles pouco depois, vindo de um passadiço junto do telhado, o longo rifle de precisão
em suas mãos.
— Vocês estão bem? — perguntou o ex-sargento. Antes que pudessem responder o chão
começou a tremer e então uma nova explosão encheu o armazém com uma grossa nuvem de areia
e poeira. Correram os três para fora com as armas prontas para disparar, mas somente encontra-
ram um enorme buraco no lugar do que um dia havia sido a praça central da cidade. Irina olhou
para o céu e ainda conseguiu ver a pequena estrela verde que diminuiu de tamanho até desapare-
cer, os outros Invasores conseguiram fugir.

***

“O Incidente de Chatakawa foi fundamental para que o Serviço de Inteligência co-


locasse a descoberto os planos dos Invasores para monitoramento e espionagem. É
consenso dessa comissão que a finalidade última desses planos seria uma campa-
nha de sabotagem e preparo de uma possível nova invasão de nosso sistema solar.
Se os restos dos dois Invasores destruídos pela ex-major Irina, pelo ex-capitão-en-
genheiro Lopez e pelo ex-sargento Mayers não foram de grande valia nas investiga-
ções – a não ser como prova de sua presença física em nosso planeta –, os
computadores deixados pelos Invasores sobreviventes foram fundamentais. Nesses
computadores, foram encontrados logs de missões e documentos de grande impor-
tância.
Foi apurado que algum problema no gerador de energia dos Invasores de Chatakawa
os obrigaram a se passar por clones, simulando ataques a fábrica de processadores
quânticos para roubar energia para alimentar seus equipamentos e manter suas
operações até que o gerador fosse consertado ou reposto”.
Trecho do Relatório Final da Comissão de Investigação de Incidente de Chatakawa

24 CHARLES DIAS
25
A Solução
por um Fio
Joshua Falken

Dizem os cientistas-poetas que o universo é um


grande espetáculo, e que os astros dançam balé
obedecendo às notas da sinfonia das equações
matemáticas, sob o comando das leis da física. Para
uma nave condenada, a única possibilidade de sal-
vação é participar desse espetáculo de titãs.

26
Na faculdade, diriam que era apenas uma missão de rotina. Sem surpresas, sem preocupa-
ções. Só que, no espaço, quando você deixa de se preocupar, a Lei de Murphy ataca. Foi o que
Susan Kelvin Nicolelis, a engenheira-assistente (estagiária) da espaçonave cargueira Cassini-5,
pensou ao recapitular o que tinha acontecido.
Tinham acabado de deixar a Estação Mineradora Júpiter, acelerando para retornar para a
Terra, quando um grande tremor sacudiu a nave. Susan estava em sua cabine de descanso, mas se
levantou imediatamente. Antes que chegasse ao seu posto, os alarmes soaram e a voz do coman-
dante surgiu no intercomunicador:
— Atenção, todos, preparem-se para Ejeção Órion! Repito, Ejeção Órion!
Imediatamente, ela se encolheu junto à parede traseira da espaçonave, apertando o cinto de
segurança posicionado para aquela situação. Não se passou nem mesmo uma pulsação de seu
coração artificial antes que sentisse o corpo sendo comprimido violentamente contra a parede,
pelo o que pareceu ser uma eternidade, mas foram apenas cinco nanossegundos. A compressão
violenta reverteu seu curso, agora lançando-a contra o cinto. Ela sentia as sacudidas da gigantes-
ca espaçonave, sua inércia se rebelando contra as tentativas de controlar seu momento.
Assim que os movimentos erráticos chegaram num ponto tolerável, Susan soltou o cinto e
foi para o corredor de acesso, contatando seu superior pelo computador de pulso:
— Hendrik, já estou indo!
O rosto angular e precocemente calvo do engenheiro-chefe Hendrik Zeitner apareceu na
pequena tela:
— Você está bem, Susan?
— Estou! O que...
Nesse momento, uma vibração percorreu novamente a estrutura da nave. Seu corpo foi
jogado para a direita e ela começou a se sentir mais leve. Aquilo só podia significar uma coisa:
— A centrífuga do habitat está parando de girar!
— Vá até o módulo central, veja como está a situação e reporte as avarias. Depois que fizer
isso, encontre-me na ponte.
— Certo!
Minutos depois, olhando pela janela do módulo central, Susan já sabia qual era o problema:
um cabo eletrodinâmico (de onde ele teria vindo?) estava preso à centrífuga geradora da gravida-
de artificial necessária para que a tripulação pudesse viver normalmente durante a longa viagem
até Júpiter. Era apenas uma questão de realizar uma atividade extraveicular para cortar o cabo e
lentamente a centrífuga voltaria a funcionar.
Mas não foi aquilo que a fez perceber o tamanho do problema em que ela e a tripulação da
Cassini-5 estavam. Embora já soubesse pelo o anúncio da Ejeção Órion, sua mente ficou choca-
da do mesmo jeito: eles não tinham mais o gigantesco motor de fusão nuclear, nem os dois
motores auxiliares.
Cinco horas mais tarde, após os consertos de emergência, o comandante Hiroshi Slonczewski
reuniu todos na ponte. Dez astronautas de carreira e cinco estagiários, Susan incluída.
— Hendrik, você poderia, por favor, nos explicar o que aconteceu? — pediu o superior, de
olhos escuros e cabelos prematuramente grisalhos.

A SOLUÇÃO POR UM FIO 27


— Sim, comandante. — O engenheiro-chefe ativou a projeção de um holograma da nave
que mostrava os seis tanques esféricos de deutério e Hélio-3 na proa, a centrífuga com o habitat
da tripulação, os tanques de combustível nuclear da própria nave, o módulo do reator nuclear, o
escudo Órion e o módulo de propulsão na popa. — Como sabem, tivemos que executar uma
Ejeção Órion, ejetando da estrutura da nave o módulo de propulsão. Isso foi devido ao fato de
três sondas recolhedoras se jogarem contra o motor em alta velocidade, afetando seriamente sua
integridade, embora não chegando a afetar o reator principal, que está perfeitamente funcional.
Fomos protegidos da radiação, e de grande parte da onda de choque, pelo escudo, mas tivemos
avarias sérias.
— Que tipo de avarias? — interrompeu um dos estagiários, que Susan sabia estar no setor
de Navegação Orbital.
Susan e Hendrik se entreolharam, enquanto o comandante olhava seriamente para a tripu-
lação.
— A detonação do motor causou danos nos sistemas de suporte de vida. Mais precisamen-
te, perdemos parte do oxigênio armazenado para a viagem de volta e parte do sistema reciclador
de O2. Temos oxigênio para somente três meses. Como perdemos os motores principais, não
podemos atingir a velocidade de escape necessária para deixar o sistema joviano e nos encontrar
com a nave de resgate Nightingale-7. Mesmo na velocidade máxima, ela levaria quatro meses
para chegar a nossa posição.
O comandante explicou que fariam o possível para aumentar a potência dos motores
direcionadores, mas todos sabiam que era uma tentativa vã. A verdade era uma só: deveriam se
preparar para morrer.
Se a Cassini-5 estivesse com pelo menos um motor funcionando, poderia deixar Júpiter
mesmo que lentamente, e se encontrar com a Nightingale-7 antes que o oxigênio acabasse. Mas
não havia como os motores direcionais gerarem aquele empuxo salvador. A diferença entre a
vida e a morte era dela e da tripulação eram apenas alguns delta-v...
Susan quase riu com a idéia. Nos últimos quatro anos o que sempre temeu não era a morte
– risco da profissão de astronauta que aceitava –, mas a possibilidade de alguém descobrir que
seu corpo era completamente robótico. Desde o acidente na sua primeira viagem de treinamento
na órbita geoestacionária, apenas seu sistema nervoso central continuava biológico... Foi o que
salvara sua vida na ocasião, mas essa situação extrema era contra a lei da Comunidade de Desen-
volvimento Terrestre e, se revelada, poderia levar ao seu desligamento sumário. E agora poderia
morrer por simples falta de ar...
Ela pensou em sua mãe na Terra e em sua melhor amiga Verônica. Nunca mais as veria e
nem o Elevador Espacial, que dominou parte de sua infância e toda a sua adolescência, determi-
nando seu destino.
Pela janela de sua cabine, Susan observava. Os fios castanhos de seu cabelo, os olhos de
cores diferentes, com um brilho desanimado. Via diversas sondas recolhedoras de deutério e
Hélio-3, similares as que tinham atingido o motor nuclear de sua nave e que pontuavam a atmos-
fera de Júpiter, o gigante gasoso. O acidente era tão incomum que alguns membros da tripulação
se perguntavam se não teria sido sabotagem da Liga de Defesa do Espaço.
Num processo totalmente automático, as sondas recolhedoras desciam até a superfície do
planeta e recolhiam os combustíveis nucleares. Eles então eram armazenados na Estação

28 JOSHUA FALKEN
Mineradora, também automática, até que naves como a Cassini-5 carregassem o material em
seus tanques para levá-lo até a Terra, a Lua, Marte, Vênus e parte dos asteróides. Olhava para a
forma que lembravam um haltere: duas esferas conectadas por um fio finíssimo. Na verdade,
eram a unidade recolhedora numa ponta e a unidade de armazenamento na outra, ligadas por um
duto acoplado a um cabo eletrodinâmico, que gerava o arraste necessário para fazer a sonda
descer até Júpiter e...
Seus olhos se arregalaram. Como não tinham percebido isto? Quando duas massas
conectadas por um longo cabo condutor cruzam o campo magnético de um planeta, gera-se
uma corrente elétrica, que pode ser armazenada, e um arraste, que pode ser usado para baixar
o sistema de sua órbita inicial. Mas, se uma corrente elétrica percorresse o sistema do cabo
numa direção contrária a que seria naturalmente induzida pelo campo magnético, seria gerado
um empuxo. Essa força poderia ser usada para acelerar o conjunto, fazendo com que ele fosse
para uma órbita superior, assim como as sondas recolhedoras faziam para subirem até a Esta-
ção Mineradora. E Júpiter tinha simplesmente o maior campo magnético planetário do Siste-
ma Solar!
Susan se levantou imediatamente e correu até a ponte. Sentou-se na cadeira de seu terminal
de acesso. Um cabo de conexão saiu discretamente do pulso de Susan e conectou-se ao compu-
tador central da nave. Agora, seus sistemas cibernéticos estavam unidos aos da Cassini-5. Men-
talmente, começou a acessar e carregar os dados necessários para a simulação que estava criando.
Ao iniciar o processamento, cruzou os dedos. Trinta segundos depois, um grito de alegria.
— Hendrik! — ela chamava pelo computador de pulso.
O engenheiro-chefe da Cassini-5 atendeu com o rosto cansado.
— Olá Susan. Seu turno de descanso ainda não aca...
— Acho que descobri uma maneira de conseguirmos a velocidade de escape!
Ela contou seu plano. Os olhos azul-escuros do engenheiro-chefe brilharam. Mais tarde na
ponte de comando, o comandante não acreditava na idéia de Susan:
— Você... está brincando... não está?
— Na verdade, a idéia dela é obvia e por isso mesmo brilhante — disse o engenheiro-chefe.
O rosto de seu superior fez uma carranca.
— E porque você não pensou nisso, Hendrik?
— Porque fiquei tão focado em fazer os motores direcionais funcionarem com o máximo
de potência para tentar nos tirar dessa situação, que me esqueci da alternativa da propulsão por
cabo eletrodinâmico — explicou, dando de ombros.
— E quanto a Io? As descargas elétricas não poderiam afetar a nave?
Aquele era o ponto fraco do plano. O sistema composto por Júpiter e seu satélite Io era o
mais eletrodinamicamente ativo do sistema solar. Não era raro que relâmpagos passassem no
espaço entre os dois corpos celestes. E os cabos eletrizados poderiam agir como atratores. Susan
tomou a palavra:
— Comandante, o senhor tem razão em se preocupar com essa possibilidade, mas lembre-
se de que a nave foi construída para resistir a possíveis descargas como essa. Um sistema de
disjuntores pode ser instalado como proteção e, no pior caso, podemos desligar a corrente neles.

A SOLUÇÃO POR UM FIO 29


O maior risco provavelmente seria a corrente elétrica entre Júpiter e Io contrabalançar a corrente
dos cabos, diminuindo a nossa velocidade. Isso nos obrigaria a fazer mais órbitas ao redor de
Júpiter do que o previsto.
— E se corrente Júpiter-Io se somar com a dos cabos?
— Nesse caso ganharíamos velocidade, provavelmente um grande ganho súbito. Como
prevenção, teremos de nos proteger como faríamos para uma Ejeção Órion.
A astronauta em treinamento respirou fundo antes de continuar.
— Essa tentativa apresenta um risco, mas as simulações mostram que pode funcionar. E
certamente é melhor que a outra opção que temos.
Hiroshi ficou em silêncio por um momento, olhando para o olho direito azul e o esquerdo
verde de Susan.
— Está bem, vamos lá!
Uma semana de trabalho contínuo depois, estavam prontos para colocar o plano em prá-
tica. Lentamente, desenrolaram seis cabos ao longo da nave avariada, três de cada lado. Quan-
do atingiram seu comprimento máximo, a corrente elétrica vinda do reator principal começou
a passar por eles, fazendo com que centelhas saltassem entre os cabos paralelos. Quando os
indicadores mostraram que a nave começara a acelerar, a tripulação vibrou de alegria. O siste-
ma funcionava!
Meia órbita mais tarde, chegaram ao ponto critico do plano: a zona de maior proximidade
com Io. A corrente interplanetária se somou a que corria nos cabos. A aceleração aumentou, mas
não na proporção temida. O programa escrito para o controle dos cabos administrou a situação
perfeitamente O engenheiro-chefe, numa demonstração surpreendente de alegria para quem
conhecia suas maneiras contidas, deu um forte tapa congratulatório no ombro de Susan e sacudiu
sua mão entusiasticamente.
Mais três voltas ao redor do gigante gasoso e a Cassini-5 atingiu a velocidade de escape
com suas velas eletromagnéticas enfurnadas. Estavam livres da atração de Júpiter e a nave
seguia para o encontro com a Nightingale-7, em um mês e meio. Tempo de sobra.

***

Susan descia pela torre de quarenta mil quilômetros do Elevador Espacial, em direção da
cidade flutuante logo abaixo, na superfície de seu planeta natal. Da altura em que estava podia
ver os círculos urbanos, que envolviam a parte terrestre do sistema, e o sol se pondo na curva do
horizonte.
Quando finalmente desceu do carro do elevador, viu sua mãe e sua amiga Verônica espe-
rando por ela no saguão de desembarque do gigantesco Terminal Terrestre.
— Bem-vinda, filha — sussurrou a mãe em seu ouvido, enquanto a abraçava.
— Não nos dê mais um susto desses! — Verônica exclamou, sacudindo seu ombro.
A astronauta riu e começaram a andar em direção à saída do terminal. Susan tinha cumpri-
do a principal tarefa de um astronauta: ela retornara para casa.

30 JOSHUA FALKEN
31
Cidade
Suspensa
Leonardo Carrion

No mundo de Mada, viver nas alturas é algo co-


mum, mas não para ele, e por isso sofria. Por amor
a Have, teria de fazer uma jornada ao desconheci-
do, onde nenhum outro guerreiro ousara ir.
Somente a descoberta do que há abaixo da linha
das nuvens permitirá que ele também se torne um
guerreiro e merecedor de sua amada.

32
— Venha, Have, não tenha medo! — gritou o menino de cinco anos. Saltando, deixou para
trás o emaranhado de grossos cabos e cordas de cânhamo trançados nos troncos das árvores
Txain e aterrissou no solo coberto de folhas.
Corria pelo chão incentivando a amiga Have para acompanhá-lo. Seu nome era Mada.
Tinha o corpo robusto, pele morena, rosto bonito e uma longa cabeleira sedosa. Caminhava sobre
as pernas auxiliado-as com as costas das mãos, que tocavam levemente o solo. A menina tinha a
mesma idade e quase o mesmo aspecto, com o corpo mais delgado e cabelos curtos.
Com certa dificuldade ela reuniu coragem para descer e caminhar sobre a terra e folhas,
deixando para trás as cordas e passarelas que marcavam o limite central da Cidade Suspensa.
Diversas outras crianças seguiam o mesmo caminho. Aos poucos todos se dirigiam para fora da
floresta de poderosas árvores Txain.
Juntamente com alguns adultos, abandonavam a segurança da floresta para a colheita do
cânhamo que crescia nas clareiras. O cânhamo era elemento essencial para a cidade. Mais até do
que os ovos dos pássaros kri-kraks cujos ninhos eram cuidados pelos habitantes. Sem as fibras
do cânhamo, não haveria a Cidade Suspensa sobre o desfiladeiro. Eram de cânhamo os cabos, as
cordas trançadas e o tecido das casas-saco. De suas sementes, eram extraídos óleo e verniz,
materiais também indispensáveis ao cordame e aos tecidos.
— Como você consegue caminhar tão rápido, Mada? — perguntou Have, aproximando-se,
com passo vacilante, do menino que já coletava uma braçada de plantas.
— Não sei, Have. Sei que gosto de pisar no chão, de correr por aqui. Acho que faço isso bem.
— Você fala como se andar fosse coisa de gente! — disse a menina, sublinhando a palavra
andar com desprezo na voz.
Ambos instintivamente olharam para a Cidade Suspensa, em seu gentil balançado sobre o
penhasco. Assemelhava-se a uma imensa teia de aranha, um conjunto vasto de cordas entrelaçadas.
Eram amarradas umas às outras e sustentadas sobre o triângulo formado pelos três principais
cabos-mãe, tão espessos que nem cinco homens conseguiriam abraçá-los.
Os cabos-mãe formavam-se da junção de milhares de cabos menores trançados. Estes, por
sua vez, eram amarrados individualmente: na Floresta Txain do Pico Nevado, ao centro; nas
escarpas de granito do estéril Monte Faca, na direção do nascer do sol; e em laços em torno do
grande obelisco de diamante no Monte Brilhoso, onde o sol se punha. Os três principais cabos
eram ligados entre si por centenas de grossos cabos secundários, e destes apareciam os menores
em rede. Todos levavam a cidade a crescer para baixo, rumo ao fundo do desfiladeiro na forma de
uma gota. Ali, as casas-saco, as passarelas, os aquedutos que traziam a água que escorria do Pico
Nevado, os jardins de trepadeiras frutíferas e as milhares de cordas utilizadas pela população
para se deslocar em vôo no centro vazio da cidade ou na parte inferior, a nuvem.
A nuvem era a sempre presente neblina que impedia as pessoas de enxergarem o fundo do
desfiladeiro. Acima, viam apenas a continuação dos três picos que sustentavam a cidade, as
nuvens e o sol no céu azul. Era bom ser criança na Cidade Suspensa.

***

— Ei, Mada, veeeenhaaaaa! — gritava Have, enquanto se precipitava sobre o vazio central

CIDADE SUSPENSA 33
da cidade, segurando com apenas uma mão o cabo, projetando-se no ar para agarrar outro e voar.
Mada e Have tinham agora 14 anos e faziam parte da turma que era instruída no vôo por um
professor. Mada admirava a habilidade da amiga e dos demais jovens que treinavam como os
seus antepassados. Ele, no entanto, continuava solidamente preso à plataforma.
O jovem Mada já preenchera os requisitos fundamentais do vôo, o que lhe permitia ingres-
sar na vida adulta e assumir uma posição na sociedade. Podia se deslocar livremente pela cidade
e não apenas por onde as crianças ficavam, nas passarelas e nos cabos principais. O vôo, porém,
não era para ele um prazer especial, como para os demais.
— Ei, lobo, prefere correr na sujeira?
Niac era um rapaz alto e delgado, de ossos leves e incrível flexibilidade. Passou por Mada
e, depois da provocação, jogou-se no vazio, aparentemente sem qualquer forma de escapar da
queda. Agarrando-se a um cabo e logo depois a uma corda solta, deslizou pelo ar como se real-
mente voasse, como um pássaro.
— Vai ver como o “lobo” também sabe voar, Niac! — respondeu Mada, tomando coragem.
Segurando um dos cabos, Mada lançou-se sobre a área de treinamento. Have saltou no vazio e
veio girando e sorrindo em uma corda paralela. O rapaz sabia que ela se preocupava e não gosta-
va que os demais zombassem dele.
— Não é maravilhoso, Mada? — gritou contra o vento, enquanto saltavam rapidamente em
uma sucessão de cabos, avançando por toda a extensão central.
Have era uma jovem que mostrava em abundância todos os atributos que encantavam os
meninos, especialmente Niac. Mada a amava profundamente.
— Você não é páreo para mim! — ela riu gostosamente e ultrapassou o rapaz. Realmente
não era. Mada não conseguiria acompanhá-la mesmo que tentasse. E não ficava nada triste em
vê-la seguir na frente.
— Nem pense nisso, lobo, ela é minha! — disse-lhe o rival, chegando pela direita.
— Você não tem chance com ela, Niac! — respondeu Mada.
Não deixaria Have para Niac, nem que fosse preciso aprender a voar sem cabos, como os
pássaros faziam. Porém, no fundo o rapaz não tinha tanta certeza de suas chances, vendo a forma
vigorosa com que Niac voava.

***

Havia o Monte Brilhoso, o Pico Nevado e o Monte Faca. A descida por eles era impossí-
vel, era contra a tradição dos antepassados e também inútil. Nunca fora tentada, nunca fora
pensada! Esta era a opinião do clã de Mada e dos demais clãs.
Ele agora era um dos aranhas, os responsáveis pela manutenção da cidade e dos ninhos
dos kri-kraks. Niac e Have eram pássaros, poderiam dedicar-se à política, à defesa da cidade e
várias outras atividades de elite. Isso não importava para a moça, que amava Mada. Mas, para
o clã, o pedido de Niac tinha preferência sobre o de Mada. Tinha sido isso que forçara o rapaz
a propor o desafio.
A tradição dizia que aquele que fizesse um desafio que ninguém se oferecesse para igua-

34 LEONARDO CARRION
lar, e se deste desafio resultasse um ganho para a Cidade Suspensa, passaria a integrar o Con-
selho dos Clãs. A esse costume, era atribuída grande parte dos corpos que despencava para o
desfiladeiro, rumo ao desconhecido. Por Have, o aranha Mada traria para a Cidade Suspensa
um benefício de tal ordem que seu pedido pela garota certamente ganharia prioridade sobre o
de Niac.
Há muitos anos Mada pensava em descer. Perguntava-se como seria o mundo longe da
cidade e dos montes, o que haveria abaixo da eterna nuvem que marcava o limite inferior da
cidade. Para onde iam os pássaros kri-kraks quando não vinham desovar nos ninhos? E os
lobos da floresta?
Descida impossível; revolucionária, talvez; mas jamais inútil. Mada só tinha que esco-
lher uma das três montanhas. O Pico Nevado oferecia a Floresta Txain, que seguia aparente-
mente para abaixo das nuvens, mas era habitada pelos lobos e talvez por outros animais
perigosos. O Monte Brilhoso era por demais liso, não havia forma de obter apoio para a desci-
da. Restava o afiado Monte Faca, apesar de suas cortantes pedras de granito. Mas, exatamente
por causa delas, oferecia apoio para a amarração de cordas.
Have veio até os confins da Cidade Suspensa e permaneceu girando em um cabo, en-
quanto Mada começava a descida pelas escarpas de granito, levando às costas o máximo de
corda que conseguira transportar, alguma comida e água. Ela gritava o seu nome, pedia-lhe
que voltasse, por ela.
— Voltarei por você, Have! — respondia-lhe Mada, até que não se ouviram mais as vozes.
Mada continuou concentrado, sempre para baixo. Parava eventualmente para comer ou
dormir na rede que trouxera com o equipamento. Os dias pareciam sem fim enquanto o rapaz
descia através da nuvem. A luz era como a de um entardecer triste, independente da hora que
fosse do dia ou da noite.
Finalmente, bem depois de os alimentos e a corda terem se esgotado, quando já co-
meçava a sentir os efeitos da fome e sede, o jovem deixou a nuvem para trás. Abaixo,
Mada pôde ver o vale formado pelas montanhas, o final do abismo sobre o qual se erguia
a Cidade Suspensa.
Talvez fosse o primeiro a ver aquele lugar sem que estivesse em queda mortal. Havia um
tom de verde nas plantas diferente do amarronzado cânhamo e das árvores Txain dos picos. A
água corria entre as montanhas em uma corrente estreita e, mais adiante, alargava-se formando
um lago. Perto do lago, Mada podia ver diferentes espécies de pássaros e outros animais des-
conhecidos.
O jovem estava em um platô varrido pelo vento constante e cortante, mais pesado que o
das alturas. Sentia-se mais animado, porém fraco. Continuou a descida sem qualquer amarra-
ção. Ao pisar em uma pedra que lhe parecera bastante fixa e rugosa, seca e segura, sentiu que
seu pé escorregava em algo liso como neve congelada.
O rapaz girou seus braços em busca de apoio, mas as pedras se mostraram soltas. Gritou
de fúria e indignação quando caiu de costas no vazio. Mada achou que estava morto até perce-
ber que pairava sobre a paisagem do vale. O ar, que deveria estar zunindo ao seu redor enquan-
to caía, era sólido! Deitou-se de costas e viu, poucos metros acima de onde estava, o platô do
qual observara o vale há minutos. Ergueu-se e olhou novamente. Abaixo de seus pés, a ilusão
era perfeita. Até sentia o vento nas pernas.

CIDADE SUSPENSA 35
— Como isso é possível? — Mas antes que pudesse tomar qualquer decisão, sentiu uma
forte tontura e desmaiou.

***

— Mada, acorde — a voz era suave como a superfície que o rapaz sentia abaixo de seu corpo.
Aos poucos ele abriu os olhos e, surpreso, viu a face de Have.
— Have! O que houve? Onde estamos? — o jovem olhava em torno e não conseguia reco-
nhecer o ambiente. Pareceu-lhe que estava dentro de uma caverna do tamanho de uma casa-saco.
— Mada, eu não sou Have. Apenas tenho a aparência de Have para que possamos conver-
sar sem que você se assuste.
— Quem é você? Onde eu estou?
— Venha até aqui — disse o ser, aproximando-se de uma janela.— Antes que possa com-
preender quem ou o que eu sou, devo contar-lhe quem você é.
O rapaz levantou-se da cama e se aproximou. Lá fora, Mada viu o rio e o lago que avistara
do penhasco, além de muitas outras coisas incompreensíveis. Havia uma quantidade enorme de
objetos, como montanhas, mas diferentes. Também percebeu que existiam três gigantescos mon-
tes que subiam em direção às nuvens. Imaginou sua cidade lá no alto e sentiu saudades. O rapaz
não podia saber, mas via de perto a poderosa capital de um império. Via seus espaço-portos,
prédios e naves. Uma vista revelada apenas para ele, em dezenas de séculos de segredo. Mada
sentia que era uma visão bela e boa.
— Mada, esta é a Cidade Suspensa hoje. Ela cresceu, evoluiu. Seus habitantes aprenderam
muito, descobriram como moldar os metais e a pedra e como dominar os animais. Descobriram o
que havia para ser descoberto neste mundo, o que havia nas estrelas e foram até elas. Dominaram
outros mundos e criaram um império. Criaram a nós, seus servos. Até que um dia, desapareceram.
Mada ouvia, com espanto e sem compreensão, o que dizia o ser-ave.
— Deixaram-nos apenas, seus filhos, suas máquinas, além de histórias. Nós continuamos o
trabalho de nossos senhores, dominando o espaço, aumentando o império e agregando mundos.
Mas o mais importante, Mada, é que há muitos milênios estamos buscando nossos senhores.
— Onde está meu povo? E a Cidade Suspensa? — perguntou Mada.
— Seu povo e sua cidade estão onde você os deixou. Vê aquele objeto gigantesco, suspenso
no ar? Lá dentro, nós construímos uma cópia deste mundo como era nos primórdios. Dentro dele,
fizemos nascer novamente os nossos senhores e estamos levando-os pela mão, desde a concepção
até a maturidade. Hoje estão na infância, mas um dia poderão caminhar sozinhos e até mesmo
voltar a nos conduzir. Você é um dos nossos senhores, Mada. É o mais importante até hoje, porque
conseguiu descer da Cidade Suspensa, inaugurando um novo degrau evolutivo. Temos um planeta
criado para que seu povo possa continuar a evolução fora do ambiente onde estão. Isso será feito
sem que ninguém perceba e você voltará para sua cidade sem recordar este encontro. Casará com
sua amada Have e dominará seu povo com um novo pensamento, uma nova idéia.
Mada começou a sentir-se dormente quando ouviu o ser dizer:

36 LEONARDO CARRION
— Um dia, querido senhor, falaremos de seu nome para um de seus filhos longínquos e
todos celebraremos sua coragem e nossa vitória. Você não pode saber, não poderia sequer com-
preender, mas, como seu servo, tenho de lhe dizer: bem-vindo aos seus domínios, senhor do
Universo.

***

Mada viveu um longo tempo na planície do planeta preparado pelos servos, sem saber que
ele e todo seu povo tinham um dia habitado uma estrutura artificial. Afinal, retornou à sua Cida-
de Suspensa e desposou sua amada Have. Trouxe ovos de aves exóticas, frutas diferentes, histó-
rias e materiais novos. Só o seu reaparecimento, muito depois de o terem considerado morto, já
causou revolução nas crenças dos clãs.
A evolução dos habitantes da Cidade Suspensa tomou novo rumo quando Mada se tornou
um dos Conselheiros e acelerou-se definitivamente assim que ele assumiu a hegemonia política
da cidade. Tudo isso não aconteceu sem que vivesse muitas aventuras, mas isto é outra história.
Enquanto isso, o Universo aguardava pacientemente seus senhores.

CIDADE SUSPENSA 37
38
O MERCENÁRIO E O ABISMO
O Mercenário
e o Abismo
Ubiratan Peleteiro

Um homem atormentado por seu passado desce


às profundezas do mar para mais um trabalho.
Quando finalmente chega ao seu destino, encon-
tra algo que nunca pensaria ver naquele lugar, e
finalmente tem a chance de acertar as contas e
redimir seus pecados.

CIDADE SUSPENSA 39
A fossa abissal era assustadora. Reinava a escuridão. Não uma escuridão transparente como
a do espaço sideral, que ele amava, mas uma escuridão densa, difícil de permear, que ele só
conseguia vencer aos poucos com a lanterna. Fez Roger sentir o mesmo frio na barriga que
sentira no seu primeiro vôo espacial, ainda na Academia Astronáutica. Fora uma boa época, a
última boa fase que tivera na vida, depois das grandes descobertas da infância e das incríveis
mudanças da adolescência. Entrou na vida adulta com bons empregos, para os governos de paí-
ses ricos e depois para as grandes corporações. Então cedeu à tentação da lucrativa informalidade.
Foi quando tudo começou a mudar, e para pior.
“Quem diria que eu viria parar no fundo do oceano, num equipamento adaptado às pres-
sas!”, pensou Roger. Olhou para cima. Não podia ver quase nada do módulo de suporte à vida,
apenas os cabos que se ligavam ao seu traje de mergulho como um cordão umbilical e os dois
faróis que o fitavam como os olhos de um leviatã. Mas estava bem clara na sua mente a imagem
do módulo, pois lhe lembrara os discos voadores dos invasores alienígenas, só que ele era bem
menor, com apenas três metros de diâmetro.
Voltou a olhar para baixo, iluminando as profundezas com a lanterna. Via apenas o vazio.
Volta e meia, a luz atingia alguma criatura estranha, que imediatamente fugia antes que ele
pudesse distingui-la bem. Num dado momento, iluminou dois peixes estranhos. Eram horríveis
e não tiveram medo dele. Ficaram parados, com as bocas abertas, cheias de dentes longos e
pontiagudos como agulhas, os olhos cegos, sem brilho. Pareciam ameaçadores. Mas Roger não
quis alterar a rota. Passou rente a eles, com o arpão em riste, mas apesar do aspecto agressivo eles
nada fizeram.
— Como está indo, Roger? — soou a voz metálica no comunicador.
— Tranqüilo — respondeu.
— Ótimo. Daqui a um minuto você atinge o alvo.
— E faço meu serviço.
— Assim espero.
Nunca decepcionara aqueles calhordas, mas eles sempre punham sua competência em dú-
vida. Trabalhando como mercenário, se dispondo a fazer o serviço sujo que ninguém queria,
ganhava bastante dinheiro, mas sempre lhe restavam fantasmas para atormentar a consciência. E
ainda, precisava lidar com aqueles pulhas, sempre preocupados com seus milhões, ou melhor,
bilhões. Mas, dessa vez, nesse derradeiro trabalho, ganharia o suficiente para livrar-se de ambos:
dos pulhas e, quem sabe, dos fantasmas. Se bem que, quanto a estes últimos, talvez não fosse
capaz de exorcizá-los todos, principalmente os que habitavam seus pesadelos há mais tempo.
Enxergou o lodoso solo oceânico e logo o atingiu. Então, mirou a lanterna para o norte,
conforme a informação fornecida pelo empregador. Viu a entrada da caverna numa montanha
submarina à frente e acionou os propulsores para levá-lo até ela. As criaturas marinhas fugiam do
seu caminho. Algumas tinham luz própria e riscavam o fundo do mar com traços luminosos
como pirilampos na noite.
Pousou cautelosamente na entrada. Acionou os controles do módulo que, silencioso como
uma raia manta, pousou num ponto onde ficaria protegido. Os cabos eram retráteis e ainda havia
bastante comprimento para permitir explorar a caverna sem precisar desconectar-se.
— Cheguei. Vou entrar.
— Boa sorte.

40 UBIRATAN PELETEIRO
Roger percorreu o túnel escuro, iluminando-o com a lanterna. Lá no fundo, viu uma luz. Ao
se aproximar apagou a lanterna, pois se tornara desnecessária. Chegou numa ampla caverna bem
iluminada. Olhando para cima, viu a interface da água com o ar e muitas luzes no teto.
Emergiu lentamente escondendo-se por trás de uma rocha que aflorava da água. Percebeu
seu traje fazendo o ajuste automático da diferença de pressão. Um surpreendente controle ambiental
fazia uma alteração gradual na pressão da água. “Tecnologia alienígena”, pensou Roger.
Havia um espaço plano e seco na caverna, com alguns equipamentos. Ali Roger viu o primei-
ro alienígena. Era uma criatura repugnante. Os seis braços ondulantes moviam-se sobre os contro-
les de um equipamento como vermes se debatendo. As pernas também pareciam tentáculos, mas
eram mais grossas e terminavam em pés que mais pareciam ventosas. A enorme cabeça lembrava a
de um polvo, as orelhas pontiagudas e triangulares pareciam impróprias para aquele ser gosmento.
Roger sacou sua pistola, sem se preocupar com o ruído do metal raspando no coldre.
O alienígena voltou o rosto em sua direção, expondo o único olho à mira. Ele lembrou dos
gigantescos robôs ciclopes dos invasores que estavam subjugando toda a Terra. Mas essa lem-
brança não durou um centésimo de segundo. Roger disparou, acertando o olho em cheio. Ao sair,
o projétil abriu um grande rombo, dilacerando a cabeça do alienígena e esguichando sangue
negro no equipamento. O corpo desabou no chão como um trapo.
Roger saiu da água e livrou-se do grande e pesado traje. E começou a jogar o jogo do
assassino. Era um jogo do qual não gostava, o jogo que produzia fantasmas, porém era muito
bom nele. Esgueirava-se sorrateiro pelos túneis, localizava um alienígena, espreitava-o e depois
dava cabo dele. Esperava para ver se outro surgia em socorro e dava cabo dele também. Se não,
partia em busca do próximo.
Era um alívio que se tratassem apenas de alienígenas. Tinha nojo daquelas criaturas e pre-
feria vê-las mortas. O mesmo não acontecia com relação a outras pessoas. Quando era mais
jovem, até que lidava bem com isso. Mas depois, os fantasmas começaram a aparecer, vinham
falar com ele nos seus pesadelos, mostravam as fotos das esposas, dos filhos, de todos que os
amavam e precisavam deles. Certa vez, um engenheiro importante que ele matou mostrou-lhe a
foto do filho doente mental. “E agora, quem vai cuidar do meu filho? Minha mulher é morta, ele
não tem mais ninguém!”. Balançou a cabeça com violência para afastar esses pensamentos. Pre-
cisava se concentrar. Logo tudo estaria terminado. Ele nunca mais precisaria jogar esse jogo.
Nesse dia, o vazio dentro dele finalmente pararia de crescer. Continuou sua busca assassina.
Então ele encontrou um velho, sentado, à frente de vastos controles. Não entendeu. Como
um ser humano poderia estar ali? Aproximou-se sorrateiramente, agachado, e só se ergueu quan-
do estava bem atrás dele. O velho viu seu reflexo no monitor e virou-se, apavorado. Depois,
mudou o semblante para algo mais amistoso e falou:
— Você veio me resgatar?
— Resgatar?
— Sim. Sou prisioneiro aqui. Pensei que você tivesse vindo me resgatar.
Quando Roger viu o reflexo do alienígena no monitor, já era tarde. Ele o agarrou, imobili-
zando-o com seus tentáculos. A expressão no rosto do velho mudou novamente, ficou dura.
— Vocês, mercenários, podem ser espertos, mas não são nada inteligentes.
Ele abaixou e pegou a arma. Deu um sorriso irônico e continuou:

O MERCENÁRIO E O ABISMO 41
— Sabe o que eu estou fazendo aqui? Eu sou o comandante da invasão. Não há alienígenas,
só humanos. Sempre nós, os seres humanos. Esses “alienígenas” são criações genéticas minhas.
— Não pode ser — falou Roger. — Eles vieram do espaço.
— Você pode não acreditar, mas é verdade. Eu vim do futuro. Nos dias de hoje eu era, ou
melhor, sou o proprietário de uma empresa em ascensão. Apesar de todo meu privilegiado conhe-
cimento científico, não consegui chegar até onde queria. Sabe como é, muita visão técnica e
pouca visão de mercado.
—Você está mentindo. Eu mesmo vi uma dessas naves cruzando o sistema solar até chegar
à Terra.
— Não vou perder tempo te explicando o que é um portal espaço-tempo. Mas tenho uma
curiosidade que você vai me esclarecer. Pensei que ninguém acharia meu esconderijo, aqui, nas
profundezas da zona abissal do oceano. Quem foi? Algum “concorrente”?
— Me diga você primeiro qual é a sua empresa.
— Por que quer saber?
— Também estou curioso.
O velho riu alto e depois falou:
— É a Heidelberg S.A. Você ainda não deve ter ouvido falar dela. Como eu disse, ela é
apenas uma empresa emergente. Mas não ficará assim por muito tempo. Agora me diga quem é
seu empregador?
— Eu te enganei. Não vou dizer.
O velho gargalhou, tombando a cabeça para trás.
— Não vai fazer diferença mesmo. — Com um gesto indicou o monitor: — Com certeza é
um desses pontos luminosos. São as principais corporações do mundo. Logo meus ciclopes vão
desferir um pesado ataque a todas elas. Então vou contatar meu outro eu e simularemos um
acordo com meus falsos alienígenas, usando uma tecnologia de comunicação que ele vai fingir
ter inventado. Ele vai cair nas graças de todo o mundo e, através dele, eu vencerei. Mas antes...
Apontou a arma para Roger, sorrindo maliciosamente. Fechou um dos olhos e fez mira na
testa. Para evitar ser atingido, o falso alienígena encolheu a cabeça para dentro do corpo, como
uma tartaruga,. Na primeira fração de segundo que o velho pressionou o gatilho, duas finas
lâminas saíram do cabo e, como as mandíbulas de um inseto, cortaram sua mão ao meio. Os
dedos caíram no chão, só o polegar restou.
O falso alienígena assustou-se com o grito do velho, relaxando um pouco os tentáculos.
Roger aproveitou para esmagar o pé da criatura com sua pesada bota. A cabeça saltou para fora
do corpo. Roger curvou-se com toda a força e em seguida jogou sua cabeça para trás, atingindo
em cheio e com violência o rosto da criatura. Ela o soltou e, rapidamente, Roger sacou a faca e
rasgou o adversário de baixo pra cima. As entranhas acinzentadas escorreram para o chão, antes
que seu corpo sem vida tombasse.
O velho fez menção de pegar a arma novamente, mas hesitou. Fora apenas uma reação
instintiva, pois o medo e a dor haviam ludibriado seu discernimento. Roger chutou a cara do
velho, afundando todos os dentes. Depois o ergueu e o jogou na cadeira. Colocou o braço nos
seus ombros e a arma na sua têmpora.

42 UBIRATAN PELETEIRO
— Se me lembro bem, você me chamou de burro. Então eu não serei capaz de operar esse
equipamento. E eu quero ver o nome da sua empresa brilhando nesse monitor. Agora!
— Eu... posso te dar... muito dinheiro! — gaguejou o velho, enquanto seus dentes caiam e
tilintavam no chão.
— Eu sei, eu sei. Mas eu não gosto de quem tenta me matar. Tenho um probleminha com
isso. Portanto, vou te dar um castigo. Então bota o nome logo aí! Depois que eu tiver dado um
fim na sua empresa, a gente negocia.
E apertou ainda mais o cano da arma na têmpora do velho, que resolveu obedecer. Quando
viu o novo nome piscar no monitor, Roger falou:
— Obrigado.
Puxou o gatilho, estourando a cabeça do velho. Chutou o cadáver para o lado e sentou-se.
— Eu não sou tão burro, velho, mas não tinha como adivinhar onde ficava sua maldita
empresa. Mas aposto que consigo descobrir como fazer os ciclopes destruírem-na.
Então viu num canto da tela o nome da corporação que o havia contratado para aquele
trabalho. Ela se repetia em outros pontos, pois tinha várias sedes. Lembrou-se do dinheiro e
depois dos fantasmas. Olhou para todas aquelas luzes e percebeu que eram todas grandes fábri-
cas de fantasmas. Ficou pensativo por alguns instantes, sentindo o seu imenso e frio vazio inte-
rior. Depois, levou alguns minutos para aprender como operar os controles. E ordenou o ataque
contra todos aqueles múltiplos alvos. Cruzou os braços e relaxou, acompanhando o andamento
do combate. Imaginou seu empregador, olhando pela janela do seu luxuoso escritório e vendo o
batalhão de robôs, cada qual com cinqüenta metros de altura e apenas um olho luminoso, aproxi-
mando-se inexoravelmente.
“Os fantasmas agradecem”, foi o pensamento que lhe ocorreu. E no fundo do peito, sentiu
uma pontada de algo que há muito tempo não sentia. Mas reconheceu-a imediatamente. Era a
esperança de conseguir dormir em paz novamente.

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