C O N H E C I M E N T O E INTERESSE
com um novo posfácio
Introdução e Tradução
JOSÉ N. H E C K
Revisão dc Texto
GUSTAVO BAYJER
A
Escola ds Ad.nlnlstroçS©
% 8I8LIUTÉCA r
Z A H A R EDITORES
RIO DE JANEIRO
T í t u l o original: Erkenntnis und Interesse
Capa: L u i z Stein
JJÁ c i e -ò 0. S A
i
l 2 f
1982
Impresso no Brasil
ÍNDICE
Introdução
Prefácio
4. Comte e Mach:
a i n t e n ç ã o do antigo positivismo
5. A lógica da pesquisa de C h . S. Pierce:
a aporia de um renovado realismo l ó g i c o - s e m â n t i c o
dos universais
6. Auto-reflexão das ciências da natureza:
a crítica pragmatista do sentido
7. Teoria da compreensão expressiva de Dilthey:
eu-identidade e c o m u n i c a ç ã o semântica
8. Auto-reflexão das ciências do espírito:
a crítica histórica do sentido
8 ÍNDICE
9. R a z ã o e interesse:
retrospecção — Kant e Fichte
10. Auto-reflexão como ciência:
a crítica psicanalítica do sentido em Freud
11. O auto-eqiiívoco cientificista da metapsicologia.
A lógica da interpretação genéxico-universal
12. Psicanálise e teoria societária.
A r e d u ç ã o dos interesses do conhecimento em INTRODUÇÃO
Nietzsche
Posfácio (1973)
B i b l i o g r a f i a
O nome Habermas dispensa, por certo, a p r e s e n t a ç ã o . Sua pro-
ximidade com os conhecidos representantes da E s c o l a de Frank¬
furt bem como a ampla r e p e r c u s s ã o de seus livros em inglês e
francês e a t r a d u ç ã o de alguns de seus textos tornaram seu pen¬
1
samento acessível no B r a s i l . Se, assim mesmo, me decidi a
uma breve i n t r o d u ç ã o foi para chamar a a t e n ç ã o do leitor para
certas peculiaridades de Conhecimento e interesse, O p r ó p r i o
autor achou oportuno acrescentar à e d i ç ã o de 1973 um posfá-
cio, relativamente extenso, onde comenta aspectos controverti¬
dos de sua obra.
Na esperança de, talvez, facilitar a leitura do livro e poder
contribuir para sua c o m p r e e n s ã o , antecipo t r ê s paradoxos que,
em meu entender, traspassam a a r g u m e n t a ç ã o do texto.
O nexo teoria-práxis
A t e n s ã o conceituai deste b i n ô m i o , genuinamente marxista,
2
Habermas a herdou da Escola de Frankfurt. Esta promovera,
respeitadas as diferenças entre Horkheimer, A d o r n o e Marcuse,
1
Cf. a excelente i n t r o d u ç ã o de Barbara Freitag e S é r g i o P. Rouanet. In
Habermas, S ã o Paulo, Editora Á t i c a , 1980, p, 9-67.
2
S L A T E R , Ph.: Origem e significado' da Escola de Frankfurt, Rio de
Janeiro, Zahar Editores, 1978.
210 CONHECIMENTO E INTERESSE
há d ú v i d a de que ele precisamente n ã o concebeu sua teoria como ções p r ó p r i a s ) . As ciências experimentais, em sentido estrito, es¬
uma auto-reflexão universal em termos sistemáticos, mas como tão submetidas às c o n d i ç õ e s transcendentais da atividade instru¬
uma ciência experimental em termos estritos. Freud não formula mental, enquanto as ciências h e r m e n ê u t i c a s operam ao nível de
conscientemente aquilo que separa a psicanálise das ciências que uma atividade própria à c o m u n i c a ç ã o .
procedem de acordo com m é t o d o s e m p í r i c o - a n a l í t i c o s , nem da¬ Em ambos os casos a constelação da linguagem, da atividade
quelas que operam exclusivamente segundo critérios hermenêuti¬ e da experiência é basicamente diferente. No c í r c u l o funcional
cos; ele simplesmente atribui a psicanálise aos domínios da técnica do agir instrumental a realidade consitui-se como q u i n t a - e s s ê n c i a
analítica. Esta é a r a z ã o por que a teoria de Freud permanece um daquilo que, sob o ponto de vista de uma p o s s í v e l disponibilidade
bocado que a lógica positivista das ciências, desde então, em vão técnica, pode ser experimentado: à realidade objetivada em con¬
procura digerir e que o empreendimento behaviorista da pesquisa dições transcendentais corresponde uma e x p e r i ê n c i a restrita. A
inutilmente tenta integrar; de fato, p o r é m , a auto-reflexão encober¬ linguagem dos enunciados e m p í r i c o - a n a l í t i c o s acerca da realidade
ta, a qual constitui a pedra de e s c â n d a l o da psicanálise, não se toma corpo sob as mesmas c o n d i ç õ e s . P r o p o s i ç õ e s t e ó r i c a s fazem
torna r e c o n h e c í v e l como tal. Nietzsche é um dos poucos contem¬ parte de uma linguagem formalizada ou, no m í n i m o , passível de
p o r â n e o s que unem a sensibilidade para a amplitude das investi¬ f o r m a l i z a ç ã o . De acordo com sua forma l ó g i c a trata-se de cál¬
gações m e t o d o l ó g i c a s com a capacidade de se movimentar, sem culos que, por meio de uma m a n i p u l a ç ã o ordenada dos signos,
alarde, na d i m e n s ã o da a u t o - r e f l e x ã o . Mas exatamente ele, um n ó s mesmos produzimos e cada qual pode reconstruir a qualquer
d i a l é t i c o do antiiluminismo, faz tudo para denegar, na forma da momento. Sob as condições de um agir instrumental a linguagem
auto-reflexão, a força da reflexão, abandonando ao psicologismo pura constitui-se como q u i n t a - e s s ê n c i a de tais c o n e x õ e s simbóli¬
os interesses orientadores do conhecimento, dos quais, na verda¬ cas, as quais podem ser engendradas a t r a v é s de um ato o p e r a t ó r i o
de, ele estava plenamente convencido. de acordo com leis estabelecidas. A "linguagem pura" deve-se a
uma abstração operada a partir do material desordenado das l i n ¬
guagens ordinárias, tanto quanto a "natureza" objetivada deve-se
9. Ramo e interesse: retrospecção — Kant e Fichte a uma abstração feita a partir do material c a ó t i c o da e x p e r i ê n c i a
cotidiana. U m a e outra, a linguagem restrita, n ã o menos do que
a experiência delimitada, são definidas pelo fato de resultarem de
Picrce incentivou a auto-reflexão das ciências naturais, Dilthey a
o p e r a ç õ e s , sejam essas efetuadas com signos ou com corpos mó¬
das ciências do e s p í r i t o ; ambos até um ponto em que os interesses
veis. A s s i m como o agir instrumental em si, t a m b é m o emprego
orientadores do conhecimento se tornaram p a l p á v e i s . A pesquisa
lingüístico que o integra é m o n o l ó g i c o . E l e assegura às proposi¬
empírico-analítica é a continuação sistemática de um processo
ções teóricas uma coerência s i s t e m á t i c a entre si, e isso de acordo
cumulativo de aprendizagem, o qual se exerce, ao nível pré-cien-
com regras dedutivas cogentes. A função transcendental da ati¬
tífico, no círculo funcional do agir instrumental. A investigação
vidade instrumental é corroborada por processos relativos à arti¬
h e r m e n ê u t i c a dá uma forma m e t ó d i c a a um processo de com¬
culação de teoria e experiência: a observação sistemática possui
p r e e n s ã o entre i n d i v í d u o s (e da c o m p r e e n s ã o de si) que, na fase
a forma de uma d e m o n s t r a ç ã o experimental (ou quase experi¬
pré-científica, está integrada em um complexo de tradições, pró¬
mental), permitindo registrar sucessos de o p e r a ç õ e s m e n s u r á v e i s .
prio a i n t e r a ç õ e s medializadas simbolicamente. No primeiro caso Estas tornam possíveis a p r e d i c a ç ã o irreversivelmente u n í v o c a de
trata-se da p r o d u ç ã o de um saber tecnicamente explorável, no acontecimentos, constados por v i a operativa, a signos interligados
segundo, da e l u c i d a ç ã o de um saber praticamente eficaz. A anᬠde modo sistemático. Caso ao quadro da pesquisa e m p í r i c o - a n a -
lise empírica descerra o pano da realidade sob o ponto de vista lítica correspondesse um sujeito transcendental, a medida seria
da disponibilidade técnica possível sobre processos objetivados a realização sintética que o caracterizaria de forma mais g e n u í n a .
da natureza, enquanto a h e r m e n ê u t i c a assegura a intersubjetivi- É por isso que apenas uma teoria do medir pode esclareeer as
dade de uma c o m p r e e n s ã o entre i n d i v í d u o s , capaz de orientar a condições de objetividade de um conhecimento possível no sen¬
a ç ã o (horizontalmente, em vista da i n t e r p r e t a ç ã o de culturas es¬ tido das ciências nomológicas.
tranhas, e verticalmente, tendo em vista a a p r o p r i a ç ã o de tradi-
214 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 215
com determinadas categorias inerentes a determinadas experiên¬ p í r i c o - a n a l í t i c a s exploram a realidade na medida em que esta se
cias no interior de um quadro transcendental, seja este da ordem manifesta no raio da atividade instrumental; enunciados nomo-
do agir instrumental ou próprio a uma forma vital, constituída lógicos acerca deste d o m í n i o do objeto e s t ã o assim presos, de
pela linguagem cotidiana. T a l sistema de referências possui um acordo com seu sentido imanente, a um determinado contexto
peso valorativo transcendental, mas ele determina a arquitetura de aplicação — eles apreendem a realidade em vista de uma
dos processos i n v e s t i g a t ó r i o s e n ã o a da c o n s c i ê n c i a transcenden¬ disponibilidade técnica que, em condições específicas, é sempre
tal em si. A lógica das ciências da natureza e dó espírito não se e em toda parte possível. As c i ê n c i a s h e r m e n ê u t i c a s n ã o explo¬
ocupa, como a lógica transcendental, com a organização da razão ram a realidade sob um outro ponto de vista transcendental; elas
pura e t e ó r i c a , mas com as regras m e t o d o l ó g i c a s , tendo em vista têm por objetivo, muito mais, uma e l a b o r a ç ã o transcendental de
a o r g a n i z a ç ã o dos processos de pesquisa. Tais regras n ã o con¬ diversas formas fáticas de vida, no interior das quais a realidade
tinuam tendo o status de puras regras transcendentais; elas pos¬ é interpretada de maneira diferente, em função de g r a m á t i c a s
suem um peso valorativo transcendental, mas irrompem em co¬ que formulam o mundo e da atividade que o transforma; é por
n e x õ e s vitais p r á t i c a s : a partir das estruturas de uma espécie que isso que, rastreando seu sentido imanente, as p r o p o s i ç õ e s da her¬
reproduz sua vida a t r a v é s de processos de aprendizagem, pró¬ m e n ê u t i c a visam um contexto de a p l i c a ç ã o correspondente —
prios ao trabalho social organizado, da mesma forma do que por elas apreendem interpretações da realidade em vista da intersub-
meio de processos de compreensão, próprios a interações mediati- jetividade de uma compreensão mútua, suscetível de orientar a
zadas pela linguagem cotidiana. Na i n t e r d e p e n d ê n c i a de tais re¬ ação para uma situação hermenêutica inicial. Falamos, portanto,
l a ç õ e s vitais subjacentes mede-se, por isso, o sentido da validade de um interesse técnico ou prático na medida em que, através
de p r o p o s i ç õ e s que podem ser obtidas no seio dos sistemas de dos recursos da lógica da pesquisa, as c o n e x õ e s vitais da atividade
r e f e r ê n c i a quase transcendentais dos processos i n v e s t i g a t ó r i o s nas instrumental e das i n t e r a ç õ e s mediatizadas pelos s í m b o l o s p r é -
c i ê n c i a s da natureza e do espírito: o saber n o m o l ó g i c o é tecnica¬ molduram o sentido da validade de enunciados possíveis de tal
mente utilizável da mesma forma como o saber h e r m e n ê u t i c o é forma que estes, enquanto representam conhecimentos, n ã o pos¬
praticamente eficaz. suem outra função s e n ã o aquela que lhes c o n v é m cm tais con¬
Remeter o quadro das ciências n o m o l ó g i c a s e h e r m e n ê u t i c a s textos vitais: serem a p l i c á v e i s tecnicamente ou serem pratica¬
a um conjunto vital, bem como à correspondente d e d u ç ã o do mente eficazes.
sentido da validade relativa a enunciados provindos de interesses O conceito do "interesse" n ã o deve sugerir uma r e d u ç ã o
cognitivos, torna-se n e c e s s á r i o no momento em que um sujeito naturalista de d e t e r m i n a ç õ e s transcendentais a dados e m p í r i c o s
transcendental e s u b s t i t u í d o por uma espécie que se reproduz em mas, pelo c o n t r á r i o , evitar que uma tal r e d u ç ã o venha a ser ine¬
c o n d i ç õ e s culturais, isto é, que não se constitui, ela própria, senão vitável. Interesses capazes dc orientar o saber (o que n ã o posso
em um processo de f o r m a ç ã o a constituir a espécie. Os proces¬ ainda demonstrar aqui, mas apenas asseverar) mediatizam a his¬
sos de pesquisa — e esta espécie nos interessa, antes de tudo, tória natural com base na lógica de seu processo formativo; mas
como sujeito de tais processos — são partes do processo forma-, estes interesses não podem ser invocados para reduzir a lógica a
tivo global que perfaz a história desta espécie. As condições de alguma base natural. Chamo de interesses as o r i e n t a ç õ e s b á s i c a s
objetividade de uma experiência possível, as quais estão fixadas que aderem a certas c o n d i ç õ e s fundamentais da r e p r o d u ç ã o e da
pela moldura transcendental do processo i n v e s t i g a t ó r i o das ciên¬ a u t o c o n s t i t u i ç ã o p o s s í v e i s da espécie humana: trabalho e inte¬
cias da natureza e do espírito, n ã o apenas n ã o mais explicitam ração. E por isso que cada uma destas o r i e n t a ç õ e s fundamentais
o sentido transcendental de um conhecimento finito, restrito às n ã o visam à satisfação de necessidades e m p í r i c a s e imediatas,
formas f e n o m ê n i c a s enquanto tais; elas p r é - m o l d u r a m , muito mas à solução de problemas sistêmicos propriamente ditos. N ã o
mais, um determinado sentido dos modos m e t ó d i c o s do conhecer, há dúvida de que aqui não é possível falar em soluções de pro¬
como t a l ; e isso, a cada vez, de acordo com um critério p r ó p r i o blemas senão em termos aproximativos. Pois, interesses capazes
à c o n e x ã o vital objetiva, a qual aflora de dentro para fora da de orientar o conhecimento n ã o devem ser definidos em base de
estrutura de ambas as direções i n v e s t i g a t ó r i a s . As c i ê n c i a s em- c o n s t e l a ç õ e s p r o b l e m á t i c a s ; essas só podem irromper como pro-
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CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 219
8
mesmo pode ser incentivado". A r e d u ç ã o do interesse a um prin» pratica, em vista da qual a r a z ã o teórica é reivindicada Visto
cípio ev.'dencia, sem dúvida, que o status do conceito, alheio ao desta maneira, o conhecimento conduz, como sabemos à imor¬
sistema, tem sido abandonado, e que se abstraiu o momento da talidade da alma e à e x i s t ê n c i a de Deus como postulados da ra¬
íaticidade inerente à razão. Também não fica claro o que a zão pratica pura. K a n t e s f o r ç a - s e em justificar este uso interes¬
r a z ã o teórica adquire ao lhe adicionarmos um interesse racional sara da r a z ã o especulativa, sem distender, ao mesmo tempo o
puro, caso este consista "no conhecimento do objeto elevado emprego experimental da r a z ã o p r á t i c a . O conhecimento racio¬
até os princípios a priori"? sem que aqui, como ocorre com o nal em termos p r á t i c o s m a n t é m seu status p r ó p r i o , subalterno
interesse da r a z ã o p r á t i c a , possa ser identificado uma e x p e r i ê n c i a frente aos conhecimentos que a r a z ã o t e ó r i c a , g r a ç a s à sua pe¬
de bem-estar. De fato, não é fácil compreender como uma sa¬ culiar c o m p e t ê n c i a e sem ser impulsionada por um interesse prá¬
tisfação teórica pura possa ser pensada em analogia com a ra¬ tico puro, pode representar:
z ã o prática pura: pois, todo interesse, seja puro ou e m p í r i c o ,
determina-se a si p r ó p r i o em r e l a ç ã o com a faculdade por exce¬ "Se aquilo qi. e chamamos r a z ã o pura pode ser p r á t i c o para si mesmo e
lência do desejar e se reporta, assim, à práxis possível; também realmente o e, como a consciência da lei moral o atesta, a verdade
um interesse especulativo da r a z ã o estaria, como interesse, de e que ela permanece sempre a única e mesma razão que, seja sob o
todo justificado pelo fato de a r a z ã o teórica ser reivindicada pela ponto de vista t e ó r i c o , seja sob o visor p r á t i c o , julga segundo p r i n c í p i o s
prática sem, com isso, ficar alienada de sua intenção genuína: a priori; e assim n ã o há d ú v i d a de que ela, quando sua capacidade de
formular peremptoriamente certas asserções é insuficiente c nem por
•conhecer pelo prazer de se conhecer. Para que haja um interesse
isso essas a contradigam, deva precisamente admitir tais enunciados
cognitivo é n e c e s s á r i o não apenas promover o uso especulativo
desde que façam parte indissolúvel do interesse orálico da razão pura-
da r a z ã o enquanto tal, mas t a m b é m conectar a r a z ã o especula¬ verdade é que a r a z ã o deve aceitar tais proposições como uma proposta
tiva pura com a razão prática pura, e isso a partir das exigências estranha, nao medraria em seu solo, mas (por certo) suficientemente
•desta razão prática: comprovada e deve, com todo poder que lhe está à d i s p o s i ç ã o como razão
especulativa, procurar compará-las c entrelaçá-las; ao precisar admitir
isto, a r a z ã o c ao mesmo tempo obrigada a aceitar (o fato) d. que aqui
"Mas, de maneira alguma pode ser exigido da r a z ã o p r á t i c a subordinar-se
nao sc trata, prccipuamcnlc, de suas próprias pcrecpeõo* mas <)p uma
á razão especulativa, invertendo assim a ordem, já que todo interesse é,
e x t e n s ã o cie seu (próprio) emprego para um outro fim, j s k , é, para uma
depois de tudo, prático, c mesmo aquele da razão especulativa 6 (ape¬
1 0
imalidacle pratica, c de que isto n ã o contradiz., de modo algum seu cui¬
nas) condicional e t ã o - s o m e n t e perfeito no emprego p r á t i c o (da r a z ã o ) " .
dado cm restringir a temeridade especulativa (que a caracteriza)".12
sas em seu derredor está presa ao dogmatismo: "O p r i n c í p i o dos ao mesmo tempo seu E u ; eles n ã o s ã o capazes de dispensar, por amor
a si mesmos, a fé na autonomia das coisas: pois, eles t ã o - s o m e n t e subsis-
d o g m á t i c o s é a c r e n ç a nas coisas em função delas mesmas: por¬
tem com estas coisas. T u d o o que s ã o , eles na realidade o conseguiram
tanto, uma fé indireta em seu p r ó p r i o E u , disperso e, como tal, ser a t r a v é s do mundo exterior. Quem, dc fato, não passa de um pro-
14
apenas sustentado pelos objetos". Para poder desvencilhar-se duto das coisas, este jamais pode conccber-sc de forma diferente; e ele
dos limites de tal dogmatismo é preciso apropriar-se antes do in¬ terá razão enquanto falar apenas de si e daqueles que lhe são seme¬
teresse próprio à r a z ã o : "A razão última da divergência entre o lhantes . .. Mas quem adquire consciência de sua autonomia e de sua
idealista c o d o g m á t i c o é, assim, a d i v e r g ê n c i a dc seu interes- independência frente a tudo o que lhe é exterior — e isso s ó se fica
15
se". Toda lógica p r e s s u p õ e a necessidade da e m a n c i p a ç ã o e um pelo fato dc fazer-se a si mesmo, por força própria, independente de
tudo — não necessita dos coisas em termos dc apoio para seu próprio
ato o r i g m á r i o de liberdade para que o homem se eleve até o pon¬
Eu; as coisas lhe são inaproveitáveis, eis que elas eliminam esta sua
to de vista idealista da maioridade e m a n c i p a t ó r i a , a partir do qual autonomia e a transformam em mera a p a r ê n c i a . O Eu que lhe é p r ó p r i o
é possível sondar de forma crítica o dogmatismo da consciência e o qual lhe interessa suprime toda e qualquer crença nas coisas; ele
natural e, em c o n s e q ü ê n c i a , os mecanismos ocultos da autocons- acredita em sua autonomia por instinto, ele se apodera dela por afeição.
ciência do Eu e do mundo: "O supremo interesse, a r a z ã o de A fé em si mesmo lhe é imediata". 19
mática numa mesma experiência. O dogmatismo, esse que dis¬ na bas camente o processo cognitivo das conexões vitais, aquilo
solve a r a z ã o tanto em termos analíticos quanto p r á t i c o s , é uma que chamamos de interesse deve ser apreendido como um mo¬
falsa c o n s c i ê n c i a : erro e, por isso mesmo, existência aprisionada. mento antagônico da teoria, algo que se acrescenta do exterior e
Somente o E u , o qual na intuição intelectual se flagra como um obscurece, assim, a objetividade do conhecimento. A inter-rela-;
ção toda particular de conhecimento e interesse, com a qual nos
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 231
2 3 0 CONHECIMENTO E INTERESSE
demos conceber a vida de um sujeito que se constitui em termos
deparamos em nosso percurso a t r a v é s da metodologia das ciên¬ de espécie como o movimento absoluto da r e f l e x ã o , eis que as
cias, corre constantemente o risco' de ser mal-entendida por uma c o n d i ç õ e s nas quais a espécie humana se constitui n ã o são ape¬
versão psicologizante no momento em que for considerada so¬ nas aquelas que a reflexão p õ e em cena. O processo formativo
bre o pano de fundo de uma teoria do conhecimento puro, con¬ n ã o é- incondicionado como p é o instaurar-se do Eu fichteniano
cebida como c ó p i a ; e isso independentemente das v a r i a ç õ e s que ou como o é a d i n â m i c a absoluta do e s p í r i t o . E l e depende das
esta teoria possa apresentar. Somos tentados a compreender os eventuais c o n d i ç õ e s da natureza subjetiva, bem como da natu¬
dois interesses, capazes de orientar o conhecimento e anal sados reza objetiva; por um lado, portanto, depende de c o n d i ç õ e s duma
até aqui, como realidades superpostas a um aparelho cognitivo s o c i e t a r i z a ç ã o individualizadora de particulares interagindo e é,
já c o n s t i t u í d o , como se tratasse de interceptar um processo cog¬ por outro, devedora às c o n d i ç õ e s da "troca m e t a b ó l i c a " entre
nitivo, alterando-o antecipadamente com base em um direito que os agentes comunicativos e um meio que tecnicamente precisa
fosse p r ó p r i o a esses dois interesses. O emprego da r a z ã o espe¬ fazer-se d i s p o n í v e l . Na medida em que o interesse da r a z ã o pe-'
culativa em vista de fins práticos guarda, ainda em Kant, resquí¬ la e m a n c i p a ç ã o , o qual é investido no processo formativo da
espécie e transpassa o movimento da r e f l e x ã o , volta-se para a
cios deste tipo de interesse, muito embora nele o interesse que
efetivação daquelas c o n d i ç õ e s peculiares à i n t e r a ç ã o mediatizada
pretende ser ativado seja já entendido como um interesse puro
por s í m b o l o s e p r ó p r i a s ao agir instrumental, ele assume a for¬
de uma r a z ã o p r á t i c a , n ã o importa o que sc deva entender com
ma restrita do interesse inerente ao conhecimento p r á t i c o e téc¬
o designativo r a z ã o p r á t i c a . £ apenas no conceito fichtemano
nico. De certa forma torna-se, inclusive, n e c e s s á r i o reinterpretar
da auto-reflexão interessada que o interesse, incorporado à ra¬
materialisticamente o interesse da r a z ã o , tal como o idealismo
z ã o , perde seu c a r á t e r de mero a p ê n d i c e e sc torna constitutivo
o introduzira: o interesse e m a n c i p a t ó r i o depende, por seu lado,
tanto para o ato-do-conhecer quanto para o ato-do-agir. O con¬
dos interesses que orientam ações i n í e r s u b j e t i v a s possíveis c con-
ceito da auto-reflexão, desenvolvido por Fichte como atividade
trolam uma possível disponibilidade técnica.
que retroage sobre si mesmo, possui uma significação sistemática
para a categoria do interesse que orienta o conhecimento, lam¬ Os intereses que, a t?se nível, orientam processos cognitivos
bem a esse nível o interesse antecede o conhecimento, bem assim n ã o vigem para a existência de objetos mas, sim, para ações
(aliás) como ele sc efetua exclusivamente por meio deste conhe¬ instrumentais e i n t e r a ç õ e s bem-sucedidas — no mesmo sentido Kant
cimento. ,. distinguira o interesse puro, o qual adotamos nas ações morais,
N ã o seguimos as pegadas da i n t e n ç ã o sistemática _ da Dou¬ daquele das i n c l i n a ç õ e s e m p í r i c a s , o qual é despertado pela mera
trina da ciência; ela fora pensada com o objetivo de situar seus existência dos objetos das ações. M a s , bem assim como a razão,
leitores, em virtude dc um ato solitário, no ponto nevrálgico da ditando ambos os interesses, n ã o é doravante mera r a z ã o práti¬
ca pura, mas uma r a z ã o que une conhecimento e interesse na
a u t o c o n t e m p l a ç ã o de um Eu que produz absolutamente o mundo
a u t o - r e f l e x ã o , do mesmo modo os interesses voltados para a ati¬
e a si mesmo. Hegel escolhe, com . r a z ã o , o caminho comple¬
vidade da c o m u n i c a ç ã o e da i n s t r u m e n t a l i z a ç ã o incluem necessa¬
mentar da experiência f e n o m e n o l ó g i c a ; esta nao deixa o dogma-
riamente as categorias do saber que lhes são p r ó p r i a s : eles ad¬
tismo instantaneamente a t r á s de si, mas percorre os estágios da
quirem ipso jacto o peso valorativo de interesses capazes de
consciência que se mostra como os estágios da reflexão. A auto-
orientar o conhecimento. Tais formas de a ç õ e s n ã o podem, a ri¬
reflexão originária de Fichte é distendida na experiência da re-
gor, ser estabelecidas a longo prazo sem que estejam igualmente
flexão. Tampouco podemos seguir a i n t e n ç ã o da Fenomenolo-
asseguradas as categorias do saber que acompanham estes inte¬
gia do espírito, a qual é para conduzir seus leitores ao saber
resses, os processos cumulativos de aprendizagem e as interpre¬
absoluto e ao conceito da ciência especulativa. O movimento
t a ç õ e s permanentes, mediatizadas pela t r a d i ç ã o .
da reflexão que toma a c o n s c i ê n c i a e m p í r i c a por ponto de par¬
tida une, por certo, r a z ã o e interesse; pelo fato de este movi¬ Temos mostrado que, no c í r c u l o funcional onde se exerce
mento reencontrar, em cada estágio, a d o g m á t i c a de uma mundi- a atividade instrumental, se i m p õ e uma outra c o n s t e l a ç ã o do* agir,
vidência e de uma determinada forma de vida, o processo ao da linguagem e da experiência do que no quadro das i n t e r a ç õ e s
conhecimento coincide com o processo formativo. Mas nao po-
232 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 233
mediatizadas simbolicamente. As condições do agir instrumental com a experiência da reflexão, qual c: dissolução crítica do obie-
e da atividade p r ó p r i a à c o m u n i c a ç ã o são, simultaneamente, as tivismo, a saber, da a u t o c o m p r e e n s ã o objetivista das ciências a
c o n d i ç õ e s da objetividade inerente a um conhecimento p o s s í v e l ; qual omite a p a r t i c i p a ç ã o da atividade subjetiva nos objetos p r é -
elas í i x a m o sentido da validade de p r o p o s i ç õ e s n o m o l ó g i c a s ou moldados de um conhecimento possível. Nesse sentido nem Pier
h e r m e n ê u t i c a s . A inserção de processos cognitivos em complexos ce, nem Dilthey conceberam suas investigações m e t o d o l ó g i c a s
vitais chama nossa atenção para a função de interesses capazes como uma auto-reflexão. Pierce compreende sua lógica da "pes¬
de orientar o conhecimento: um complexo vital é um conjunto quisa em intimo contato com o progresso científico, cujas con¬
de interesses. M a s , assim como o nível, ao qual a vida social dições essa lógica analisa: ela é uma disciplina acessória que~
se reproduz, tal feixe de interesses n ã o pode ser definido inde¬ contribuí para a i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o e a c e l e r a ç ã o do processo i n -
pendentemente destas formas de ações e das categorias corres¬ veshgatono em seu conjunto e, como tal, promove a progressiva
pondentes do saber. O interesse pela m a n u t e n ç ã o da vida está, r a c i o n a l i z a ç ã o da realidade. Dilthey entende, sua lógica das ciên¬
no plano a n t r o p o l ó g i c o , comprometido com uma vida organiza¬ cias do_ espirito em r e l a ç ã o com o avanço da h e r m e n ê u t i c a , cujas
da por meio da ação e do conhecimento. Os interesses que orien¬ condições sua lógica analisa: ela é uma disciplina acessória que
tam o conhecimento estão, portanto, determinados por dois fa¬ contribui para a p r o p a g a ç ã o da consciência histórica e para a
tores: por um lado, eles atestam que os processos cognitivos t ê m atualização estética de uma vida histórica onipresente. Nenhum
sua origem em conjuntos vitais e neles exercem sua eficácia; dos dois leva em consideração se a metodologia não reconstrói,
mas, por outro lado, através destes interesses se expressa igual¬ como teoria do conhecimento, e x p e r i ê n c i a s mais radicais da his¬
mente o fato de que a forma da vida, reproduzida socialmente, tória da espécie e n ã o conduz, assim, a um novo estágio da auto-
n ã o poder ser caracterizada adequadamente senão pelo liame es¬ reflexão no processo formativo da espécie humana.
pecífico entre conhecimento e interesse.
O interesse está ligado a ações que, se bem que em uma
c o n s t e l a ç ã o diferente, fixam as condições dc todo conhecimento 10. Auto-reflexão como ciência:
possível, assim como estas, por sua vez, dependem dc processos
• a crítica psicanalítica cio sentido em Freud
cognitivos. Esclarecemos tal i n t e r d e p e n d ê n c i a entre conhecimen¬
to e interesse ao examinarmos aquela categoria dc " a ç õ e s " que
No fim do século X I X nasceu uma disciplina que, no início como
coincidem com a "atividade" da reflexão, a saber: as ações eman-
obra de um único homem, se movia, já em seus p r i m ó r d i o s no
cipatórias. Um ato da auto-reflexão que "altera a vida" é um
elemento da auto-reflexão e, assim mesmo, reivindicou de ma¬
movimento da e m a n c i p a ç ã o . De modo igual como aqui o inte¬
neira convincente estar legitimada por um m é t o d o estritamente
resse da r a z ã o n ã o pode corromper a força cognitiva da r a z ã o
científico. De modo diferente do que ocorre em Pierce e Dilthey,
— eis que, como Fichte não cansa de explicitar, conhecimento
Freud n ã o é um lógico da c i ê n c i a . q u e se pode orientar em uma
e interesse estão fundidos em um único ato — o interesse n ã o
disciplina já estabelecida, refletindo a partir dela sobre suas pró¬
permanece exterior ao conhecimento lá, onde ambos os momen¬
prias experiências. Pelo c o n t r á r i o , ao desenvolver uma nova dis¬
tos da atividade e do conhecimento já se dissociaram: ao nível
ciplina Freud refletiu sobre suas premissas. Freud n ã o foi um
do agir instrumental e do agir p r ó p r i o à c o m u n i c a ç ã o .
filósofo. Sua tentativa de m é d i c o em elaborar um arcabouço
M a s , mesmo assim, não há dúvida de que não podemos cer¬
teór.co das neuroses levam-no a uma teoria sui generis. E l e só
tificar-nos metodologicamente dos interesses que orientam o co¬
se depara com p o n d e r a ç õ e s m e t o d o l ó g i c a s na medida em que o
nhecimento nas ciências da natureza ou nas ciências do espírito
fundamento de uma nova ciência obriga, exatamente, a refle¬
senão depois de havermos penetrado na d i m e n s ã o da auto-re-
tir acerca do novo ponto de partida: nesse sentido G a -
flexão. A q u i l o que chamamos de razão se apreende no momento
hleo não apenas criou a nova física, mas t a m b é m a co¬
em que ela, enquanto tal, se executa como auto-reflexão. É por
mentou em termos m e t o d o l ó g i c o s . A psicanálise é, para nós,
isso que nos deparamos com a relação fundamental entre conhe¬
relevante como o único exemplo disponível de uma ciência que
cimento e interesse quando praticamos metodologia de acordo
reivindica metodicamente o exercício auto-reflexivo. C o m o sur-
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 235
2 3 4 CONHECIMENTO E INTERESSE
na história através de expressões vitais, estas que abarcam o espírito
objetivo por i n t e r m é d i o do c o n g r a ç a m e n t o estabelecido por tal sucessão
gimento da p s i c a n á l i s e abre-se, a t r a v é s do caminho peculiar à 5
e seus efeitos".-
lógica da pesquisa, a perspectiva de um acesso m e t o d o l ó g i c o a
esta d i m e n s ã o disfarçada do positivismo. T a l possibilidade n ã o
DUthey está obviamente ciente de que, para a l é m do hori¬
se concretizou, pois o auto-equívoco cientificista da psicanálise,
zonte da biografia atualizada, n ã o podemos contar com a garantia
inaugurado pelo p r ó p r i o Freud, o fisiólogo por origem, obstruiu
subjetiva de uma m e m ó r i a imediata. O compreender volta-se,
em gérmen esta possibilidade. O a u t o - e q u í v o c o n ã o deixa, por
por isso, t a m b é m para as formas s i m b ó l i c a s e aos textos nos
certo, de ter suas r a z õ e s . A f i n a l , a p s i c a n á l i s e combina a her¬
quais a estrutura do sentido se objetivou, com o objetivo de v i r
m e n ê u t i c a com r e a l i z a ç õ e s que, a rigor, estavam reservadas ao em auxílio da m e m ó r i a adulterada da espécie humana, por meio
22
domínio das ciências da natureza. da r e c o m p o s i ç ã o crítica destes textos:
A psicanálise c o m e ç a afirmando-se como uma forma espe¬
cial de interpretação; ela libera pontos de vista teóricos c regras "A primeira c o n d i ç ã o para a c o n s t r u ç ã o do mundo h i s t ó r i c o é, assim,
técnicas para interpretação de conjuntos simbólicos. Freud orien¬ a purificação das confusas c, sob muitos aspectos, corrompidas recorda¬
tou permanentemente a i n t e r p r e t a ç ã o dos sonhos no modelo her¬ ções da espécie humana, nela mesma, através da crítica que constitui
m e n ê u t i c o do trabalho filológico. E l e a compara, ocasionalmen¬ o correlato da interpretação. É por isso que a ciência fundamental da
história é a filologia em sentido formal, como estudo científico das lín¬
te, com a t r a d u ç ã o de um autor estrangeiro, assim por exemplo,
guas nas quais a tradição está sedimentada, coleção da herança da
com um texto de Tito L í v i o . A M a s o obrar interpretativo do humanidade passada, eliminação dos erros que ela contém, ordenação
analista n ã o apenas se distingue da atividade do filólogo pela cronológica e combinação, as quais põem tais documentos em íntima
seleção de um domínio particular do objeto; um tal obrar exige relação uns com os outros. Filologia n ã o é, nesse sentido, um recurso
uma hermenêutica específica e ampliada, que leva em conside- acessório para o historiador, mas assinala o primeiro raio de ação de
2A
ração, frente à interpretação habitual das ciências do espírito, seu modo de proceder".
a estrutura do sentido dos textos, com os quais a h e r m e n ê u t i c a e, por outro, ambas se "adequam" novamente a e x p r e s s õ e s e
se ocupa, está sempre apenas a m e a ç a d a por influências externas. ISSO independentemente da questão acerca do espaço necessário
O sentido pode ser aniquilado pelos canais da t r a n s f e r ê n c i a , l i ¬ que um grau incompleto de i n t e g r a ç ã o reserva para i n f o r m a ç õ e s
mitada de acordo com a capacidade e a eficiência; sejam esses indiretas. M a s , no caso l i m í t r o f e , o jogo da linguagem pode de¬
canais próprios à memória ou à tradição cultural. I sintegrar-se de tal forma que as três categorias da e x p r e s s ã o n ã o
A interpretação psicanalítica, pelo contrário, não se volta para mais concordam entre si: ações e e x p r e s s õ e s extraverbais des¬
complexos de sentido, peculiares à d i m e n s ã o daquilo que se i n - mentem agora o que é expressis verbis asseverado. M a s o sujeito
tensiona conscientemente; seu trabalho crítico n ã o elimina defi¬ que age desmascara-se t ã o - s o m e n t e frente aos outros, os quais
ciências acidentais. As omissões e as alterações que ela suprime com.ele interagem e observam o seu desvio das regras da gra¬
possuem um peso valorativo, pois os conjuntos s i m b ó l i c o s que a m á t i c a , p r ó p r i a s ao jogo da linguagem. O agente, como tal, n ã o
psicanálise procura compreender e s t ã o adulterados por influências pode observar a d i s c r e p â n c i a ou, quando o consegue, n ã o e s t á em
internas. As m u t i l a ç õ e s possuem, como tais, um sentido. Um c o n d i ç õ e s de a entender, eis que ele mesmo se expressa nessa
texto adulterado dessa espécie só p o d e r á ser satisfatoriamente d i s c r e p â n c i a e, ao mesmo tempo, se desentende nela. Sua auto-
apreendido em seu sentido depois que for possível esclarecer o c o m p r e e n s ã o precisa agarrar-se à q u i l o que é entendido conscien¬
sentido da c o r r u p ç ã o enquanto tal: é isto que caracteriza a tarefa temente, à e x p r e s s ã o verbal, ao dado que se verbaliza. M e s m o
particular de uma h e r m e n ê u t i c a que n ã o se pode limitar aos mo¬ assim o c o n t e ú d o intencional, que chega à superfície na forma de
dos de proceder da filologia, mas unifica a análise da linguagem um agir e de um expressar c o n t r a d i t ó r i o , é introduzido no con¬
com a pesquisa psicológica de complexos causais. A manifesta¬ junto biográfico do sujeito da mesma maneira como o são os
ção parcial e deformada do sentido n ã o resulta, nesse caso, de significados subjetivos, apenas supostos pelo sujeito. Este é for¬
uma t r a d i ç ã o defeituosa; afinal, trata-se sempre já de um sentido ç a d o a se iludir acerca de tais e x p r e s s õ e s extraverbais, descoorde-
inerente ao conjunto biográfico ao qual o sujeito n ã o tem mais nadas que estão com a e x p r e s s ã o verbal; mas como ele p r ó p r i o
acesso. No interior do horizonte de uma biografia atualizada a nelas sc objetiva, cie a c a b a r á se iludindo acerca de si mesmo.
r e c o r d a ç ã o falece a tal ponto (pie os abalos funcionais da m e m ó ¬
ria postulam, enquanto tais, o recurso à h e r m e n ê u t i c a e exigem, A i n t e r p r e t a ç ã o p s i c a n a l í t i c a ocupa-se com tais complexos
por conseguinte, serem entendidos a partir de uma c o n e x ã o obje¬ s i m b ó l i c o s nos quais uin sujeito sc ilude acerca de si mesmo. A
tiva de sentido. hermenêutica das profundezas, a qual Freud contrapõe à versão
filológica de Dilthey, reporta-se a textos que indiciam auto-enga-
Dilthey concebera a recordação autobiográfica como condi¬ nos do autor. A l é m do c o n t e ú d o manifesto (e de c o m u n i c a ç õ e s
ção de uma intelecção hermenêutica possível e comprometeu, indiretas mas comprometidas em termos intencionais com este
assim, o ato-do-compreender com aquilo que é conscientemente c o n t e ú d o ) revela-se nesses textos o c o n t e ú d o latente de uma par¬
intencionado. Freud depara-se com ofuscamentos da m e m ó r i a " te das o r i e n t a ç õ e s p r ó p r i a s ao autor, mas que se lhe tornou ina¬
que, por sua vez, expressam i n t e n ç õ e s ; estas necessitam, e n t ã o , cessível e estranho, muito embora lhe p e r t e n ç a : Freud cunhou a
transcender o d o m í n i o daquilo que perfaz a o p i n i ã o subjetiva. 28
f ó r m u l a do "território estrangeiro interior" para caracterizar a
Com sua análise da linguagem ordinária Dilthey não fez mais do e x t e r i o r i z a ç ã o de algo que, apesar disto, é parte constituinte do
que tangenciar o caso-limite da d i s c r e p â n c i a entre p r o p o s i ç õ e s , sujeito. N ã o há dúvida de que exteriorizações simbólicas, perten¬
ações e expressões vivenciais; este caso-limite constitui, p o r é m , o centes a essa classe de textos, d ã o - s e a conhecer por meio de
caso normal para a p s i c a n á l i s e . particularidades que t ã o - s o m e n t e emergem num amplo contexto
A g r a m á t i c a da linguagem cotidiana n ã o apenas regula o de a r t i c u l a ç õ e s , envolvendo e x p r e s s õ e s verbais e outras formas de
conjunto simbólico mas, igualmente, a i m b r i c a ç ã o de elementos c objetivações.
da linguagem, modelos de ação e expressões. Numa situação nor¬
mal estas três categorias de e x p r e s s ã o comportam-se de maneira "Estou, A
por certo, infringindo o significado l i n g ü í s t i c o comum ao postu-
complementar, de modo que aquilo que denominamos de expres¬ lar o interesse do pesquisador da linguagem para a p s i c a n á l i s e . Sob o
são verbal encontra-se, por um lado, "enquadrado" em i n t e r a ç õ e s termo linguagem deve ser entendida aqui não apenas a expressão de
pensamentos em palavras mas, igualmente, a linguagem da mímica e
238 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 239
bagatelizados como f e n ô m e n o s ocasionais, mas t a m b é m não é pos-. plexidade (do momento), isto n ó s tratamos como se fosse um texto sa-
33
grado".
sível denegá-los a longo prazo em seu c a r á t e r s i m b ó l i c o ; esse os
identifica como p o r ç õ e s isoladas de um conjunto simbólico maior:
os sintomas n e u r ó t i c o s são cicatrizes de um texto adulterado; o Vista sob outro aspecto, p o r é m , a concepção hermenêutica
autor se depara com ele como se tratasse de um texto incom¬ n ã o satisfaz; pois, sonhos pertencem à q u e l e s textos com os quais
preensível. o autor se vê confrontado como se fosse algo estranho e incom¬
preensível. O analista é f o r ç a d o a recuar, a t r a v é s de perguntas,
31
O modelo n ã o p a t o l ó g i c o de um tal texto é o sonho. O para aquém do c o n t e ú d o manifesto do texto onírico para poder
sonhador produz, ele p r ó p r i o , o texto do sonho; provavelmente apreender o pensamento onírico latente que aí se manifesta. A
como um complexo intencional; mas, uma vez desperto, o su¬ técnica da interpretação de sonhos v a i , nesse sentido, mais além
jeito n ã o mais compreende sua p r o d u ç ã o , embora ele se identi¬ do que a arte da h e r m e n ê u t i c a , uma vez que ela deve n ã o apenas
fique de certa forma com o autor do sonho. O sonho é cauda- atingir o sentido de um possível texto deformado, mas o próprio
t á r i o de ações e e x p r e s s õ e s , o jogo de linguagem completo é ape¬ sentido da deformação textual, a c o n v e r s ã o de um pensamento
nas imaginado. E por isso que os atos falhos e os sintomas n ã o o n í r i c o latente em um sonho manifesto; portanto, na medida em
240 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 241
que ela é obrigada a reconstruir aquilo que Freud denominou evocar um de seus sonhos. M a s , depois de termos sido capazes de eliminar,
no decurso de uma parte do trabalho a n a l í t i c o , uma dificuldade que vinha,
"trabalho do sonho". A interpretação do sonho leva a uma re-
perturbando sua relação com a análise, o sonho esquecido assoma, do
flexão que transita pelo mesmo caminho que o texto onírico, ao
repente, à s u p e r f í c i e . Aqui cabem t a m b é m duas outras observações. Fre-
surgir, teve que percorrer: frente ao trabalho do sonho ela se q ü e n t e m e n t e sucede que, no i n í c i o , uma parte do sonho é omitida e, logo-
comporta de forma complementar. No curso de tal operação o mais, acrescentada na forma de um apêndice. Isto deve ser considerado
analista pode apoiar-se no processo da livre associação de ele- como uma tentativa de esquecer esta parte do sonho. A e x p e r i ê n c i a mostra
mentos isolados do sonho e sobre as p a r t i c i p a ç õ e s complemen- que esta parte é, precisamente, a mais representativa; supomos que no
caminho dc sua c o m u n i c a ç ã o tenha ocorrido uma r e s i s t ê n c i a maior do que
tares e s p o n t â n e a s que o paciente acrescenta posteriormente ao
nas demais porções do sonho. A l é m disso vemos a m i ú d e que o sonhador
texto onírico original. procura reagir contra o esquecimento de seus sonhos, formulando-os por
A camada superior do sonho, a qual desta maneira pode ser escrito logo a p ó s estar desperto . . .
identificada e desobstruída, é a fachada onírica, o resultado de
De tudo isso c o n c l u í m o s que a resistência, essa que flagramos no trabalho-
uma elaboração secundária; esta, apenas c o m e ç o u a operar depois
da interpretação dos sonhos, deve também ter participado na g ê n e s e destes
que a recordação onírica assomou, como objeto, à superfície da sonhos. Dc fato, podemos fazer uma d i s t i n ç ã o entre sonhos que surgiram
consciência do sonhador desperto. Esta atividade racionalizadora sob tênue pressão c aqueles que têm sua origem sob o efeito de uma
procura sistematizar conteúdos obscuros, interpolando lacunas e pressão muito forte. Tal pressão varia, porém, também dentro de um.
aplainando contradições. A camada seguinte deixa-se reduzir aos mesmo sonho, dependendo do lugar em que se impõe; essa pressão é res¬
restos diurnos incompletos; portanto, aos fragmentos dos jogos p o n s á v e l pelas lacunas, obscuridades e c o n f u s õ e s que podem romper a con-
34
tinuidade dos mais belos sonhos".
de linguagem do dia anterior, os quais depararam-se com obstá-
culos e não foram levados a termo. O que resta c uma camada
mais profunda, com seus conteúdos s i m b ó l i c o s ; esses resistem ao M a i s tarde Freud concebeu os sonhos punitivos igualmente
trabalho da interpretação. Freud chama-os de símbolos oníricos como uma r e a ç ã o da censura onírica frente aos desejos que os.
35
propriamente ditos, isto é, representações que exprimem um con- precederam. A resistência, cuja experiência o analista faz ao
teúdo latente cm termos metafóricos ou alegóricos ou cm alguma tentar separar o pensamento latente do sonho dc seu disfarce, é
outra forma de disfarce sistemático. A próxima informação que í) chave para o mecanismo do trabalho o n í r i c o . A r e s i s t ê n c i a
obtemos acerca de tais símbolos oníricos provem da peculiar ex- c o sinal mais seguro de um conflito:
periência da resistência, essa que se opõe ao trabalho interpreta-
tivo. Esta resistência, a qual Freud associa a uma censura oníri- " A q u i deve haver uma força que quer expressar algo e uma outra f o r ç a
ca, manifesta-se não menos na carência associativa, no processo que se e s f o r ç a por evitar sua e x p r e s s ã o . O que e n t ã o se i m p õ e , em conse¬
hesitante de associações e em associações que n ã o passam de q ü ê n c i a , como sonho manifesto, pode combinar todas as d e c i s õ e s nas quais
se condensou essa luta entre as duas tendências. É possível que num ponto
subterfúgios, do que no esquecimento de fragmentos textuais, os
uma dessas forças tenha tido sucesso em afirmar o que queria expressar,
quais posteriormente são acrescentados ao texto o n í r i c o original: ao passo que num outro ponto é a instância oposta que teve a sorte de
eclipsar por completo a c o m u n i c a ç ã o que se pretendia expressar, ou subs¬
tituí-la por algo que n ã o revele qualquer traço comum com essa força. O s
"Durante o trabalho ( a n a l í t i c o ) c i m p o s s í v e l n ã o atentar para as mani-
casos mais comuns c mais característicos da formação onírica s ã o aqueles
festações desta resistência. Em determinados pontos as associações são
nos quais o conflito acabou cm c o n c i l i a ç ã o , de maneira tal que a i n s t â n ¬
fornecidas sem h e s i t a ç ã o , c já a primeira ou segunda i d é i a que advem
cia que participa (efetivamente) foi, por certo, capaz de expressar o
espontaneamente à mente do paciente proporciona a e x p l i c a ç ã o . Em outros
que quis, mas n ã o na forma como quis;.na verdade, apenas numa forma
momentos h á uma interrupção, e o paciente titubeia antes de formular
atenuada, distorcida e i r r e c o n h e c í v e l . Quando, portanto, os sonhos n ã o
uma a s s o c i a ç ã o e, com isso, há que escutar uma longa cadeia de i d é i a s
formam um quadro fiel dos pensamentos o n í r i c o s , quando o trabalho in-
antes dc poder contar com algo que ajude a compreender o sonho. Temos
terpretativo se faz n e c e s s á r i o para transpor o hiato entre ambos, então
certamente r a z ã o ao supor que, quanto mais demorada e repleta de subter-
trata-se do sucesso da instância renitente, inibidora e limitadora, a qual
f ú g i o s a cadeia associativa for, tanto maior a r e s i s t ê n c i a . I d ê n t i c a influ¬
inferimos dc nossa p e r c e p ç ã o da r e s i s t ê n c i a enr nosso trabalho da inter-
ência podemos detectar no esquecimento dos sonhos. Não poucas vezes s
pretação dos sonhos". 6
acontece que um paciente, apesar de todos os seus esforços, n ã o consegue
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 243-
242 CONHECIMENTO E INTERESSE
Podemos admitir que a instância limitante, que durante o dia s i n t á t i c a s , eis que os meios de diferenciação, dos quais a lingua¬
controla o falar e o agir, relaxa seu d o m í n i o durante o sono, ao gem d i s p õ e para articular r e l a ç õ e s lógicas, estão suspensos; mes¬
confiar na s u s p e n s ã o da motilidade, mas reprimindo os motivos mo as regras elementares da lógica encontram-se abolidas. Na
•da ação. E l a impede assim a efetivação de motivações indesejᬠlinguagem do sonho, carente de g r a m á t i c a , as c o n e x õ e s são es¬
veis, na medida em que retira do t r â n s i t o as i n t e r p r e t a ç õ e s cor¬ tabelecidas por intermédio da superposição luminosa e através da
respondentes, a saber: r e p r e s e n t a ç õ e s e s í m b o l o s . , Este t r â n s i t o c o m p r e e n s ã o do material sonhado; Freud fala de " c o n d e n s a ç ã o " .
consiste em i n t e r a ç õ e s bem ajustadas, comprometidas que estão Tais imagens comprimidas da linguagem primitiva do sonho pres¬
com a opinião pública da comunicação própria à linguagem or¬ tam-se à transferência de acentos significativos e deslocam signi¬
dinária. As instituições da permuta social não autorizam senão ficações originais. O mecanismo do "deslocamento" está a ser¬
certos motivos de a ç ã o ; a outras necessidades fundamentais, igual¬ viço da instância responsável pela censura, em vista do desarran-
mente presas às i n t e r p r e t a ç õ e s da linguagem cotidiana, é vedado jo do sentido originário. O outro mecanismo é o da supressão de
o caminho da ação manifesta, seja pelo confronto direto com passagens inaceitáveis do texto. C o m suas c o m p r e s s õ e s , interliga¬
uma força alheia, seja por meio da s a n ç ã o de normas socialmen¬ das apenas superficialmente entre si, a estrutura da linguagem
te i n q u e s t i o n á v e i s . Tais conflitos, no início apenas exteriores, onírica favorece igualmente as o m i s s õ e s .
prolongam-se, enquanto n ã o forem encaminhadas conscientemen¬ A análise do sonho vê na omissão e no deslocamento duas
te, no interior do psiquismo, na forma de um conflito permanente diferentes estratégias de defesa: o recalque em sentido estrito, di¬
entre uma i n s t â n c i a defensiva, representando a r e p r e s s ã o social, rigido de forma repressiva contra o p r ó p r i o E u , e o disfarce, a
e (uma i n s t â n c i a de) motivos acionais i n e x e q ü í v e i s . O recurso qual pode igualmente vir a ser a base para uma p r o j e ç ã o do Eu
p s í q u i c o mais eficaz para neutralizar as d i s p o s i ç õ e s indesejáveis em d i r e ç ã o ao exterior. Em nosso contexto é interessante obser¬
daquilo que chamamos de necessidade consiste em excluir da var que Freud fez a descoberta de tais estratégias defensivas pela
comunicação pública — isto é, em recalcar — as interpretações primeira vez nas mutilações e deformações do texto. onírico. O
às quais essas necessidades estão acopladas. Frcucl denomina de mecanismo cie defesa está, de fato, voltado diretamente contra as
desejos inconscientes os símbolos banidos c os motivos assim i n t e r p r e t a ç õ e s de motivos acionais. Esses são neutralizados pelo
reprimidos. M o t i v a ç õ e s conscientes, presentes no emprego públi¬ fato de os símbolos, com os quais disposições inerentes àquilo
co da linguagem, são transformadas, pelo mecanismo da repres¬ que chamamos necessidade estão comprometidas, desaparecem do
são, em motivos inconscientes, em motivos por assim dizer ca¬ horizonte da comunicação pública. Com isso a tematização da
rentes de linguagem. Durante o sono, quando a censura pode "censura" adquire um sentido bem preciso: a censura psicológica,
ser relaxada devido à suspensão da motilidade, os motivos recal¬ como a oficial, reprime o estofo s e m â n t i c o e as significações nele
cados encontram uma linguagem através da a s s o c i a ç ã o simbólica articuladas. Ambas as formas da censura servem-se dos mesmos
de fragmentos diurnos; seus símbolos são publicamente sancio¬ mecanismos de defesa: aos processos de interdição e recomposi¬
nados, mas trata-se de uma linguagem privatizada, "pois o sonho ção do texto correspondem os mecanismos psíquicos da o m i s s ã o
38
n i c a ç ã o . O fato dos motivos inconscientes penetrarem, sob as da vida p s í q u i c a infantil que (já) ficou para t r á s " . As cenas
c o n d i ç õ e s excepcionais do sono, no estofo p r é - c o n s c i e n t e — sus¬ infantis permitem que se chegue à c o n c l u s ã o de que os desejos
cetível à comunicação pública — faz com que a linguagem do inconscientes mais produtivos p r o v ê m de repressões relativamen¬
texto onírico se caracterize, enquanto compromisso, como um te precoces, portanto, resultantes de conflitos nos quais a pessoa
aglomerado sui generis de linguagem p ú b l i c a e privativa. A se¬ inacabada e dependente da criança, esteve submetida, de maneira
q ü ê n c i a de cenas visuais n ã o está mais ordenada segundo regras constante, à autoridade de suas pessoas de referência e às e x i -
244 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 245
te da a u t o - r e f l e x ã o , pode ser facilmente demonstrada nas investi¬ ainda a fomentam. A tarefa da terapia está no combate a essas resistências
44 A participação daquilo que o doente n ã o sabe, eis que o reprimiu, é
gações de Freud acerca da técnica analítica. Com efeito, o tra¬
tão-somente uma das medidas preliminares para a terapia, Fosse o co¬
tamento a n a l í t i c o n ã o pode ser determinado sem a referência à
nhecimento do inconsciente importante assim para o doente como a pessoa
experiência da-reflexão. O que chamamos de hermenêutica rece¬ inexperiente em p s i c a n á l i s e imagina, então deveria ser suficiente para a
be seu peso valorativo no processo da gênese da a u t o c o n s c i ê n c i a . cura, que o doente ouvisse prelcções ou lesse livros. Tais medidas possuem,
N ã o é suficiente falar de t r a d u ç ã o de um texto, t r a d u ç ã o como tal porém, tanta i n f l u ê n c i a sobre os sintomas nervosos do padecimento (psí¬
c* reflexão: " T r a d u ç ã o do inconsciente naquilo que é conscien- quico) como a distribuição de cardápios, numa época de escassez de v í v e -
res, tem sobre a fome. A c o m p a r a ç ã o ' é , mesmo a l é m de sua a p l i c a ç ã o
248 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 249
significativos para a história da d o e n ç a ; eventos n ã o conhecidos O médico tenta compeli-lo a ajustar esses impulsos emocionais ao nexo
do tratamento e da h i s t ó r i a de sua vida, a submetê-lo à consideração
nem pelo m é d i c o nem pelo paciente no início da análise. O tra¬
intelectual e a c o m p r e e n d ê - l o s à luz de seu valor p s í q u i c o . Esta luta entre
balho intelectual é dividido de tal maneira entre m é d i c o e pa¬
o m é d i c o e o paciente, entre o intelecto e a vida instintual, entre a com¬
ciente que aquele reconstrói a partir dos textos defeituosos do preensão e a procura da a ç ã o , é travada, quase exclusivamente, nos f e n ô -
paciente, a partir de seus sonhos, de suas idéias fortuitas e repe¬ menos da t r a n s f e r ê n c i a " . 4 8
n â m i c a de um empreendimento intelectual; ela só leva à identifi- dizer experimental, da "repetição" oferece ao m é d ' c o , nas condi-
cação cognitiva do passado através da superação das resistências. ções da situação analítica, uma possibilidade tanto de conheci¬
O analista está em condições de encaminhar o processo do mento quanto de tratamento. O atuar na s i t u a ç ã o transferenciai
esclarecimento desde que lhe seja p o s s í v e l reorientar a d i n â m i c a (e nas s i t u a ç õ e s cotidianas paralelas durante o tempo do trata¬
mento) conduz a c e n á r i o s que liberam indícios para a reconstru-
250 CONHECIMENTO E INTERESSE
lativas a linguagem privativa, por um lado e, por outro, da neu¬ ajusta-se a todos os impulsos instintuais que haviam estado separados desta
unidade c encontravam-se aglutinados fora delato
tralização dos motivos acionais, vinculados a s í m b o l o s isolados
A totalidade virtual, tendida pelo processo da s e p a r a ç ã o 6 re¬
T r ê s particularidades suplementares demonstram que o co¬
presentada pelo modelo da atividade p r ó p r i a ã c o m u n i c a ç ã o pura
nhecimento analítico 6 ama auto-reflexão. Nele estão, de saída
acordo c o m esse modelo., todas as i n t e r a ç õ e s sedimentadas
e de modo igual, incluídos dois momentos: o momento cognitivo
por habito e todas as i n t e r p r e t a ç õ e s relevantes para a p r á x i s v i t a l
e o afetivo-motivador. O saber analítico, enquanto a u t o - r e f l e x ã o ,
sao, a cada momento c com base no aparelho interiorizado da
é crítica no sentido de que a intelecção do paciente possui, nela
linguagem cotidiana irrestrita, acessíveis para uma c o m u n i c a ç ã o
mesma, o poder analítico de remover atitudes d o g m á t i c a s . A cri¬
publica isenta de coação, de modo que também a transparência
tica culmina em uma t r a n s f o r m a ç ã o da base afetivo-motivadora,
da biografia que rememora fica garantida. Processos formativos
bem assim como ela tem seu ponto de partida na necessidade
que se afastam de tal modelo (e Freud n ã o deixa qualquer dú¬
por uma t r a n s f o r m a ç ã o . A crítica n ã o teria o poder de se impor
vida de que, nas c o n d i ç õ e s de um desenvolvimento sexual caracteri¬
sobre a falsa c o n s c i ê n c i a , caso n ã o fosse impulsionada por uma
zado por um duplo apogeu com l a t ê n c i a forcada, todos os pro¬
paixão da crítica. No início se localiza a experiência da dor e
cessos de socialização devem nesse sentido ter uma s e q ü ê n c i a
da c a r ê n c i a , e o interesse pela r e m o ç ã o do estado pesaroso. O
anormal) sao o resultado de uma r e p r e s s ã o exercida por instân¬
paciente procura o m é d i c o porque sc sente torturado por seus
cias sociais. Esta influência externa é s u b s t i t u í d a por um me¬
sintomas e gostaria de se ver liberto deles — com isso t a m b é m
canismo de defesa intrapsíquico, p r ó p r i o a uma instância erigida
a p s i c a n á l i s e pode contar. M a s diferentemente do que ocorre com
no interior do i n d i v í d u o , de modo tal que se torne permanente
o tratamento t e r a p ê u t i c o habitual, o impacto do sofrimento e o
ü j a conduz, a longo prazo, a acordos com as exigências da por¬
interesse na r e c u p e r a ç ã o da saúde n ã o perfazem apenas a ocasião
ção apartada, acordos que se realizam à custa da c o m p u l s ã o
a determinar o início do tratamento, mas constituem, em si, a
patológica e da auto-ilusão. Tal é o fundamento da formação dos
pressuposição para o sucesso da terapia.
sintomas; através dela o texto dos jogos da linguagem cotidiana
e deteriorado de forma t í p i c a e chega, assim, a ser objeto de uma
""Durante o tratamento os senhores podem observar que cada melhora em
possível elaboração analítica.
sua c o n d i ç ã o * reduz a rapidez da r e c u p e r a ç ã o e diminui a f o r ç a instin-
* do paciente (N. do T . )
252 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 253-
tual que o impele para a cura. N ã o podemos, porém, renunciar a essa d i s t ú r b i o s de minhas a ç õ e s e a t r a v é s da c o n f u s ã o de meus sentimentos.
f o r ç a instinlual; sua r e d u ç ã o coloca em risco a nossa finalidade ' a res- Posso fazer a e x p e r i ê n c i a de que aquilo que estou repudiando n ã o apenas
t a u r a ç ã o da saúde do paciente. Qual é, e n t ã o , a c o n c l u s ã o que inevitavel- ' e s t á ' em mim mas, vez por outra, também 'age' de mim para fora (de
5 2
mente se impõe? Cruel como possa parecer, devemos cuidar para que o mim)". '
foram alocados para um quadro de referência objetivista e rein- rir, igualmente, a qualidade de ser-consciente. T a l c o trabalho da f u n ç ã o
da linguagem; ela conecta, de forma compacta, conteúdos do ego com
terpretados.
resíduos mnêmicos, p r ó p r i o s a p e r c e p ç õ e s visuais mas, mais particular¬
Freud descobriu as funções do ego em c o n e x ã o com as duas
mente (ainda), a p e r c e p ç õ e s a c ú s t i c a s . D a í por diante, a periferia percep-
•outras instâncias, id e superego, ao interpretar os sonhos e no diᬠtiva da camada cortical pode ser excitada em grau bem maior a partir
logo analítico; portanto, ao interpretar textos especificamente mu¬ de seu cerne mais íntimo, acontecimentos internos como seqüências e-
tilados e deformados. E l e acentua que "toda a teoria da psica¬ processos de pensamentos podem tornar-se conscientes; c já se requer um
nálise está, em última análise, construída sobre a percepção da
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 25'
256 CONHECIMENTO E INTERESSE
desta motilidade hereditária. Em nível antropológico as exigên¬ derivativos entram em contato associativo com uma parte da organização
do ego n ã o é de modo algum certo que n ã o atraiam essa porção para si
cias pulsionais são representadas por i n t e r p r e t a ç õ e s , a saber, por
p r ó p r i o s c assim se ampliem à custa do ego. Uma analogia, com a qual
satisfações alucinatórias de desejo. Pelo fato das exigências l i b i -
de há muito estamos familiarizados, comparou um sintoma com um corpo
•dinosas e agressivas serem disfuncionais tanto para a autoconser- estranho que vinha mantendo uma s u c e s s ã o constante de e s t í m u l o s e r e a ç õ e s
v a ç ã o dos indivíduos quanto para a da espécie, estas exigências no tecido no qual estava encravado. De fato, ocorreu algumas vezes que
•estatelam-se contra a realidade. A instância do E u , responsável a luta defensiva contra um impulso instintual desagradável é eliminada
pelo teste-da-realidade, faz com que esses conflitos sejam previ¬ com a formação d; um sintoma. A t é onde sc pode verificar, isto e fre¬
síveis; ela reconhece aquelas m o ç õ e s pulsionais que, ao motiva¬ q ü e n t e m e n t e p o s s í v e l na c o n v e r s ã o histérica. M a s em geral o resultado e
rem ações, provocariam situações perigosas, tornando inevitáveis diferente. O ato inicial da repressão é acompanhado p o r uma seqüência
tediosa ou i n t e r m i n á v e l ; nela a luta contra o impulso instintual se pro¬
•conflitos externos. Estes impulsos instintuais o Eu os reconhece 2
longa até (ser) uma luta contra o sintoma".**
indiretamente, enquanto tais, como perigos. E l e reage com an¬
gústia e com técnicas próprias à angústia de defesa. Nos casos
•onde o conflito entre desejo e realidade não pode ser solucionado A luta s e c u n d á r i a da defesa contra os sintomas mostra que
.através de intervenções na realidade, só resta a fuga como alter- o processo interno da fuga, com o qual o Eu se esconde perante
jiativa. Se, p o r é m , por ocasião de um excesso constante de fan¬ si p r ó p r i o , substitui um a d v e r s á r i o externo pelos derivativos do
tasia do desejo frente às possibilidades reais de satisfação, a situa- i d , neutralizados em corpos estranhos.
258
CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 259
sao no quadro í m g u r s ü c o como sendo o apartamento das idéias o nome para a parte do psiquismo exteriorizado pela defesa,
e n q U a n t
enquanto " E g o " é a instância que executa a tarefa do teste-de-
3 O ! o
elfSpoe
p U l S ã H n g U a g e m t a L p a r a
A
realidade e da censura pulsional. A d i s t i n ç ã o t o p o l ó g i c a entre
inconsciente e consciente (e/ou p r é - c o n s c i e n t e ) parece coincidir
"que a d i s t i n ç ã o real entre uma r e p r e s e n t a ç ã o (de um pensamento) Ics com esta diferenciação estrutural. Se for permitido denominar
s t e S V T P C S
- ««"ciente) consiste no f a K a pleí a de reflexão a dinâmica do fazer-consciente, então o processo in¬
verso ao da reflexão deverá transformar aquilo que é consciente
no que é inconsciente. Acontece que esta mesma e x p e r i ê n c i a
«« s " n A d r - r A s t A —~ ™sz clínica, da qual as construções do ego e do id tomaram seu pon¬
algo se torna p r é - c o n s c i e n t e ? ' E a resposta serh- < V n / i . , t s o s l
m a n l to de partida, mostra que a atividade da i n s t â n c i a ocupada com
s e n t a ç õ - s verl-nk ™ , u - P a sena. Vinculando-se às repre-
t i u d ç o w s verbais que lhe sao c o r r e s p o n d e n t e s ' " . « 3
f
a defesa ( p s í q u i c a ) de forma alguma se processa sempre cons¬
cientemente mas, antes pelo c o n t r á r i o , revela na maioria das vezes
_ Ora, a distinção entre representação verbal e representar™ uma d i n â m i c a inconsciente. T a l fato torna n e c e s s á r i o segundo
Freud a i n t r o d u ç ã o da categoria do "superego":
u s
Hipófèfe de um substrato nao-v<erbal, junto ao qual estas réíníre
S d
s
iso
taç s,
^n j^ ^ s ^sm^ e oid ' iMqiie "e a s da g u s e r e a l i z a m
" .
*s "O sinal objetivo d a resistência é o fato de seus recursos associativos des-
falecercm
tilado. Ele
ou se separarem
(o paciente) pode
demasiadamente do
também reconhecer
tema que
subjetivamente
e s t á sendo ven¬
a resis¬
t ê n c i a pelo fato dc ter sentimentos d e s a g r a d á v e i s quando se aproxima do
lema. liste ultimo sinal pode, contudo, estar t a m b é m ausente. Dizemos
a
are r ™— e n t ã o ao paciente que inferimos de sua conduta que
e s t a d o - d e - r e s i s t é n c i a , c ele responde que nada sabe disso e só se apercebe
d a dificuldade q u e t e m e m formular livremente suas associações. (Assim)
mostra-se que tínhamos razão; mas, nesse caso, sua resistência era também
ele e s t á , agora, em
tó A a
XrSeria v
cateTorh > . jp
d
r
d
r o d u
cia
ao
- ~i rs inconsciente, t ã o inconsciente quanto o reprimido
mos trabalhando. Há muito d e v e r í a m o s ter feito a pergunta: dc que parte
em cuja r e m o ç ã o
uma i n t e r p r e t a ç ã o das e x p e r i ê n c i a s que o analista fez junto à À adaptação inteligente à realidade exterior, a qual p õ e o
Eu em c o n d i ç õ e s de efetuar o teste-de-realidade, corresponde a
260 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 261
de defesa nao é senão o lado negativo, está ausente — a á u t o - cidade, mas t ã o - s o m e n t e emprega "eletricidade" como o psicó:-,
'
nega a origem de suas próprias categorias, as quais se impuseram vir algum dia a ser substituída pelo emprego f a r m a c o l ó g i c o da" 1
alterações da consciência na medida em que dispõe sobre funções j de uma imagem. No microscópio c no telescópio, como sabemos, isto ocorre
do organismo humano como se dispusesse sobre processos natu¬ em parte em pontos ideais, em r e g i õ e s nas quais não se acha situado
nenhum componente tangível do aparelho. Não vejo necessidade para
rais objetivados. Pelo contrário, a experiência da reflexão, indu¬
desculpar-me pelas i m p r e c i s õ e s desta ou de qualquer outra imagem seme¬
zida pelo esclarecimento, é o ato pelo qual o sujeito precisamente
lhante. Analogias desta espécie destinam-se apenas a auxiliar nossos esfor-
se liberta de uma s i t u a ç ã o em que chegou a ser um objeto para I
ços em tornar inteligíveis as complicações do funcionamento psíquico,
si mesmo. Esta r e a l i z a ç ã o específica deve ser exigida do sujeito através da dissecação da função e da atribuição de seus diferentes consti-
enquanto tal. Nada a pode substituir; n ã o pode haver, portanto, tuintes a partes componentes diferentes do aparelho (...).
tecnologia que a substitua, mesmo que, num outro plano, a téc¬ Por conseguinte, representamos o aparelho psíquico como um instrumento
nica sirva para dispensar o sujeito de suas p r ó p r i a s r e a l i z a ç õ e s . composto, a cujas partes queremos dar o nome de instâncias ou (por amor
Tomando como ponto de partida os conhecidos modelos da a maior clareza) sistemas. A seguir, deve-sc prever que estes sistemas
neurofisiologia da é p o c a acerca do movimento t r a ç a d o pelos neu¬ podem talvez ficar numa r e l a ç ã o espacial regular uns com os outros, da
A
r ô n i o s , Freud e s b o ç o u , em seus primeiros anos, uma psi- mesma forma pela qual os diversos sistemas de lentes de um telescópio
5 i e s t ã o dispostos um atrás do outro. Falando de modo estrito, n ã o há neces¬
cologia da qual, logo mais, viria a se distanciar.' Na ocasião
J sidade de supor que os sistemas p s í q u i c o s estejam realmente dispostos numa
Freud esperava poder fundamentar a psicologia direta e imedia-
ordem espacial. Seria suficiente que fosse estabelecida uma ordem fixa
tamente como uma ciência da natureza, a saber, como parte es- j
pelo fato de, num determinado processo p s í q u i c o , a e x c i t a ç ã o passar a t r a v é s
pecial de uma fisiologia cerebral que, por sua vez, era pré-mol- i dos sistemas numa s e q ü ê n c i a temporal especial". 78
reinterpretação mentalista. A energia transforma-se em energia í de expressões mentalistas ( p u l s ã o , excitação, desprazer, prazer,
;
pulsional, sobre cujo substrato s o m á t i c o n ã o é possível proferir desejo) com processos físicos {quantum e n e r g é t i c o , t e n s ã o e des¬
j u í z o s mais exatos. I n i b i ç ã o e descarga das reservas e n e r g é t i c a s , carga de energia e, enquanto propriedade do sistema, a t e n d ê n c i a
bem como os mecanismos de sua r e p a r f ç ã o trabalhariam confor- , deste à perda de energia) é suficiente para separar as categorias
me o modelo de um sistema distendido espacialmente; doravante do consciente e do inconsciente do sistema referencial da auto-
renuncia-se, p o r é m , à l o c a l i z a ç ã o destes processos: 1
r e f l e x ã o ; estas categorias, adquiridas a partir da c o m u n i c a ç ã o en¬
tre m é d i c o e paciente, são agora alocadas para o modelo da dis¬
"A idéia, que nos é posta à disposição, ó a de uma localização psíquica. tribuição de energia:
Queremos deixar sem maior c o m e n t á r i o o fato de o aparelho psíquico
do qual aqui se trata, nos ser igualmente conhecido na forma dc uma
"O primeiro desejo parece ter sido uma catexia a l u c i n a t ó r i a da l e m b r a n ç a
preparação anatômica e queremos evitar cuidadosamente o esforço de
de satisfação. Tais a l u c i n a ç õ c s , contudo, se n ã o devessem ser mantidas
determinar a l o c a l i z a ç ã o em termos anatômicos. Nós nos mantemos no C
até o ponto de e x a u s t ã o , mostraram ser inapropriadas para ocasionar a
campo p s i c o l ó g i c o e só nos propomos a seguir as e x i g ê n c i a s de que deva¬
c e s s a ç ã o da necessidade ou, por conseguinte, do prazer que se liga à sa¬
mos representar o instrumento que executa nossas realizações psíquicas
tisfação.
como algo semelhante a um m i c r o s c ó p i o composto, como uma c â m e r a foto¬
gráfica ou algo deste tipo. Nesta base, a localização psíquica correspon- ! U m a segunda atividade — ou, como dissemos, a atividade de um segundo
d e r á a um ponto do aparelho em que surge uma das etapas preliminares sistema — tornou-se necessária, atividade que não permitiria à catexia
CRÍTICA COMO UNIDADE, DE CONHECIMENTO E INTERESSE 26'
2 6 6 CONHECIMENTO E INTERESSE
estrutural, a moldura categorial da p s i c a n á l i s e está presa, em ter¬ tos em nível semântico mas, no plano dos fatos, esta verificabi-
mos lógico-científicos, às pressuposições de uma interpretação de lidade n ã o se reaüza jamais e t a m b é m n ã o o pode ser.
textos deformados e mutilados, com os quais os autores enganam- É p o s s í v e l que Freud n ã o se tenha dado conta do alcance
se a si mesmos, então a f o r m a ç ã o da teoria permanece embutida desta l i m i t a ç ã o pelo fato de haver considerado a s i t u a ç ã o analí¬
no contexto da auto-reflexão. tica do diálogo como uma o p e r a ç ã o de c a r á t e r quase-experimen-
Üniea alternativa oferece a tentativa de reformular as hipó¬ tal e ter, por isso, concebido a base clínica da e x p e r i ê n c i a como
teses psicanalíticas no cadinho categorial de uma ciência experi¬ um substituto capaz de satisfazer a verificação experimental. À
mental estrita. A s s i m , certos teoremas receberam nova formu¬ objeção de que a psicanálise n ã o tolera nenhuma d e m o n s t r a ç ã o
lação nos quadros de uma psicologia da aprendizagem de cunho experimental Freud contrapõe o argumento da astronomia: essa
behaviorista e, em c o n s e q ü ê n c i a , foram submetidos aos habituais ciência também não experimenta mas está limitada àquilo que
procedimentos vcrificatórios. M a i s pretensiosa é a tentativa de S5
observa. Mas a diferença específica entre a o b s e r v a ç ã o dos as¬
reconstruir, com os recursos do funcionalismo moderno, o mo¬ tros e o diálogo analítico está no fato de, no primeiro caso, a
delo da personalidade, desenvolvido pela psicologia do E u , mas seleção quase-experimental das c o n d i ç õ e s iniciais permitir uma
fundamentado numa d i n â m i c a pulsional, como um sistema que o b s e r v a ç ã o controlada de eventos possíveis de serem prognosti¬
se regula a si p r ó p r i o . Em ambos os casos a nova armação teó¬ cados, enquanto, no segundo caso, o plano do controle dos su¬
rica possibilita uma o p e r a c i o n a l i z a ç ã o dos conceitos, em ambos 8
cessos, p r ó p r i o s à ação instrumental, " estar totalmente ausente e
os casos ela exige, em base de c o n d i ç õ e s experimentais, uma ser representado através do plano da intersubjetividade, inerente à
verificação das hipóteses deduzidas. Freud por certo supôs, sem c o m p r e e n s ã o m ú t u a acerca do sentido de s í m b o l o s i n i n t e l i g í v e i s .
fazer maior c o m e n t á r i o , que sua Metapsicologia, a qual liberta Que Freud, mesmo assim, teime obstinadamente em ver no diá¬
o modelo estrutural dos pressupostos da c o m u n i c a ç ã o entre mé¬ logo analítico a única base experimental n ã o apenas para o de¬
dico e paciente e, em vez disso, o entrelaça com o modelo da senvolvimento da metapsicologia mas t a m b é m para a validade da
distribuição energética através de meras definições, representa, teoria trai, por outro lado, uma consciência do verdadeiro status
nos moldes das ciências experimentais, uma f o r m u l a ç ã o estrita desta ciência. Freud por certo pressentia que a r e a l i z a ç ã o con¬
desta espécie. s e q ü e n t e cio programa de uma psicologia " c i c n t í f i c o - n a U i r a l i s í a "
Seu posicionamento frente à metapsicologia, da qual vez por ou, no m í n i m o , sua exata execução cm termos behavioristas teria
outra fala como se fosse uma "feiticeira" para se defender con¬ que ter sacrificado a intenção à qual a p s i c a n á l i s e deve, exclusi¬
tra seu inquietante caráter especulativo, n ã o foi isento de ambi- vamente, sua existência: a intenção do esclarecimento — de acoi-
valências.81
Bem possível que em tal ambivalência sc escondia do com o qual o id deve vir a ser E u . Verdade é que Freud
t a m b é m uma leve dúvida quanto ao status desta ciência, a qual n ã o abandonou tal programa, ele não entendeu a metapsicologia
ele, no mais, sustentou de forma tão enfática. Freud iludiu-se como aquilo que ela tão-somente no sistema referencial da auto-
ao achar que a psicologia, na medida em que se entende como reflexão pode ser: como uma interpretação genérico-universal de
uma ciência experimental propriamente dita, n ã o se pode satis¬ processos que afetam a formação da espécie.
fazer com um modelo que m a n t é m uma terminologia fisicalista Faria sentido reservar o designativo metapsicologia à q u e l a s
sem conduzir seriamente a h i p ó t e s e s que possam ser operaciona- h i p ó t e s e s fundamentais que se referem ao complexo p a t o l ó g i c o
lizadas. O modelo da distribuição energética n ã o engendra mais da linguagem cotidiana c da i n t e r a ç ã o , e os quais podem ser
do que aparência, isto é, como se os enunciados psicanalíticos expostos em um moaeio estruiurai a mz cia teoria a a l i n g u a g e m .
se relacionassem com alterações energéticas mensuráveis. Mas, Nesse caso n ã o se trata de uma teoria e m p í r i c a , mas de uma
nenhuma p r o p o s i ç ã o sequer acerca das grandezas quantitativas, metateoria ou, melhor, de uma meta-hermenêutica que elucida as
deduzidas segundo o ponto de vista da economia pulsional, foi c o n d i ç õ e s de possibilidade do conhecimento p s i c a n a l í t i c o . A me-
algum dia verificado de acordo com critérios experimentais. O tapsicologia desdobra a lógica da interpretação na situação ana¬
modelo do aparelho psíquico está concebido de tal maneira que lítica do diálogo. Nesse sentido ela se localiza ao mesmo nível
i
algo assim como verificabilidade é associado pelos acontecimen- da metodologia das ciências da natureza è do e s p í r i t o . C o m o
2'0 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 2'1
estas, ela reflete o quadro transcendental do conhecimento analí¬ mesma forma a linguagem e a p r á x i s da vida, os motivos acionais
tico como um conjunto objetivo de defesa organizada; e isso sig¬ são concebidos t a m b é m como necessidades interpretadas pela lin¬
nifica aqui, simultaneamente, como um conjunto objetivo de pro¬ guagem, de sorte que as m o t i v a ç õ e s n ã o representam impulsos
cessos a u t o - i n v e s t i g a t ó r i o s . N ã o há d ú v i d a de que no plano da que agem retroativamente mas, sim, i n t e n ç õ e s que orientam sub¬
auto-reflexão n ã o pode haver, diferentemente do que ocorre na jetivamente são mediatizadas simbolicamente e e s t ã o , ao mesmo
lógica das c i ê n c i a s da natureza e do espírito, algo assim como tempo, ligadas umas às outras.
uma metodologia separada de c o n t e ú d o s materiais, eis que a es¬ A tarefa da metapsicologia é, portanto, demonstrar que este
trutura da c o n e x ã o cognitiva se confunde com o objeto a ser co¬ caso normal é o caso-limite de uma estrutura de m o t i v a ç ã o que
nhecido. Entender a s i t u a ç ã o da t r a n s f e r ê n c i a como c o n d i ç ã o de depende, concomitantemente, de i n t e r p r e t a ç õ e s que afetam tanto
um conhecimento p o s s í v e l significa, ao mesmo tempo, compreen-. necessidades comunicadas publicamente quanto necessidades re¬
der um complexo patológico. Devido a tal conteúdo material, primidas e privatizadas. Os símbolos isolados e os motivos re¬
os enunciados t e ó r i c o s , os quais, g o s t a r í a m o s de reservar para a calcados por meio dos mecanismos de defesa desenvolvem seu
metodologia, n ã o foram conhecidos como p r o p o s i ç õ e s m e t a t e ó - poder por sobre a cabeça dos sujeitos, e f o r ç a m a i m p o s i ç ã o de
ricas e, a rigor, t a m b é m n ã o foram distinguidos das interpreta¬ satisfações e símbolos substitutos. Desta maneira eles obscure-
ções empíricas significativas dos processos de formação que, co¬
cem o texto dos jogos da linguagem cotidiana e se destacam
mo tais, se desencaminharam. Mesmo assim há que registrar uma
como perturbação das interações habituais: através da compul¬
diferença no plano metodológico: as interpretações genérico-uni-
:
são, da mentira, e pela incapacidade de corresponder às expecta¬
versais são, como teorias c i e n t í f i c o - e x p e r i m e n t a s , diretamente
tivas sociais obrigatórias. As m o t i v a ç õ e s inconscientes adquirem
acessíveis ao controle e m p í r i c o — n ã o importando a diferença
assim, em face das conscientes, o c a r á t e r de uma p u l s ã o , agindo
de sua base experimental — enquanto as hipóteses meta-herme-
às costas destas motivações conscientes, o c a r á t e r daquilo que é
nêuticas fundamentais sobre a atividade p r ó p r i a à c o m u n i c a ç ã o ,
pulsional por excelência. E como os potenciais motivadores, tan¬
sobre a d e f o r m a ç ã o da linguagem e a patologia do comporta¬
to aqueles que se acham i n c l u í d o s no sistema social da auto-
mento p r o v ê m de urna reflexão posterior acerca das c o n d i ç õ e s
c o n s e r v a ç ã o coletiva quanto aqueles que n ã o se encontram inte¬
cio conhecimento p s i c a n a l í t i c o p o s s í v e l , o apenas indiretamente,
grados nesse sistema mas são reprimidos, revelam claramente
por assim dizer, podem ser confirmadas à luz de uma categori-
r
z a ç ã o global de processos i n v e s t i g a t ó r i o s ou, então, sf finalmente t e n d ê n c i a s agressivas e libidinosas, uma teoria da p u l s ã o se torna
rejeitadas. i n d i s p e n s á v e l . Importa, p o r é m , m a n t ê - l a isenta de um falso obje-
Ao nível da auto-reflexão, a metodologia das ciências da na¬ tivismo. Já o conceito de instinto, o qual é relacionado ao com¬
tureza pode fazer assomar à superfície uma c o n e x ã o específica portamento animal, é adquirido privativamente da p r é - c o m p r e e n -
entre linguagem e atividade instrumental, ao passo que a metodo¬ são de um mundo humano, restrito por certo, mas sempre já in¬
logia das ciências do e s p í r i t o pode trazer à luz uma r e l a ç ã o entre terpretado no horizonte da linguagem o r d i n á r i a — em termos
linguagem e i n t e r a ç ã o ; ambas podem r e c o n h e c ê - l a como um com¬ mais simples, adquirido a partir das s i t u a ç õ e s da fome, do amor
plexo objetivo e d e t e r m i n á - l a em sua função transcendental. A e do ó d i o . Tal vinculação com as estruturas de sentido do mun¬
mctapsicologia trata igualmente de uma relação fundamental, a do da vida, por mais elementares que sejam, n ã o perde sua vi¬
saber: daquela entre deformação da linguagem c patologia do gência para o conceito da p u l s ã o , transposto para o homem a
comportamento. Ao f a z ê - l o , ela p r e s s u p õ e , uma teoria da lingua¬ partir do eme chamamos de animal. Trata-se de i n t e n ç õ e s enco¬
gem ordinária, cuja tarefa consiste n ã o menos em clarear, sob o bertas e erráticas que, de motivos conscientes, se inverteram em
fundamento de um reconhecimento m ú t u o , a validade intersub- causas, submetendo assim o agir da c o m u n i c a ç ã o à causalidade
jetiva de símbolos e a mediação verbal das interações, do que de circunstâncias asselvajadas. Esta causalidade é a do destino
tornar compreensível a aquisição societária da gramática dos jo¬ e n ã o a da natureza, eis que ela exerce poder por meio dos recursos
gos de linguagem como processos de i n d i v i d u a ç ã o . C o m o , de simbólicos do espírito, razão por que ela também só pode ser
acordo com esta teoria, a estrutura da linguagem determina da dominada pela força da reflexão.
2'2 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 2'3-
A t r a v é s da obra de A l f r e d Lorenzcr, o qual entende a anᬠteração são, de início, i n c o m p r e e n s í v e i s tanto para o sujeito quan¬
lise de processos d i n â m i c o - p u l s i o n a i s como análise da linguagem to para seus semelhantes. Essa alteração torna-se c o m p r e e n s í v e l
8'
no sentido de uma h e r m e n ê u t i c a profunda, estamos em c o n d i ç õ e s no plano da intersubjetividade, a qual precisa ser, antes de mais
de focalizar mais acuradamente os mecanismos decisivos da pa¬ nada, estabelecida entre o sujeito, como E u , e o sujeito, coma
tologia da linguagem, da d e f o r m a ç ã o das estruturas internas da Id; e isso na medida em que m é d i c o e paciente rompem con¬
ação e da linguagem, bem como os de sua dissolução analítica. juntamente a barreira da c o m u n i c a ç ã o . T a l tarefa é facilitada
A a n á l i s e s e m â n t i c a , a qual decifra nos sintomas os motivos in¬ pela situação transferenciai, uma vez que o agir inconsciente fren¬
conscientes da mesma forma como ela, em base de passagens te ao m é d i c o permanece sem resultado, de maneira que o conflito
deformadas, de lacunas de um texto, decifra o sentido recalcado renovado ricocheteia contra o p r ó p r i o doente e, uma vez reco¬
pela censura, ultrapassa a d i m e n s ã o do sentido supostamente sub¬ nhecido seu c a r á t e r compulsivo com o concurso interpretativo do
jetivo da atividade intencional. T a l análise vai além da lingua¬ analista, pode vir a ser conectado com as cenas indefinidamente
gem e, na medida em que está a, serviço da c o m u n i c a ç ã o , penetra reiteradas fora da análise e, finalmente, ser reconduzido ao cená¬
naquela camada s i m b ó l i c a , onde os sujeitos iludem-se a si mes¬ rio infantil de origem. Esta r e c o n s t r u ç ã o dissolve as falsas iden¬
mos com a linguagem e, ao mesmo tempo, nela se traem. É por tificações existentes entre e x p r e s s õ e s p r ó p r i a s à linguagem públi¬
isso que a análise pactua com c o n e x õ e s causais; estas se i m p õ e m ca e expressões p r ó p r i a s ao linguajar privado, e permite que se
no momento em que a linguagem, uma vez e x c l u í d a da comuni¬ compreenda o elo gramatical encoberto entre um s í m b o l o isolado
c a ç ã o p ú b l i c a por meio da r e p r e s s ã o , reage com uma c o m p u l s ã o e um texto p ú b l i c o distorcido por um ou mais sintomas. O en¬
complementar e obriga a c o n s c i ê n c i a e a a ç ã o comunicativa a t r e l a ç a m e n t o entre símbolos lingüísticos, gramatical em sua es¬
se dobrarem frente aos imperativos de uma segunda natureza. sência, i m p õ e - s e em seu modo de aparição como um encadea-
N u m lado das extremidades de tais encadeamentos encontram-se, mento causai entre eventos e m p í r i c o s e caracteres sedimentados
normalmente, e x p e r i ê n c i a s t r a u m á t i c a s de uma cena infantil c, 88
da personalidade. A auto-reflexão remove-o; com isso a de-
no outro, as a l t e r a ç õ e s da realidade, perpetuadas sob o impacto í o n n a ç ã o que caracteriza a linguagem privada desaparece da mes¬
da c o m p u l s ã o à r e p e t i ç ã o , c atitudes comportarnentais anormais. ma nianeíra corno a s i n t o m á t i c a satisfação substituta de motivos
N u m a s i t u a ç ã o infantil o processo original dc defesa acontece acionais recalcados mas, agora, acessíveis ao controle consciente.
como fuga diante de um contraente superior. T a l processo sub¬
O modelo das três i n s t â n c i a s — E u , Id, Superego — possi¬
trai à comunicação pública a interpretação lingüística do motivo
bilita uma a p r e s e n t a ç ã o sistemática da estrutura da linguagem e
que levou ao comportamento defensivo. C o m isso, a c o e r ê n c i a
da patologia do comportamento. Os enunciados m e t a - h e r m e n ê u -
gramatical da linguagem p ú b l i c a permanece intacta, enquanto
ticos podem ser organizados neste modelo. Eles elucidam o qua¬
partes deste c o n t e ú d o s e m â n t i c o são privatizadas. A f o r m a ç ã o
dro m e t o d o l ó g i c o no qual as i n t e r p r e t a ç õ e s , empiricamente ricas
de um sintoma e q ü i v a l e à c r i a ç ã o de um substituto para um sím¬
em c o n t e ú d o , dos processos formativos podem ser desenvolvidos.
bolo, o qual possui agora um peso valorativo alterado. O símbo¬
Estas i n t e r p r e t a ç õ e s genérico-universais precisam, p o r é m , ser dis-
lo eliminado n ã o é totalmente banido dos conjuntos p r ó p r i o s à
tinguidas da moldura metapsicológica. Trata-se de i n t e r p r e t a ç õ e s
linguagem p ú b l i c a ; mas esta p e r t e n ç a gramatical fica sendo, por
referentes ao desenvolvimento da primeira infância (relativa à
assim dizer, uma c o n e x ã o s u b t e r r â n e a . Sua força persuasiva lhe
gênese da base motivadora e da formação paralela das funções
advém pelo fato de embaralhar a lógica do uso público da lin¬
do Eu) c que servem de matrizes narrativas que, em cada caso
guagem através de identificações semânticas errôneas. O símbolo
particular da biografia, devem ser encaradas como esquemas de
recalcado continua, por certo, inteligível ao nível do texto públi¬
i n t e r p r e t a ç ã o , a fim de que possa ser encontrada a cena primeva
co quando visto à luz de critérios objetivos que, como regras
do conflito n ã o resolvido. Os mecanismos de aprendizagem, com
formais, são o resultado'"'de c i r c u n s t â n c i a s contingentes da bio¬
os quais Freud conta (escolha de objeto, identificação com o
grafia; mas este s í m b o l o n ã o é mais posto em r e l a ç ã o com regras
modelo, introjeção de objetos-de-amor abandonados), tornam
intersubjetivamente reconhecidas. É por isso que o s i n t o m á t i c o
compreensíveis a d i n â m i c a do surgimento de estruturas do Eu ao
encobrimento do sentido e a correspondente p e r t u r b a ç ã o da i n -
nível de i n t e r a ç õ e s mediadas simbolicamente. Os mecanismos de
2'4 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 2'5
defesa intervém no processo na medida em que as normas sociais, elas foram adquiridas de acordo com o m é t o d o e l á s t i c o das ante¬
encarnadas pelas expectativas frente às primeiras pessoas de re¬ c i p a ç õ e s h e r m e n ê u t i c a s circularmente comprovadas. M a s , mes¬
ferência, confrontam o Eu da criança com um poder insupor¬ mo tais e x p e r i ê n c i a s já estavam sob a influência genérica do es¬
tável e forçam-no a fugir de si mesmo rumo à objetivação de si quema antecipado de processos de formação perturbados. Ade¬
p r ó p r i o . O processo de f o r m a ç ã o da criança é determinado por mais, qualquer i n t e r p r e t a ç ã o que reivindique o status da "univer¬
problemas de cuja solução depende se e em que grau o processo salidade" subtrai-se ao método hermenêutico, próprio à contínua
ulterior de socialização será entravado pela h e r a n ç a de conflitos c o r r e ç ã o da p r é - c o m p r e e n s ã o junto ao texto. Diferentemente do
n ã o resolvidos e onerado por limitações de funções do Eu e, que ocorre com a a n t e c i p a ç ã o h e r m e n ê u t i c a do f i l ó l o g o , a inter¬
assim, por meio de um ponto de partida predeterminado, ser p r e t a ç ã o genérico-tiniversal é "constatada" e, enquanto teoria uni¬
levado a uma a c u m u l a ç ã o de erros, de coações e de fracassos — versal, precisa ser confirmada a t r a v é s de prognoses dedutivas. Se
ou, se o processo formativo possibilita um desenvolvimento rela¬ a p s i c a n á l i s e p r o p õ e uma matriz narrativa, sobre a qual processos
tivamente estável da identidade do E u . de f o r m a ç ã o interrompidos podem ser completados, tornando-se
As interpretações genérico-universais de Freud contêm hi¬ assim uma h i s t ó r i a sem lacunas, os p r o g n ó s t i c o s que são adqui¬
p ó t e s e s acerca de diversos modelos de interação entre a criança ridos com sua ajuda, servem para reconstruir o passado; mas,,
€ suas primeiras pessoas de referência, sobre os conflitos corres¬ t a m b é m eles são hipóteses que podem gorar.
pondentes e sobre formas apropriadas para resolvê-los, alem de U m a i n t e r p r e t a ç ã o g e n é r i c o - u n i v e r s a l determina processos de
modelos acerca das estruturas da personalidade, resultantes de tais f o r m a ç ã o como uma s u c e s s ã o regular de estados s i s t ê m i c o s , al¬
•soluções ao final do processo de socialização da primeira infância. ternados de acordo com os respectivos pontos de partida. É por
Tais interpretações apresentam, por seu lado, fatores potenciais isso que as variáveis g e n é t i c a s , historicamente relevantes, podem
para a biografia posterior, permitindo que se façam prognoses ser analisadas em seu todo, sempre em vista da d e p e n d ê n c i a do
parciais. Como os processos de aprendizagem se realizam pelas sistema. A coerência objetivorintcncional da biografia, a qual
vias da ação conmnicativa, a teoria pode assumir a forma de uma não sc torna acessível senão através da auto-reflexão, não é por
narração, a qual expõe narrativamenie o desenvolvimento psico- certo funcionalista no sentido usual do termo. Os eventos ele¬
dinâmico da criança como uma seqüência continuada de ação: mentares s ã o , muito mais, c e n á r i o s dc um drama; eles n ã o se
com uma divisão típica de papéis, conflitos básicos que se impõem mostram sob o ponto de vista instrumentalista da o r g a n i z a ç ã o
sucessivamente, modelos de i n t e r a ç ã o que tornam a voltar, enfim, de meios em relação a sua utilização ou, então, em vista do com¬
com perigos, crises, soluções, com triunfos e derrotas. C o m o , portamento adaptativo. A r e l a ç ã o dc conjunto funcional é inter¬
por outro lado, no plano da metapsicologia os conflitos são com¬ pretada de acordo com o modelo cênico: as cenas elementares
preendidos sob o ponto de vista da defesa, e as estruturas da aparecem como partes de um conjunto de i n t e r a ç õ e s , através,
personalidade entendidas de acordo com a relação recíproca de das quais se realiza o que denominamos de "sentido". Este sen¬
E u , Id e Superego, esta história é apresentada esqnematieamente tido n ã o o podemos equiparar aos fins p r ó p r i o s do modelo-de-
como um processo formativo que segue seu curso através das di¬ artesão, os quais são executados através de meios especiais. N ã o
versas etapas da auto-objetivação c que possui seu telos na auto- sc trata t a m b é m de uma categoria dc sentido emprestada do âmbi¬
consciência de uma biografia, cuja apropriação se efetua pela to funcional da atividade instrumental, como este é o caso, por
exemplo, da m a n u t e n ç ã o de um estado sistêmico que se encontra
auto-reflexão. '! -%\
sob c o n d i ç õ e s externas v a r i á v e i s . Trata-se de um sentido que,
Somente a p r e s s u p o s i ç ã o da metapsicologia permite uma ge¬
muito embora n ã o seja visualizado como tal, forma-se por meio
neralização sistemática daquilo que, de resto, permaneceria mera
da atividade da c o m u n i c a ç ã o e se articula, reflexivamente, como
história. A metapsicologia fornece uma série de categorias e de
e x p e r i ê n c i a biográfica. A s s i m o "sentido" vai-se descobrindo à
hipóteses fundamentais que, a rigor, englobam complexos de de¬
medida que o drama de densenrola. No processo de nossa pró¬
f o r m a ç ã o da linguagem e de patologia do comportamento. As
pria f o r m a ç ã o somos, por certo, atores e críticos numa e na mes¬
interpretações genérico-universais, desenvolvidas neste quadro,
ma e x p e r i ê n c i a . No fim o sentido do p r ó p r i o processo deve
são o resultado de múltiplas e repetidas experiências clínicas:
2'6 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 27'
poder chegar criticamente à c o n s c i ê n c i a , a nós que estamos en¬ a u t o - r e f l e x ã o executada, seguida por uma c o m u n i c a ç ã o entre o
volvidos no drama da nossa p r ó p r i a h i s t ó r i a - d a - v i d a ; o sujeito investigador e seu "objeto".
deve poder narrar sua p r ó p r i a h i s t ó r i a c ter compreendido as i n i - Poder-se-ia objetar que a validade e m p í r i c a das interpreta¬
b i ç õ e s que lhe estavam postas no caminho da auto-reflexão. O ções genéricas, igual àquela das teorias universais, é determinada
estado definitivo de um processo formativo só está, assim, alcan¬ por uma reiterada aplicação às reais condições iniciais, e que ela,
ç a d o quando o sujeito se recorda de suas identificações e aliena¬ na medida em que tem sido demonstrada, é o b r i g a t ó r i a para to¬
ç õ e s , de suas o b j e t i v a ç õ e s impostas e de suas reflexões conquis¬ dos os sujeitos que, de uma ou outra forma, estão abertos àquilo
tadas, como caminhos a t r a v é s dos quais ele se tem constituído. que chamamos de conhecimento. Esta f o r m u l a ç ã o correta en¬
Somente a história sistematicamente universalizada e meta- cobre, contudo, a diferença específica: aplicação de hipóteses à
psicologicamente fundada do desenvolvimento da primeira infân¬ realidade permanece, no caso da v e r i f i c a ç ã o de teorias através
cia, com suas variantes t í p i c a s , dá ao m é d i c o condições de compor da o b s e r v a ç ã o (portanto, no círculo funcional do agir instrumen¬
as informações fragmentárias, obtidas no curso do diálogo analí¬ tal), assunto do respectivo sujeito que investiga; mas, no caso
tico, de tal maneira que possa reconstruir as lacunas da recorda¬ do exame de interpretações g e n é r i c o - u n i v e r s a i s a t r a v é s da auto-
ção e antecipar, em termos de hipóteses, a experiência da reflexão, reflexão (portanto, no quadro de uma c o m u n i c a ç ã o entre mé¬
a qual o paciente é incapaz de formular no início da análise. Ele dico e paciente) a aplicação transmuta-se em a u t o - a p l i c a ç ã o do
p r o p õ e i n t e r p r e t a ç õ e s para uma h i s t ó r i a que o paciente não pode objeto da pesquisa que participa do processo cognitivo. Ó pro¬
contar; mesmo assim, tais i n t e r p r e t a ç õ e s só podem ser corrobo¬ cesso de pesquisa não pode conduzir a i n f o r m a ç õ e s v á l i d a s senão
radas pelo fato de o paciente as aceitar e, apoiando-se nelas, ao se transformar em uma a u t o - i n v e s t i g a ç ã o do paciente. Teorias
narrar sua p r ó p r i a h i s t ó r i a . A i n t e r p r e t a ç ã o de um caso não se são válidas, caso o sejam, para todos aqueles que podem assu¬
revela concludente s e n ã o ao permitir a c o n t i n u a ç ã o bem-sucedida mir a posição do sujeito que examina. As interpretações genérico-
de um. processo de f o r m a ç ã o que se acha interrompido. universais valem, caso valham, para o sujeito investigador, e para
todos os que podem assumir seu lugar, apenas na medida em
Interpretações genérico-universais possuem uma posição toda
que. aqueles que são feitos objetos de i n t e r p r e t a ç õ e s particulares
especial entre o sujeito que investiga c o d o m í n i o do objeto inves¬
se reconheçam a si próprios em tais interpretações. O sujeito
tigado. Enquanto que, cm casos normais, ó que denominamos clc
n ã o pode adquirir um conhecimento do objeto sem que este se
teoria c o n t é m p r o p o s i ç õ e s acerca de um d o m í n i o dc objeto ao
houvesse tornado um conhecimento para o objeto e este, através
qual estas, como enunciados, permanecem exteriores, a validade
daquele, se tivesse libertado e tornado um sujeito.
de i n t e r p r e t a ç õ e s g e n é r i c o - u n i v e r s a i s depende, precisamente, do
fato dos enunciados sobre o d o m í n i o do objeto serem aplicados Esta constelação não é, a rigor, t ã o surpreendente. Cada
a eles mesmos pelos "objetos", a saber, pelas próprias pessoas em interpretação pertinente, também aquela das ciências do espírito,
questão. As informações científico-experimentais comuns só fa¬ só é — pelo fato de restabelecer uma intersubjetividade pertur¬
zem sentido para os que participam do processo de pesquisa e, bada da compreensão mútua — possível em uma linguagem co¬
a seguir, para aqueles que utilizam tais i n f o r m a ç õ e s ; em ambos mum ao intérprete e a seu objeto. E l a deve, por conseguinte,
os casos a validade das i n f o r m a ç õ e s mede-se unicamente pelos valer para o sujeito e o objeto da mesma maneira. Por certo
critérios da coerência e da pertinência empírica. Elas apresentam que uma tal posição do pensamento possui, para as i n t e r p r e t a ç õ e s
conhecimentos que, pela a p l i c a ç ã o à realidade, têm sido experi¬ genérico-universais do processo de formação, conseqüências que
mentados junto aos objetos; mas elas t ã o - s o m e n t e possuem vi¬ não se impõem para interpretações na área das ciências do espí¬
gência para os sujeitos. Intelecções analíticas, pelo contrário, só rito. C o m efeito, interpretações g e n é r i c a s e teorias universais têm
podem ter validade para o analista depois de haverem sido, en¬ em comum a p r e t e n s ã o mais ampla de permitirem explicações
quanto conhecimentos, aceitas pelo analisado como tal. Pois, a causais e previsões condicionais. M a s , diferentemente do que
pertinência empírica de interpretações genérico-universais não ocorre nas ciências experimentais estritas, a p s i c a n á l i s e n ã o pode
depende de uma o b s e r v a ç ã o controlada e da posterior comuni¬ satisfazer tal p r e t e n s ã o sobre a base de uma s e p a r a ç ã o m e t o d o l ó ¬
c a ç ã o dos pesquisadores entre si mas, ú n i c a e exclusivamente, da gica exata entre o domínio do objeto e o plano dos enunciados
2'8 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 2'9
cem h i s t ó r i c a s . A exposição histórica serve-se de enunciados nar¬ e n s í v e i s , como um exemplo, quanto maior for o c a r á t e r t í p c o de
rativos. Tais enunciados chamam-se narrativos porque apresentam sua n a r r a ç ã o . O conceito do tipo designa aqui uma qualidade
80
acontecimentos como elementos de uma h i s t ó r i a . E x p l i c a m o s daquilo que pode ser traduzido: uma história é típica em uma
um evento narrativamente quando mostramos como um sujeito dada s i t u a ç ã o e em r e l a ç ã o a um p ú b l i c o determinado quando
é envolvido em uma história. Em cada h i s t ó r i a surgem nomes a " a ç ã o " pode facilmente ser destacada de seu contexto original
de i n d i v í d u o s , pois sempre se trata de m u d a n ç a s - d e - c s t a d o de e transferida para uma outra s i t u a ç ã o , igualmente individualizada.
um sujeito ou de um grupo de sujeitos, os quais se entendem Podemos aplicar o "caso t í p i c o " a nosso p r ó p r i o caso: somos
como s o l i d á r i o s . A unidade da história é fundada pela identidade nós próprios quem empreendemos a aplicação, abstraímos o com¬
de um horizonte de expectativas, possível de ser a t r i b u í d o a estes p a r á v e l do distinto e, respeitadas as c i r c u n s t â n c i a s especiais do
sujeitos. A narrativa relata, com efeito, a influência modifica- nosso caso, concretizamos o modelo derivado pela via desta
dora de acontecimentos experimentados subjetivamente, esses que abstração.
irrompem em um mundo-da-vida c adquirem significação para Tal é também o procedimento do médico que reconstrói a
sujeitos que agem. Em tais h i s t ó r i a s os sujeitos devem poder biografia do doente com a ajuda dc um material d i s p o n í v e l ; o
compreender a si p r ó p r i o s , da mesma forma como devem poder paciente, como tal, n ã o procede de outra maneira quando, com
entender seu mundo. A significação h i s t ó r i c a de qualquer acon¬ ajuda do esquema proposto, narra sua h i s i ó r i a - d e - v i d a , t a m b é m
tecimento está sempre relacionada, de .forma i m p l í c i t a , com a em seus detalhes até e n t ã o esquecidos. A m b o s n ã o se orientam,
c o n e x ã o de sentido de uma biografia, cuja coesão é mantida pela por certo, em um exemplo, mas — exatamente — em um esque¬
identidade do E u , ou de uma história coletiva, determinada ma. Na interpretação genérico-universal faltam os traços indivi¬
pela identidade do grupo. É por isso que a e x p o s i ç ã o narrativa duais do exemplo, o passo em d i r e ç ã o à a b s t r a ç ã o já está feito;
está comprometida com a linguagem o r d i n á r i a ; pois, somente a m é d i c o e paciente n ã o t ê m mais o que fazer senão ativar o es¬
reflexividade sui generis do linguajar cotidiano permite comunicar quema. A g e n e r a l i z a ç ã o s i s t e m á t i c a consiste, portanto, no se¬
aquilo que é individual cm expressões que, inevitavelmente, são guinte: em e x p e r i ê n c i a s h e r m e n ê u t i c a s precedentes já se abstraiu
universais. 90
de muitas h i s t ó r i a s t í p i c a s , tendo em vista a multiplicidade dos
casos individuais. A interpretação genérico-universal não contém
Cada h i s t ó r i a é, pelo fato de representar um conjunto indi¬ nome dc indivíduos, apenas papéis anônimos; ela não contém cir¬
vidualizado, uma história particular. Cada exposição histórica i m - c u n s t â n c i a s contingentes, mas c o n s t e l a ç õ e s que retornam sempre
plica a exigência por unicidade. Ainda que não abandone o pla¬ de novo, e modelos de a ç ã o ; ela não contém um emprego idiomá-
no da exposição narrativa, uma interpretação genérico-universal tico da linguagem, mas um v o c a b u l á r i o estandardizado. E l a n ã o
precisa, pelo c o n t r á r i o , romper esta l i m i t a ç ã o do que é h i s t ó r i c o . apresenta um processo t í p i c o s e n ã o que descreve, em conceitos-
E l a possui a forma de uma n a r r a ç ã o , porque deve servir a su¬ de-tipo, o esquema para uma atividade com variantes condicio¬
jeitos que reconstroem sua p r ó p r i a biografia na forma de uma nais, É desta maneira que Freud e x p õ e o complexo de É d i p o
narrativa; mas ela só pode ser matriz para muitas destas narra¬ e suas s o l u ç õ e s : com a ajuda de conceitos estruturais com eu,
ç õ e s , porque n ã o deve ter vigência exclusiva para um caso indi¬ id e superego (os quais foram obtidos a partir de e x p e r i ê n c i a s do
vidual determinado. E l a é uma história generalizada em termos d i á l o g o a n a l í t i c o ) ; recorrendo a p a p é i s , pessoas e modelos dâ in¬
sistemáticos porque fornece o esquema de um s e m - n ú m e r o de t e r a ç ã o (resultantes da estrutura familiar) e, finalmente, pelo
280 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 281
recurso a mecanismos da ação e da c o m u n i c a ç ã o (como escolha cia, basta constatar se o acontecimento singular corresponde à
de objeto, identificação e i n t e r i o r i z a ç ã o ) . O emprego de uma definição operacional pela qual a e x p r e s s ã o t e ó r i c a é determina¬
linguagem ordinária nos moldes de uma terminologia n ã o carac¬ da. Esta aplicação operacional move-se, necessariamente, no
teriza um estágio fortuito de desenvolvimento da p s i c a n á l i s e . A n ¬ quadro do agir instrumental. E l a n ã o satisfaz, portanto, a aplica¬
tes pelo c o n t r á r i o , todas as tentativas dc dar à metapsicologia uma ção de expressões teóricas que afetam interpretações genérico-
forma mais precisa fracassaram porque as c o n d i ç õ e s da a p l i c a ç ã o universais. O material, ao qual estas i n t e r p r e t a ç õ e s são aplicadas,
de interpretações genérico-universais excluem uma formalização n ã o consiste em eventos singulares, mas se c o m p õ e de e x p r e s s õ e s
da linguagem do dia-a-dia. C o m efeito, os t é r m i n o s que aí são simbólicas, próprias a uma biografia fragmentária; portanto, de
empregados estão a serviço da e s t r u t u r a ç ã o de narrativas; a eles partes constituintes de um complexo individualizado em termos
se recorre, procurando contato com a linguagem usual do pacien¬ específicos. Neste caso, depende da c o m p r e e n s ã o h e r m e n ê u t i c a
te, quando ambos, m é d i c o e paciente, completam o esquema ana¬ daquele que libera o material, se um elemento de sua biografia
lítico da n a r r a ç ã o nos termos de > uma h i s t ó r i a . Ao introduzir for ou n ã o adequadamente interpretado por uma e x p r e s s ã o teóri¬
nomes de indivíduos em lugar de p a p é i s a n ô n i m o s , e preenchen¬ ca proposta. Esta aplicação hermenêutica movimenta-se, neces¬
do modelos de i n t e r a ç ã o para deles fazer cenas vividas, eles de¬
sariamente, na moldura de uma c o m u n i c a ç ã o inerente à lingua¬
senvolvem ad hoc uma nova linguagem; nesta, a linguagem da
gem cotidiana. Sua r e a l i z a ç ã o n ã o é, p o r é m , a mesma da aplica¬
interpretação universal é posta de acordo com a do paciente.
ç ã o operacional. Enquanto nesta se decide se, para a teoria, con¬
Esta etapa faz com que a aplicação se revele como uma dições empíricas disponíveis podem servir de aplicação — o me¬
tradução. Isto permanece encoberto, enquanto a linguagem ordi¬ canismo da d e d u ç ã o teórica permanece aqui, enquanto tal, in¬
nária da teoria, formulada segundo uma terminologia específica, tacto — a aplicação h e r m e n ê u t i c a p r o p õ e - s e a tarefa de trans¬
vem em auxílio da linguagem do paciente sobre o pano de fundo formar a matriz narrativa das i n t e r p r e t a ç õ e s g e n é r i c o - u n i v e r s a i s
societário comum, próprio à proveniência burguesa c à formação em urna n a r r a ç ã o ; portanto, sc ocupa cm plenijicar uma história
escolar de ura giuasiano. O' problema cia t i a d u ç â o torna-se ex¬ individual, fazendo dela urna e x p o s i ç ã o narrativa: as c o n d i ç õ e s
plícito, como tal, quando a d i s t â n c i a social da linguagem se relativas à aplicação definem uma execução da interpretação que,
acentua. Ereud tem consciência deste falo. Isto se mostra por no plano da i n t e r p r e t a ç ã o g e n é r i c o - u n i v e r s a l , deve, como tal, ser
ocasião do debate acerca da possibilidade de a p s i c a n á l i s e , no evitada. As deduções t e ó r i c a s e s t ã o , por certo, mediatizadas por
futuro, encontrar uma difusão ao nível das massas: uma c o m u n i c a ç ã o com o m é d i c o ; na verdade elas precisam, po¬
r é m , ser empreendidas pelo paciente enquanto tal.
"Defrontar-nos-emos, então, com a tarefa de adaptar a nossa técnica às
novas condições. N ã o tenho dúvidas de que a pertinência de nossas novas
Isto tem a ver com a particularidade m e t o d o l ó g i c a (II), a
hipóteses psicológicas fará boa impressão também sobre as pessoas pouco saber: interpretações g e n é r i c o - u n i v e r s a i s n ã o obedecem aos mes¬
instruídas; mas precisaremos buscar as formas mais simples e mais facil- mos critérios de refutação que são p r ó p r i o s às teorias universais.
mente inteligíveis de expressar as nossas doutrinas teóricas". 81
Se uma prognose condicional, deduzida de uma h i p ó t e s e nomo-
lógica c dc certas condições iniciais da operação, for falsificada,
Os problemas da a p l i c a ç ã o , com os quais as teorias científi- a h i p ó t e s e p o d e r á ser vista como refutada. U m a i n t e r p r e t a ç ã o
co-experimentais sc confrontam, são apenas aparentemente anᬠgenérico-universal nós a podemos verificar de forma a n á l o g a , de¬
logos. Na aplicação de hipóteses nomológicas às condições ini¬ duzindo uma c o n s t r u ç ã o a partir dc suas ( p r ó p r i a s ) d e d u ç õ e s e
ciais de uma o p e r a ç ã o , os eventos singulares, expressos em pro¬ das c o m u n i c a ç õ e s do doente. A tal c o n s t r u ç ã o podemos dar a
p o s i ç õ e s de existência ("esta pedra"), são igualmente postos em forma de um prognóstico condicional. Caso ele confira, o pa¬
relação com as expressões universais das proposições teóricas. ciente será levado a produzir determinadas r e c o r d a ç õ e s , a refletir
M a s este tipo de s u b s u n ç ã o n ã o apresenta maiores problemas, eis um certo fragmento dc sua biografia esquecida e a superar as
que os acontecimentos singulares só entram em c o n s i d e r a ç ã o na perturbações da comunicação e do seu comportamento. Mas,
medida em que preenchem os critérios dos predicados universais nesse caso, o caminho da falsificação n ã o é o mesmo das teorias
("esta pedra" está, por exemplo, para "massa"). Em c o n s e q ü ê n - universais. Pois, se o paciente rejeitar uma c o n s t r u ç ã o , a inter-
282. CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 283
p r e t a ç ã o , da qual esta c o n s t r u ç ã o foi deduzida, n ã o poderá, já um campo muito grande. Desta maneira, a ú n i c a i n t e r p r e t a ç ã o segura de
por isso, ser vista como refutada. H i p ó t e s e s psicanalíticas repor¬ seu 'não' é que ele aponta para a qualidade de n ã o ser completo; não
tam-se, depois de tudo, a c o n d i ç õ e s onde a e x p e r i ê n c i a está sus¬ pode haver dúvida de que a construção não lhe disse tudo.
pensa, muito embora elas devam-se corroborar exatamente junto Parece, portanto, que as elocuções diretas do paciente, depois que lhe foi
oferecida uma c o n s t r u ç ã o , fornecem muito poucas provas sobre a questão
a essa experiência: a experiência da reflexão 6 a única instância
de saber sc estivemos certos ou errados. É do maior interesse que existam
na qual aquilo que chamamos de h i p ó t e s e s pode vir a ser confir¬ formas indiretas de c o n f i r m a ç ã o , que s ã o , sob todos os aspectos, fide-
mado ou falsificado. Quando esta i n s t â n c i a n ã o se i m p õ e , fica dignas". - 9
continuação de um processo de formação, isto é, junto à auto-re- referentes a cenas do passado do sonhador, parece em especial importante
indagar se a i n f l u ê n c i a do m é d i c o t a m b é m pode desempenhar algum pape!
flexão que se executa e não j á , com certeza, naquilo que o pa¬
em conteúdos de sonhos deste tipo. E essa questão é a mais urgente de
ciente profere ou na maneira como ele se comporta. Sucesso e todas, no caso dos sonhos chamados corroborativos, que, por assim dizer,
insucesso n ã o são aqui, como no horizonte do agir instrumental 'seguem atrás' da análise. Com alguns pacientes, esses s ã o os únicos sonhos
no quadro da atividade comunicativa, cada vez constatáveis em que se consegue. Tais pacientes reproduzem apenas as e x i g ê n c i a s passadas
termos intersubjetivos. Mesmo o desaparecimento dos sintomas de sua infância depois dc havê-las construído a partir de seus sintomas,
n ã o permite que se chegue a uma c o n c l u s ã o i r r e v o g á v e l : eles po¬ associações e outros sinais, e proposto a eles essas construções. Seguem-se,
então, os sonhos c o r r ò b o r a n t e s acerca dos q u a i s s u r g e , contudo, a dúvida
deriam muito bem ter sido subslituídos por outros sintomas, ini¬
de saber se n ã o podem ser i n t e i r a m e n t e d e s p i d o s de v a l o r p r o b a t ó r i o , e m
cialmente inacessíveis tanto à o b s e r v a ç ã o quanto à experiência
vista da possibilidade dc terem sido imaginados em s u b m i s s ã o às palavras
da i n t e r a ç ã o . T a m b é m o sintoma está basicamente comprome¬ d o analista, cm lugar de trazidos à luz desde o i n c o n s c i e n t e do sonhador.
tido com a significação que ele possui para o sujeito engajado na l\'ão se pode fugir a essa situação ambígua na análise, de vez que, com
defesa contra ele; ele está incorporado ao complexo da auto-obje- esses pacientes, e a menos que se interprete, construa e proponha, jamais
tivação e da auto-refJexão e não possui, além deste, nenhum po¬ obtemos acesso ao que neles está reprimido". 03
Mesmo a confirmação indireta através da associação não presente cm determinada época, ou reforçar um instinto à custa .de.
outro, tal coisa seria, então, uma terapia causa] no verdadeiro sentido da.,
tem senão um valor relativo, caso for considerada isoladamente.
palavra, para a qual nossa a n á l i s e teria efetuado o i n d i s p e n s á v e l trabalho
Com razão Freud insiste que apenas a c o n t i n u a ç ã o da análise preliminar de reconhecimento. No momento atual, como sabem, não.
pode decidir algo sobre a utilidade ou inutilidade de uma cons¬ existe semelhante método de influenciar os processos libidinais; com ;
t r u ç ã o : tão-somente o contexto do processo da formação em seu nossa terapia psíquica atacamos, em conjunto, diferentes pontos — - não
90
todo possui o poder de corroborar òu de falsificar. exatamente os pontos que sabemos serem as raízes dos fenômenos, mas.'
ainda assim, bem distantes dos sintomas; os .pontos que sc nos tornaram
Mesmo no caso em que sc trate de i n t e r p r e t a ç õ e s g e n é r i c o - 37
acessíveis devido a algumas circunstâncias assaz peculiares". , •;.
universais, a verificação dc hipóteses só pode obedecer àquelas
regras que são adequadas à s i t u a ç ã o cio exame; somente estas
garantem rigorosa objetividade da validade ( c i e n t í f i c a ) . Quem, A comparação cia psicanálise com a análise bioquímica revê-:
pelo contrário, reclama que interpretações genéricas sejam trata¬ la que suas h i p ó t e s e s não abarcam c o n e x õ e s causais entre eventos;
das como as i n t e r p r e t a ç õ e s filológicas dc textos ou como teorias empíricos observáveis; não fosse assim, as informações científicas
universais e sejam, em c o n s e q ü ê n c i a , submetidas a critérios que, nos dariam c o n d i ç õ e s de alterar uma determinada s i t u a ç ã o pela
do exterior, determmam o curso da i n v e s t i g a ç ã o — quer se trate mera m a n i p u l a ç ã o de seus dados. A p s i c a n á l i s e n ã o nos concede
dos critérios do jogo da linguagem em vigência, quer dos critérios uma disponibilidade t é c n i c a sobre o psiquismo doente, o qual seja
da observação controlada — coloca-se de saída fora da dimensão semelhante à q u e l a que a b i o q u í m i c a exerce sobre o organismo-
da auto-reflexão, o único domínio no qual os enunciados psica- enfermo. E, mesmo assim, ela realiza mais do que um mero
n a l í f c o s podem fazer sentido. tratamento de sintomas porque, ainda que n ã o seja ao nível de
eventos físicos, ela n ã o deixa de abranger c o n e x õ e s causais — e
Uma última particularidade da lógica, própria às interpreta¬
isso cm um ponto "que se nos tornou a c e s s í v e l por meio dc cir¬
ções genérico-universais, resulta (III) do vínculo da compreensão
c u n s t â n c i a s assaz peculiares". Este é, precisamente, o ponto em.
hermenêutica com a explicação causai: o ato-do-compreender ad-
que linguagem e comportamento são patologicamente deformados
quire, ele próprio, poder explanatório. A circunstância de as cons¬
pela causalidade de s í m b o l o s isolados e motivos reprimidos. C o m
t r u ç õ e s poderem assumir, em vista dos sintomas, a forma de hi¬
Hegel podemos distingui-la da causalidade da natureza e c h a m á -
p ó t e s e s e x p l i c a t ó r i a s revela o parentesco com os procedimentos
la de uma causalidade do destino; pois, a r e l a ç ã o causai entre
a n a l í t i c o - c a u s a i s . O fato de uma c o n s t r u ç ã o ser, enquanto tal,
cena primeva, defesa e sintoma n ã o e s t á ancorada, segundo leis-'
uma interpretação, e a instância da verificação um ato da reme-
naturais, em uma invariância da natureza mas, de forma asselva-
m o r a ç ã o e da a n u ê n c i a do paciente, mostra, ao mesmo tempo, a
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 28'
CONHECIMENTO E INTERESSE
286
mais nada, uma c o n s t r u ç ã o proposta pelo m é d i c o ao paciente
iada em uma invariância da biografia, representada pela com-
como uma hipótese explicativa, deduzida de uma interpretação'
pulsão à repetição, mas suscetível de ser removida pelo poder da genérico-universal e de condições suplementares; pois, a c o n e x ã o
r e í l C
causai em debate vige entre uma s i t u a ç ã o conflitante do passado
As 'hipóteses que deduzimos, a partir de interpretações gené¬
e as reações c o m p u l s i v a m e n t é reiteradas no presente (sintoma).
ricas n ã o se reportam à natureza, como é o caso das teorias uni¬
M a s , quanto ao c o n t e ú d o , as h i p ó t e s e s referem-se ao conjunto-
versais, mas à esfera que, pela a u t o - o b j e t i v a ç ã o , , tornou-se uma
de-sentido, o qual está determinado pelo conflito, pela defesa,
•secunda natureza, a saber: ao "inconsciente". Este termo foi pen¬
frente a desejos capazes de gerar conflito, pela s e g r e g a ç ã o do.
sado para designar a classe de todas as c o a ç õ e s motivadoras, m-
símbolo de desejo, pela satisfação substituta do desejo censurado,,
•dependizadas de seu contexto, que emanam daquelas disposições
pela f o r m a ç ã o do sintoma e pela defesa s e c u n d á r i a . Em termos
.da necessidade, desautorizadas pela sociedade e cuja existência
h i p o t é t i c o s , um complexo causai é formulado como um conjunto-
pode ser evidenciada na conexão causai entre, por um lado a
de-sentido hermeneuticamente compreensível. T a l f o r m u l a ç ã o pre¬
s i t u a ç ã o da frustração originária e, por outro, certas atitudes
enche as condições de uma h i p ó t e s e causai e, ao mesmo tempo,.,
anormais da linguagem e do comportamento. O peso de motiva¬
as de uma i n t e r p r e t a ç ã o , (em vista de um texto deformado por
ções desta espécie constitui uma medida para avaliar perturba-
meio do sintoma). A c o m p r e e n s ã o inerente à h e r m e n ê u t i c a pro¬
•ções e desvios do processo formativo. Enquanto, pela disponibi¬
funda assume a função da e x p l i c a ç ã o . E l a corrobora sua força
lidade técnica sobre a natureza, fazemos com que esta, em vir¬
explanatória na auto-reflexão, suprimindo uma objetivação que'
tude de nosso conhecimento acerca das c o n e x õ e s causais, trabalhe
entende e, concomitantemente, explica: esta é a e f e t u a ç ã o crítica,
para n ó s a i n t e l e c ç ã o analítica envolve a causalidade do incons¬
daquilo que Hegel subsumiu sob o título do compreender ("agar¬
ciente como tal: diferentemente do que ocorre na medicina so¬
rar pelo pensamento").
m á t i c a , "causai" que é em sentido estrito, a terapia nao repousa
sobre um ato-do-reivindicar a pertinência dos conhecidos elos De acordo com sua forma lógica, a c o m p r e e n s ã o explana-
•causais; pelo c o n t r á r i o , a terapa deve muito mais sua eficácia a t ó r i a distingue-se, por certo, em um ponto decisivo da e x p l i c a ç ã o . ,
wvressão das c o n e x õ e s causais em si. A metapsicologia contem, formulada em termos rigorosamente c i c n t í t i c o - c x p e r i m c n t a i s . A m ¬
de qualquer maneira, hipóteses referentes ao mecanismo da de¬ bas a p ó i a m - s e sobre enunciados causais, adquiridos com ajuda de
fesa da disjunção de s í m b o l o s , do recalque de motivos, alem de c o n d i ç õ e s suplementares a partir de p r o p o s i ç õ e s universais, isto
h i p ó t e s e s sobre o modo complementar do trabalho da auto-re- é, de i n t e r p r e t a ç õ e s deduzidas (variantes condicionais) ou de
flexão, isto é, hipóteses que "explicam" a gênese e a remoção de hipóteses nomológicas. Ocorre que o conteúdo das proposições
uma causalidade do destino. Um complemento para as hipóteses t e ó r i c a s permanece inalterado frente à a p l i c a ç ã o operacional à
n o m o l ó g i c a s das teorias universais seriam, cm c o n s e q ü ê n c i a as realidade; nesse caso podemos apoiar as e x p l i c a ç õ e s sobre leis,.
hipóteses básicas da metapsicologia acerca da estrutura da lin¬ sem contexto. No caso de uma e x p l i c a ç ã o h e r m e n ê u t i c a , pelo
guagem e do agir; mas exatamente estas são desenvolvidas em contrário, asserções teóricas são traduzidas de tal forma na ex-
n í v e l m e t a t e ó r i c o e não possuem, assim, o status de hipóteses posição narrativa de uma história individual que o enunciado
n o m o l ó g i c a s ("comuns"). . causai não cria corpo sem este contexto. I n t e r p r e t a ç õ e s g e n é r i c a s
só podem, abstratamente, manter sua p r e t e n s ã o por uma validade
O conceito de uma causalidade do inconsciente permite, ou- universal porque suas d e d u ç õ e s são, além disso, determinadas pelo
trossim, compreender o efeito terapêutico da "analise' ; uma pala¬ contexto. As explicações narrativas distinguem-se das o p e r a ç õ e s -
vra na qual, n ã o por acaso, somaram-se crítica como conheci¬ estritamente dedutivas pelo fato de os eventos ou as circunstân¬
mento e crítica como m u d a n ç a . U m a análise causai so atinge as cias, para as quais reivindicam uma r e l a ç ã o causai, receberem
•conseqüências imediatamente práticas da crítica pelo tato de o uma d e t e r m i n a ç ã o suplementar no curso de sua a p l i c a ç ã o . O que
•complexo empírico, o qual ela abarca, ser simultaneamente um chamamos de i n t e r p r e t a ç õ e s g e n é r i c o - u n i v e r s a i s n ã o autorizam, em.
•complexo intencional, passível de uma c o m p r e e n s ã o e recons- c o n s e q ü ê n c i a , explicações isentas de um contexto. 88
"Vimos que n ã o é cientificamente v i á v e l traçar uma linha demarcafória "O m ó v e l da sociedade humana é, em ú l t i m a a n á l i s e , de ordem e c o n ô m i ¬
•entre o que é psiquicamente normal e anormal, dc maneira que esta ca; como não dispõe de meios de vida suficientes para manter vivos
d i s t i n ç ã o , apesar de sua i m p o r t â n c i a p r á t i c a , possui apenas um valor con¬ todos os seus membros, a menos que trabalhem, ela é obrigada a limitar
10
vencional". o o número de seus membros c desviar suas energias da atividade sexual,
reorientando-as para o trabalho. Em suma, defronta-se com as eternas e'
Caso, p o r é m , aquilo que a cacla vez deve ser considerado primevas e x i g ê n c i a s da vida, as quais nos assediam a t é o dia de hoje". 1A
formas patológicas. Assim como a compulsão à repetição do in¬ extrair a riqueza desta para a s a t i s f a ç ã o das necessidades humanas; por
outro, engloba todas as i n s t i t u c i o n a l i z a ç õ e s n e c e s s á r i a s para ajustar as
terior, a violência institucional provoca, do exterior, uma repro¬
relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição
dução imune à crítica e relativamente rígida, própria a um com¬ da riqueza d i s p o n í v e l . As duas t e n d ê n c i a s da c i v i l i z a ç ã o n ã o s ã o inde¬
portamento constante e inalterado: pendentes uma da outra; em primeiro lugar, porque as r e l a ç õ e s m ú t u a s
dos homens são profundamente influenciadas pela quantidade de satis-
"Nosso conhecimento das d o e n ç a s n e u r ó t i c a s ' dos i n d i v í d u o s foi dc gran- fação puisional, a qual a riqueza existente torna possível; em segundo
de a u x í l i o para a c o m p r e e n s ã o das grandes i n s t i t u i ç õ e s sociais; pois, as lugar, porque, individualmente, um homem pode, ele p r ó p r i o , vir a fun¬
neuroses mostraram ser tentativas de encontrar s o l u ç õ e s individuais para cionar como riqueza em relação a outro homem, na medida em que a
o problema de compensar os desejos insatisfeitos, que por intermédio das outra pessoa faz uso de sua capacidade de trabalho ou o escolhe como
i n s t i t u i ç õ e s devem receber uma s o l u ç ã o social". 103
objeto sexual; em terceiro lugar, ademais, porque todo i n d i v í d u o é vir¬
tualmente um inimigo da civilização, embora se suponha que essa deva
1 0 ( i
constituir um interesse humano universal".
Disto resulta t a m b é m o ponto de vista para decifrar o patri-
mônio cultural da tradição. Nele se sedimentaram os conteúdos
da p r o j e ç ã o das fantasias de desejo, as quais exprimem i n t e n ç õ e s A última formulação, a saber, que cada um é um inimigo
reprimidas. Tais c o n t e ú d o s podem ser concebidos como sublima- virtual da civilização, remete já para uma d i f e r e n ç a entre Freud
ções que apresentam satisfações virtuais e garantem uma indeni- e M a r x . Este concebe o quadro institucional como uma regula¬
zação publicamente autorizada para a r e n ú n c i a imposta pela cul- m e n t a ç ã o dos interesses que, no p r ó p r i o seio do sistema do tra¬
tura (e civilização). balho social, são fixados com base, nas r e l a ç õ e s existentes entre
indenizações sociais c obrigações socialmente impostas. Em con-
"Toda a h i s t ó r i a da cultura (e/ou c i v i l i z a ç ã o ) nada mais c do que um seqüência, o poder das instituições provém, para M a r x , do fato
relato acerca dos diversos caminhos que os homens tentaram trilhar a
ele estatuírem uma distribuição de compensações e encargos; esta
fim de sujeitar seus desejos insatisfeitos sob as condições canibiantes —
d i s t r i b u i ç ã o assenta sobre a violência e está deformada em ter¬
e alteradas pelo a v a n ç o t é c n i c o — da garantia e da f r u s t r a ç ã o por parte
da realidade".NH
mos específicos de classe. Freud entende, pelo c o n t r á r i o , a mol¬
dura institucional na conexão existente entre ela e a r e p r e s s ã o das
Esta é a chave psicanalítica para uma teoria societária que, m o ç õ e s pulsionais; esta repressão precisa, segundo Freud, ser i m -
por um lado, converge de maneira surpreendente com a recons- posta ao sistema da a u t o c o n s e r v a ç ã o de maneira geral, indepen¬
trução marxista da história da espécie e, sob outro aspecto, traz dente do fato dc haver uma d i s t r i b u i ç ã o de bens e encargos, de
à tona pontos de vista especificamente novos. Da mesma forma acordo com critérios específicos de classe (pelo menos enquanto
como M a r x com o termo sociedade, F r e u d compreende com uma economia de escassez pôr sobre cada s a t i s f a ç ã o o sinete
"cultura" aquilo pelo qual a espécie humana se eleva para além coercivo da compensação):
das condições da existência animal. E l a é um sistema dc auto-
c o n s e r v a ç ã o que, antes de mais nada, preenche duas f u n ç õ e s : a "É digno dc registro que, por pouco que os homens sejam capazes de
da afirmação do homem contra a natureza e a da organização das existir isoladamente, sintam, n ã o obstante, como um pesado fardo os sa¬
1 0 3
relações dos homens entre s i . Igual a M a r x , Freud distingue — crifícios que a civilização deles espera, a fim dc tornar possível a vida
ainda que sob outros t é r m i n o s — as forças produtivas, as quais c o m u n i t á r i a . A c i v i l i z a ç ã o precisa, portanto, ser defendida contra o indi¬
indiciam o estágio da disponibilidade técnica sobre os processos víduo; c seus regulamentos, instituições e imperativos põem-se a serviço de
tal tarefa. N ã o apenas objetivam efetuar uma certa d i s t r i b u i ç ã o da rique¬
naturais, das relações de p r o d u ç ã o :
za, mas também manter essa distribuição; na verdade, têm de proteger
contra os impulsos hostis dos homens tudo o que contribui para a con¬
"A c i v i l i z a ç ã o humana, e x p r e s s ã o pela qual quero significar tudo aquilo quista da riqueza e a sua p r o d u ç ã o . As c r i a ç õ e s humanas s ã o facilmente
em que a vida humana se elevou acima de sua c o n d i ç ã o animal, e dife-
292 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 293
M a r x chama de ideologia, há nelas t a m b é m o que chamamos de nas experiências da reflexão. Por outro lado, M a r x não pôde pres¬
utopia. Desde que o progresso técnico abra a possibilidade obje¬ tar contas ao status da c i ê n c i a cuja f u n ç ã o , enquanto crítica, seria,
tiva de reduzir as repressões socialmente inevitáveis a um nível a de reconstruir o ato-da-autoconstituição da espécie: sua con¬
inferior àquele postulado pelas instituições, o conteúdo utópico cepção materialista de s í n t e s e entre homem e natureza continuava
111
pode ser liberado de sua j u n ç ã o com os elementos a l u c i n a t ó r i o s , limitada à a r m a ç ã o categorial da atividade instrumental. Em
ideológicos, próprios à legitimação • do poder, e passar à crítica tal armação conceituai um saber de p r o d u ç ã o podia ser justifi¬
dos complexos de d o m i n a ç ã o historicamente obsoletos. cado, mas n ã o o saber inerente à reflexão. Tampouco o modelo
Em tal contexto, t a m b é m a luta de classes encontra seu lugar. da atividade produtiva era adequado para reconstruir as r e l a ç õ e s ,
:
Enquanto o sistema de d o m i n a ç ã o que assegura as r e p r e s s õ e s entre d o m i n a ç ã o s o c i e t á r i a e ideologia. Na metaps cologia Freud
gerais, impostas a todos os membros da sociedade de forma igual, adquiriu', em contrapartida, um quadro de atividade comunicativa
for administrado por uma classe social, privações e frustrações deformada; este permite que se apreenda a gênese das institu*ções,
gerais virão acopladas com carências e decepções específicas de se avalie o peso valorativo das i l u s õ e s ; portanto, que se entenda
classe. T r a d i ç õ e s que legitimam a d o m i n a ç ã o de uma classe são d o m i n a ç ã o e ideologia num e no mesmo complexo. Freud pode,
obrigadas a indenizar a massa da p o p u l a ç ã o t a m b é m por tais frus¬ expor uma c o n e x ã o conceituai, a qual M a r x n ã o chegou a flagrar
trações específicas, as quais vão além das privações gerais. É por em sua intimidade.
isso que são sempre primeiro as massas exploradas que n ã o tole¬ Freud concebe as i n s t i t u i ç õ e s como um poder que substitui:
ram ser oprimidas por legitimações que se tornaram precárias, uma aguda v i o l ê n c i a exterior pela constante c o m p u l s ã o interna
invertendo contra a cultura estabelecida os c o n t e ú d o s u t ó p i c o s da de u m á c o m u n i c a ç ã o deformada e autolimitadora. De maneira-
tradição: correspondente, ele entende a t r a d i ç ã o cultural como um incons¬
ciente coletivo, de uma ou outra forma sempre censurado e v i - ,
"Sc nos voltarmos para as restrições que só sc aplicam a certas classes rado ao avesso; nele os s í m b o l o s isolados orientam para as vias
<la sociedade, encontraremos uni estado de coisas que é flagrante e q u e
da satisfação virtual os motivos que, embora exilados cia esfera
jamais deixou dc ser r e c o n h e c i d o . K dc esperar q u e essas classes siibpri-
vilegiadas invejem os privilégios das favorecidas c façam tudo o que
da c o m u n i c a ç ã o , são constantemente reativados. Estes motivos
podem para se libertarem de seu próprio excesso dc privação. Onde isso constituem as forças que, cm lugar da ameaça cie fora e do pe-
n ã o for p o s s í v e l , uma permanente parcela de descontentamento p e r s i s t i r á rigo da sanção imediata, forçam a consciência a ficar presa ao
no seio desta cultura, o que pode conduzir a perigosas revoltas. Se, po¬ inevitável, ao legitimarem a d o m i n a ç ã o enquanto tal. M a s eles
rém, uma cultura n ã o foi a l é m do ponto em que a s a t i s f a ç ã o de uma são, simultaneamente, as f o r ç a s das quais a c o n s c i ê n c i a cativa,
parte cie seus participantes depende da opressão da outra parte, parte
das ideologias pode vir a ser libertada pela a u t o - r e f l e x ã o , no
esta talvez maior — c este é o caso em todas as culturas atuais — é
momento em que um novo a c r é s c i m o no potencial de d o m i n a ç ã o
compreensível que as pessoas assim oprimidas desenvolvam' uma intensa
hostilidade para com uma cultura cuja existência cias tornam possível
da natureza desacredite as antigas formas de l e g i t i m a ç ã o .
pelo seu trabalho, mas dc cuja riqueza n ã o possuem mais do que uma Marx não pôde flagrar dominação e ideologia como uma co¬
mínima parceia. (... ) Não é preciso acentuar que uma civilização que m u n i c a ç ã o distorcida porque p r e s s u p ô s que os homens se distin¬
deixa insatisfeito um número t ã o grande dc seus participantes c os im¬ guiram dos animais no dia em que c o m e ç a r a m a produzir seus
pulsiona à revolta, n ã o tem nem merece a perspectiva dc uma e x i s t ê n c i a meios de s u b s i s t ê n c i a . M a r x estava convencido de que a e s p é c i e
duradoura", no
humana se elevara outrora sobre as c o n d i ç õ e s animais da existên¬
cia pela fato de haver ultrapassado os limites da i n t e l i g ê n c i a ani¬
M a r x havia elaborado a idéia do ato-da-autoconstituição da mal, podendo, em c o n s e q ü ê n c i a , transformar um comportamento
espécie humana em duas d i m e n s õ e s , a saber: como um processo adaptativo em um agir instrumental. Como base natural da his¬
de autoprodução, impulsionado pela atividade daqueles que par¬ tória lhe interessa, por isso, a organização corpóreo-especificada
ticipam do trabalho social, o qual é acumulado nas forças pro¬ da espécie sob a categoria do trabalho possível: o animal que fa¬
dutivas; e como um processo de formação, levado em frente pela brica instrumentos. O olhar de Freud, pelo c o n t r á r i o , n ã o estava
atividade c r í t i c o - r e v o l u c i o n á r i a das classes, o qual é conservado voltado para o sistema do trabalho social mas para a família. E l e
i
295 CONHECIMENTO E INTERESSE CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 297
s u p ô s que os homens se distinguiram dos animais no momento em possibilidade objetiva de libertar totalmente o quadro institucional
que tiveram sucesso em inventar uma agência que socializasse a do c a r á t e r repressivo que lhe é peculiar — mas t a m b é m n ã o pode,
prole biologcamente a m e a ç a d a e dependente por um p e r í o d o re¬ em princípio, desencorajar uma tal esperança. Freud indicou cla¬
lativamente longo. Freud estava convencido de que a espécie hu¬ ramente qual a d i r e ç ã o de uma h i s t ó r i a da e s p é c i e determinada,
mana se elevara outrora sobre as c o n d i ç õ e s animais da existência ao mesmo tempo, por um processo de a u t o p r o d u ç ã o sob a cate¬
pelo fato de haver ultrapassado os limites da s o c i e t a r i z a ç ã o ani¬ goria do trabalho e por um processo de f o r m a ç ã o sob as c o n d i ç õ e s
mal, podendo em c o n s e q ü ê n c i a transformar um comportamento de uma c o m u n i c a ç ã o deformada: o desenvolvimento das forças
regulado pelo instinto em um agir p r ó p r i o à c o m u i v c a ç ã o ("huma¬ produtivas engendra, em cada etapa, a possibilidade objetiva de
na). Como base natural da h i s t ó r i a lhe interessa, por isso, a orga¬ atenuar a v i o l ê n c i a do quadro institucional e "substituir a base
113
nização corpóreo-especificada da espécie sob a categoria do exce¬ afetiva de sua o b e d i ê n c i a c i v i l i z a t ó r i a por uma (base) r a c i o n a l " .
dente impulsionai e sua respectiva c a n a l i z a ç ã o : o animal inibido Cada passo no caminho da r e a l i z a ç ã o de uma idéia, posta em cena
em suas pulsões e que, ao mesmo tempo, fantasia. O desenvolvi-' t com a contradição de uma c o m u n i c a ç ã o deformada pela força, é
mento da sexualidade humana com seus dois zênites, interrompido marcado pela t r a n s f o r m a ç ã o da moldura institucional e pela des¬
pelo período da latência em base da repressão edipal, e a função truição de uma ideologia. O objetivo é "a fundamentação racional
da agressividade no estabelecimento da instância do Superego, fa¬ das prescrições culturais", portanto, uma organização das relações
zem com que o problema antropológico bás'co não lhe pareça ser sociais de acordo com o p r i n c í p i o de que a validade de toda e
a organização do trabalho, mas o desenvolvimento de instituições qualquer norma, com c o n s e q ü ê n c i a s de ordem política, venha a
capazes de resolver, de forma estável e duradoura, o conflito entre depender de um consenso, obtido por meio de uma c o m u n i c a ç ã o
1 1 3
o excedente pulsional e a c o e r ç ã o da realidade. É por isso que isenta de d o n r n a ç ã o . M a s Freud insiste em que todo esforço no
Freud n ã o c o m e ç a rastreando aquelas funções do Ego que sc de¬ sentido de incorporar tal idéia no plano da ação e de promover,
senvolvem, em nível cognitivo, no quadro da atividade instrumen¬ em termos r e v o l u c i o n á r i o - c r í t i c o s , o progresso do esclarecimento
tal. E l e concentra sua a t e n ç ã o sobre a gênese do fulcro motivador, está rigorosamente comprometido com a n e g a ç ã o determinada,
p r ó p r i o à atividade da c o m u n i c a ç ã o . Jnlcressa-Jhe compreender o própria ao sofrimento facilmente identificável — c chama atenção
desfno dos potenciais p r i m á r i o s da p u l s ã o nos meandros dc uma para a c o n s c i ê n c i a h i p o t é t i c o - p r á t i c a , a saber: executar um expe¬
i n t e r a ç ã o entre o ser que sc desenvolve e seu tiico ambiente, inte¬ rimento que t a m b é m pode n ã o dar em nada.
r a ç ã o determinada pela estrutura familiar da qual este i n d v í d u o -
As idéias do iluminismo p r o v ê m da reserva das ilusões trans r
que-cresce fica dependente durante uma longa fase de adestra¬
mitidas historicamente; r a z ã o por que devemos entender as ações
mento.
do iluminismo como a tentativa de testar, em c i r c u n s t â n c i a s dadas,
M a s caso a base natural da espécie humana estiver essencial¬ os limites de exeqüibilidade do conteúdo utópico, próprio ao par
:
mente determinada pelo excedente puls onal e pela prolongada de¬ trimônio cultural. Não há dúvida de que a lógica da tentativa e
pendência infantil, e se o surgimento das instituições puder ser, do erro exige que se façam r e s t r i ç õ e s no plano da r a z ã o , algo que
com base nessa i n t e l e c ç ã o , compreendido a partir das c o n e x õ e s de ' a lógica do controle c i e n t í f i c o - e x p e r i m e n t a l pode dispensar: em um
uma c o m u n i c a ç ã o deformada, então, aquilo que chamamos de do¬ teste que se proponha experimentar as c o n d i ç õ e s de uma possível
m i n a ç ã o c ideologia adquirirá uma outra função, um peso valora- " r e s t r i ç ã o do sofrimento", o risco de um aumento do sofrimento
tivo mais substancial do que aquele .que M a r x lhe predicara. C o m n ã o deve fazer parte do programa em q u e s t ã o . Dessas pondera¬
isso a lógica da dinâmica reflexiva,-dirigida contra dominação e ções resulta a prudente p r e c a u ç ã o de Freud frente ao "grande exr
ideologia, recebendo seus impulsos pelo progresso que ocorre no perimento cultural que se encontra atualmente em fase de aplicar
sistema do trabalho social (ciência e t é c n i c a ) , torna-se intelec¬ ção no imenso p a í s que se estende entre a Europa e a Á s i a " . 1 1 4
Q
tualmente acessível: trata-se da lógica da tentativa e do erro, mas progresso do conhecimento na d i m e n s ã o das c i ê n c i a s , bem como
transposto para o plano da história universal. Sob os pressupostos o da crítica, funda a e s p e r a n ç a "de que seja possível adquirir, pelo
da teoria de Freud, a chamada base natural não faz uma promessa trabalho científico, um saber sobre a realidade do mundo através
— a saber: pelo desenvolvimento dás forças produtivas haveria a do qual possamos aumentar nosso poder e em vista do qual posr
298 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 299
samos organizai: nossa vida". Esta e s p e r a n ç a , e somente essa, se¬ necessidades que não estejam já interpretadas em termos de lin¬
para basicamente a i n t e n ç ã o de uma filosofia com raízes iiuminis- guagem e nao estejam simbolicamente fixadas em ações virtuais A
tas das tradições dogmáticas: "minhas ilusões não são incorrigíveis h e r a n ç a da história natural, a qual consiste em um potencial de
como as ilusões religiosas, elas n ã o possuem o caráter alucinatório. impulsos desprovidos de qualquer e s p e c i a l i z a ç ã o , determina as con¬
Caso a e x p e r i ê n c i a mostrar que nos enganamos, renunciaremos a dições iniciais de reprodução da espécie humana, mas os meios de
nossas expectativas. Considerem, pois, minha tentativa a partir da¬ tal reprodução societária emprestam, de saída, à conservação da
quilo que ela é. . . " ; na verdade, como algo que pode ser prati¬ espécie a qualidade da autoconservação. Verdade é que devemos
camente revidado. T a l p r e c a u ç ã o n ã o emperra a atividade crí- acrescentar imediatamente que a experiência da a u t o c o n s e r v a ç ã o
t i c o - r e v o l u c i o n á r i a , mas interdita a certeza totalitária, a saber: a coletiva fixa já o conceito da p r é - c o m p r e e n s ã o , a partir do qual
idéia, pela qual essa certeza se deixa orientar, é realizável sob inferimos privativamente algo assim como c o n s e r v a ç ã o da espécie
qualquer c i r c u n s t â n c i a . Para Freud d o m i n a ç ã o e ideologia pos¬ em vista da pré-história animal da espécie humana. Seja como for,
suem r a í z e s demasiadamente profundas para que, em lugar de uma í uma r e c o n s t r u ç ã o da história da espécie, a qual n ã o abandone o
lógica da e s p e r a n ç a fundada e da tentativa controlada, ele possa terreno da crítica, precisa recordar-sc da base de sua experiência
proclamar uma confiança (irrestrita no futuro da humanidade). 115
e conceber a espécie a partir do "instante" em que esta n ã o pode
Esta é a vantagem de uma teoria que incorpora, na base na¬ reproduzir sua vida senão em c o n d i ç õ e s culturais, como um sujeito
tural da história, a herança flexível de uma história natural, patri¬ que necessita, antes de mais nada e de qualquer forma, de se re¬
m ô n i o de um potencial instintual que engloba tanto tendências produzir como sujeito.
libidinosas e agressivas quanto a possibilidade de romper o meca¬ A
M a r x , nesse sentido herdeiro da t r a d i ç ã o idealista, manteve
nismo da satisfação imediata. M a s , paradoxalmente, este mesmo tacitamente a síntese como ponto de referência: a síntese de uma
ponto de vista pode, igualmente, levar a uma construção objetivis- p o r ç ã o de natureza subjetiva com uma natureza objetiva para esta
ta da história, a qual conduz Freud a um estágio dc reflexão an¬ síntese; isso supõe que as c o n d i ç õ e s contingentes da síntese reme¬
terior à q u e l e que M a r x atingira, e o impede de elaborar a inte- tam a uma natureza já explorada cm' si. "Natureza em si" é, po¬
l e c ç ã o básica da psicanálise cm termos de uma teoria da socie- rém, uma c o n s t r u ç ã o ; ela designa uma natnra naturanx que engen¬
111
dade. '' Pelo fato de M a r x haver comprometido o ato-da-auto- drou do mesmo modo a natureza subjetiva como aquela que se lhe
c o n s t i t u i ç ã o da espécie com o mecanismo do trabalho social, ele opõe como natureza objetiva, mas sempre de tal maneira que nós,
nunca se v i u seduzido a dissociar a d i n â m i c a do desenvolvimento enquanto sujeitos cognoscentes, n ã o possamos, em princípio, to¬
h i s t ó r i c o da atividade da espécie, enquanto um sujeito, e a conce¬ mar posição fora ou até "por baixo" da divisão da chamada "na¬
ber assim tal a u t o c o n s t i t u i ç ã o nas categorias da r e v o l u ç ã o natural. tureza em si" em uma natureza subjetiva e uma natureza objetiva.
Freud, pelo contrário, introduziu, já em nível metapsicológico, um Os potenciais reconstruídos do impulso natural fazem, como tais,
modelo energético dc dinâmica pulsional que visualiza naquilo que parte da natureza incognoscível; mesmo assim tais potenciais são
chamamos de objetivo sua objetividade preferida. A s s i m Freud vê acessíveis ao conhecimento na medida em que determinam a cons¬
t a m b é m o processo cultural da espécie como uma realidade presa telação inicial do conflito, em cuja solução a espécie humana está
à d i n â m i c a das p u l s õ e s : as forças libidinais e agressivas, potestades engajada ao ponto dc esmorecer. As formas pelas quais o conflito
p r é - h i s t ó r i c a s da e v o l u ç ã o , perpassam por assim dizer o sujeito da é decidido são, pelo contrário, dependentes das condições culturais
espécie e determinam sua história. Ocorre que o modelo biológico de nossa existência: trabalho, linguagem e poder. Certificamo-nos
da filosofia da h i s t ó r i a não é outra coisa do que a sombra refletida das estruturas do trabalho, da linguagem e do poder não de uma
do modelo t e o l ó g i c o , ambos igualmente pré-críticos. As pulsões forma ingênua, mas graças a uma auto-reflexão do conhecimento;
como primum movens da história, cultura como resultado de sua essa toma como seu ponto de partida uma teoria da ciência, assume
luta — uma tal c o n c e p ç ã o teria esquecido que acabamos de ad¬ posteriormente uma versão transcendental e, por fim, certifica-se dá
quirir privativamente o conceito do impulso pulsional, única e ex¬ conexão objetiva dessas estruturas.
clusivamente, a partir da d e f o r m a ç ã o da linguagem e da patologia O processo de investigação das ciências da natureza está or¬
do comportamento. No plano a n t r o p o l ó g i c o n ã o deparamos com ganizado no quadro transcendental da atividade instrumental, de
"300 ('<)Nlli:ClMENTO E INTERESSE CRÍTICA C O M O UNIDADE DH CONHECIMENTO E INTERESSE 301
sorte que 6 n<N«IMl iamentc do ponto de vista da disponibilidade c a r á t e r plenificante, isto é, apenas no momento em que estamos
técnica possível que a natureza se torna um objeto de conhecimen- convencidos de que a razão pode vir a ser transparente a si mesma
to. O processo de pesquisa das ciências do espírito articula-se no através do exercício da autofundamentação. Mas, caso conceba-
plano transcendental da atividade própria à comunicação, de ma- mos a capacidade cognitiva e a força crítica da razão a partir de
neira que a explicação de complexos significativos está necessaria- uma autoconstituição da espécie humana em condições naturais
mente subordinada ao ponto de vista que preserva o maior grau contingentes, então resulta disso que a razão é, enquanto tal,
possível de intersubjetividade em vista da compreensão mútua. inerente ao interesse. C o m esta unidade de r a z ã o e interesse Freud
Devido ao fato de refletirem as estruturas de trabalho e interação, depara-se na situação onde a maiêutica do m é d i c o n ã o pode in-
portanto, serem reflexo das conexões-de-vida, havíamos entendido centivar a auto-reflexão do doente senão sob o impacto da coerção
estes dois pontos de vista transcendentais como a expressão cogni- patológica sob o interesse correspondente de a remover.
t'va de interesses que orientam o conhecimento como tal. Contudo, As ponderações sobre a relatividade histórica dos crité-
este vínculo entre conhecimento e, interesse não resulta de maneira rios, que prescrevem o que é ou n ã o é patológico levaram
concludente senão em base da auto-reflexão de ciências que satis- Freud a trilhar, o caminho que vai da c o m p u l s ã o doentia na
façam os critérios típicos à crítica racional. Como exemplo esco- esfera individual até a patologia da sociedade em seu conjunto.
lhemos a psicanálise. O processo de pesquisa, o qual deve ser ao Freud compreende as instituições de domínio e as tradições
mesmo tempo um processo de auto-investigação, está comprometi- culturais como soluções temporárias de um conflito básico en-
do aqui com as condições do diálogo analítico. Estas condições são tre os potenciais dos impulsos pulsiona's excedentes e as con-
transcendentais na medida em que fixam o sentido da validade de dições indispensáveis da autoconservação coletiva. Tais so-
interpretações psicanalíticas; mas elas são, simultaneamente, obje- luções s ã o temporárias porque geram, sobre o fulcro afetivo da
tivas na medida em que permitem atualizar um tratamento fático repressão, a coibição de soluções patológicas substitutas. Mas,
de fenômenos patológicos. É supérfluo reduzir um ponto de vista assim como na situação clínica, também na sociedade a coerção
transcendental a um conjunto objetivo e a um interesse cognitivo patológica e o interesse por sua remoção são inseparáveis. Pelo
correspondente, uma vez que a dissolução analítica de uma co- fato de a patologia das instituições, igual à patologia da cons-
municação deformada, a qual determina a compulsão do compor- ciência individual, estar instalada no seio da linguagem e da ati-
tamento e a falsa consciência, é ambas as coisas num e mesmo vidade comunicativa, assumindo assim a forma de uma defor-
processo: teoria e terapia. m a ç ã o estrutural do entendimento entre os homens, o interesse
No ato da auto-reflexão o conhecimento de uma objetivação, resultante da compressão dolorida é, direta e imediatamente, no
cujo poder repousa unicamente sobre o fato de o sujeito não se sistema social, t a m b é m um interesse pela clarificação desta si-
reconhecer nela como em seu outro, coincide direta e imediata- t u a ç ã o — e a reflexão constitui a única dinâmica possível pela
mente com o interesse pelo conhecimento, isto é, com o interesse qual esse interesse pode chegar a se afirmar. O interesse da razão
de se libertar desta coerção. Na situação analítica a unidade da tende à progressiva execução revolucionário-crítica, mas sempre
intuição sensível e da emancipação, da intelecção sensível e da l i - a título de ensaio, a saber: para a realização das grandes ilusões
bertação frente à dependência dogmática, tal unidade entre razão da humanidade; nelas os motivos recalcados t ê m sido burilados
e o uso interesseiro da mesma — o que Fichte elaborou no conceito em fantasias da esperança.
da auto-reflexão — é efetivamente real. Ocorre, porém, que a
Nas pegadas do interesse da razão o interesse pela autocon-
auto-reflexão não mais se realiza como atividade de um Eu abso-
s e r v a ç ã o segue o seu curso; vista sob este aspecto, t a m b é m a ra-
luto mas, sim, sob condições que afetam a comunicação entre m é -
z ã o possui seu fundamento na história natural. M a s o interesse
dico e paciente, motivadas, por sua vez, por imperativos de ordem
pela autoconservação é indireto: cie n ã o perfaz nem uma neces-
patológica. Sob os pressupostos materialistas, o interesse da razão
sidade empírica, nem representa a propriedade sistêmica do or-
n ã o pode mais, por conseguinte, ser concebido como uma auto-
ganismo. De fato, não é possível definir o interesse pela auto-
' explicação autárquica da razão. A fórmula segundo a qual o in-
c o n s e r v a ç ã o independentemente das condições culturais — tra-
teresse é inerente à razão assume tão-somente no idealismo um
balho, linguagem e poder. O interessp pela autoconservação n ã o
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 303
302 CONHECIMENTO E INTERESSE
de trabalho e i n t e r a ç ã o : este interesse abarca de modo igual as ção; terceiro, a tarefa da c i ê n c i a e s t a r á bem descrita se a limitarmos a
demonstrar como o mundo nos deve aparecer em c o n s e q ü ê n c i a do c a r á t e r
categorias i m p r e s c i n d í v e i s a esse saber, os processos acumulativos
e s p e c í f i c o de nossa o r g a n i z a ç ã o ; em quarto lugar, os derradeiros resul¬
de aprendizagem e as i n t e r p r e t a ç õ e s permanentes, mediatizadas tados da ciência, precisamente por causa do modo pelo qual foram alcan¬
a t r a v é s da t r a d i ç ã o . Desde o momento em que esse saber coti¬ ç a d o s , n ã o apenas estão determinados por nossa organização, mas por
diano estiver assegurado cm uma forma m e t ó d i c a adequada, e aquilo que exerceu influência sobre esta (nossa) organização; e, final¬
desta maneira estiver t a m b é m clistendido, os processos corres¬ mente, o problema do m o d o - d c - s e r - c o n s t i t u í d o do mundo n ã o passa de
pondentes dc pesquisa se irão inserir nas coordenadas de tal uma abstração vazia, despida dc (qualquer) interesse prático, caso n ã o
levarmos em conta nosso aparelho psíquico perceptivo.
interesse. 1 1 7
N ã o , nossa ciência n ã o é uma ilusão (...)".
Enquanto o interesse da a u t o c o n s e r v a ç ã o continuar um m a l -
entendido naturalista, será difícil compreender como ele possa
assumir a forma de um interesse que oriente o conhecimento e F o i precisamente isto que Nietzsche, em oposição a Freud,
que, mesmo assim, n ã o p e r m a n e ç a exterior à função deste co¬ tentou demonstrar. Nietzsche v i u a í n t i m a relação entre conhe¬
nhecimento. Acontece que mostramos, a partir de um exemplo cimento e interesse mas, ao mesmo tempo, a psicologizou, esta-
de c i ê n c i a crítica, que o interesse da a u t o c o n s e r v a ç ã o n ã o pode tuindo-a como elemento b á s i c o de uma d i s s o l u ç ã o metacrítica do
ser pensado de forma c o n s e q ü e n t e senão como um interesse que p r ó p r i o conhecimento. Nietzsche levou a cabo aquilo que,Hegel
304 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 305
empreendera e M a r x continuou (a seu modo), a saber: a auto- mundo, sempre também uma porção respeito perante a autoridade dos
supressão da teoria do conhecimento como auto-recusa da re- (bons) costumes: a moralidade foi sacrificada em seu todo. Quem em
flexão. contrapartida, a quiser reafirmar, deve saber evitar que os sucessos' (de
1
uma tal reafirmação) não se tornem controláveis".* ™
se despoje da c a m i s a - d e - f o r ç a da metodologia, nem que seja à como necessulade imposta, a saber, nos retocar um mundo de tal ma
custa de sua p o s s í v e l objetividade. E ele gostaria de se apazi¬ neira que nossa estenda se torne (nele) possível - com isso nós cria"
guar, considerando que "o que caracteriza nosso século X I X não mos um mundo que nos é previsível, simplificado, inteligível, etc "i30
é o triunfo da ciência mas o triunfo do método científico sobre
127
a ciência". N ã o era, p o r é m , possível aplicar esta fórmula às Esta frase poderia ser entendida nos termos de um pragma¬
c i ê n c i a s da natureza. Frente a ela, a exigência a n á l o g a de rom¬ tismo logico-transcendental. O interesse a orientar o conhecimen¬
per as cadeias do pensar m e t ó d i c o se teria condenado a si pró¬ to para a dominação da natureza fixaria, ele próprio, as condiçõe*
pria. Caso quisesse ter unificado as h e r a n ç a s i n c o m p a t í v e i s do de uma objetividade possível do conhecimento da natureza Em
positivismo e da filosofia clássica, Nietzsche teria sido obrigado vez de suprimir a diferença entre ilusão e conhecimento este
a criticar aqui, de forma imanente, o objetivismo das ciências interesse iria, pelo c o n t r á r i o , primeiro determinar o quadro no
como uma falsa a u t o c o m p r e e n s ã o , a fim de trazer à tona o liame
qual aquilo que denominamos realidade é, para n ó s , objetiva¬
secreto com a p r á x i s da vida. ,
mente conhecivel. C o m isto a p r e t e n s ã o crítica de um conhe¬
A teoria do conhecimento de cunho nietzscheniano, por mais cimento cientifico permaneceria, por um lado, de pé frente à
aforísticas que suas f o r m u l a ç õ e s sejam, consiste na tentativa de metafísica mas, por outro, a reivindicação monopolista da ciência
compreender a moldura categorial das ciências da natureza (es¬ moderna seria, igualmente, posta em q u e s t ã o : ao lado do inte¬
p a ç o , tempo, evento), o conceito de lei (causalidade) e a base
resse técnico poderia haver outros interesses que orientassem e
operacional da e x p e r i ê n c i a (medida), bem como as regras da
legit.massem o conhecimento. Esta n ã o é, muito provavelmente,
l ó g i c a e do c á l c u l o , como apriori relativo de um mundo de apa¬
a concepção de Nietzsche. A redução metodológica da ciência
r ê n c i a objetiva, o qual foi engendrado com o fim de dominar a
a um interesse pela a u t o c o n s e r v a ç ã o n ã o está a serviço de uma
natureza e assegurar, assim, a c o n s e r v a ç ã o da existência humana:
determinação lógico-transcendental de um conhecimento possível
mas, sim, a serviço da negação da própria possibilidade dc se
"Todo o apnrelho-do-eonhcchnento c um aparelho de abstração e dc sim¬
plificação, voltado níio para o conhecimento, mas para a dominação das
conhecer: "Nosso aparelho cognitivo n ã o está organizado para
1 1
coisas: 'fim' e 'meio' estão tão distantes da essência (das coisas) como o saber'". -' A reflexão acerca do novo critério, desenvolvido
os 'conceitos'. Com 'fim' e 'meio' apossamo-nos do processo (inventa-se pela ciência moderna, continua apresentando razões para uma crí¬
um processo que seja perceptível), com 'conceitos' apoderamo-nos, po- tica das interpretações tradicionais de mundo, mas a mesma
1 2 8
rém, das coisas que constituem o processo".
critica abarca t a m b é m a ciência enquanto tal. Metafísica e ciên¬
cia produziram ambas, do mesmo modo, a ficção de um mundo
Nietzsche entende ciência como a atividade pela qual trans¬ previsível de casos idênticos; a ficção do apriori científico reve¬
formamos a "natureza" em conceitos, com o objetivo de dominar lou-se, de qualquer forma, mais digno de crédito. O descaminho
a natureza. Sob o rigor coercivo da e x a t i d ã o lógica e da perti¬ objeüvista, este que Nietzsche, motivado pela a n t o c o m p r e e n s ã o
nência empírica, a imposição do interesse pela manipulação téc¬
positivista da ciência, prova ser uma propriedade filosófica, é o
nica dos processos objetivados da natureza se torna cogente, e a
mesmo ao qual t a m b é m a ciência sucumbe:
pura força se impõe como uma lei de conservação da vida através
de tal coerção:
"O descaminho da filosofia deve-se ao fato dc que, em vez de ver na lógi¬
" N ã o importa o quanto nosso intelecto seja uma conseqüência das condi¬ ca e nas categorias da r a z ã o meios de organizar o mundo em vista de
ções de existência, n ó s n ã o o teríamos se n ã o tivéssemos necessidade dele, fins utilizáveis (portanto, 'basicamente' em vista de uma falsificação
e n ã o o t e r í a m o s assim, caso n ã o fosse assim que dele necessitássemos, ut.1), acreditava possuir na lógica e nas categorias da razão o critério
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mesmo se pudéssemos viver de forma diferente".' da verdade ou a (própria) realidade. O 'critério da verdade' era, de fato
nada mais do que a utilidade biológica, própria a um tal sistema de fal¬
"Não convém compreender esta imposição que temos ein formar concei-
sificação fundamental; e como uma e s p é c i e animal n ã o conhece nada de
tos, gêneros, formas, fins, leis {'um mundo de casos idênticos')..corno
mais importante do que se manter em vida, l e g í t i m o seria aqui, de fato,
se com isso estivéssemos em condições de fixar o mundo verdadeiro, mas
falar de verdade. Mas a ingenuidade consistia apenas nisso: tomar a
3 1 0 CONHECIMENTO E INTERESSE
CRÍTICA COMO UNIDADE DE CONHECIMENTO E INTERESSE 311
cias na h i s t ó r i a da filosofia moderna mais recente. Acreditou-se, 12) K A N T , I. — Kritik der Praktischen Vernunjt (Crítica da razão prá¬
tica), v. 4, p. 251.
assim, que bastava renovar o hiato b á s i c o entre os problemas da
13) FICHTE, J . G . — Ausgew. Werke (Textos Seletos). E d . Medicus,
validade e aqueles da gênese de enunciados c i e n t í f i c o s ; e com isso
v. 3. Zweite Einleilung in die Wissenschaft der Logik (Segunda
se achava estar em condições de poder confiar a teoria do conhe¬
introdução à ciência da lógica), p. 43 et seqs.
cimento à psicologia da pesquisa, inclusive esta que se desenvol¬ 14) FICHTE, J. G . — Erste Einleitung in die Wissenschaft der Logik
vera dc forma imanente a partir da lógica das ciências da natu¬ (Primeira introdução à ciência da lógica) Op cit v 3 n 17
reza e das ciências do espírito. F o i sobre este fundamento, e n t ã o , 15) Ibidem. • , y
que o positivismo mais recente construiu uma metodologia pura, 16) Ibidem.
purificada sem d ú v i d a daqueles problemas que, a rigor, consti¬ 17) K A N T , I. — Kritik der Reinen Vernunjt (Crítica da razão pura),
v. 2, p. 440 ct seqs.
tuem as questões-de-interesse por excelência de uma metodologia
18} Ibidem, p. 450.
científica.
19) FICHTEA J . G . — Erste Einleitung in die Wissenschaft der Logik
(Primeira introdução à ciência da lógica). Op. cit., v. 3, p. n
et seqs.
filosofia analítica e o problema das c i ê n c i a s do e s p í r i t o ) . In: Pliilos. 36) X V , p. 14f — E S B , v. 22, p. 26.
Jahrbücher (Anais Filosóficos), v. 72, 1965, p. 239 et seqs. 37) X V , p. 8 — ESB, v 22, p. 19.
A P E L , K . O. — "Szientifik, Hermcneutik, Ideologiekritik (Cientismo, 38) Enquanto a censura interdita hoje livros indesejáveis, confisca e
hermenêutica e crítica ideológica). In: Man and World I, 196S, arquiva edições, prevaleceram antigamente outros métodos para
p. 37 et seqs. fazer com que um texto permanecesse inócuo: "Um dos métodos
23) FKEUD, S. — Gesammelte Werke (Obras Completas). V . XIII. era riscar acintosamente as passagens ofensivas, de modo a ficarem
p. 304 (ESB, v. 19, p, 142). Cito de acordo com a edição de ilegíveis; nesse caso elas n ã o podiam ser transcritas, e o copista
1940, surgida em Londres; atualmente em quarta edição, Frank- seguinte do livro produzia um texto inatacável mas com lacunas
furt a. Main 1963. Editada por A. Freud, E. Bilbring, W. Hoffer, em certas passagens e, talvez, ininteligível. Ou isso não era o
E. K r i s e O. Isakower (18 volumes). [Nota do tradutor: ào lado bastante e (em c o n s e q ü ê n c i a ) queria-se t a m b é m ocultar qualquer
da referência ao texto em língua alemã .indicamos também as indicação de que o texto fora mutilado; partia-se, portanto, para
passagens no vernáculo de acordo com Edição STANDARD bra- a d e f o r m a ç ã o do texto. Palavras isoladas eram omitidas ou subs¬
sileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (ESB), t i t u í d a s por outras, c novas frases eram interpoladas. Melhor ainda:
Rio de Janeiro, Editora Imago, 1977 (24 volumes)] riscava-se passagens inteiras e se colocava em seu lugar outras
24) D I L T H E Y , \ V . — Ges. Schrijten (Obras Completas), v. 7, p. -261. novas, as quais diziam expressamente o contrário. O transcrilor
25) Ibidem seguinte podia, então, produzir um texto que não despertava sus¬
26) Ibidem peita, mas que estava falsificado; ele não continha mais o que o
27) III, p. 260. autor quisera comunicar e, com toda probabilidade, o texto n ã o
30) Cf. F K E U D , S. — Zur Psychopathologie des Alltagslebcns, v. IV (A cauhestros, pode-se dizer que a r e p r e s s ã o e s t á para os outros m é ¬
31) Para tanto cf. Die Traiimdeutung, G. W ., v. (A interpreta- e nas diferentes maneiras de tal falsificação podemos identificar
ç ã o d o s sonhos, E S B , v. 4 c 5 ) ; Über den Traum, v. II/III, p. 643ff paralelos com a multiplicidade de formas pelas quais o ego é alte¬
G . \ V . v. X , p. 412ff (Suplemento m e t a p s i c o l ó g i c o à teoria dos 42) Cf. sobretudo: FKEUD, S. — "Über die Vilde' Psychoanalyse",