Nessa conferência, eu não quero falar sobre o que foram as idéias de Jung acerca do
Self. Eu quero ir para trás dos ensinamentos dele acerca do Self, para as origens da
experiência subjacente, para tentar reconstruir alguns aspectos dos ensinamentos dele sobre
o Self. A palavra “subjacente” aqui tem dois sentidos diferentes. Primeiro, ela se refere à
experiência da idéia do Self em contraposição à teoria elaborada do Self. Há, eu declaro,
uma experiência que subjaz às declarações teóricas explícitas que Jung fez acerca do Self.
Segundo, essa experiência do Self tem novamente uma origem em uma outra experiência, e
a experiência do Self tem que ser vista por meio dessa experiência originária, porque, de
algum modo, a experiência do pensamento acerca do Self é uma reação, uma resposta à
essa experiência prévia. Desse modo, a minha conversa hoje terá duas partes. Primeiro, eu
discutirei a experiência originária prévia e, então, eu chegarei à experiência atual do
pensamento acerca do Self.
Aqui, na África, em 1925, Jung finalmente recebia a resposta à questão anterior que
o havia atormentado: “Mas qual é o seu mito? O mito em que você vive?” Agora Jung sabia
o próprio mito dele. É, para dizê-lo com o título de um livro de Aniela Jaffé, “O Mito do
Significado”, onde “significado” deve ser traduzido (de acordo com um título de capítulo
no livro) como “Significado como o Mito da Consciência”.
Essas duas experiências “Não, nós não temos mais um mito”, e “agora eu conhecia
o nosso próprio mito”, são os dois extremos ou pólos entre os quais todo o projeto de
psicologia de Jung como a terapia da neurose tem lugar.
Pode-se pensar que com a experiência africana de Jung, a nossa perda de mito
terminara e que nós retornávamos ao quadro de membros de todas aquelas culturas que
vivem imersas no mito. Mas isso não é de modo algum o caso, já que “o mito da
consciência” não é realmente um mito no mesmo sentido. O mito genuíno se move dentro
da imaginação natural. Consciência já e um conceito abstrato, ela pressupõe reflexão.
Como um conceito, ela pertence à esfera do logos na filosofia, na psicologia e na
antropologia. Não tem o seu lugar no imaginal. Nós podemos interpretar certas imagens
mitológicas, imaginais, como dizendo respeito à consciência. Mas essa é a nossa moderna
interpretação psicológica. O mito por si fala, por exemplo, sobre o sol, ou o deus sol, sobre
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a separação dos pais do mundo, etc, mas ele não fala ou sabe sobre um tal conceito abstrato
como a consciência.
De modo similar, a contraparte da consciência no relato de Jung, “a existência
objetiva ou Ser” é apenas um conceito (não é uma imagem) que nunca poderia ocorrer na
esfera do mito. Ambos, “objetivo” e “Ser” pertencem à esfera do logos, pensamento,
reflexão.
Não somente o conteúdo do seu então chamado mito, mas também os movimentos
que Jung faz quando confrontado com a manada de animais são anti-mitológicos. A
experiência mitológica teria sido ver no fenômeno visível (aqui, na manada de animais) a
epifania de um deus ou verdade arquetípica, aqui, com toda a probabilidade, a Grande Mãe
como Senhora dos Animais. Mas o que Jung faz? Ele se afasta do fenômeno. Nos
pensamentos dele, ele precipita a manada de animais na “mais profunda noite do não-ser”.
Incrível. Ele joga todo o curso natural da vida, nascer, morrer, comer, em outras palavras,
aquele mundo que era a base e o locus da experiência mitológica, ele joga tudo isso no nada
e o condena à insensatez. Toda a esfera do fenômeno e do imaginal é negada, revogada. E,
alternativamente, em seus pensamentos, Jung se volta literalmente para ele mesmo, isto é,
ele reflete sobre si mesmo, como sujeito no sentido moderno do termo. O fenômeno, a
visão dos animais, é reduzido a uma mera ocasião, tornada possível para ele se tornar
consciente de si como consciência e, da consciência, como um segundo criador do mundo.
Em outras palavras, a epifania não estava mais para Jung no fenômeno, mas naquilo sobre o
que o fenômeno revogado permitiu que ele refletisse, no sujeito humano como observador.
Nós podemos ainda falar de uma epifania na experiência de Jung, porque como
segundo criador, foi dado à consciência humana um status de um tipo de divindade. O
sujeito moderno não é, é claro, um fenômeno imaginal ( não se pode ver o sujeito com os
olhos de alguém ou com a intuição sensória): é um conceito pensado. E, assim, nós temos
que reconhecer que o pensamento (a idéia da subjetividade humana) se tornou aqui, para
Jung o lugar da epifania, onde antes, o mito, a intuição sensória (a realidade fenomenal) ou
a imaginação tinham o seu lugar. Jung sempre insistiu que ele era um empirista e que
somente fatos importavam para ele. Mas aqui ele mostra ser não um empirista, mas um
pensador, na medida em que a idéia de consciência como o segundo criador do mundo não
é um fato, nem um fato estabelecido pela percepção ou pela função sensação, nem mesmo
um fato da imaginação. Não pode ser visto ou demonstrado. Também não é uma visão. É
um pensamento, e, como tal, nós podemos pensá-lo e somente pensá-lo.
Então a experiência africana de Jung não desfez a experiência dele anterior de perda
de mito de modo algum. Pelo contrário, ela está firmemente baseada nela e a confirma, mas
também avança muito além dela para um território inteiramente novo. O fato de ele ainda
utilizar o termo “mito” até mesmo para a experiência dele fundamentalmente diferente é
algo enormemente enganador. Mito, por um lado, e significado, no sentido junguiano, por
outro, são mutuamente exclusivos. A experiência dentro da esfera do mito é determinada
pelo fato de que todos os fenômenos têm o significado deles neles mesmos. Eles são auto-
suficientes e, nesse sentido, perfeitos, mesmo que eles sejam fenômenos de morte ou
doença. E porque eles são neles mesmos perfeitos, o mundo do mito é o mundo da eterna
repetição ou recorrência, que prossegue “por centenas de milhões de anos” “até o seu fim
desconhecido”. A idéia de significado de Jung, por contraste, é a narrativa de um
movimento total em direção a um fim conhecido. Somente na medida em que os fenômenos
individuais estão contidos na narrativa maior desse movimento orientado para um objetivo
é que eles agora, também, partilham do significado.
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A experiência africana de Jung foi possível por meio de dois atos de abstração. A
primeira abstração é literal, externa: ele se isolou de seus companheiros. Isso pode ser
interpretado como ele se separando de sua consciência comum e familiar ou do seu modo
familiar de ser-no-mundo. Ele precisava se afastar do que era (também nele) a consciência
comum ou natural para se tornar capaz, na resultante solidão absoluta, de dizer: “Nesse
momento eu fui o primeiro homem que sabia ser esse o mundo e que, por meio de seu
conhecimento, acabara de criá-lo naquele instante.” O fato de que era necessária essa
separação mostra que a consciência sobre a qual pode-se dizer que ela é o segundo criador
do mundo, não é a nossa consciência habitual. Ela é, em vez disso, uma consciência maior e
radicalmente nova, que resulta da explícita negação da consciência natural habitual.
O que Jung aqui executa é uma revolução da consciência. A consciência natural,
que nessa história é para Jung representada por seus companheiros, ainda está no mesmo
nível da experiência mítica e, portanto, também no mundo das manadas de animais, que
Jung rebaixa para poder se levantar acima dela. Ela está no mesmo nível natural, muito
embora, como consciência moderna, ela não mais seja capaz de experienciar positivamente
o mundo de uma forma mítica. Como tal, ela é apenas a simples negação da consciência
mítica. Ela não pode mais perceber a imagem divina nos fenômenos naturais, mas ela ainda
permanece no mesmo nível natural dos fenômenos que, no entanto, agora que eles não
podem mais ser experienciados como míticos, se tornaram reduzidos a fatos empíricos.
Jung, com seu ato de ruptura, por comparação, agora negava essa simples negação também,
e, por meio dela também todo o nível da consciência natural. Isso significa uma revolução
da consciência.
Por causa dessa revolução, Jung é “o primeiro homem”, isto é, Adão, novamente.
Ele experiencia o primeiro dia, de fato, o primeiro “momento” de um mundo novamente
criado. Essa é a experiência dele de uma cosmogonia. Mas que diferença para os mitos
cosmogônicos! Aqui, para Jung, a cosmogonia não ocorre, como na mitologia, no cosmos e
como a sua emergência. Ela acontece “de modo invisível” aqui na consciência, na mente
humana, na subjetividade, nomeadamente no e por meio do reconhecimento “que este era o
mundo” e em e como o conhecimento dele de que “aquele era ‘esse mundo’”. Aqui nós
chegamos à segunda abstração na qual a experiência africana de Jung estava baseada. Jung
se afasta da presença desse momento no qual ele realmente estava enquanto via as manadas
de animais e se eleva para cima dele, de fato por sobre toda a infinita multiplicidade do
mundo em ambas as suas dimensões espacial e temporal, e, assim, acima de todo o nível
correspondente de consciência. E ele contrai ou condensa, de fato, despedaça essa
multiplicidade, essa infinidade de momentos e de fenômenos, e um só pensamento abstrato:
“que era ‘esse mundo’”. Toda a riqueza fenomenal do mundo é comprimida em seu
conhecimento, de um lado, e no pronome demonstrativo “esse”, do outro.
Eu disse acima que a experiência de Jung não era uma visão, mas um pensamento.
Aqui isso se torna óbvio. Não há nenhuma aparição ocorrendo a ele, mas ele executa o ato
lógico da revogação. Ele, de algum modo, empurra a manada de animais (e, junto com ela,
toda a multiplicidade do mundo fenomenal) no não-sentido e, por meio do mesmo ato, se
eleva a um novo nível de consciência e a uma nova compreensão de significado. O novo
insight dele é, portanto, o resultado do ato lógico de revogação que ele executou e não a
intrusão irracional ou uma visão ou imagem. Toda a experiência natural do mundo, e isso
significa a base de toda a mitologia, é revogada nesse saber sobre toda a experiência
natural do mundo, e esse conhecimento não é nada mais do que a abreviação lógica do
antigo mundo, o mundo de mito e significado. Nós também poderíamos dizer que o que
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uma vez fora a multiplicidade de todo um mundo estava agora reduzido a um momento de,
a um conteúdo na, nova consciência que se tornara conhecedora (consciência conhecedora)
nesse sentido. Essa consciência é, ipso facto, extra naturam e extra ecclesiam, onde
natureza, no nosso contexto psicológico, significa tanto “mundo mítico” quanto “mundo
imaginal”. Para essa consciência, o mundo imaginalmente experienciado, o mundo
preenchido com significado divino está irreparavelmente perdido e não é mais do que um
momento ou um conteúdo revogado do conhecimento dele, não é uma presença real. O
nível de “onde a ação psicológica se encontra” foi realocado da imaginação do mundo
natural, para a consciência dele.
Do mesmo modo, Jung não se “ateve à imagem” do fenômeno que ele vira diante
dele, a lenta e pastadora manada de inúmeros animais. Esse movimento lento, de animais
que pastam, da manada que balança a cabeça, foi reduzido por ele a não mais do que um
auxiliar visual que, muito como os dedos usados pelas crianças quando fazem contas de
adição e subtração, facilitou o processo de pensamento para ele, mas também obscureceu
para ele o fato de que aquilo era um pensamento.
Nessa posição, a natureza como tal e o mito se tornaram psicologicamente um
passado obsoleto. Mas quase como uma consolação ou como uma compensação para essa
perda, essa postura permitiu pela primeira vez uma compreensão de “futuro”. Futuro no
sentido de se ter uma tarefa até então nunca desenvolvida e completamente nova diante de
nós, e, portanto, devendo-se viver na direção do seu cumprimento no futuro. Essa tarefa,
nós veremos, é a realização do Self. A idade do mito e do ritual, é claro, não tem uma
compreensão real de futuro. O homem, durante aquela idade, também tinha uma tarefa, mas
não era orientada para o futuro, não era a tarefa de trazer uma nova realidade à existência
pela primeira vez. A tarefa era, pelo contrário, a de acompanhar o curso natural dos eventos
com ritual, como os Índios Pueblo, por exemplo, ajudavam o Pai deles, o sol, a se mover
pelo céu, e a tarefa era a de repetir, de desempenhar novamente, os rituais que haviam sido
instituídos por ancestrais míticos no início do tempo. Então, o mundo mitológico e
ritualístico é determinado por uma orientação de “retorno” a modelos, paradigmas e
arquétipos “eternos” ou , pelo menos, “atemporais”. O Self, como a tarefa que Jung vê e
que é, nos olhos dele, a tarefa do futuro, é muito diferente. É, como ele deixa claro, o
movimento para a frente para um continente ainda desconhecido.
A experiência africana-oriental de Jung é o alicerce sobre o qual repousa a sua
posterior psicologia do Self. Ainda não é a própria experiência do conceito do Self. No
entanto, ela contém uma característica que nós ainda não mencionamos, que traça as linhas
a partir das quais o pensamento acerca do Self irá mais tarde proceder. Ela tem a ver com
uma reviravolta ou dialética.
“Nesse momento [que é o mesmo que dizer: “no momento em que eu me retirei dos
outros e quando todo o meu modo anterior de existência veio até mim de forma condensada
ou contraída no meu conhecimento, em um único pensamento da minha consciência”],
nesse momento, Eu era o primeiro homem ...”. Nós já sabemos que, como tal, ele era um
segundo Adão, o primeiro homem criado por Deus. Mas agora vem a incrível reviravolta:
como primeiro homem, como Adão criado por Deus, ele é ele mesmo e, ao mesmo tempo,
“o segundo criador do mundo”: em outras palavras, um deus criador. A oposição abstrata
de deus criador, de um lado, e criatura criada, do outro, foi revogada. Na religião, assim
como no pensamento cotidiano, Deus e criatura estão de forma não ambígua separados e
encontram-se vis a vis, cada um de lados distintos. Essa absoluta separação agora está
encerrada. Jung está falando sobre um evento de se tornar consciente em um sentido muito
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especial por meio do qual o homem dá ao mundo aquela existência objetiva que o primeiro
Criador não teve a capacidade de dar.
Isso de modo algum implica que o homem, que, de um certo modo, foi divinizado,
pode agora de modo inflado, de algum modo, decolar da terra e se erguer por sobre a
humanidade dele. Pelo contrário, a elevação de consciência para a categoria de um segundo
criador divino do mundo é o processo pelo qual o homem se torna completamente homem
(humano) pela primeira vez. A declaração “Nesse momento eu sou o primeiro homem”
contém também a idéia da completa realização da humanidade. O poder criativo que
anteriormente, com a primeira criação, fora posto aí, ao lado do Deus transcendente, agora
passava para as mãos do homem; é claro, não para ele, como pessoa, indivíduo, mas para a
consciência humana como tal. Há um intercruzamento de um para o outro, Deus e homem
em alguma medida trocam as naturezas e posições deles, na medida em que Deus é agora
também dependente do homem, enquanto antes somente o homem havia sido dependente
de Deus, e o homem criado agora assumiu algumas das tarefas de criação que antes haviam
estado exclusivamente nas mãos de Deus.
É evidente que tal visão, que vê no fato de o homem se tornar o segundo criador do
mundo a condição para a plena realização do homem como ser humano, se afasta da
imagem do homem como um organismo naturalmente existente. Para Jung, o homem não é
inteiramente homem meramente pela virtude de ele existir factualmente ou por ter nascido.
A completa compreensão de humanidade é uma tarefa, um opus, e, nós temos que
acrescentar, um opus contra naturam. A existência humana completamente realizada é a
existência revogada do homo sapiens natural. O homem se torna homem naquele
conhecimento especial sobre o qual Jung falara, não pela sua existência literal no sentido de
Vorhandensein. Então, assim como Jung na sua psicologia deixou o mito e a natureza como
o fundamento ou o contexto da psicologia para trás, ele também partiu da definição natural
do que “humano” significa.
Há duas declarações essenciais sobre o Self nessa citação. A declaração direta sobre
o Self como união de opostos e a indireta consistindo da rejeição de Jung de uma projeção
do Self sobre Cristo. Eu começarei pela união de opostos. É óbvio que, com o Self, nós
estamos no âmbito do pensamento, e não no âmbito das coisas naturais ou das imagens.
Jung está preocupado com os opostos psíquicos, desse modo. Os “opostos”, tanto como
“unidade” e “diferença” e “identidade”, são os chamados “conceitos de reflexão”
(Reflexionsbegriffe), ou seja, conceitos que não se referem aos objetos e fenômenos
empíricos dados à experiência sensória, mas a conceitos que, por sua vez, se referem a
relações abstratas com as quais a mente reflexiva dentro dela mesma estrutura a sua própria
experiência.
Na realidade empírica, você pode ver dois animais lutando um contra o outro, você
pode imaginar o herói matando o dragão, etc, mas você não pode ver ou imaginar opostos
psíquicos. Jung não está falando de tais animais concretos, seres, figuras, poderes que antes
de tudo existem e, então calham de se encontrarem em oposição um ao outro, mas que
podem também estar em relacionamento harmonioso. Ele está falando de opostos psíquicos
como tais, o que é muito diferente de fato das coisas ou aspectos que incidentalmente estão
em oposição uns aos outros. Embora na realidade prática os opostos psíquicos sempre
apareçam na forma de conflitos concretos, essa é apenas uma exemplificação secundária
dos opostos psíquicos. Não são sobre os opostos em si que Jung está falando e a que o Self
se refere. Você não pode perguntar: O que são os opostos, porque que eles sejam opostos é
tudo o que há para ser dito sobre eles: eles são opostos e nada mais. Na noção de Self, Jung
deixou a esfera da sensualidade, da intuição sensória e da imaginação, a esfera dos
conteúdos, e entrou na esfera da abstração lógica ou das relações conceituais.
Essa observação é confirmada quando nós olhamos para a outra informação acerca
do Self na nossa citação, a rejeição de Jung da projeção do Self sobre Cristo. Esse é um uso
muito particular do conceito de projeção. Normalmente, nós falamos de projeção quando
nós vemos em alguma outra pessoa real um conteúdo que de fato pertence a nós, mas do
qual nós não temos consciência. Mas, por 1900 anos, Cristo não foi uma pessoa empírica
real para nós, não como esse meu vizinho de olhar perigoso, ou o meu chefe, etc., que
normalmente carregam as nossas projeções. Cristo foi uma imagem, uma pessoa imaginal.
Nesse sentido, ele poderia ser chamado de uma imagem arquetípica do Self. Cristo, assim, é
a auto-manifetação de um conteúdo psíquico, a epifania de uma verdade imaginal, ele é um
phainomenon, mas não algo empiricamente real sobre o qual nós poderíamos projetar
alguma coisa. Se nós aplicássemos o uso de projeção de Jung para a religião grega, nós
teríamos que dizer que os gregos projetavam a experiência do amor sensual em Afrodite e,
assim, eles eram eles mesmos poupados dessa experiência. Mas isso seria, é claro, sem
sentido. Os gregos obviamente experimentavam o amor sensual de uma forma bastante
pronunciada. Afrodite não é a carregadora da projeção, mas a personificação divina da
arquetípica profundidade da experiência humana, real, do amor sensual. Nesse ponto, não
há nenhuma diferença entre Afrodite (ou nenhum dos outros Deuses em qualquer lugar), e
Cristo como imagem do Self. A diferença é só de que eles são imagens: Afrodite, a imagem
do amor erótico; Cristo, a imagem do Self.
Agora, se Jung aqui, apesar de tudo e de maneira injusta, vê uma projeção e a
critica, isso deve significar duas coisas. Primeiro, deve haver uma diferença fundamental
para ele entre a realidade psíquica do Self e todos os outros conteúdos representados pelos
deuses politeístas. Jung não teria nunca criticado o fato de que as pessoas tivessem imagens
míticas e representações pessoais divinas no céu para todos os vários aspectos da
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experiência humana real tal como a experiência do amor. De fato, em seu Resposta a Jó,
ele veementemente insiste que até mesmo a mulher de hoje precisa de uma representação
metafísica pessoal no céu. Mas quando ele se refere ao Self, então, de súbito, o fato de
alguém ter tal representação pessoal divina é para ele uma projeção ilegítima. O fato de que
ele use dois padrões distintos deve ser devido à natureza e ao conteúdo especiais do
arquétipo do Self, e a respeito do que se trata o Self. O Self é tal que o que deveria ser
natural e até mesmo desejável no caso de qualquer outra realidade arquetípica, ou seja, ter
uma representação pessoal, é totalmente errado.
Segundo, provavelmente quanto a essa diferença, Jung sinta a necessidade de
interromper, dar um corte, no fluxo normal da vida da alma, que, como Hillman
especialmente mostrou, naturalmente tende a personificar e a imaginar coisas. Chamando a
atividade primária e comum da alma de personificação, nesse caso a personificação do Self
na figura de Cristo, de projeção e, indiretamente, de uma defesa contra a real experiência do
self, ele nos proíbe de nos determos na imagem ou na representação pessoal. No caso do
Self, ele tenta nos afastar da imagem, ele interdita a personificação e a imaginação. Por
quê? Porque, ele diz, isso nos dispensa, isso nos poupa, de ter que realmente experimentar –
e, assim, de ser, eu acrescentaria – nós mesmos o Self.
O que há de tão especial no Self? Eu acho que isso aparece no nome desse
arquétipo: Self. O Self não pode ser personificado, não pode ser imaginado, porque então
ele seria inevitavelmente objetificado, transformado em um objeto e conteúdo da
consciência. Mas isso significaria que ele não mais seria o que ele deveria ser: Self. Porque
“Self” se refere à mais interna subjetividade do sujeito, ele não pode ser representado. Não
pode ser simbolizado. Ele só pode ser experienciado, ou para ser mais exato: ele é em si
mesmo experiência, o processo da união dos opostos, o processo de uma relação dialética,
lógica. Uma vez que ele é experiência (tem a natureza de um processo ou experiência), ele
não pode ser um conteúdo, um fenômeno, ou algo que nós meramente calhamos de
experienciar. No momento em que ele se torna um conteúdo ou imagem, ele deixa de ser
Self. Agora se torna um pouco mais claro por que Jung considera ver Cristo como o Self
como sendo uma projeção. A imagem de Cristo estabelece um Outro externalizado e,
assim, de fato, afasta de nós o que deveria estar estritamente em nós mesmos. Qualquer
imagem objetifica, e objetificação significa estabelecer um outro, ou não-Self, dando ao
respectivo conteúdo a forma de outro.
Com esse insight, nós inadvertidamente retornamos ao prévio tópico do Self como
união de opostos. Se a consciência estabelece algum Outro literal ou estrutural lá fora, não
pode haver uma união de postos, porque então há Dois, duas entidades separadas entre as
quais os opostos estarão distribuídos, cada uma representando um lado da oposição.
Enquanto eu me relaciono com Cristo, não pode haver uma real união de opostos, porque
mesmo se eu amo Cristo e Cristo me ama, a fundamental e metafísica distância entre mim e
ele permanece. Pode haver harmonia entre nós, eu posso até ter experiências místicas de um
tipo de união “sexual” com Cristo, mas não pode nunca haver uma unidade real, una. E,
então, não pode haver Self, porque o Self significa que em mim e como eu, eu sou eu
mesmo, meu outro, eu mesmo o meu próprio oposto e, assim, dividido de mim mesmo. E
somente se eu me tornar consciente de mim mesmo como a irreconciliável oposição de
mim e do meu Outro, e ao mesmo tempo consciente do fato de que esse Outro oposto é
também eu mesmo, a união dos opostos ocorre e eu ipso facto avanço para o status de Self.
A frase “união de opostos” é uma abreviação. Se se desdobrar a relação lógica
complexa implicada por essa abreviação, ter-se-ia que dizer: a unidade da unidade e da
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psíquico, ser um sujeito-matéria da biologia humana. Mas o Self não é uma realidade
psíquica, mas uma realidade psicológica e um sujeito-matéria da psicologia. “O que eu
realmente sou” se refere a mim como sendo em última instância uma união de opostos.
Minha essência, o que eu realmente sou, a Lógica ou Conceito de “mim”, se torna a
primeira realidade, e o fato de eu ainda ser uma entidade existente é agora reduzido a ser
um momento revogado em mim como o movimento lógico que joga entre os opostos, em
mim como o Conceito. Ter se tornado Self significa ter se tornado o Conceito existente. A
lógica de mim como ser humano, sendo mente e alma, agora sustenta o predicado
“existente”, que antes pertencia a mim como substância ou entidade, e a substância ou
entidade se tornou um momento lógico dentro da lógica de ser mente e corpo.
Eu sou um ego enquanto eu sou definido como um ser existente e conseqüentemente
tenho como meu interesse primário a minha auto-preservação – não só a auto-preservação
literal, nem somente a auto-preservação emocional, mas também a auto-preservação lógica,
isto é, a preservação da precisa definição de mim como uma entidade ou ser existente.
Tornar-se Self, por oposição, significa que essa definição de algum modo mergulha e se
afoga na lógica do jogo entre os opostos psíquicos enquanto a realidade agora primeira e
dominante.
É disso que trata a importante imagem alquímica da “Imersão no Banho”, na água.
Não sou eu, como pessoa, como ego-personalidade, que tem que ser imerso na água. Senão
nós ainda estaríamos pensando no nível do comportamento psíquico empírico-factual, não
no nível da alma e da psicologia. Não, minha definição como entidade e substância, como
ser existente, tem que sofrer esse destino e morrer de afogamento, ou seja, ela tem que ser
dissolvida na fluidez do movimento lógico. A imersão da pessoa no banho seria somente
uma das duas coisas: ou uma catástrofe literal (psicose, morte), ou uma experiência
emocional sem uma real transformação psicológica. Experiências emocionais têm o mesmo
status que turismo tem no mundo moderno. Há também um turismo psicológico. Como
turista, você pode assistir a rituais encenados para você por tribos exóticas ou até mesmo
ser convidado a participar deles, mas você volta para casa como a mesma pessoa que você
era antes. Uma transformação real é uma transformação lógica, uma transformação na auto-
definição de alguém. E é por isso que não sou eu como pessoa empírica, mas a definição de
mim, ou o que Kant chamou de Menschheit in der Person, o universal lógico no particular,
que tem que experienciar a imersão no banho.
Esses eram os problemas que estavam contidos na experiência de Jung do Self e
com a qual ele estava se debatendo na psicologia dele do Self. Mas nós também temos que
ver que Jung conceitualmente Jung também não estava realmente capaz de enfrentar a
própria experiência dele. Ele não tornou fácil para o público e os leitores dele verem do que
se tratava o pensamento dele acerca do Self. Ele fez afirmações muito diferentes, com
freqüência contraditórias, sobre o Self e a individuação, falando de um modo a críticos
teológicos e, de modo oposto, a críticos científicos. Agora é verdade que algumas daquelas
contradições são devidas à natureza contraditória do Self. Mas não todas. Algumas são
devidas à impotência conceitual e à profunda ambivalência do próprio Jung. E essas
impotência e ambivalência, por sua vez, são devidas à resistência dele em fazer na forma
lógica da consciência o que o conteúdo da experiência dele, a experiência do pensamento
do Self, demandava. A resistência dele aparece em quatro principais áreas ou formas: (1)
Na postura metodológica dele; (2) teoricamente, no que constituía para ele o alicerce da
psicologia ou a realidade última; (3) em uma parte essencial do conteúdo da psicologia
dele, isto é, da narrativa junguiana; e (4) no modo do pensamento dele.
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Ocidental. E o que é novo e especial acerca do Self é que ele requer o transporte da
experiência antiga da “união dos opostos” da (para dizê-lo com um vocabulário diferente)
esfera da semântica para a esfera da sintaxe, do mito para o logos. É desse movimento
revolucionário que trata o Self. Pois é somente naquele novo nível de consciência, o nível
da “sintaxe” ou da forma lógica, que pode a união de opostos ser verdadeiramente “Self”,
isto é, psicologizada, aqui, na mente, na subjetividade, em vez de imaginada (como na
mitologia), atuada (como no ritual), ou emocionalizada (como na experiência mística ou
emocional), os três principais modos de externalização, em outras palavras, de dar ao Self a
forma do não-self.
GIEGERICH, W. Jung’s thought of the Self in the Light of Its Underlying Experience.
In:_______. The Neurosis of Psychology: Primary Papers Towards a Critical Psychology.
Collected English Papers. Volume One. New Orleans: Spring Journal Books, 2005. p. 171-
189.