Biotransformação:
importância e toxicidade
Biotransformation: importance and
toxicity
Saúde em Revista 69
BIOTRANSFORMAÇÃO: IMPORTÂNCIA E TOXICIDADE
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A
exposição diária a uma variedade de compostos retículo endoplasmático liso e constituem o sistema
estranhos (xenobióticos) é capaz de levar à oxidase de função mista ou monoxigenases ou siste-
absorção deles através dos pulmões, da pele ou ma citocromo P450 (BENET & SHEINER, 1987).
ingeridos, não intencionalmente, como contaminantes
Ele possui importantes funções metabólicas, além
nos alimentos e na água ou, deliberadamente, na for-
ma de medicamentos com fins terapêuticos ou não. A de ser o sistema de sentinela que primeiro apreende
exposição a xenobióticos pode ser inadvertida e aci- e inativa vários xenobióticos no organismo (fig. 1).
dental, às vezes inevitável. Alguns são inofensivos; ou- Para uma droga ser metabolizada pelos microssomas,
tros, porém, podem provocar respostas biológicas de é necessário ser lipossolúvel, pois essa propriedade fa-
natureza farmacológica ou tóxica. Essas respostas bio- cilita a penetração dela no retículo endoplasmático e
lógicas geralmente dependem da conversão da subs- a sua ligação ao citocromo P450.
tância absorvida em um metabólito ativo ou não, com Apesar de o fígado ser o principal órgão bio-
a finalidade principal de ser eliminada. transformador, importa ressaltar que as enzimas mi-
Biotransformação é a alteração química sofrida crossomais expressam-se em vários outros tecidos,
pelo xenobiótico no organismo, comumente sob a como pulmão e rins (LLAMA & AVENDAÑO,
ação de enzimas específicas e/ou inespecíficas
1993; HONKAKOSKI & NEGHISHI, 1997; BU-
(MEYER, 1996). Juntamente com os fenômenos
de absorção, distribuição e excreção, ela participa TLLETÍ GROC, 1999), pele, cérebro e intestino
da regulação de níveis plasmáticos de drogas. A (WATKINS et al., 1987; PETERS & KREMERS,
biotransformação, portanto, é um processo alter- 1989).
nativo, em que os metabólitos formados possuem Os componentes do sistema P450 são:
propriedades diferentes das drogas originais, com ca-
racterísticas mais hidrofílicas, tendo por objetivo faci- • citocromo P450: componente primordial do
litar a excreção pelo organismo (MEYER, 1996). sistema enzimático oxidativo. Foi assim deno-
Contudo, nem sempre as drogas são inativadas; minado por Omura & Sato (1964), porque o
pelo contrário, alguns metabólitos apresentam ati- complexo formado com o monóxido de car-
vidade aumentada (por exemplo, codeína em mor- bono apresentava um pico de aborção espec-
fina) ou propriedades tóxicas (entre elas, parathion trofotométrica no comprimento de onda 450
em paraoxon), incluindo a mutagenicidade, a tera- nm. Essa enzima apresenta um núcleo pirrólico
togenicidade e a carcinogenicidade.
com o átomo de ferro à semelhança da hemo-
globina, sendo considerada uma hemoproteí-
SISTEMAS ENZIMÁTICOS na;
As enzimas são as responsáveis pelas reações de • NADPH-citocromo P450 redutase ou NADPH-
biotransformação e encontram-se presentes em todo citocromo C redutase: enzima intermediária,
o organismo (sangue, rins, pulmões, pele, tecido ner- flavoproteína, contendo quantidades equimo-
voso, intestino delgado e fígado). Embora elas este- lares de flavina monomucleotídio (FMN) e fla-
jam distribuídas em todo o organismo, o fígado é, vina adenina dinucleotídio (FAD). Um outro
sem dúvida, o órgão que mais as concentra (WA- grupo enzimático, NADH-citocromo b5 redu-
TKINS, 1992). Testes bioquímicos realizados com o tase, acompanha o citocromo P450 e funcio-
tecido hepático por centrifugações sucessivas permiti-
na como alternativa na transferência de
ram constatar a presença de enzimas nas diferentes
frações denominadas solúvel (desidrogenases, estera- elétrons, da fonte para o citocromo P450. Es-
ses, amidases e transferases), mitocondrial (monoami- sas enzimas necessitam de um agente redutor,
no oxidases) e microssomal (citocromos P450). a nicotinamida adenina dinucleotídio fosfato
(NADPH), e do oxigênio molecular. Consome-
se uma molécula de oxigênio por molécula de
SISTEMA MICROSSOMAL substrato, com um átomo de oxigênio apare-
A fração hepática microssômica corresponde cendo no produto e o outro, na forma de
aos fragmentos dos retículos endoplasmáticos cen- água (OGA et al., 1988; OGA, 1996).
Figura 1. Reação de oxidação catalisada pelo citocromo P450 (fonte: OGA, 1996).
Tabela 1. Principais isoformas do citocromo P450 (STRECK & DALLA COSTA, 1999).
ISOFORMA CYP3A4 CYP2D6 CYP2C19 CYP1A2
Alprazolam Amitriptilina
Amitriptilina Clomipramina Amitriptilina
Astemizol Clozapina Amitriptilina Cafeína
Carbamazepina Codeína Citalopram Clomipramina
Ciclosporina Debrisoquina Clomipramina Clozapina
Eritromicina Esparteína Diazepan Fluvoxamina
Imipramina Fluvoxamina Imipramina Haloperidol
Substratos Lidocaína Haloperidol Mefenitoína Imipramina
Midazolam Imipramina Omeprazol Paracetamol
Lidocaína Metoprolol Proguanil Propranolol
Nifedipina Mianserina Tolbutamida Teofilina
Omeprazol Nortriptilina Varfarina Varfarina
Quinidina Paroxetina
Terfenadina Propranolol
Triazolam
Ciclosporina
Eritromicina Debrisoquina Mefenitoína Cafeína
Marcadores Midazolam Esparteína Omeprazol Fenacetina
Nifedipina
Omeprazol
Cetoconazol Flufenazina
Claritromicina Fluoxetina Fluoxetina
Inibidores Eritromicina Paroxetina Fluvoxamina Fluvoxamina
seletivos Fluoxetina Quinidina Sertralina
Fluvoxamina Sertralina
Setralina
Carbamazepina
Dexametasona
Etanol Barbitúricos Omeprazol
Indutores Fenitoína Rifampicina Rifampicina Tabagismo
Fenobarbital
Rifampicina
Troleandomicina
Polimorfismo Não há estudos até o Não há estudos até o
Sim Sim
genético momento momento
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A indução causada por medicamentos pode ser escolha em pacientes grávidas e em condições de
benéfica, como na icterícia neonatal, causada pela afecções virais. A dose terapêutica para adultos é de
excessiva quantidade de bilirrubina, que, por não 325-650 mg a cada 4-6 horas ou 1.000 mg 3-4 ve-
ser conjugada e eliminada, atravessa a barreira he- zes/dia, não devendo exceder 4 g/dia, sob risco de
matoencefálica e produz uma forma de lesão cere- hepatotoxicidade (LEIKIN & PALOUCEK, 1996-
bral conhecida como Kernicterus. Administra-se 1997). A toxicidade com o paracetamol, portanto,
fenobarbital para induzir a glicuronil transferase, au- pode ocorrer com quantidades de apenas 3-4 vezes
mentando, assim, a conjugação de bilirrubina e, a dose terapêutica.
conseqüentemente, reduzindo o risco da doença. A Os hidrocarbonetos policíclicos são indutores po-
indução causada por HPA, presente nos poluentes tentes do metabolismo microssômico e acarretam o
ambientais pode, por sua vez, trazer conseqüências acúmulo de quantidade relativamente pequena de
indesejáveis, como a produção de oxidases termi- intermediários reativos, que, presumivelmente, se in-
nais qualitativamente diferentes. tercalam na hélice do DNA e iniciam a carcinogênese.
A figura 3 mostra a classificação dos carcinógenos
químicos. Observe que carcinógenos genotóxicos
BIOTRANSFORMAÇÃO E TOXICIDADE (causadores de mutação no gene) podem ser primários
A biotransformação, tão importante para a (causam mutações diretamente) e secundários (após
excreção de substâncias, apresenta o seu lado per- conversão em metabólitos reativos).
verso como resultado da oxidação microssômica. Os carcinógenos epigenéticos são agentes que,
Os metabólitos tóxicos podem formar ligação cova- por si só, não causam lesão genética. No entanto,
lente e/ou não-covalente com moléculas-alvo. As aumentam a probabilidade de causar câncer (BAR-
interações não-covalentes, entre elas, a peroxidação RET, 1992), por vários mecanismos, entre eles: au-
lipídica, a produção de espécies tóxicas de oxigênio mento de concentrações efetoras do genotóxico,
e as reações causadoras de alteração da concentra- potencialização da metabolização do genotóxico,
ção de glutation e modificação de grupos sulfidril, diminuição da desintoxicação de um genotóxico,
podem resultar em citotoxicidade. Já as interações inibição do reparo de DNA e aumento da prolifera-
covalentes de metabólitos reativos à proteína po- ção de células com DNA danificado.
dem produzir um imunógeno; a ligação ao DNA
pode causar carcinogênese e teratogênese.
O paracetamol exemplifica vários dos mecanis-
PERSPECTIVAS
mos gerais de lesão celular, tanto para interação Este artigo enfoca a importância da biotransforma-
covalente (formação de adição e de imunógeno) ção, pois, se ela não ocorresse, o organismo seria um
como para as não-covalentes. Em doses tera- depósito de substâncias químicas estranhas por tempo
pêuticas, o paracetamol é normalmente excretado, indeterminado. Nesse sentido, as enzimas exercem um
conjugado ao ácido glicurônico ou ao sulfato. Pe- papel biológico de extrema importância, sobretudo as
quenas quantidades, entretanto, são biotransfor- enzimas do citocromo P450, presentes nas membranas
madas em metabólitos reativos intermediários (N- do retículo endoplasmático liso.
acetil-p-benzo-quinona-imina, NAPBQI), elimina- A família de genes do citocromo P450 diversifi-
dos através do varredor nucleofílico, glutation cou-se desde sua origem, há mais 3,5 bilhões de
(GSH), na forma de ácido mercaptúrico. Como o anos, para adaptar-se ao metabolismo de um núme-
glutation tem suprimento limitado e ainda pode ro crescente de substâncias químicas ambientais, to-
ser depletado (estresse oxidativo) por formação de xinas alimentares e drogas ingeridas diariamente
adição entre NAPBQI e GSH (ligação covalente), a (BENET et al., 1996). Essas enzimas apresentam
droga na forma de epóxido ou quinona pode atin- uma particularidade fantástica: são passíveis de in-
gir concentração suficiente para reagir com os dução enzimática, além de inibição enzimática, co-
constituintes celulares nucleofílicos (BOOBIS et mum a todas. Embora a indução enzimática ocorra
al., 1989; NELSON & PEARSON, 1990). Sobre- com alguns medicamentos, esse aspecto tem re-
vém daí uma necrose hepática ou renal. levância na exposição aos poluentes químicos, pois
A figura 2 ilustra as vias de metabolização do pa- as reações de biotransformação catalisadas por enzi-
racetamol. É importante ressaltar as propriedades mas microssomais podem levar à formação de uma
analgésica e antitérmica do paracetamol, droga de oxidase terminal qualitativamente diferente.
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Figura 2. Metabolismo do paracetamol (fonte: BOOBIS et al., 1989; NELSON & PEARSON, 1990).
Naturalmente o organismo dispõe de várias for- Nesse contexto, a exposição a novas substâncias
mas de neutralizar os metabólitos reativos intermedi- químicas deve ser cuidadosa, incluindo-se aqui as
ários formados nas reações de biotransformação ou drogas de abuso. Mortes têm ocorrido com drogas
na exposição a vírus, toxinas e radiações. Entre elas, usadas com finalidade não médica, entre elas, o ecs-
destacam-se a deleção da célula danificada, por apop- tasy e o 1,4-butanodiol (vendidos como estimulan-
tose (morte celular programada) ou necrose, e a pos- tes para clubbers e esportistas). Outro exemplo
terior substituição da célula danificada, por mitose. bastante comum, pelo uso socialmente aceito, é o
Mas se esses mecanismos falham, podem ocorrer ne- acetaldeido, produto de biotransformação do álcool
crose tecidual (requerendo, às vezes, amputação de etílico e composto intermediário extremamente rea-
membros), fibrose ou mutagênese (GREGUS & tivo, responsável também pelos efeitos deletérios
KLAASSEN, 1995). causados pelo uso crônico do álcool. Some-se a esse
Já se sabe a necessidade da seqüência de quatro
cenário a exposição aos poluentes químicos, coran-
a seis mutações para a criação de uma célula cance-
tes e conservantes fenólicos.
rosa. O câncer é uma doença que afeta o gene (por-
tanto, genética) e uma das mais temidas entre todas Assim, quer-se ressaltar que a ponte entre
as doenças. Se falham os mecanismos de reparo e o biotransformação e toxicidade é o metabólito rea-
de interrupção do ciclo mitótico, ocorrerá uma tivo intermediário, ou radical livre, capaz de cau-
proliferação celular, totalmente incontrolável, tor- sar graves danos, como as mutações, que podem
nando a célula imortal. Desse conceito de imortali- levar à perda de informação e, finalmente, ao
dade surge um novo paradigma dessa doença, câncer. Por fim, cabe chamar a atenção sobre a
relatado pelo físico Kaku (2001), de que “envelhe- responsabilidade do uso de drogas, lícitas ou ilíci-
cer pode ser o preço que pagamos para nos proteger tas, terapêuticas ou não, pois o organismo tem
contra o câncer”. seus limites.
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Submetido: 15/abr./2002
Aprovado: 22/out./2002