Anda di halaman 1dari 9

SEÇÃO DE BIOÉTICA

PLURALISMO E TOLERÂNCIA: VALORES PARA A BIOÉTICA

PLURALISM AND TOLERANCE: VALUES TO BIOETHICS

Letícia Ludwig Möller

RESUMO

Este artigo tem como objetivo refletir sobre a importância do reconhecimento e da prática dos valores do plura-
lismo cultural e da tolerância no âmbito da bioética e da assistência à saúde, valores que delineiam os contornos de um
modo de pensar a bioética e de enfrentar os casos concretos. O que se entende quando se fala em pluralismo e tole-
rância, contudo, deve ser esclarecido, razão pela qual inicialmente se busca resgatar tais noções.
Unitermos: Bioética, pluralismo, tolerância.

ABSTRACT

The objective of this article is to reflect about the importance of the recognition and practice of pluralism and toler-
ance in bioethics and in health assistance. These values draw the lines of a way to think bioethics and to deal with par-
ticular cases. However, when we talk about pluralism and tolerance, it is important to recover these notions so that we
can elucidate what we intend to say.
Keywords: Bioethics, pluralism, tolerance.
Rev HCPA 2008;28(2):101-9

Os impressionantes conhecimentos científi- mais difícil, por serem diversos os entendimentos


cos e tecnológicos adquiridos, de modo especial, ao acerca do que seja moral e imoral, aceitável e ina-
longo do último século, delinearam um cenário ao ceitável. Da mesma forma, levando-se em conside-
mesmo tempo fascinante e perturbador. Conside- ração a pluralidade de valores e visões morais culti-
rando particularmente sua aplicação à saúde huma- vadas pelos indivíduos e comunidades culturais, não
na, os novos conhecimentos proporcionaram bene- é simples ou unívoca a identificação do bem a ser
fícios admiráveis, com o desenvolvimento de novos perseguido e dos males a ser evitados em termos
fármacos, terapias, aparelhos e procedimentos mé- terapêuticos. A indagação acerca do que seja fazer o
dicos, da engenharia genética, de novas formas de bem ao paciente, assim, não poderá ser respondida
reprodução humana. Vivenciamos, com isso, a ve- com base em conhecimentos técnicos tão-somente,
loz concretização de muitos anseios: a libertação de sob pena de desconsiderar-se a existência de dife-
algumas doenças, o alívio da dor, a superação da rentes modos de compreender a saúde, a doença, a
infertilidade. Por outro lado, vemos a promessa de vida, a morte e a dor.
realização de muitos de nossos temores: a geração No presente texto, buscamos enfocar essas di-
de clones, a manipulação genética indiscriminada (e ferenças culturais e o modo como geram conse-
possivelmente discriminatória), o uso de nossos qüências no âmbito da assistência à saúde, refletin-
dados genéticos para fins que desconhecemos. do acerca das contribuições que o reconhecimento e
Diante desse novo cenário, as reflexões em a aplicação dos valores do pluralismo e da tolerân-
sede bioética buscaram e seguem buscando estabe- cia trazem às reflexões bioéticas e ao enfrentamento
lecer princípios e parâmetros que pautem tanto a dos casos concretos; todavia, cientes das dificulda-
realização de pesquisas e experimentos e o uso dos des que permeiam o enfrentamento das questões
seus resultados, como as políticas de assistência à bioéticas em um cenário marcado, simultaneamente,
saúde, as tomadas de decisão nos casos concretos por tendências conflitantes de padronização no âm-
que envolvam dilemas bioéticos (a exemplo de bito global, por um lado, e de fortalecimento des-
questões envolvendo o início ou o fim da vida) e a medido da idéia de identidade cultural, por outro.
elaboração de normativas mais pontuais sobre esses Com esse intento, no primeiro e no segundo
temas. O que seja um bom uso da ciência e de seus pontos abordamos, respectivamente, as idéias de
produtos, contudo, nem sempre é claro. Particular- pluralismo e tolerância (alguns entendimentos inici-
mente em sociedades onde convivem indivíduos e ais e atuais em torno dessas idéias e sua conforma-
grupos com diferentes culturas, crenças e concep- ção como valor); e no último ponto, dedicamo-nos a
ções de bem, esta definição consensual será ainda refletir acerca da importância do reconhecimento e

Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência – LAPEBEC do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Programa em Sistemas Jurídicos e
Político-Sociais Comparados da Università degli Studi di Lecce/Itália. Bolsa do Programa ALβAN.
Correspondência: Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência. Rua Ramiro Barcelos, 2350.
CEP: 90035-903 Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: leticiamoller@yahoo.com.br
Möller LL

da aplicação de ambos os valores ao âmbito especí- ção deste ideal de pluralismo (um pluralismo razoá-
fico da Bioética e da assistência à saúde. vel ou tolerante), por sua vez, caminharia na direção
Convém esclarecer que a nossa pretensão, de tornar fato a coexistência plural harmoniosa e
aqui, é tão-somente de proceder a algumas pondera- pacífica, para além da “diferença pela diferença”
ções em torno do tema, buscando suscitar pontos (pluralismo simples) ou do jugo das diferenças into-
que mereceriam maiores e mais aprofundadas refle- lerantes (a) (4).
xões, e de modo algum adotar a fácil afirmação de Em torno da idéia de conformação do plura-
que o reconhecimento e a aplicação de tais valores lismo como fato e valor no sentido acima referido,
no âmbito da Bioética possa ser algo simples de gravitam tendências conflitantes às quais cabe dedi-
realizar e isento de dúvidas e dificuldades. car algumas linhas.
O processo de globalização, intensificando-se
PLURALISMO: FATO E VALOR fortemente ao longo do último século, vem tradu-
zindo-se na crescente interdependência das Nações
O pluralismo cultural, a existência em um a nível global e firmando seu caráter multidimensi-
mesmo espaço de uma diversidade de doutrinas onal: não se resumindo a fenômeno meramente
morais, tradições e concepções de bem particulares, econômico, mas também social, político e cultural
é realidade de fácil constatação nas sociedades de- (5,6). Não apenas a economia, mas a comunicação,
mocráticas ocidentais. Ele apresenta-se como fato, o trabalho, a imigração, as questões ambientais e as
elemento caracterizador da era moderna, podendo manifestações artísticas fazem com que as linhas
ser verificado não só na existência de diferentes que separam as sociedades e os indivíduos, “eles” e
comunidades e grupos culturais – étnicos, religio- “nós”, Oriente e Ocidente, estejam constantemente
sos, ideológicos – no interior das sociedades nacio- sendo redefinidas. Todavia, apesar de promover um
nais, mas ainda na existência de uma variedade de incremento da integração internacional em todos
projetos e estilos de vida individuais, de entendi- esses planos, a globalização acabou gerando e ali-
mentos individuais – mais ou menos fundamentados mentando novos particularismos.
– acerca do que seja uma vida boa. Nesse contexto, convivem tendências confli-
A constatação do fato do pluralismo é impor- tantes: de um lado, a tendência à padronização cul-
tante elemento que compõe a teoria da justiça de tural, à “homogeneidade de costumes e consumos”
John Rawls, na medida em que a concepção de jus- (7), à pretensão de predomínio de uma “cultura
tiça formulada pelo filósofo norte-americano ambi- dominante” que apenas assimila as demais, sufo-
ciona ser endossada pela pluralidade de doutrinas cando e impossibilitando as diferenças (o que po-
abrangentes (filosóficas, morais, religiosas) que demos chamar de “universalismo absolutista”); de
possuem distintas concepções de bem. Estas doutri- outro lado, em grande parte como reação à primeira,
nas, contudo, embora conflitantes, deveriam ser a tendência a reforçar as diferenças, à auto-
razoáveis, não implicando a renúncia à cooperação afirmação, fortificação e mesmo isolamento das
com aqueles que aderem a doutrinas diversas, a identidades culturais, acompanhada do discurso em
partir do que Rawls distinguiu um “pluralismo sim- prol do relativismo cultural e do caráter auto-
ples” de “um pluralismo razoável” – este, seria um referencial das culturas, segundo o qual não é pos-
fato nas sociedades democráticas bem-ordenadas sível proceder-se a julgamentos de valor acerca de
(1,2,3). culturas diversas das nossas pelo fato de que ne-
Uma vez que as sociedades concretas rara- nhuma cultura pode ser considerada superior à ou-
mente são bem-ordenadas (no sentido dado por tra, não existindo, segundo esse entendimento, crité-
Rawls), e que um pluralismo adjetivado de razoável rios e princípios éticos comuns de referência que
não é sempre constatado na realidade, entende-se permitam tal avaliação.
que cumpre afirmar o pluralismo não apenas como O discurso relativista é importante e positivo
fato mas como valor: o pluralismo entendido como na medida em que está atento à tendência de impo-
algo desejável no âmbito das sociedades, a defesa sição unilateral de uniformização e adequação a
da diferença como valor ético. Não o pluralismo por padrões culturais não partilhados, defendendo a
si só, contudo, a simples existência de uma diversi- ausência de legitimidade de tal imposição e a neces-
dade de culturas, doutrinas morais, tradições. Ao sidade de preservação das identidades culturais. No
entendermos que o pluralismo não se confunde com entanto, mostra-se extremamente problemático e
o relativismo cultural, devendo encontrar limites, perigoso ao fornecer álibis para a perpetuação de
procuramos por uma idéia de pluralismo normativo práticas violentas no interior das próprias comuni-
que permita a coexistência – harmoniosa e pacífica dades, deixando desprotegidas as suas minorias
– de estilos de vida, concepções de bem e visões internas, entregues à tirania do grupo (8)(b).
morais distintas entre si. A busca pela implementa-

102 Rev HCPA 2008;28(2)


Pluralismo e tolerância

No contexto de globalização e de reivindica- goria dos direitos humanos. Tais dificuldades são
ções pela proteção e promoção dos direitos huma- agravadas quando se adota o entendimento que
nos (especialmente a partir do segundo pós-guerra), restringe esta categoria de direitos tão-somente à-
resulta insustentável (e inadequada) a manutenção quilo que se encontra positivado em declarações e
da noção rígida de Estados nacionais como absolu- tratados internacionais, em uma redução epistemo-
tos soberanos do espaço local delimitado por suas lógica que despreza a importância da busca de fun-
fronteiras, sendo defensável a relativização da sobe- damentação filosófica e do reconhecimento inter-
rania dos Estados e a flexibilização de certos conte- cultural dos direitos humanos. Por outro lado, a
údos de seus ordenamentos nacionais quando estes possibilidade de coexistência pacífica e harmoniosa
resultarem insuficientes ou contrários à maior pro- das diferentes culturas e concepções de bem depen-
teção dos seres humanos. Como já diagnosticava derá do esforço por convergência e harmonização
Immanuel Kant há mais de dois séculos, “a violação culturais que portem a um mínimo ético partilhado
do direito num lugar da Terra se sente em todos os universalmente. Na construção deste caminho que
outros” (9). concilia a preservação das particularidades cultu-
Nesse cenário, resulta problemático que não rais, de um lado, e a busca de um mínimo de har-
só as sociedades nacionais, mas da mesma forma as monização cultural, de outro, os valores do plura-
comunidades culturais no seu interior, permaneçam lismo e da tolerância possuem papel fundamental
completamente incomunicáveis e herméticas, abs- (3).
tendo-se do diálogo e da mútua troca de influências
com as demais culturas. O conhecimento de outras TOLERÂNCIA: TORNANDO POSSÍVEL O
culturas pode contribuir para a reflexão e a autocrí- PLURALISMO
tica por parte das comunidades particulares, acerca
de suas próprias tradições, valores e crenças, levan- A idéia de tolerância cultural encontra-se in-
do-as a tornarem-se comunidades “reflexivas”. Tal timamente vinculada àquela de pluralismo, sendo
atitude deve implicar que os membros de um grupo difícil e mesmo artificial tratá-las separadamente.
cultural possam ser, para além de meros participan- Michael Walzer expressa bem o entrelaçamento de
tes, observadores da sua própria tradição, vendo ambos os conceitos, ao afirmar que “a tolerância
com olhar crítico sua ordem normativa (10)(c). torna a diferença possível; a diferença torna a tole-
Entre as posições extremas de um relativismo rância necessária” (11). A prática da tolerância tor-
e um universalismo radicais, parece-nos necessária na possível o pluralismo como fato e como valor, ao
a busca de uma “terceira via” que saiba conjugar, de dar espaço e criar condições para a coexistência das
um lado, o reconhecimento do valor da diferença e diferenças em um mesmo ambiente.
da preservação das culturas, e, de outro, a preocu- A defesa da tolerância cultural conformou-se
pação com a proteção e a promoção de certos direi- inicialmente como defesa da tolerância religiosa,
tos básicos em nível global. Em outras palavras, a impulsionando-se com a Reforma Protestante no
busca de um caminho de conciliação das diferenças século XVI – que possibilitou o florescer do plura-
e de aproximação cultural que não implique homo- lismo religioso mediante a ruptura hegemônica da
geneidade forçada e imposição de valores cujos Igreja Católica em alguns países, e a sua teorização,
conteúdos não podem ser partilhados por todos. especialmente no século que se seguiu, com os es-
Podemos chamar esta posição de um “universalismo critos de John Locke, Bayle e Spinoza. Estes e ou-
pluralista” (em contraposição ao “universalismo tros filósofos, seguidos por Voltaire no século XVI-
absolutista” descrito), que irá traduzir-se na busca II, apesar de apresentarem diferenças em suas teses,
de um mínimo ético comum às diferentes sociedades buscaram igualmente estabelecer linhas divisórias
e comunidades. Retoma-se a idéia kantiana de um de atuação entre as esferas religiosa e política, em
“direito cosmopolita” para assegurar a paz perpétua defesa da liberdade, da tolerância e da possibilidade
entre os povos, a formulação de uma ordem jurídica da diferença (12)(d).
fundada em valores universais. O reconhecimento John Locke, na sua Epistola de Tolerantia
da nossa humanidade comum torna necessária a publicada em 1688, afirmava a separação entre Igre-
busca de valores e direitos mínimos, compartilhá- ja e Estado e a distinção existente entre interesses
veis universalmente. da sociedade civil e interesses da religião. Ao carac-
O pluralismo, a “coexistência de diferentes terizar a Igreja como associação à qual os homens
concepções de bem e identidades culturais em um se reúnem de forma livre e voluntária, e a fé religio-
ambiente compartilhado”, opõe dificuldades à iden- sa como questão de consciência individual, Locke
tificação de “fins e valores que possam ser almeja- defendia a não-imposição de adesão à determinada
dos por todos os seres humanos” e, dessa forma, ao Igreja, dogma ou crença, entendendo que deveriam
reconhecimento da composição normativa da cate- ser toleradas todas as crenças e ações que não fos-

Rev HCPA 2008;28(2) 103


Möller LL

sem nocivas ou não constituíssem um perigo à soci- à liberdade individual está no causar prejuízo a ou-
edade. Para Locke, contudo, católicos e ateus – em tros indivíduos ou à sociedade (17).
modos diversos – eram politicamente perigosos, O pluralismo religioso e sua defesa mediante
restando por isso excluídos da esfera da tolerância a idéia de tolerância, juntamente ao processo de
(13). Não deixando de reconhecer a imensa contri- globalização, possibilitou o florescimento de novas
buição dada por Locke à fortificação da liberdade e formas de pluralismo cultural no interior das socie-
da tolerância religiosas, pode-se perceber aqui os dades ocidentais, requerendo a retomada da questão
limites da idéia de neutralidade do Estado do filóso- da tolerância – não mais restrita ao tolerar, em mai-
fo inglês – o que, por um lado, poderia ser justifica- or ou menor grau, a diversidade no âmbito religioso,
do pela consciência da importância da religião co- mas abrangendo a pluralidade em todos os âmbitos
mo instrumento de governo na sociedade de seu da vida: a moral, a política, os costumes, a organi-
tempo (14). zação familiar, a orientação sexual, a estética.
Anterior a Locke e no contexto de significati- Somos tolerantes quando aceitamos conviver
va liberdade religiosa da Holanda do século XVII com a alteridade, quando suportamos a existência e
(onde Bayle e o próprio Locke depois buscaram a manifestação daquilo que consideramos, a partir
refúgio), Spinoza escreveu seu Tractatus theologi- de nossas concepções individuais ou comunitárias,
co-politicus, publicado em 1670 (15). Afirmava a como sendo estranho, de mau gosto, inadequado ou
liberdade de pensamento como virtude e direito imoral. A tolerância pressupõe a reciprocidade, o
natural do homem, não podendo ser suprimida mas mútuo reconhecimento do direito do outro a possuir,
devendo ser tolerada – desde que não causasse dano crer e manifestar sua doutrina moral, concepção de
a si e aos demais e não perturbasse a paz do Estado; bem ou estilo de vida particular.
e asseverava que o verdadeiro fim do Estado era a O tema da tolerância, no entanto, longe de ser
garantia da liberdade. Com relação à fé religiosa, o simples, suscita uma série de questões às quais po-
filósofo holandês defendia a possibilidade de uma dem ser fornecidas diferentes respostas, e que dizem
pluralidade de opiniões e interpretações acerca dos respeito à sua fundamentação, às condições para a
dogmas. Todavia, reconhecia a existência de uma sua realização e ao estabelecimento de limites àqui-
religião pública, com seus ritos e sua organização lo que pode ou deve ser tolerado. Mendus (18) iden-
eclesiástica, como instrumento necessário para ga- tifica três tipos de entendimento possíveis acerca da
rantir a unidade política e a obediência dos mem- idéia de tolerância: a tolerância como norma pru-
bros da comunidade. Bayle, diversamente, em sua dencial (preponderando razões de ordem pública),
obra Pensées diverses sur la comète, de 1682, colo- como imperativo da racionalidade (de que Popper
cava em dúvida que a religião fosse um elemento seria um exemplo)(19) e como imperativo ético.
essencial da sociedade humana e que os ateus não Estes entendimentos não seriam necessariamente
pudessem ter um convívio social igualmente bom, e auto-excludentes, mas poderiam mesmo reforçar-se
via na política o meio para a defesa contra o fana- mutuamente. Walzer, entendendo a tolerância como
tismo religioso (14). virtude, identifica um continuum entre diferentes
Voltaire, em seu Traité sur la tolérance à possibilidades de atitudes tolerantes, que parte da
l’occasion de la mort de Jean Calas de 1763, partiu resignada aceitação, passando pela indiferença, pela
de um caso concreto para fazer uma apaixonada aceitação estóica, e tendo como ponto mais avança-
defesa da tolerância – tolerância não apenas entre os do o endosso entusiástico da diferença (11). Para o
cristãos, mas para com todas as pessoas. A intole- autor, o sucesso de um regime de tolerância não
rância, para o filosofo francês, seria admitida ape- depende da adoção de uma destas atitudes tolerantes
nas quando defronte ao fanatismo (16)(e). em particular, nem requer que todos os participantes
A defesa da liberdade individual no que diz se situem no mesmo ponto do continuum, entenden-
com a esfera mais privada da vida, bem como a do que qualquer uma dessas atitudes, firmemente
preocupação com a proteção da diversidade de opi- estabelecida, contribui para a maior estabilidade da
niões, sentimentos e concepções de vida, são con- tolerância. Zarka, sem desconsiderar a noção moral
tribuições significativas de John Stuart Mill. Seu acerca da tolerância (a tolerância como virtude, cujo
ensaio On Liberty, publicado em 1859, constitui-se conteúdo formal é a reciprocidade), propõe o seu
em forte defesa da tolerância. “A humanidade ganha entendimento como conceito principalmente políti-
mais tolerando que cada um viva conforme o que co, de modo a retirar-se a discussão do plano moral
lhe parece bom do que compelindo cada um a viver e não esperar por uma improvável transformação
conforme pareça bom ao restante”, afirmava o filó- moral espontânea da humanidade (12). Para tanto,
sofo inglês, defendendo a limitação da interferência concebe o conceito de structure-tolérance que, me-
do público no âmbito estritamente pessoal. O limite diante princípios e dispositivos político-jurídicos,

104 Rev HCPA 2008;28(2)


Pluralismo e tolerância

defina as condições para a coexistência e a viabilize A tolerância somente pode existir com base
(f). na reciprocidade. É a partir desta idéia que podemos
Outra questão complexa se põe com relação à pensar nos limites da tolerância. Não deve haver,
prática da tolerância: para de fato viabilizar-se a assim, a exigência de tolerar-se os intolerantes,
existência e a manifestação da diferença, podem ser aqueles que negam a tolerância aos demais, median-
necessárias ações positivas por parte do Estado, te o cometimento de ações e manifestações que não
como o reconhecimento de direitos que digam res- admitem a existência do outro – a existência da
peito particularmente à determinada comunidade diversidade, de concepções de bem e estilos de vida
cultural ou minoria étnica (os chamados “direitos que difiram dos seus –, ou que são frontalmente
culturais”). Minorias culturais no interior de uma contrárias aos valores e princípios mais fundamen-
sociedade nacional podem, ainda, vir a reivindicar tais da sociedade democrática na qual se inserem.
submeter-se a leis outras que não as do Estado de- A prática concreta da tolerância e da intole-
mocrático onde vivem e que a estas se opõem fron- rância, contudo, nos âmbitos mais variados da vida
talmente (podemos pensar em comunidades mu- social, não é isenta de dificuldades. Identificar
çulmanas que, situadas em países europeus demo- quando os limites do tolerável foram ultrapassados
cráticos, reivindicam viver apenas segundo a Shari- dependerá, em grande medida, de cada caso concre-
a), o que torna a questão ainda mais problemática. to. No ponto seguinte, buscamos refletir acerca do
Diversos serão os posicionamentos acerca desse que deveria ser tolerado na esfera das questões bioé-
tema (12,20)(g). ticas, mediante o reconhecimento da importância
Limitamo-nos aqui a referir essas questões dos valores do pluralismo e da tolerância em socie-
sem adentrar as suas particularidades, por enten- dades onde convive uma diversidade de doutrinas
dermos que seria ultrapassar os objetivos e o espaço morais, concepções de bem e convicções particula-
deste texto. Afirmamos, não obstante, nossa com- res.
preensão da tolerância como um valor, ideal de
conduta perante as diferenças culturais a ser alme- REFLEXÕES ACERCA DO RECONHECI-
jado e buscado pelas sociedades hodiernas (e que, MENTO E DA APLICAÇÃO DOS VALORES
em alguns casos, pode eventualmente exigir algum DO PLURALISMO E DA TOLERÂNCIA AO
tipo de ação positiva por parte do Estado). É pela ÂMBITO DA BIOÉTICA
garantia de ser tolerado em seu modo de ser, em
suas crenças e convicções, que o indivíduo pode Em uma sociedade pluralista e tolerante, a as-
exercer de forma plena seu direito à liberdade e à sistência à saúde, o ambiente hospitalar e os profis-
autonomia. É a tolerância, retomamos, que torna sionais devem pautar-se pela consideração e pelo
possível o pluralismo. respeito à diversidade de culturas, crenças, valores e
Todavia, há limites para a tolerância, os quais convicções individuais e coletivas. A busca dos
estão intimamente vinculados aos limites que refe- profissionais da saúde por uma conduta que não
rimos com relação ao fato do pluralismo. No ponto agrida as diferentes concepções morais coloca-se
precedente, afirmamos que o reconhecimento da como um grande desafio. Como bem percebe Enge-
diferença cultural não se confunde com e não deve lhardt, esses profissionais vivenciam duas dimen-
levar a um discurso relativista radical. Entendemos sões ou dois mundos morais distintos: o primeiro é
que o posicionamento relativista extremo mostra-se o da comunidade moral particular da qual fazem
problemático e perigoso, na medida em que descon- parte, dentro da qual “aprendem sobre as virtudes e
sidera a possibilidade de julgamento ético das cultu- os vícios concretos e são instruídos na formação de
ras e de busca por referenciais normativos comuns, um bom caráter” (entendemos aqui que essa comu-
podendo contribuir a perpetuar opressão e violência nidade pode ser a própria comunidade médica, com
no interior das próprias comunidades e na atitude seus valores comuns acerca dos objetivos da medi-
destas para com a sociedade nacional e os demais cina; e ainda outra comunidade da qual o profissio-
grupos culturais. Uma vez que todos os pontos de nal faça parte, a exemplo de uma comunidade reli-
vista, para tal perspectiva de relativismo, são igual- giosa); o segundo “mundo moral” é o do contexto
mente válidos, a questão da tolerância não seria hospitalar, que deve se caracterizar por um ambien-
nem colocada como problema (21). A questão da te pluralista, por unir indivíduos pertencentes a dis-
tolerância coloca-se, justamente, quando o convívio tintas comunidades morais particulares (ou mesmo,
de diferentes culturas em um mesmo espaço requer, entendemos, indivíduos que não pertencem a qual-
em alguma medida, limitação da liberdade de cada quer comunidade particular, mas que possuem seus
indivíduo ou grupo, mediante a identificação de próprios valores e convicções) (22)(h).
valores partilhados e o estabelecimento de regras Uma Bioética que não se queira (artificial-
mínimas de reciprocidade (3). mente) unívoca, reprodutora de uma única visão

Rev HCPA 2008;28(2) 105


Möller LL

moral ou concepção de bem, deveria reconhecer a O respeito à autonomia pressupõe uma rela-
importância dos valores do pluralismo cultural e da ção médico-paciente de diálogo e interesse, buscan-
tolerância para a sua prática e para os dilemas que do-se conhecer a concepção de bem e os valores
enfrenta. Importantes, nesse sentido, as idéias de cultivados pelo paciente e seu posicionamento ou
uma “Bioética secular” ou “Bioética plural” de En- sentir com relação à determinada terapia ou inter-
gelhardt (22) e de uma “Bioética laica” de Scarpelli venção. Para que o paciente possa tomar uma deci-
(23). Longe de pretender desconsiderar a validade são substancialmente autônoma, contudo, é indis-
de determinadas crenças (religiosas, em especial, pensável que o profissional da saúde forneça-lhe as
como se poderia pensar) em prol de entendimentos informações precisas acerca de seu diagnóstico ou
puramente (ou pretensamente) científicos, tais idéi- prognóstico e da análise dos possíveis riscos e bene-
as, muito pelo contrário, desejam garantir a igual- fícios envolvidos.
dade de consideração das mais diversas crenças Essa dinâmica, em muitos casos, traduz-se no
religiosas, doutrinas morais e culturas no âmbito da processo de obtenção do consentimento informado.
Bioética, mediante o reconhecimento de que as Um consentimento realmente informado será a ex-
questões nesta sede não encontram um único modo pressão da aproximação e interação culturais de
moralmente correto de compreensão, dependendo pessoas com diferentes valores e concepções de
tal valoração, justamente, dos valores cultivados bem, que buscam, mediante o diálogo, compreen-
pelos indivíduos ou pelos grupos culturais dos quais der-se mutuamente e convergir para a construção do
estes façam parte. melhor caminho terapêutico (25,26,27). A constru-
Não obstante entendamos que um “espaço de ção desse caminho deve dar-se em conjunto; toda-
universalismo” em Bioética e em sua regulação via, chegando-se ao final do processo, restará ao
jurídica é não somente possível como fortemente profissional da saúde tolerar uma decisão do paci-
desejável e necessário (24), consideramos que a ente com a qual não concorde, em respeito à auto-
abordagem pluralista e tolerante deve incidir em nomia deste e a seus valores, crenças e convicções
inúmeras questões, tais como: o entendimento acer- particulares. O tolerar a decisão autônoma do paci-
ca dos chamados princípios bioéticos, em especial ente, contudo, dá-se dentro de limites, os quais po-
do princípio da beneficência; a relação médico- dem vir a justificar a não-obrigatoriedade de deter-
paciente e a obtenção do consentimento informado; minada conduta por parte do profissional. De qual-
as políticas de assistência à saúde; o reconhecimen- quer modo, entende-se que sempre deverá ser tole-
to da existência de múltiplos modos de compreen- rada a decisão do paciente no sentido de não se
der a doença, a saúde, a dor, a vida e a morte, per- submeter a uma terapia ou procedimento médico,
cepções individuais ou culturais que influirão no visto não se estar exigindo uma ação positiva do
sentir do paciente com relação a tratamentos, inter- profissional da saúde mas apenas a sua omissão (j).
venções e procedimentos médicos. As diferentes percepções acerca da saúde, da
Uma compreensão acerca do princípio bioéti- doença, da vida, da morte e da dor geram relevantes
co da beneficência que leve em consideração o fato conseqüências no âmbito da Bioética. Como notou
do pluralismo de valores, crenças e concepções de Scarpelli, “se no quotidiano elas parecem desapare-
bem não poderia impor uma ordenação particular cer ou nivelar-se sob o fluir dos gestos comuns,
dos bens válida para todos os casos ou para todos os sobre os problemas de fundo da bioética reafloram
pacientes, mediante uma postura demasiadamente com toda a sua força (...)” (28). Em muitos casos,
paternalista e arbitrária, mas questionar: o que é são as doutrinas morais e religiosas e as tradições
fazer o bem neste caso concreto? Ou ainda, o que é culturais cultivadas pelo paciente a ter um peso
o bem para este paciente? São múltiplos os possí- decisivo na sua aceitação ou rejeição a submeter-se
veis entendimentos acerca dos bens a ser alcança- a determinado tratamento ou intervenção médica, na
dos, dos males a ser evitados e de que bem deve ter sua disposição a suportar a dor ou a receber todo o
prioridade sobre outros, tal avaliação dependendo alívio possível, no seu desejo de ter prolongado ao
do mundo cultural, moral e filosófico do paciente máximo seu final de vida ou, ao contrário, de ter
em questão, de seus desejos e convicções pessoais. abreviado seu sofrimento mediante a interrupção da
O princípio da beneficência, assim, deve ser com- terapia ou a sua não-oferta (29)(k).
preendido em estreita vinculação ao princípio da Nesse cenário, mostra-se extremamente ne-
autonomia, reconhecendo-se a importância do res- cessário o reconhecimento e a aplicação prática dos
peito aos valores e crenças do paciente, e evitando- valores do pluralismo e da tolerância, o que é ex-
se a ocorrência de atitudes arbitrárias por quem presso essencialmente pelo respeito às decisões
detém o conhecimento técnico acerca da cura ou autônomas dos pacientes. Tal posicionamento pare-
tratamento (22)(i). ce encontrar consonância com o conceito de saúde
desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde

106 Rev HCPA 2008;28(2)


Pluralismo e tolerância

(OMS): a saúde entendida como bem-estar global 7. La Torre MA. Il multiculturalismo come problema
(físico, mental, espiritual, social, cultural), depen- etico-filosofico. In: Medicina e multiculturalismo:
dente, dessa forma, da valoração realizada pelo dilemmi epistemologici ed etici nelle politiche
próprio paciente. Assim, os conhecimentos técnicos sanitarie. Bologna: Apèiron, 2000:111.
dos médicos e demais profissionais da saúde devem 8. Ferretti, M.P. Tre modi di intendere le differenze
ser concebidos não como fins em si mesmos, mas culturali. In: Ricciardi M, Del Bò C (orgs). Pluralis-
como possibilidades, a utilizar contextualmente mo e libertà fondamentali. Milano: Giuffrè, 2004:10.
conforme as exigências que emergem da biografia, 9. Kant I. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa:
da cultura e dos valores do paciente (20). Edições 70, 2002:140.
No entanto, conforme vínhamos afirmando, o
10. Benhabib S. Cultural complexity, moral interdepend-
reconhecimento das diferenças culturais não deve ence and the global dialogical community. In:
significar ausência de limites, uma postura de lais- Robertson R, White K (orgs). Globalization: critical
sez-faire em prol da liberdade individual absoluta concepts in sociology. Vol. IV: Culture and identity.
ou ainda a aceitação ilimitada dos valores e tradi- London-New York: Routledge Taylor & Francis
ções das comunidades culturais. Indispensável pen- Group, 2003:49-56.
sar-se e estabelecer-se parâmetros normativos que
11. Walzer M. Da tolerância. São Paulo: Martins Fontes,
pautem a identificação de um conteúdo mínimo a 1999:XII, 16-18.
ser protegido, gerando limites à liberdade (individu-
al, cultural ou científica). Contudo, é certamente na 12. Zarka YC. Difficile tolerance, Paris: PUF, 2004: 1, 2,
análise de cada questão específica e de cada caso 5-6,15-17, 30-32, 131-150.
concreto, na consideração de suas nuances e parti- 13. Locke J. Lettera sulla tolleranza. Roma-Bari: Laterza,
cularidades, que se torna possível a aproximação, 2003.
em esforço conjunto, do entendimento acerca de 14. Viano CA. Introduzione. In: Locke J. Lettera sulla
qual seja a melhor solução ou a mais adequada con- tolleranza. Roma-Bari: Laterza, 2003:V-XIII.
duta – levando sempre em máxima consideração os
valores, as crenças, as convicções e o direito à auto- 15. Spinoza B. Trattato teologico-politico. Milano:
Fabbri, 2001.
nomia das pessoas envolvidas.
O valor da tolerância, e o mesmo vale para o 16. Voltaire. Trattato sulla tolleranza: la trincea della
pluralismo, “não é a fórmula universal para a solu- ragione contro ogni fanatismo. Cologna ai Colli: De-
ção dos problemas bioéticos. Ele exprime um com- metra, 2000.
portamento, fornece um critério orientador, desenha 17. Mill JS. A liberdade. Utilitarismo. São Paulo: Martins
uma moldura, dentro da qual cada dificuldade deve Fontes, 2000:17-25, 115-130.
ser representada e corajosamente, pacientemente, 18. Mendus S. Introduzione. In: Mendus S, Edwards D
prudentemente enfrentada” (28). (orgs). Saggi sulla tolleranza. Milano: Il Saggiatore,
1990:3-23.
REFERÊNCIAS
19. Popper K. Tolleranza e responsabilità intellettuale. In:
1. Rawls J. O liberalismo político. São Paulo: Ática, Mendus S, Edwards D (orgs). Saggi sulla tolleranza.
2000:25-28; Milano: Il Saggiatore, 1990:25-47.

2. Möller JE. A justiça como eqüidade em John Rawls. 20. Manti F. Le relazioni terapeutiche nella società
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006:17-18. pluralista. Aspetti bioetici e biopolitici per una
medicina transculturale. In: Medicina e
3. Möller JE. A fundamentação ético-política dos direi- multiculturalismo: dilemmi epistemologici ed etici
tos humanos. Curitiba: Juruá, 2006:22-80, 153-157. nelle politiche sanitarie. Bologna: Apèiron, 2000:136,
4. Rosenfeld M. Interpretazioni: il diritto fra etica e 137-139, 148.
politica. Bologna: Il Mulino, 2000:323-349. 21. Warnock M. I limiti alla tolleranza. In: Mendus, S.;
5. Robertson R. Interpreting globality. In: Robertson R, Edwards, D. (orgs). Saggi sulla tolleranza. Milano: Il
White K (orgs). Globalization: critical concepts in so- Saggiatore, 1990:181-182.
ciology. Vol. I: Analytical perspectives. London-New 22. Engelhardt Jr HT. Fundamentos da bioética. São
York: Routledge Taylor & Francis Group, 2003:88, Paulo: Loyola, 1998: 21-50, 126-129, 144-147, 164.
93.
23. Scarpelli U. Bioetica laica. Milano: Baldini &
6. Robertson R. Values and globalization: communi- Castoldi, 1998:5-8, 24, 211-214.
tarianism and globality. In: Robertson R, White K
(orgs). Globalization: critical concepts in sociology. 24. Möller, L.L. Bioética e direitos humanos: delineando
Vol. IV: Culture and identity. London-New York: um biodireito mínimo universal. Filosofazer,
Routledge Taylor & Francis Group, 2003:70. 2007;16(30):91-109.

Rev HCPA 2008;28(2) 107


Möller LL

25. Clotet J, Goldim JR, Francisconi CF. Consentimento política e o reconhecimento da alteridade constitu-
informado e a sua prática na assistência e pesquisa no em, para o autor, os pilares da tolerância (12).
Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000:18-24.
e. A história e o julgamento de Jean Calas, protestante
26. Clotet J. Bioética: uma aproximação. Porto Alegre: de Toulouse que vem acusado da morte de seu filho
EDIPUCRS, 2003:93-97. (o qual desejava se converter ao catolicismo) e con-
denado à morte injustamente em 1762, são narrados
27. Neves MCP. Contexto cultural e consentimento: uma
por Voltaire no Capítulo I do Tratado (16).
perspectiva antropológica. In: Garrafa V, Pessini L
(orgs). Bioética: poder e injustiça. São Paulo: Centro f. Em síntese, o conceito de structure-tolérance de
Universitário São Camilo: Loyola: SBB, 2003:496. Zarka compõe-se dos conceitos de “mundo dilace-
rado” (monde déchiré, o fato da diversidade e oposi-
28. Scarpelli U. La bioetica: alla ricerca dei principi. In:
ção de grupos, etnias, comunidades, povos, nações) e
Studi in memoria di Giovanni Ambrosetti. Vol. I.
de “reconhecimento sem reconciliação” (reconnais-
Contributi di filosofia del diritto. Milano, 1989:353.
sance sans réconciliation), aos quais se seguiriam
29. Möller LL. Direito à morte com dignidade e autono- dispositivos político-jurídicos que viabilizariam a e-
mia. Curitiba: Juruá, 2007. fetivação do “reconhecimento sem reconciliação”: a
neutralidade do Estado, os valores e direitos funda-
mentais e o direito à diferença (12).
NOTAS EXPLICATIVAS g. A defesa do reconhecimento de direitos culturais
coletivos parece mais próxima de um posicionamen-
to comunitarista, a exemplo da posição de Taylor.
a. Interessante a idéia de pluralismo normativo de M. Contudo, pode-se proceder a essa defesa também a
Rosenfeld, um “pluralismo compreensivo” que abra- partir de uma perspectiva que se quer liberal, fun-
ce o maior número possível de concepções antago- dando-a nos princípios da igualdade e da autonomia,
nistas acerca do bem e promova a sua pacífica coe- como o faz Kymlicka partindo do conceito de “cida-
xistência; que esteja disposto, assim, a aceitar as dania multicultural” (20). Zarka critica a concepção
normas produzidas por outras concepções de bem, de Kymlicka, entendendo que a idéia de uma cida-
mas apenas na medida em que estas não inviabilizem dania diferenciada e de reconhecimento de direitos
o projeto de integração e unificação (4). culturais coletivos coloca em xeque o ideal democrá-
b. “(...) conceder aos grupos culturais a possibilidade tico de uma cidadania não-diferenciada e não-
de perpetuar as próprias tradições pode resultar des- discriminatória; e que o modo de assegurar a legiti-
vantajoso para muitos, isto é, para os mais fracos no midade das diferenças culturais dentro de uma de-
interior da comunidade” (8). mocracia liberal é fundá-la sobre direitos individu-
ais, e não coletivos. O que se trata de garantir, se-
c. Para Benhabib, em contraposição a Rorty, identida- gundo Zarka, não são os conteúdos culturais deter-
des étnicas e grupos lingüísticos puros não passam minados mas a possibilidade, para os indivíduos, de
de “comunidades imaginadas”, inexistentes, dada a a eles aderir livremente, de desenvolver livremente
realidade de influências, interações e interdependên- formas culturais, valores e modos de existência (12).
cia recíprocas entre as culturas. A autora defende a
existência de uma comunicação transcultural, de h. Os profissionais da saúde, nesse cenário, assumiriam
múltiplas identidades e de interdependência planetá- o papel de “burocratas” e de “geógrafos de valores”.
ria na atual “civilização global”. Quanto à capacida- Burocratas, porque precisam lembrar os pacientes de
de de refletir-se criticamente sobre a própria tradi- seus direitos, considerar as circunstâncias segundo as
ção, a autora refere o estudo de Marta Chen (A mat- quais suas reivindicações podem ser limitadas, pro-
ter of survival: women’s right to employment in In- curar obter a permissão do paciente para a realização
dia and Bangladesh), sobre a situação das mulheres de procedimentos e intervenções médicas. Essas re-
em Bangladesh e no norte rural da Índia que, defron- gras burocráticas fazem-se necessárias num contexto
tando-se com a extrema dificuldade de sustento de onde as inúmeras pessoas que ali transitam não
suas famílias, viam-se impossibilitadas de trabalhar compartilham a mesma visão moral. Elas proporcio-
em virtude da proibição ao trabalho feminino por nam a orientação formal onde o acordo informal não
parte da tradição de suas comunidades. Algumas pode ser presumido, ou seja: o princípio do consen-
mulheres, contudo, iniciaram a violar aquela norma timento (da permissão ou autorização) converte-se
de conduta, passando de participantes a observadoras na língua moral comum a profissionais da saúde e
críticas e reformadoras da tradição (10). pacientes com as mais diferentes visões morais. Os
profissionais da saúde também agem como “geógra-
d. Zarka identifica a descoberta da tolerância no Oci- fos de valores”: com a experiência adquirida na sua
dente em dois eventos intelectuais, morais e políti- formação e na prática da assistência à saúde, passam
cos: a separação entre política e religião; e a desco- a conhecer as conseqüências de diferentes tipos de
berta da alteridade interna, resultante da divisão reli- tratamento, e os possíveis resultados de certas doen-
giosa, e da alteridade externa, com a descoberta das ças ou mesmo da adoção de determinado estilo de
Américas. A separação entre as esferas religiosa e morrer. No entanto, além desses conhecimentos, eles
também precisam saber que trabalham em um con-

108 Rev HCPA 2008;28(2)


Pluralismo e tolerância

texto de pluralismo moral, devendo buscar conhecer j. Como bem observa Neves, “(...) enquanto o ‘consen-
as concepções morais e as convicções dos pacientes timento’ for expressão de aproximação, comunica-
com os quais se envolvem, bem como as caracterís- ção e interacção, vivência humana universal que ca-
ticas particulares de certas comunidades morais (22). da sociedade ritualiza diferentemente, promoverá o
encontro entre as pessoas” (27). E ainda, para Manti,
i. Conforme Engelhardt, o princípio da beneficência
“as nossas histórias deveriam constituir as primeiras
deveria ser compreendido da seguinte forma: “faça
chaves de acesso para a determinação de estratégias
aos outros os bens deles”. Contudo, o profissional da
terapêuticas no sentido mais amplo do termo, e a re-
saúde não teria o dever de acatar uma manifestação
ferência para uma efetiva prática do consentimento
de vontade do paciente com a qual veementemente
informado e do pluralismo terapêutico” (20).
não concorde; caso contrário, estaria desrespeitando
suas próprias convicções e valores. Ao mesmo tem- k. Defendemos o reconhecimento ao paciente terminal
po em que não pode desconsiderar a autonomia do do direito a uma morte com dignidade e autonomia:
paciente, o profissional não pode ser obrigado a agir o direito a definir para si próprio em que consiste
de forma que agrida sua visão moral particular. Se- morrer com dignidade. Este direito deve ser compre-
guindo esse raciocínio, o filósofo acrescenta: “faça endido como integrante tanto da categoria dos direi-
aos outros o bem deles, a menos que você reconheça tos fundamentais, conforme expressa pela Constitui-
o suposto bem como prejuízo, ou que a provisão ção brasileira de 1988, como da categoria dos direi-
desse bem está errada, em algum sentido” (22). tos humanos, entendida para além do meramente po-
sitivado em documentos internacionais mas como
expressão de um mínimo ético possível de ser parti-
lhado universalmente (29).

Recebido:29/06/2008
Aceito: 04/09/2008

Rev HCPA 2008;28(2) 109

Anda mungkin juga menyukai