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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 20: 87-102 JUN.

2003

A POLÍTICA INTERNACIONAL DO
PARTIDO DOS TRABALHADORES:
DA FUNDAÇÃO À DIPLOMACIA DO GOVERNO LULA

Paulo Roberto de Almeida


Instituto Rio Branco / Revista Brasileira de Política Internacional

RESUMO
O presente artigo analisa as posições de política externa assumidas pelo Partido dos Trabalhadores e pelo
candidato presidencial Luiz Inácio Lula da Silva, desde a fundação do Partido, no início dos anos 1980,
passando pelas eleições de 1989, até o pleito vitorioso de 2002. Destacam-se os temas básicos do programa
partidário e sua evolução gradual em direção a uma postura mais próxima da forma tradicional de atuação
da diplomacia profissional, caracterizada pelo multilateralismo juridicista, gradualista e pacifista. Além
disso, examina as principais questões da agenda diplomática brasileira – especialmente as econômicas e
comerciais –, as negociações e a discussão dos limites e possibilidades de inovação nesse terreno,
concluindo pela preservação das grandes linhas de continuidade na política externa brasileira no
governo atual.
PALAVRAS-CHAVE: diplomacia brasileira; agenda econômica internacional; Mercosul; Partido dos
Trabalhadores; governo Lula.

I. INTRODUÇÃO: UMA GRANDE MUDANÇA como as viagens, em dezembro de 2002, do Presi-


TAMBÉM EM POLÍTICA EXTERNA dente eleito ao imediato entorno regional (Argen-
tina e Chile) e aos Estados Unidos, e de uma
A eleição do candidato do Partido dos
primeira missão oficiosa à Venezuela do assessor
Trabalhadores (PT), Luís Inácio Lula da Silva, à
designado para temas de Política Internacional,
Presidência da República, depois de três tentativas
Professor Marco Aurélio Garcia, durante muitos
anteriores, representou uma mudança de caráter
anos Secretário de Relações Internacionais do PT,
paradigmático no panorama social, econômico e
que vinha anunciando, aliás, novas linhas de
político brasileiro, e também a confirmação de que
afirmação externa para o Brasil (GARCIA, 2003).
a sociedade nacional deu enormes passos no
Ainda assim, a escolha presidencial para Ministro
sentido da consolidação democrática de seu
das Relações Exteriores recaiu em um experiente
sistema político e do estabelecimento de um quase
representante da diplomacia profissional, o
consenso, emergente nas várias camadas da
Embaixador Celso Amorim, já Chanceler no
população, em torno da necessidade de uma
governo Itamar Franco (em seguida a Fernando
transformação radical nas estruturas sociais da
Henrique Cardoso, de meados de 1993 ao final de
desigualdade e da injustiça que sempre marcaram
1994). Uma configuração institucional relativa-
essa mesma sociedade. De fato, pode-se dizer que
mente inédita para os padrões do Itamaraty esta-
a palavra-chave que guiou o candidato Luiz Inácio
beleceu-se, portanto, no caso da designação do
Lula da Silva em sua campanha e que se
conselheiro presidencial para assuntos de política
transformou em um dos princípios inspiradores
internacional, uma vez que a própria Casa de Rio
de seu governo, iniciado em 1° de janeiro de 2003,
Branco estava acostumada, nos últimos anos, a
é o conceito de mudança (ALMEIDA, 2003).
fornecer diplomatas de carreira para aquela
Mudanças foram prometidas nas várias esferas assessoria.
do sistema político e da economia e também no
Entretanto, em matéria de política externa,
âmbito da política externa. Diversos sinais foram
como sabem os especialistas, as linhas de ruptura
dados nesse sentido, desde antes da própria
são mais difíceis de serem implementadas do que
campanha eleitoral e no seu imediato seguimento,
a preservação dos elementos de continuidade. As
Recebido em 13 de dezembro de 2002. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 20, p. 87-102, jun. 2003
Aprovado em 7 de abril de 2003.
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A POLÍTICA INTERNACIONAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES

primeiras interrogações nesse particular, e que aqui II. ANTES DA SUBIDA AO PODER: A LUTA
serão objeto de exame, referem-se aos principais CONTRA O IMPERIALISMO E O CAPITAL
componentes da política externa do novo governo INTERNACIONAL
do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, se mais
O programa original do Partido dos Trabalha-
situadas na linha do que vinham pregando o
dores, como expresso textualmente no documento
programa, as resoluções oficiais e os próprios
fundacional, previa uma “política internacional de
líderes do PT, ou se mais próximas das posições
solidariedade entre os povos oprimidos e de respeito
tradicionais da diplomacia brasileira, obviamente
mútuo entre as nações que aprofunde a cooperação
mais cautelosas em diversas vertentes de interesse
e sirva à paz mundial. O PT apresenta com clareza
nacional. Observados os primeiros passos da ação
sua solidariedade aos movimentos de libertação
externa do Presidente e de seus principais auxiliares
nacional”. Não constava, do primeiro programa,
na matéria – isto é, Chanceler, Secretário-Geral
menção explícita à política externa, mas o “Plano
do Itamaraty e o Assessor Presidencial –, uma
de ação”, anexo à plataforma programática,
primeira constatação que se poderia fazer a
contemplava os seguintes pontos no item 6: “Inde-
propósito dessa política externa é a de que
pendência Nacional: contra a dominação impe-
provavelmente se tratará de uma diplomacia
rialista; política externa independente; combate a
evolutiva, tanto em seus contornos conceituais
espoliação [sic] pelo capital internacional; respeito
como em seu modus operandi. O novo governo
à autodeterminação dos povos e solidariedade aos
vem atuando com muito tato e bastante realismo
povos oprimidos” (PARTIDO DOS TRABALHA-
na frente diplomática, mas está procurando
DORES, 1984a, p. 14-15; 1984b, p. 9-13). Pela
igualmente impulsionar alguns dos temas caros à
terminologia e propostas de ação, nada, nesse
antiga agenda internacional do PT, feita de algumas
documento, permitiria desvincular o PT dos con-
opções preferenciais pelas chamadas forças pro-
ceitos e políticas de uma típica plataforma dos
gressistas e contestadoras de uma ordem mundial
partidos esquerdistas da América Latina no período
dominada pelos países capitalistas avançados, mas
clássico da Guerra Fria, o que era aliás conforme
temperando-as com o pragmatismo que é de se
a sua vocação afirmadamente socialista (princípio
esperar de um governo estabelecido.
ainda presente em suas diretrizes programáticas).
Pode-se dizer que o PT percorreu um longo
Desde então, o PT adotou diversos posicio-
caminho na construção tentativa de um pensa-
namentos, sempre críticos, em matéria de política
mento em política externa, desde as propostas de
externa, mas também é um fato que seus dirigentes
cunho socialista estabelecidas no início dos anos
evoluíram gradualmente no sentido da adesão a
1980 até o programa da campanha presidencial
um conjunto de propostas de ação diplomática
de 2002, de tom mais conciliador em relação às
que, se algo mais afirmadas ou mesmo agressivas
obrigações externas – dívida, contratos, acordos
na retórica, não passaram a diferir muito, na
internacionais –, o que foi confirmado no primeiro
prática, de princípios e valores já consagrados da
pronunciamento oficial do Presidente eleito, em
política externa brasileira. Como constatar essa
28 de outubro de 2002 e novamente em seu
pragmática transformação ideológica do PT – aliás
discurso de posse, em 1° de janeiro de 2003.
mais sutil que declarada – e que metodologia adotar
A julgar pelas evidências recolhidas neste para chegar a uma conclusão desse tipo nesta
ensaio, a grande mudança operada nessa área foi, análise do discurso sobre os temas de relações
assim, mais no discurso e na prática dos dirigentes internacionais do partido que se tornou majoritário
do Partido, agora investidos de responsabilidade na Câmara dos Deputados e que agora ocupa as
governamental, do que nas grandes linhas de alavancas de comando do Estado brasileiro?
atuação da política externa, como descobriremos
Na medida em que programas e propostas de
progressivamente na exposição e análise que serão
ação são por demais genéricos e vagos para per-
feitas nas seções seguintes. Ainda assim, novas
mitir uma avaliação do conteúdo desses discursos
ênfases e iniciativas mais ousadas podem imprimir
e posicionamentos progressivos e que, por outro
características diferentes à diplomacia nacional
lado, declarações ocasionais do Partido em notas
que, pela primeira vez em várias décadas, pode
oficiais ou comunicados de sua Secretaria de
deixar o casulo corporativo em que esteve parcial-
Relações Internacionais são por demais conjuntu-
mente encerrada nesses anos, para projetar-se com
rais (ou presos a problemas específicos do mo-
novas cores e um novo discurso.
mento) para apreciar essa evolução, o melhor

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instrumental para a análise da problemática que grama mínimo” das esquerdas para as eleições
nos ocupa é constituído pelo exame dos temas de presidenciais de 1989, defendia-se a “imediata
relações internacionais inscritos nas plataformas suspensão de qualquer pagamento relacionado
de campanha nas eleições presidenciais disputadas com a dívida externa”, a constituição de um
pelo PT, bem como das principais declarações do “entendimento entre os diversos países devedores
seu candidato – aliás único – desde 1989 até 2002. com vistas a fortalecer o não-pagamento” e o
estabelecimento de “relações fraternas com todos
Em 1989, em sua primeira disputa, a principal
os partidos que tenham como objetivo a constru-
característica do candidato Lula era sua
ção da democracia e do socialismo com o objetivo
identificação com a luta dos oprimidos da América
de unir esforços na preparação de uma alternativa
Latina. O candidato do PT apresentou um amplo
à crise do modo de produção capitalista” (idem,
e abrangente programa de governo e, segundo se
p. 56). Caberia talvez recordar que, nessa época,
depreendia das resoluções políticas adotadas pelo
o Brasil vivia em moratória técnica do pagamento
Partido em seu IV Encontro Nacional (junho de
da dívida externa comercial – isto é, aquela
1989), intentava propor uma “política externa
contraída junto aos credores privados, à diferença
independente e soberana, sem alinhamentos
dos empréstimos bilaterais ou de instituições
automáticos, pautada pelos princípios de auto-
oficiais –, decisão adotada pelo Presidente Sarney
determinação dos povos, não-ingerência nos
em fevereiro de 1987 por absoluta incapacidade
assuntos internos de outros países e pelo estabe-
de pagamentos, e que uma solução para os atra-
lecimento de relações com governos e nações em
sados dos bancos comerciais somente seria encon-
busca da cooperação à base de plena igualdade de
trada nas negociações de 1992-1994.
direitos e benefícios mútuos” (GPRI, 1989, p. 55).
Nesse nível de generalidade e no plano puramente Derrotado por pequena diferença no segundo
conceitual, essas resoluções permanecem abso- turno dessas eleições presidenciais, em novembro
lutamente atuais e totalmente conformes aos princí- de 1989, o líder do PT lançou-se novamente a
pios e posições de política externa efetivamente campo alguns meses depois. No ano seguinte, Lula
seguidos pelo Brasil, àquela época e atualmente. anunciou, em coalizão com outros partidos de
esquerda, a formação de um “governo paralelo”,
Ainda assim, uma vitória do candidato-
seguramente um dos poucos exemplos de shadow
trabalhador representaria uma reavaliação radical
cabinet ao sul do Equador. Infelizmente, a
das posturas brasileiras na área, já que a “Frente
experiência não chegou realmente a frutificar, pelo
Brasil Popular” – constituída por vários partidos
menos no que se refere à atividade de um “ministro
de esquerda que apoiavam o candidato do PT –
paralelo” das relações exteriores. Não se teve notí-
prometia adotar uma “política antiimperialista,
cia de que o chanceler “paralelo” – designado na
prestando solidariedade irrestrita às lutas em defesa
pessoa do Professor Carlos Nelson Coutinho –
da autodeterminação e da soberania nacional e a
tivesse avançado um programa, ou elementos, de
todos os movimentos em favor da luta dos
uma política externa alternativa, com propostas
trabalhadores pela democracia, pelo progresso
concretas para o relacionamento internacional do
social e pelo socialismo”. Um hipotético governo
Brasil.
da Frente defenderia a “luta dos povos oprimidos
da América Latina” e o candidato Lula, tocando A iniciativa de uma administração paralela
em um dos problemas mais candentes, então e revelou, em todo caso, o comprometimento do
agora, da política financeira externa do Brasil, PT com o exercício responsável de apresentação
chegou mesmo a propor a “decretação de uma de posições governativas concretas, com a neces-
moratória unilateral para ‘solucionar’ a questão sidade conseqüente de ocupar, pelo menos vir-
da dívida externa” (GPRI, 1989, p. 55). Esse tipo tualmente, todos os terrenos abertos à formulação
de discurso militante continuou freqüentando as de propostas alternativas em termos de políticas
resoluções do PT durante muitos anos – aliás até públicas, o que o Partido passou a fazer gra-
um período bem recente, como se verá mais dualmente nos níveis local e estadual (nos quais,
adiante. de toda forma, eram poucas as oportunidades para
o “treinamento” em temas internacionais). De fato,
De maneira não surpreendente, na proposta
a assunção de responsabilidades executivas em
que o PSB (Partido Socialista Brasileiro) – um dos
estados e municípios, assim como o contato direto
membros da Frente – apresentou para um “pro-
com sindicatos e partidos do hemisfério Norte,

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A POLÍTICA INTERNACIONAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES

ademais dos congêneres na América Latina, trouxe General Geisel, existia um projeto nacional,
ao PT um conhecimento mais preciso dos limites politicamente autoritário e socialmente excludente”
e possibilidades da ação governativa. que, a despeito das críticas que seu partido pode
fazer, “abriu brechas para que o Brasil reorientasse
Igualmente, a partir desse período, Lula passou
sua política externa”. Em 1994, segundo ele,
a viajar bastante pelo Brasil e ao exterior e
persistia “inercialmente a política externa daquele
patrocinou em São Paulo um “foro” de partidos
período, adequada empiricamente às novas reali-
de esquerda da América Latina, que depois se
dades [...]”. Mas, em face do quadro de mudanças,
consolidou como reunião periódica de formações
o “Governo Democrático e Popular deveria desen-
“progressistas” da região e contrárias às supostas
volver uma política externa que buscará simul-
ou reais políticas “neoliberais” de estabilização
taneamente uma inserção soberana do Brasil no
econômica no continente. Em sua primeira decla-
mundo e a alteração das relações de força interna-
ração, em 1991, o Foro de São Paulo proclamou
cionais contribuindo para a construção de ordem
a vontade do PT e de outros agrupamentos de
mundial justa e democrática” (PARTIDO DOS
esquerda da América Latina de opor-se por todos
TRABALHADORES, 1994, p. 29-30).
os meios à “integração imperialista” então
prometida pela “Iniciativa para as Américas” do O programa de então destacava como áreas
então Presidente norte-americano George Bush prioritárias da “nova política externa” a América
(pai), embrião da atual proposta da ALCA (Área Latina e o Mercosul (Mercado Comum do Sul), o
de Livre-comércio das Américas). A despeito de que foi mantido de maneira conseqüente desde
que a condenação do chamado “Consenso de então, com talvez a substituição do conceito de
Washington” e das políticas “neoliberais” fosse América Latina pelo de América do Sul, o que já
de rigor nesses encontros, o candidato do PT tinha aliás sido feito pela administração anterior.
também desenvolveu um maior conhecimento a Esse programa não deixava tampouco de dar
respeito das opções na frente externa, tendo ênfase às “relações de cooperação econômica e
chegado a posições definidas, embora nem todas nos domínios científico e tecnológico, com uma
explícitas, em relação aos grandes problemas correspondente agenda política”, na esfera Sul-
internacionais enfrentados pelo Brasil. Sul, com países como a China, Índia, Rússia e
África do Sul e com os países de língua portu-
Refletindo seu caráter organizado, o PT foi o
guesa. Algumas iniciativas internacionais eram
partido que primeiro definiu um programa de
listadas, como, por exemplo, a “rediscussão dos
governo para as eleições de 1994, com propostas
problemas das dívidas externas dos países peri-
bem articuladas, mas por vezes contraditórias, que
féricos”, propostas sobre a fome e a miséria no
refletiam um intenso debate interno entre as
mundo ou ainda a convocação de uma conferência
diversas correntes do partido. Com base na
internacional – “de porte semelhante à ECO-92” –
plataforma do Partido, aprovada para essas
para discutir a situação do trabalho no mundo e
eleições, bem como em texto assinado na ocasião
medidas efetivas contra o desemprego. O pro-
pelo próprio candidato, é possível detectar os
grama também prometia recuperar o Ministério
principais elementos da agenda do PT em relação
das Relações Exteriores, “cuja estrutura foi suca-
à política externa e às relações internacionais nesse
teada nos últimos anos” (PARTIDO DOS TRA-
ano de introdução do Plano Real, então definido
BALHADORES, 1994, p. 30).
pelo PT, de maneira algo apressada, como um
“estelionato eleitoral”. Em seu artigo assinado, depois de listar algumas
das transformações por que tinha passado o
O problema básico da política externa brasi-
mundo, o candidato Lula indicava alguns elementos
leira, tal como detectado nesse documento, foi
para a formulação da “nova política externa para
designado como sendo a ausência, “há mais de
o Brasil”. “Em primeiro lugar, o Brasil só poderá
quinze anos, de um projeto nacional de desen-
ter uma política externa consistente se tiver um
volvimento”, opinião reafirmada pelo candidato em
claro projeto nacional de desenvolvimento, com o
artigo publicado no Boletim da Associação dos
correspondente fortalecimento da democracia, o
Diplomatas Brasileiros (ADB, 1994, p. 08). Lula
que significa universalização da cidadania, do
reconhecia, também em acordo com a plataforma
respeito aos direitos humanos, reforma e demo-
de campanha do Partido, que “durante os governos
cratização do Estado”. Esse projeto nacional de
militares, mais particularmente no período do
desenvolvimento, em linhas consistentes com o

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que continuou a ser afirmado posteriormente, PCB, 1998). A ênfase na perda de soberania
deveria compreender um “modelo de crescimento econômica do País era aliás o ponto forte da
que favoreça a criação de um gigantesco mercado campanha de Lula na área internacional, elemento
de bens de consumo de massas que permita combinado a uma política externa mais afirmada
redefinir globalmente a economia, dando-lhe, que se propunha mudar a forma de inserção do
inclusive, novas condições de inserção e de Brasil no mundo a partir da manifestação da
cooperatividade internacionais”. “Em segundo vontade política, aqui ignorando aparentemente as
lugar, o Brasil não pode sofrer passivamente a atual linhas de força nas instituições internacionais e nas
(des)ordem mundial. Ele tem de atuar no sentido relações com os demais países, parceiros ou
de buscar uma nova ordem política e econômica “adversários” na atual ordem econômica mundial.
internacional justa e democrática”. Considerando
O Ponto 12 dessas Diretrizes, “Presença sobe-
que a política externa é, antes de tudo, uma questão
rana no mundo”, defendia, de modo conseqüente,
de política interna, o candidato reafirmava seus
uma “política externa fundada nos princípios da
pressupostos de atuação: “A política externa não
autodeterminação”, que faria segundo o texto,
vem depois da definição de um projeto nacional.
“expressará nosso desejo” de ver – o Brasil atuar
Ela faz parte deste projeto nacional” (ADB, 1994,
“com decisão visando alterar as relações desiguais
p. 8-9).
e injustas que se estabeleceram internacional-
Em 1998, já em sua terceira candidatura, desta mente”. Ainda nessa mesma linha, um eventual
vez pela coligação “União do Povo Muda Brasil” – Governo liderado pelo PT lutaria “por mudanças
com PT, PDT (Partido Democrático Trabalhista), profundas nos organismos políticos e econômicos
PCdoB (Partido Comunista do Brasil), PSB e PCB mundiais, sobretudo a ONU [Organização das Na-
(Partido Comunista Brasileiro) –, Lula esforçou- ções Unidas], o FMI [Fundo Monetário Inter-
se por a colocar sob o signo da continuidade e da nacional] e a OMC [Organização Mundial do Co-
inovação, este último aspecto apresentando-se, mércio]”. Com efeito, documento liberado quando
desde o início da campanha, sob a forma de uma do agravamento da crise financeira, em princípios
aliança política com seu concorrente trabalhista de setembro de 1998, avançava a proposta de “par-
das experiências anteriores, o líder do PDT, Leonel ticipar da construção de novas instituições finan-
Brizola. Esse antigo líder da história política ceiras internacionais”, uma vez que “as atualmente
brasileira chegou a causar constrangimentos para existentes – FMI, OMC, BIRD [Banco Interna-
o então relativamente moderado candidato “dos cional para Reconstrução e Desenvolvimento] –
trabalhadores”, ao defender uma postura intransi- são incapazes de enfrentar a crise” (Partido dos
gente em relação ao capital estrangeiro e às priva- Trabalhadores apud ALMEIDA, 1998, p. 247).
tizações de empresas públicas, chegando mesmo De maneira ainda mais explícita, a coalizão de Lula
a declarar que não só esse processo seria interrom- pretendia combater o Acordo Multilateral de
pido em caso de vitória, mas que algumas das Investimentos em fase de negociação na OCDE
leiloadas seriam suscetíveis de reversão ao domínio (Organização para a Cooperação e o Desenvolvi-
estatal num eventual governo da coligação mento Econômico), considerado como “atenta-
(ALMEIDA, 1998, p. 242-249). tório à soberania nacional”, movimento paralelo à
cerrada oposição efetuada pelo PT no Congresso
O próprio candidato à Presidência, assumindo
contra a aprovação dos acordos bilaterais de
uma postura moderada, procurou tocar em pontos
proteção de investimentos.
menos controversos, defendendo, por exemplo,
uma redução das importações por via de medidas De maneira mais positiva, o programa enfa-
governamentais, embora de caráter tarifário, o que tizava a intenção de fortalecer as relações do Brasil
garantiria a transparência da política comercial. com os outros países do Sul, “em especial com
As Diretrizes do programa de governo da coalizão os da América Latina, da África meridional e aos
do PT com seus aliados partidários acusavam o de expressão portuguesa”. O processo de inte-
governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) de gração sub-regional, finalmente, era visto muito
ter praticado uma abertura “irresponsável” da positivamente, mas ficava claro o desejo de efetuar
economia e de ter desnacionalizado a “nossa uma “ampliação e reforma do Mercosul que refor-
indústria e nossa agricultura, provocando desem- ce sua capacidade de implementar políticas ativas
prego e exclusão social” (PT-PDT-PCDOB-PSB- comuns de desenvolvimento e de solução dos

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A POLÍTICA INTERNACIONAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES

graves problemas sociais da região” (PT-PDT- Essa estratégia, que foi definida pelas principais
PCDOB-PSB-PCB, 1998). lideranças do PT, a começar pelo próprio Lula,
praticamente no imediato seguimento da frustrada
Contudo, depreendia-se das declarações de
campanha de 1998, foi implementada de modo
diversos membros da coalizão que o Mercosul –
consistente, o que permitiu ampliar considera-
cujos propósitos apenas livre-cambistas nunca
velmente a audiência do candidato, trazendo-o mais
satisfizeram inteiramente setores do partido, que
para o centro do espectro político, como não
proclamavam as supostas virtudes sociais do
deixaram de registrar vários analistas políticos.
modelo europeu de integração – era considerado
como uma espécie de “bastião antiimperialista”, Até dezembro de 2001, no entanto, quando se
em contraposição ao projeto norte-americanos de realizou em Pernambuco o XII Encontro Nacional
diluir esse esquema num vasto empreendimento do PT, o Partido e o candidato pareciam propensos
livre-cambista do Alasca à Terra do Fogo. De a continuar defendendo as mesmas teses adotadas
modo geral, a ALCA apresentava-se como um e disseminadas ao longo dos anos 1980 e 1990,
anátema na política externa de um governo liderado quando o ataque genérico ao neoliberalismo e à
pelo PT, perdendo apenas em importância na abertura comercial eram de rigor, com o repetido
escala de inimigos ideológicos para o neolibera- apelo a velhos refrões do passado. Em relação à
lismo e a globalização selvagem promovida pelas ALCA, por exemplo, o encontro de Olinda aprovou
grandes empresas multinacionais. totalmente a resolução da Câmara dos Deputados
– apresentada por iniciativa do então Deputado
III. DURANTE A CAMPANHA: A SUTIL TRAN-
Federal Aloízio Mercadante – no sentido de pedir
SIÇÃO PARA UMA POLÍTICA EXTERNA
a imediata suspensão das negociações e de subme-
PRAGMÁTICA
ter o tema ao exame do Fórum Social Mundial de
Já em 2002 o cenário mudou substancialmente, Porto Alegre e à sociedade civil, “culminando com
com a expressão inédita de um novo realismo a convocação de um plebiscito a respeito” (PAR-
diplomático, a começar pela política de alianças TIDO DOS TRABALHADORES, 2001). Deman-
buscada pelo candidato Lula, desta vez não das típicas nessas moções aprovadas em encontros
unicamente à esquerda, mas envolvendo em como o de Olinda, sempre colocadas no âmbito
especial o Partido Liberal, que forneceu seu da “ruptura necessária”, eram constituídas pela
candidato a vice-Presidente. Ainda que partindo luta contra o “neoliberalismo globalizado”, o apoio
na frente de todos os demais candidatos, tanto ao “movimento em defesa da taxa Tobin”, o “can-
em termos de candidatura oficiosa como no que celamento das dívidas externas dos países pobres”
se refere aos índices de aceitação eleitoral, o (acompanhada pela “auditoria e renegociação das
candidato do PT e o próprio partido foram dessa dívidas públicas externas dos demais países do
vez extremamente cautelosos na formulação das ‘Terceiro Mundo’”) e o “estabelecimento meca-
bases da campanha política, a começar pelas nismos de autodefesa contra o capital externo
alianças contraídas com vistas a viabilizar um apoio especulativo” (ibidem).
“centrista” ao candidato. Lula foi também bastante
Em temas especificamente financeiros, por
cauteloso na exposição de suas idéias, ainda que
exemplo, o encontro do Olinda recomendava as
algumas delas, ainda no início da campanha,
mesmas posições adotadas mais de uma década
tenham sido exploradas por seus adversários
atrás: “Com relação à dívida externa, hoje predo-
(como, por exemplo, o apoio às políticas subven-
minantemente privada, será necessário denunciar
cionistas da agricultura européia ou a proposta de
o acordo com o FMI para liberar a política
que o Brasil deveria deixar de exportar alimentos
econômica das restrições impostas ao crescimento
até que todos os brasileiros pudessem alimentar-
e à defesa comercial do país, estabelecer meca-
se de maneira conveniente).
nismos transparentes de controle sobre a entrada
Na primeira fase da campanha, Lula ainda e saída de capital, estimular a reinversão do inves-
repetia alguns dos velhos bordões do passado timento direto estrangeiro através da taxação das
(contra o FMI e a ALCA, por exemplo), que depois remessas de lucros e dividendos e bloquear as
foram sendo corrigidos ou alterados moderada- tentativas de re-estatização da dívida externa,
mente para acomodar as novas realidades e a reduzindo a emissão de títulos da dívida interna
coalizão de forças com grupos nacionais mode- indexados ao dólar” (ibidem). Na área da política
rados que se pensava constituir de forma inédita.

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comercial, por sua vez, uma recomendação tam- políticas seguidas pelo governo em vigor1.
bém típica visava à “correção dos desequilíbrios
Depois de algumas ameaças iniciais de retirar
oriundos da abertura comercial, através da revisão
o Brasil das negociações da ALCA (que seria “mais
da estrutura tarifária e da criação de proteção não
um projeto de anexação [aos EUA] do que de
tarifária, amparada pelos mecanismos de
integração”), Lula passou a não mais rejeitar os
salvaguarda da OMC, para atividades consideradas
pressupostos do livre-comércio, exigindo apenas
estratégicas” (ibidem). A ALCA, obviamente, era
que ele fosse pelo menos equilibrado, e não
vista como “um projeto de anexação política e
distorcido em favor do parceiro mais poderoso, o
econômica da América Latina, cujo alvo principal,
que constituiu notável evolução em relação a afir-
pela potencialidade de seus recursos e do seu
mações de poucas semanas antes. De modo geral,
mercado interno, é o Brasil” (ibidem).
o tom anterior de recriminações e críticas, conten-
Iniciada a campanha eleitoral, porém, o tema do manifestações de recusa ou negativas em rela-
da ruptura ficou mais no plano retórico do que se ção aos “mercados”, às instituições financeiras
transmutou em propostas efetivas, uma vez que internacionais e às políticas dos Estados Unidos,
as teses mais radicais em relação ao controle do passou a ser mais medido e equilibrado, revelando
“capitalismo financeiro globalizado” foram oportu- uma real preocupação com a governabilidade e o
namente remetidas a segundo plano. Em matéria relacionamento externo, numa perspectiva de
de política externa, mais especificamente, a possibilidades reais de vitória nas eleições de outu-
intenção – aliás partilhada com os demais bro de 2002.
candidatos e implementada pelo governo FHC –
Em relação às negociações comerciais hemis-
era a de ampliar as relações do Brasil com outros
féricas, por exemplo, o principal assessor econô-
grandes países em desenvolvimento, sendo inva-
mico do candidato, o Deputado Federal Aloízio
riavelmente citados a China, a Índia e a Rússia.
Mercadante foi bastante cauteloso na qualificação
No terreno econômico, o compromisso – também
das eventuais vantagens da ALCA: “Esta não deve
expresso pelos demais candidatos – era o de
ser vista como uma questão ideológica ou de
diminuir o grau de dependência financeira externa
posicionamento pró ou contra os Estados Unidos,
do Brasil, mobilizando para tal uma política de
mas sim como um instrumento que pode ou não
promoção comercial ativa, com novos instru-
servir aos interesses estratégicos brasileiros”
mentos para alcançar tal finalidade (era então
(MERCADANTE, 2002). Tratou-se, em todo
mencionada a criação de uma Secretaria ou
caso, de notável evolução em relação à atitude
Ministério de Comércio Exterior). Vários outros
exibida menos de um ano antes pelo então
elementos constitutivos de um programa mais
Deputado Federal Mercadante ao propor, na tribuna
realista de políticas públicas, globais e setoriais,
da Comissão de Relações Exteriores da Câmara
passaram por uma revisão cuidadosa por parte de
dos Deputados, uma moção (apresentada em 12
uma seleta equipe de assessores no decorrer do
de dezembro de 2001) no sentido de conclamar o
primeiro semestre de 2002, resultando em um
governo brasileiro a retirar-se das negociações da
documento de compromissos que buscou conso-
ALCA, caso o Senado dos EUA ratificasse as
lidar a evolução do PT em direção à “gover-
condições estabelecidas pela Câmara de Repre-
nabilidade”.
sentantes daquele país (o que aquele Senado fez,
Segundo a Carta ao povo brasileiro, divulgada de modo aberto, mantendo as mesmas restrições
por Lula em 22 de junho de 2002, o povo brasileiro já presentes no projeto da Câmara dos Repre-
quer “trilhar o caminho da redução de nossa sentantes).
vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de
Os contatos mantidos pela cúpula do PT, no
exportar mais e de criar um amplo mercado interno
Brasil e no exterior, com industriais, banqueiros e
de consumo de massas” (PARTIDO DOS TRA-
BALHADORES, 2002, p. 1). De maneira ainda
mais enfática, nesse documento Lula afirmou
claramente que a “premissa dessa transição será
naturalmente o respeito aos contratos e obrigações 1 Os documentos da campanha de 2002 foram divulgados

do País” (idem, p. 2), numa primeira manifestação no portal oficial do candidato Lula (http://www.lula.org.br)
formal em favor da continuidade de algumas das e atualmente se encontram, em sua maior parte, disponíveis
no sítio do PT (http://www.pt.org.br).

93
A POLÍTICA INTERNACIONAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES

investidores estrangeiros tendiam todos a con- transformadoras no campo econômico ou inter-


firmar esse novo realismo diplomático, e sobretudo nacional.
econômico, do candidato. De fato, os principais
De fato, o candidato Lula propunha-se uma
dirigentes do PT começaram, em plena campanha,
tarefa de transformação do mundo e do continente
a afastar-se cautelosamente da proposta feita pela
sul-americano a partir de uma alavanca dipl-
CUT (Central Única dos Trabalhadores), pelo MST
omática, o que poderia denotar um certo excesso
(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra)
de otimismo quanto aos limites impostos pela
e pela CNBB (Confederação Nacional dos Bispos
realidade internacional a grandes projetos mudan-
do Brasil), entre outras organizações, de realizar
cistas no cenário externo, sobretudo vindos de
um plebiscito nacional sobre a ALCA, uma vez
um país dotado de recursos externos limitados
que se percebeu que ele teria resultados mais do
como o Brasil. De toda forma, as intenções eram
que previsíveis, todos negativos para a continui-
claras: “Uma nova política externa deverá […]
dade dessas negociações e para a imagem pública
contribuir para reduzir tensões internacionais e
que o Partido intentava projetar doravante.
buscar um mundo com mais equilíbrio econômico,
De modo concordante com esse novo realismo, social e político, com respeito às diferenças cul-
o Secretário de Relações Internacionais Aloízio turais, étnicas e religiosas. A formação de um
Mercadante começou a aventar a possibilidade de governo comprometido com os interesses da
um acordo comercial bilateral com os EUA, sem grande maioria da sociedade, capaz de promover
explicar como e em que condições ele poderia ser um projeto de desenvolvimento nacional, terá forte
mais favorável do que o processo hemisférico, impacto mundial, sobretudo em nosso Continente.
no qual o Brasil participa no âmbito do Mercosul. Levando em conta essa realidade, o Brasil deverá
Em suas palavras: “é importante que, indepen- propor um pacto regional de integração,
dentemente da ALCA, o Brasil e os Estados Unidos especialmente na América do Sul. Na busca desse
iniciem um processo de negociação bilateral entendimento, também estaremos abertos a um
direcionado para a ampliação do seu intercâmbio relacionamento especial com todos os países da
comercial e a distribuição mais justa de seus América Latina” (ibidem).
benefícios” (MERCADANTE PROPÕE ACOR-
Em contraposição ao candidato governista,
DO, 2002). O PT parecia assim ter iniciado, ainda
José Serra, supostamente herdeiro da política de
que de maneira hesitante, o caminho em direção
integração do Presidente FHC mas de fato cético
ao reformismo moderado.
quanto às suas vantagens para o Brasil, o candidato
O programa oficial de campanha divulgado pelo Lula era o mais entusiástico promotor do Mercosul,
candidato em 23 de julho de 2002 era bastante mas ainda aqui com pouco realismo em relação às
ambicioso quanto aos objetivos em matéria de chances de uma moeda comum no curto prazo
política externa, uma vez que prometia convertê- ou no que tange à implantação de instituições mais
la, como já tinha ocorrido com as plataformas avançadas: “É necessário revigorar o Mercosul,
anteriores, num dos esteios do processo de transformando-o em uma zona de convergência
desenvolvimento nacional: “A política externa será de políticas industriais, agrícolas, comerciais,
um meio fundamental para que o governo implante científicas e tecnológicas, educacionais e culturais.
um projeto de desenvolvimento nacional alterna- Reconstruído, o Mercosul estará apto para enfren-
tivo, procurando superar a vulnerabilidade do país tar desafios macroeconômicos, como os de uma
diante da instabilidade dos mercados financeiros política monetária comum. Também terá melhores
globais. Nos marcos de um comércio internacional condições para enfrentar os desafios do mundo
que também vem sofrendo restrições em face do globalizado. Para tanto, é fundamental que o bloco
crescente protecionismo, a política externa será construa instituições políticas e jurídicas e desen-
indispensável para garantir a presença soberana volva uma política externa comum” (ibidem).
do Brasil no mundo” (PROGRAMA OFICIAL DO
Persistia no programa, igualmente, a atitude
CANDIDATO LULA, 2002). De modo aliás bem
de princípio contrária à ALCA e um certo equívoco
mais enfático do que nas ocasiões anteriores,
quanto aos objetivos de uma zona de livre-comér-
parecia ter ocorrido aqui uma espécie de sobre-
cio, pois que se via nesse processo a necessidade
valorização da política externa ou, em todo caso,
do estabelecimento de políticas compensatórias,
uma esperança algo exagerada em suas virtudes
quando são raros os exemplos de acordos de

94
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 20: 87-102 JUN. 2003

simples liberalização de comércio que contemplem também não descuidaram de desenvolver suas
tais tipos de medidas corretivas: “Essa política em potencialidades internas, a qualidade de vida de
relação aos países vizinhos é fundamental para seu povo e as formas mais elementares de pe-
fazer frente ao tema da Área de Livre Comércio quenos negócios agrícolas, comerciais, industriais
das Américas (ALCA). O governo brasileiro não e de serviços” (ibidem).
poderá assinar o acordo da ALCA se persistirem
O excessivo viés em favor do mercado interno
as medidas protecionistas extra-alfandegárias,
foi corrigido no programa, que por outro lado
impostas há muitos anos pelos Estados Unidos.
parecia esquecer a ênfase atribuída pelo governo
[…] A política de livre comércio, inviabilizada pelo
FHC ao crescimento das exportações: “Sem cres-
governo norte-americano com todas essas deci-
cimento dificilmente estaremos imunes à espiral
sões, é sempre problemática quando envolve paí-
viciosa do desemprego crescente, do desarranjo
ses que têm Produto Interno Bruto muito diferentes
fiscal, de déficits externos e da incapacidade de
[sic] e desníveis imensos de produtividade indus-
honrar os compromissos internos e internacionais.
trial, como ocorre hoje nas relações dos Estados
O primeiro passo para crescer é reduzir a atual
Unidos com os demais países da América Latina,
fragilidade externa. […] Para combater essa
inclusive o Brasil. A persistirem essas condições a
fragilidade, nosso governo vai montar um sistema
ALCA não será um acordo de livre comércio, mas
combinado de crédito e de políticas industriais e
um processo de anexação econômica do Conti-
tributárias. O objetivo é viabilizar o incremento
nente, com gravíssimas conseqüências para a
das exportações, a substituição competitiva de
estrutura produtiva de nossos países, especial-
importações e a melhoria da infra-estrutura. Isso
mente para o Brasil, que tem uma economia mais
deve ser feito tanto por causa da fragilidade das
complexa. Processos de integração regional exi-
contas externas como porque o Brasil precisa
gem mecanismos de compensação que permitam
conquistar uma participação mais significativa no
às economias menos estruturadas poder tirar pro-
comércio mundial, o que o atual governo menos-
veito do livre comércio, e não sucumbir com sua
prezou por um longo período” (ibidem).
adoção. As negociações da ALCA não serão con-
duzidas em um clima de debate ideológico, mas Em suma, o candidato do PT realizou, no
levarão em conta essencialmente o interesse espaço de poucos meses em 2002, um notável
nacional do Brasil” (ibidem). percurso em direção a uma postura mais realista
no campo da política externa, assim como no
Um certo idealismo mudancista insinuava-se
terreno mais geral das políticas econômicas,
no programa, ao pretender um eventual governo
notadamente no que se refere ao relacionamento
do PT conduzir uma “aproximação com países
com o capital e os investidores estrangeiros e com
de importância regional, como África do Sul,
as instituições financeiras internacionais. Cabe
Índia, China e Rússia”, com o objetivo de
registro, em todo caso, o acolhimento, não
“construir sólidas relações bilaterais e articular
totalmente desfavorável, feito por Lula em relação
esforços a fim de democratizar as relações inter-
ao acordo anunciado pelo governo de mais um
nacionais e os organismos multilaterais como a
pacote de sustentação financeira por parte do FMI,
Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo
desta vez pela soma inédita de US$ 30 bilhões. A
Monetário Internacional (FMI), a Organização
nota divulgada pela campanha de Lula na ocasião
Mundial do Comércio (OMC) e o Banco Mundial”
foi bastante cautelosa no que se refere ao
(ibidem). Por outro lado, a antiga desconfiança
cumprimento das obrigações externas, ainda que
em relação ao capital estrangeiro cedeu lugar a
registrando negativamente o encargo passado ao
uma postura mais equilibrada, uma vez que se
governo futuro de manter um superávit primário
afirmou no programa de 2002 que o Brasil “não
na faixa de pelo menos 3,75% do PIB (Produto
deve prescindir das empresas, da tecnologia e do
Interno Bruto) até 2004. Ao encontrar-se com o
capital estrangeiro”, alertando então que os “países
Presidente FHC, a pedido deste, para tratar da
que hoje tratam de desenvolver seus mercados
questão do acordo com o FMI, em 19 de agosto,
internos, como a Índia e a China, não o fazem de
o candidato do PT reiterava seu entendimento de
costas para o mundo, dispensando capitais e
que as dificuldades decorriam do “esgotamento
mercados externos” (ibidem). Mas advertia-se
do atual modelo econômico”, confirmando tam-
também que as “nações que deram prioridade ao
bém, com franqueza, seu compromisso afirmado
mercado externo, como o Japão e a Coréia,

95
A POLÍTICA INTERNACIONAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES

na Carta ao povo brasileiro: o de que, “se ven- conveniente, Lula traçou um retrato convincente
cermos as eleições começaremos a mudar a política das possibilidades nessa área: “Nos últimos três
econômica desde o primeiro dia” (PARTIDO DOS anos, com o fim da âncora cambial, aumentamos
TRABALHADORES, 2002). em mais de 20 milhões de toneladas a nossa safra
agrícola. Temos imenso potencial nesse setor para
Não obstante, Lula oferecia uma série de
desencadear um amplo programa de combate à
sugestões para, no seu entendimento, “ajudar o
fome e exportarmos alimentos que continuam
país a sair da crise”, muitas delas medidas de
encontrando no protecionismo injusto das grandes
administração financeira, de política comercial e
potências econômicas um obstáculo que não pou-
de reativação da economia. O PT e seu candidato
paremos esforços para remover” (ibidem). Igual-
das três disputas anteriores esforçavam-se, dessa
mente, não há nada aqui que não poderia receber
forma, em provar aos interlocutores sociais –
o endosso – e de fato já integrava o discurso – da
eleitores brasileiros – e aos observadores externos
administração atuante até o final de 2002.
– capitalistas estrangeiros e analistas de Wall Street
– que o partido e seus aliados estavam plenamente De modo geral, a “nova diplomacia” não parece
habilitados a assumir as responsabilidades gover- afastar-se muito da “velha”, com talvez uma
namentais e a representar os interesses externos afirmação mais enfática dos interesses nacionais
do país com maior dose de realismo econômico e e da defesa da soberania: “É uma boa hora para
diplomático do que tinha sido o caso nas expe- reafirmar um compromisso de defesa corajosa de
riências precedentes. Essa estratégia revelou-se nossa soberania regional. E o faremos buscando
benéfica ao candidato, que venceu amplamente construir uma cultura de paz entre as nações,
no primeiro turno, ainda que de maneira não aprofundando a integração econômica e comercial
definitiva, habilitando-o depois a um sucesso entre os países, resgatando e ampliando o Mer-
estrondoso no segundo turno. cosul como instrumento de integração nacional e
implementando uma negociação soberana frente
IV. DEPOIS DA VITÓRIA: A INCORPORAÇÃO
à proposta da ALCA. Vamos fomentar os acordos
DE UM NOVO REALISMO DIPLOMÁTICO
comerciais bilaterais e lutar para que uma nova
A evolução moderada do candidato e de sua ordem econômica internacional diminua as injus-
equipe de campanha foi confirmada, logo em tiças, a distância crescente entre países ricos e
seguida à vitória nas eleições, no primeiro pro- pobres, bem como a instabilidade financeira inter-
nunciamento do Presidente eleito, em 28 de nacional que tantos prejuízos tem imposto aos
outubro de 2002. Nesse texto, consciente da países em desenvolvimento Nosso governo será
gravidade da crise econômica e dos focos de tensão um guardião da Amazônia e da sua biodiversidade.
externa remanescentes, Lula advertiu: “O Brasil Nosso programa de desenvolvimento, em especial
fará a sua parte para superar a crise, mas é essen- para essa região, será marcada pela respon-
cial que além do apoio de organismos multilaterais, sabilidade ambiental” (ibidem). Em outros termos,
como o FMI, o BID [Banco Interamericano de abandonou-se a tese da ALCA “anexacionista” em
Desenvolvimento] e o BIRD, se restabeleçam as favor de uma negociação séria dos interesses
linhas de financiamento para as empresas e para o brasileiros nesses acordos de liberalização comer-
comércio internacional. Igualmente relevante é cial.
avançar nas negociações comerciais internacionais,
A defesa do multilateralismo não destoa, em
nas quais os países ricos efetivamente retirem as
praticamente ponto nenhum, das conhecidas posi-
barreiras protecionistas e os subsídios que penali-
ções defendidas tradicionalmente pela diplomacia
zam as nossas exportações, principalmente na
brasileira: “Queremos impulsionar todas as formas
agricultura” (SILVA, 2002). A segunda frase,
de integração da América Latina que fortaleçam a
particularmente, poderia, sem qualquer mudança,
nossa identidade histórica, social e cultural. Parti-
ter sido pronunciada pelo Presidente Fernando
cularmente relevante é buscar parcerias que per-
Henrique Cardoso, por seu Chanceler ou por seu
mitam um combate implacável ao narcotráfico que
Ministro da Fazenda.
alicia uma parte da juventude e alimenta o crime
Também, diferentemente da “ameaça” de organizado. Nosso governo respeitará e procurará
cessar as exportações de alimentos até que todos fortalecer os organismos internacionais, em parti-
os brasileiros pudessem se alimentar de maneira cular a ONU e os acordos internacionais rele-

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 20: 87-102 JUN. 2003

vantes, como o Protocolo de Quioto, e o Tribunal quem mais estivesse disposto a aceitar acordos
Penal Internacional, bem como os acordos de não de abertura econômica e de liberalização co-
proliferação de armas nucleares e químicas. mercial).
Estimularemos a idéia de uma globalização solidária
Da mesma forma, a tentativa do assessor
e humanista, na qual os povos dos países pobres
diplomático do Presidente eleito, Marco Aurélio
possam reverter essa estrutura internacional injusta
Garcia, de intermediar a crise política na Vene-
e excludente” (ibidem).
zuela, mediante viagem de contato e conversações
A incorporação do conceito de “globalização em dezembro de 2002 (ainda antes da posse,
solidária” e o seu contrário, a tomada de posição portanto), teve igualmente de confrontar-se aos
contrária à “globalização assimétrica”, tinham dados da realidade local, com um certo desgaste
freqüentado os discursos de Fernando Henrique diplomático para o Brasil, rapidamente reparado
Cardoso desde vários anos, da mesma forma como pelo novo chanceler a partir de sua posse. Esses
várias das demais propostas feitas nos terrenos dois exemplos constituíram os primeiros testes,
da reforma das instituições multilaterais, da regu- ainda que parciais, acerca das possibilidades e
lação dos capitais voláteis – inclusive com uma limites da mera vontade política em matéria diplo-
adesão equivocada à chamada “Tobin Tax” – ou mática, terreno no qual os dados estruturais e a
de eliminação do protecionismo comercial dos capacidade de “intervenção” do Brasil são mani-
países desenvolvidos. Ainda assim, assistiu-se festamente restritos. Em todo caso, Lula tinha a
nessa fase a uma série de críticas dirigidas contra intenção de implementar uma política externa mais
as políticas da equipe FHC: falta de agressividade pragmática e menos “presidencial” que a do
comercial, falta de prioridade ao Mercosul e à Presidente Fernando Henrique Cardoso, dando
América do Sul e outras do gênero, o que mereceu mais prioridade ao Mercosul e ao processo de
pronta resposta do então Chanceler Celso Lafer, integração regional na América do Sul, vistos por
que sublinhou, justamente, as iniciativas tomadas ele como essenciais nas negociações da ALCA
nessas áreas. (como aliás já eram na administração anterior). O
discurso da mudança e a realidade da continuidade
As simples manifestações retóricas começaram
aparecem assim como duas características evi-
então a ser testadas na prática, à medida que o
dentes da diplomacia introduzida pela nova admi-
Presidente eleito tomava conhecimento dos
nistração.
dossiês e passava a lidar diretamente com os
problemas da agenda externa do Brasil. Isso Esse novo realismo diplomático ficou bastante
ocorreu rapidamente, por exemplo, no caso do evidente no discurso de posse, feito no Congresso
discurso (até então bastante genérico) em favor Nacional, em 1º de janeiro de 2003, quando o
da “revitalização” do Mercosul e de sua ampliação Presidente sublinhou os elementos constitutivos e
até incorporar plenamente o Chile e outros par- as principais diretrizes da sua política externa: “No
ceiros da América do Sul. Antes de sua primeira meu governo, a ação diplomática do Brasil estará
viagem como Presidente eleito aos parceiros do orientada por uma perspectiva humanista e será,
Cone Sul, em dezembro, Lula chegou a exibir um antes de tudo, um instrumento do desenvolvimento
certo otimismo quanto à sua capacidade política nacional. Por meio do comércio exterior, da
em “resolver” os problemas do bloco, desconhe- capacitação de tecnologias avançadas, e da busca
cendo, aparentemente, os graves problemas es- de investimentos produtivos, o relacionamento
truturais, institucionais e conjunturais que se es- externo do Brasil deverá contribuir para a melhoria
condiam atrás das deficiências do processo inte- das condições de vida da mulher e do homem
gracionista, como por exemplo as perfurações da brasileiros, elevando os níveis de renda e gerando
Tarifa Externa Comum, as salvaguardas ilegais empregos dignos” (BRASIL. PRESIDÊNCIA DA
aplicadas pelos países, a deficiente internalização REPÚBLICA, 2003a, p. 17-18). Destacou então
dos regulamentos comuns e outros mais. A intenção as áreas selecionadas como prioritárias para a
de acolher o Chile como membro pleno do bloco, atuação da diplomacia profissional:
em particular, chocou-se com a realidade econômi-
“As negociações comerciais são hoje de
ca de um país reconhecidamente aberto, isto é,
importância vital. Em relação à ALCA, nos enten-
“neoliberal” assumido, em busca de um acordo
dimentos entre o Mercosul e a União Européia,
de livre-comércio com os Estados Unidos (e com
que [sic; provavelmente: “e”] na Organização

97
A POLÍTICA INTERNACIONAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES

Mundial do Comércio, o Brasil combaterá o comerciais multilaterais da OMC, onde se procu-


protecionismo, lutará pela eliminação [sic; nota do rará evitar qualquer nova regulação intrusiva – e
autor: talvez trate-se “de subsídios abusivos”] e de fato procurar-se-á reverter as regras existentes
tratará de obter regras mais justas e adequadas à – no campo dos requisitos de desempenho que
nossa condição de país em desenvolvimento. ocasionalmente são associados aos investimentos
Buscaremos eliminar os escandalosos subsídios estrangeiros.
agrícolas dos países desenvolvidos que prejudicam
Trata-se, talvez, de tornar mais enfáticas
os nossos produtores privando-os de suas vanta-
algumas linhas de atuação que já vinham sendo
gens comparativas. Com igual empenho, esfor-
seguidas, com as hesitações que se sabe, pela
çaremo-nos para remover os injustificáveis obstá-
diplomacia do governo anterior, mas não algo que
culos às exportações de produtos industriais.
represente inovação absoluta para todos aqueles
Essencial em todos esses foros é preservar os
já engajados, dentro e fora do Itamaraty, nesse
espaços de flexibilidade para nossas políticas de
tipo de exercício negociador. Para comprovar tal
desenvolvimento nos campos social e regional, de
assertiva, bastaria, por exemplo, compulsar o
meio ambiente, agrícola, industrial e tecnológico”
relatório preparado pelo Itamaraty para a equipe
(ibidem).
de transição, no qual se pode ler a síntese seguinte
A política externa brasileira, desde os anos 1960 em relação aos objetivos perseguidos pela política
pelo menos, tem sido descrita, por muitos especia- externa da gestão FHC: “Buscou-se ampliar a
listas e mesmo por diplomatas de carreira, como presença do país na economia mundial, tendo como
uma “diplomacia do desenvolvimento”, o que está vetores o fortalecimento do Mercosul, o
conforme as linhas gerais de atuação do corpo compromisso com a integração da América do Sul,
profissional nos mais diversos foros abertos ao a defesa de uma globalização receptiva aos
engenho e arte dessa diplomacia, que é reco- interesses do mundo em desenvolvimento, a
nhecida, dentro e fora do continente, como alta- participação ativa na definição de novas regras para
mente institucionalizada. Preconizar agora que ela o comércio internacional e o pleito por maior
converta-se em “instrumento do desenvolvimento acesso de nossos produtos aos mercados
nacional” consistiria apenas em tornar mais industrializados” (BRASIL. MINISTÉRIO DAS
explícito aquilo que já era implícito à atuação diplo- RELAÇÕES EXTERIORES, 2002).
mática desde várias décadas, sem que se saiba
Talvez, com algumas diferenças de ênfase –
exatamente em quais pontos ela deveria mudar para
como na intenção declarada de reduzir a
adequar-se aos novos padrões de comportamento
vulnerabilidade externa – esses são também os
e ação que passam a lhe ser exigidos doravante.
principais objetivos da nova diplomacia, como
Deve-se compreender a diretriz como uma revelado no discurso de posse do novo Chanceler.
recomendação para ela passe a ser, nos foros Com efeito, Celso Amorim sublinhou, em seu
negociadores internacionais, em especial nos de primeiro pronunciamento oficial, posições
caráter econômico-comercial, ainda mais ativa e praticamente equivalentes: “Participaremos
exigente do ponto de vista das demandas do Brasil, empenhadamente das diversas negociações
ainda visto como país em desenvolvimento, com comerciais movidos pela busca de vantagens
todas as implicações que daí possam resultar concretas, sem constrangimento de nos
(tratamento especial e diferenciado, isto é, apresentarmos como país em desenvolvimento e
preferencial em termos tarifários e de acesso a de reivindicarmos tratamento justo”; “combate-
mercados, mais favorável no que respeita a remos práticas protecionistas que tanto prejudicam
mecanismos regulatórios etc.). A nova abordagem nossa agricultura e nossa indústria”; “reforça-
ganha luzes mais claras quando se destaca a remos as dimensões política e social do Mercosul,
demanda, mencionada em seguida, por “espaços sem perder de vista a necessidade de enfrentar as
de flexibilidade” para as políticas setoriais, o que dificuldades da agenda econômico-comercial, de
deve ser entendido como uma condenação implícita acordo com um cronograma preciso”, e “conside-
da falta de políticas ativas na área industrial por ramos essencial aprofundar a integração entre os
parte da administração anterior e uma antecipação países da América do Sul nos mais diversos
de possíveis linhas de ação nas negociações planos” (AMORIM, 2003).

98
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 20: 87-102 JUN. 2003

V. DE VOLTA AO FUTURO: OS GRANDES dependem diretamente de ações ou medidas que a


TEMAS DA AGENDA DIPLOMÁTICA DO administração possa tomar no campo econômico
NOVO GOVERNO ou financeiro, e sim de condições e indicadores
vinculados a fatores externos ou impermeáveis a
Os principais problemas da agenda externa do
decisões do governo brasileiro. Da mesma forma,
Brasil, nem todos situados no campo exclusivo
nossa capacidade de “recomposição” do Mercosul
da diplomacia profissional, pareciam ser, no início
tem tido até aqui pouco efeito real, em virtude da
do novo governo: o restabelecimento da confiança
continuada crise na vizinha Argentina – em menor
na capacidade do Brasil em continuar uma inserção
grau no Uruguai e no Paraguai, também – para
de caráter positivo na economia internacional – o
não mencionar as dinâmicas políticas e sociais em
que basicamente significa capacidade de paga-
vigor em outros países da região – Colômbia e
mentos externos e a ausência (da ameaça) de mora-
Venezuela seriam os exemplos mais evidentes –,
tória nas obrigações financeiras –, a continuidade
para os quais um encaminhamento adequado das
da participação nos diversos foros negociadores
crises respectivas parece passar ao largo de nossas
de caráter comercial – ALCA, Mercosul-UE [União
modestas possibilidades – basicamente soldados
Européia] e sobretudo a rodada da OMC –, a
e talão de cheques, para resumir duas das alavan-
recomposição das condições de funcionamento
cas mais comuns – de intervenção efetiva. Nesse
pleno do Mercosul – hoje fragilizado por diversas
sentido, a atuação preferencial em escala regional
inadimplências dos próprios países-membros em
continuará pertencendo ao tradicional campo da
relação aos requisitos de sua união aduaneira, teori-
diplomacia profissional, nos quais nossos talentos
camente em vigor, mas de fato pouco operacional
específicos podem compensar deficiências relati-
– e uma série de outros problemas tópicos que
vas em outras áreas.
podem acarretar custos temporários ou desviar
energias em relação aos temas relevantes daquela Um exemplo dessas fragilidades externas foi
agenda (como problemas políticos ou de dado pela questão do Iraque, em relação à qual as
segurança na Venezuela, na Colômbia, na Bolívia perspectivas de conflito acarretam diversos incon-
ou no Paraguai). Dessas questões, as mais impor- venientes de ordem econômica – nos campos de
tantes são obviamente as vinculadas ao serviço da acesso a mercados e de pagamentos externos,
dívida externa, cuja administração não é pro- como reflexo da sobrecarga no abastecimento
blemática em si mas que está vinculada par- interno em petróleo, mas sobretudo na área dos
cialmente ao comportamento do câmbio e das fluxos financeiros – gerando, portanto, um ati-
reservas em divisas, o que determinou, em três vismo pacifista que guarda apenas relativo vínculo
ocasiões desde 1998, a conclusão de acordos de com nossa capacidade real de intervenção nos
sustentação financeira preventiva com o FMI. Tra- dados mais diretos do problema. A contenção de
ta-se de um assunto que escapa ao comando da desgastes imediatos, deixada inteiramente a cargo
diplomacia profissional e releva das autoridades da diplomacia (mas com a percepção concreta dos
da área econômica, cujo comportamento, nesse reflexos diretos e indiretos no domínio econômico),
particular, tem revelado ainda mais linhas de con- tem assim maior importância relativa do que uma
tinuidade com a administração anterior do que os eventual busca de prestígio externo ou exercício
temas a cargo da equipe diplomática, razão in- de qualificação para o Conselho de Segurança da
clusive de recriminações por parte de setores ale- ONU. Em todo caso, trata-se de um terreno no
gadamente mais à esquerda do partido agora qual o segmento profissional da política externa
dominante. encontra-se mais à vontade em sua prática expe-
rimentada de diplomacia parlamentar e de conci-
Uma característica essencial desse tipo de
liação de posições.
problema – como aliás de vários dos situados na
área propriamente diplomática – é a pouca margem Não faltou, tampouco nesse caso, o exemplo
de manobra deixada para a ação do próprio da diplomacia presidencial que já vinha sendo
governo, uma vez que a percepção do risco-Brasil praticada com uma certa desenvoltura na admi-
– e portanto da maior ou menor atratividade aos nistração anterior. A retomada desse tipo de prática
investimentos ou capitais financeiros do exterior ficou ainda mais evidente a partir da decisão de
–, o comportamento da paridade cambial do real, Lula de participar, de modo quase simultâneo, dos
assim como dos mercados externos para nossas foros de Porto Alegre e de Davos (respectivamente
principais mercadorias de exportação, não

99
A POLÍTICA INTERNACIONAL DO PARTIDO DOS TRABALHADORES

em 23 e 25 de janeiro de 2003), abrindo a pers- cionais nessa área, cuja importância política,
pectiva de que o Brasil contribuísse para tentar econômica e comercial é notória e fundamental”
unificar, numa única agenda do desenvolvimento, (ibidem). Em relação ao Mercosul, foi apontada a
as dimensões sociais e econômicas das políticas necessidade de que o bloco possa passar a dispor
públicas adotadas nos planos nacional e interna- de “instituições mais permanentes e ganhe solidez
cional. A mensagem de Lula em ambos os foros jurídica” (ibidem), sem porém a indicação
foi praticamente a mesma, cabendo em todo caso conseqüente das medidas concretas para concre-
registrar a cobrança mais enfática, feita no Foro tizar tal proposta, salvo a menção do apoio à
Econômico Mundial, em Davos, de um maior enga- “criação de um Instituto Monetário que realize
jamento dos países avançados e dos organismos estudos sobre as tarefas necessárias para que o
multilaterais com uma solução duradoura para os Mercosul venha a ter uma moeda comum”
problemas da miséria e marginalidade que ainda (ibidem) e o início dos estudos para a constituição
afligem parte substancial da humanidade. de seu parlamento (alegadamente por voto direto).
Em relação ao processo de integração regional,
Em suma, constatadas algumas variações
trata-se, sem dúvida, de um dos temas mais
conceituais e a nova ênfase na defesa afirmada da
relevantes da política externa brasileira e o mais
soberania nacional, a política externa do governo
suscetível de mobilizar a atenção dos planejadores
Lula não parece distanciar-se, significativamente,
nas mais diversas esferas da política econômica
da diplomacia conduzida de maneira bastante
nacional e setorial, nos âmbitos comercial,
profissional pelo Itamaraty no período recente,
industrial, agrícola e tecnológico, com impacto
conformando aliás uma concordância de princípio
direto sobre o modelo de desenvolvimento econô-
com a tradicional “diplomacia do desenvol-
mico e social que o Brasil poderá ter nos próximos
vimento” impulsionada pelo Brasil desde largos
anos.
anos. No tratamento operacional dessa diplomacia,
a retomada de alguns grandes temas da ação No plano operacional, parece inevitável o
externa do Brasil também ficou evidenciada, como aumento do diálogo do Itamaraty com o Con-
registrado na primeira mensagem do Presidente gresso e outras forças organizadas da sociedade
ao Congresso Nacional, em 17 de fevereiro de civil, como os sindicatos, as organizações não-
2003: “Nas viagens que fiz ao exterior, reafirmei governamentais e representantes do mundo aca-
alguns compromissos do nosso país. Em primeiro dêmico. Trata-se, em todo caso, de uma saudável
lugar, o de defesa da paz e de uma ordem mais inovação para uma instituição cujo mote organi-
justa entre as nações ricas e pobres do planeta. zador parece consubstanciar-se na frase “renovar-
Em segundo, o de buscar a reconstrução do Mer- se na continuidade”. Com talvez algumas surpresas
cosul e a união dos países do nosso continente verbais, naturais em momentos de mudança para-
para obtermos uma inserção soberana no mundo digmática como a que vive o Brasil, tanto a ino-
globalizado” (BRASIL. PRESIDÊNCIA DA vação como a continuidade parecem garantidas
REPÚBLICA, 2003b). Esses são precisamente os no futuro governo sob a hegemonia do novo centro
temas que vêm ocupando tradicionalmente a diplo- político brasileiro.
macia brasileira – o do Mercosul desde mais de
As gerações mais jovens do Itamaraty certa-
uma década – e são eles que devem mobilizar a
mente receberam com bastante satisfação a con-
atenção dos novos administradores nos próximos
firmação da mudança política no cenário eleitoral
anos.
e parecem animadas com as perspectivas de
De novidade, mesmo, nessa primeira mensa- mudança – talvez até geracional – que podem ope-
gem ao Congresso, registre-se a decisão de reafir- rar-se na “velha” Casa de Rio Branco. A confir-
mar a importância da política africana e a intenção mar-se a “continuidade da renovação”, o Itamaraty
de ampliar a presença diplomática naquele con- tem todas as condições de emergir, nos próximos
tinente, bem como a constatação – verdadeira, mas quatro anos, com uma nova legitimidade no plano
conforme uma tradicional divisão de trabalho com societal interno, ao implementar-se a nova diretriz
a área fazendária – de que o Itamaraty “ocupou- de colocar, de maneira mais afirmada, a política
se pouco de questões financeiras, mantendo-se externa a serviço de um projeto nacional de
praticamente à margem das deliberações interna- desenvolvimento econômico e social.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 20: 87-102 JUN. 2003

Paulo Roberto de Almeida (pralmeida@mac.com; http://www.pralmeida.org) é Editor-Adjunto da Revista


Brasileira de Política Internacional e orientador do curso de Mestrado em Diplomacia do Instituto Rio
Branco. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas, é autor do livro Formação da
diplomacia econômica no Brasil (São Paulo: SENAC, 2001).

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