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MARCOS ANTÔNIO MIRANDA BITENCOURT

GÊNESIS, CAPÍTULOS 1 A 11: A LINGUAGEM MÍTICA CONTRA OS MITOS DA


DIVINIZAÇÃO DA CRIAÇÃO.

RECIFE
2002
MARCOS ANTÔNIO MIRANDA BITENCOURT

GÊNESIS, CAPÍTULOS 1 A 11: A LINGUAGEM MÍTICA CONTRA OS MITOS DA


DIVINIZAÇÃO DA CRIAÇÃO.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação do Seminário Teológico Batista do
Norte do Brasil como requisito para a obtenção
do grau de Mestre em Teologia, com
concentração em Antigo Testamento, tendo
como orientadora a Dra. Joyce Elizabeth W.
Every-Clayton.

RECIFE
2002
TERMO DE APROVAÇÃO

MARCOS ANTÔNIO MIRANDA BITENCOURT

GÊNESIS, CAPÍTULOS 1 A 11: A LINGUAGEM MÍTICA CONTRA OS MITOS DA


DIVINIZAÇÃO DA CRIAÇÃO.

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teologia como parte


dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Mestre em Teologia
outorgado pelo Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil, e aprovada pela
seguinte banca examinadora:

_____________________________________
Dra. Joyce Elizabeth W. Every-Clayton
(orientadora)

_____________________________________
Dr. Houston Greenhaw

__________________________________
Dr. Zaqueu Moreira de Oliveira

Recife, 26 de agosto de 2002.


AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço a Deus, o Criador, verdadeiro autor de toda a


vida. Ele me deu forças para chegar até aqui. Agradeço ainda:

À minha família, Sueli, Marcos Augusto e Eduardo Valdívio, que foram


privados de minha presença mais constante.

À minha mãe, Josefa Bitencourt que, apesar de enferma, não poupou


esforços para ajudar-me na fase final da pesquisa.

À Igreja Batista em Afogados, pelas orações dos irmãos e pela permissão


para trabalhar nesta pesquisa durante as horas de meu expediente pastoral, com
menção especial ao Pr. Rubenildo Lima, por sua cooperação no ministério pastoral.

À Dra. Joyce Elizabeth W. Every-Clayton, minha orientadora, por sua


participação fundamental na elaboração desta dissertação.

Ao amigo e colega, Pr. Ney Ladeia, pelo estímulo constante e pelo apoio
material.

Aos meus alunos do Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil: com


eles tenho aprendido mais sobre o Gênesis. Parte desta pesquisa nasceu na sala de
aula.

Aos meus colegas, professores do Seminário Teológico Batista do Norte do


Brasil, pelo apoio recebido e as palavras de estímulo.

Ao seminarista Edson Rodrigues e ao Pr. André Ferreira, pelo suporte na


área de Informática.

Ao Prof. Glenn Clayton, pela preciosa cooperação e suporte no uso da


língua hebraica.
À Profa. Sueli Bitencourt e ao seminarista Fernando Barcellos, pelo suporte
na área da língua inglesa.

Aos professores Ivanildo Lopes e Benedito Bezerra pelo suporte na parte


metodológica e gramatical, respectivamente, cujas correções estão sob a
responsabilidade do autor desta dissertação.
RESUMO

Durante diversos séculos, os primeiros onze capítulos do Gênesis têm sido motivo
de conflito entre Fé e Ciência, gerando, com isso, posturas divergentes, quais sejam,
aquela postura caracterizada pela leitura fixista da Bíblia, que aliena o texto do seu
contexto original e que busca nele verdades científicas ou históricas, bem como uma
outra, caracterizada pela preocupação demasiada com a leitura crítica do texto
bíblico sem uma aplicação para a comunidade de fé. As descobertas, no Oriente
Antigo, de diversas narrativas míticas com laços de parentesco com as narrativas do
Gênesis levantaram a questão da necessidade de se interpretar o texto bíblico
dentro do seu ambiente histórico nascedouro, possibilitando assim saber como o
autor bíblico serviu-se da linguagem mítica, através das narrativas de Gênesis,
capítulos 1 a 11, para, com isso, atualizar a sua mensagem teológica, portadora de
um forte caráter ético. Além disso, objetiva-se expor o texto bíblico sob uma
perspectiva exegética que permita o diálogo entre a Fé e a Ciência. Quanto aos
métodos para a construção desta dissertação, seguir-se-á o molde da pesquisa
bibliográfica, visto que o referencial teórico no qual a presente pesquisa está
amparada é fruto de estudos anteriores, contando inclusive com o amparo de
descobertas arqueológicas, quais sejam os textos mesopotâmicos e cananeus
utilizados. O estudo feito através das comparações entre os mitos e o texto de
Gênesis revelou a capacidade modificadora do autor bíblico diante do seu universo
mítico, seguindo um padrão de demitização da criação e anunciando a soberania de
um único Deus e as implicações éticas de seu ensino para a vida do povo de Israel.

Palavras-chave: Gênesis; Mito; Linguagem Mítica; Demitização; Criação; Caráter


Ético;
ABSTRACT

For centuries the first eleven chapters of Genesis have motivated conflicts between
Faith and Science, and these conflicts have produced divergent ways of reading the
biblical text. On the one hand is the static view of the Bible which alienates the text
from its original context and which looks for scientific or historical truth in the Bible.
Others give excessive attention to the critical reading of the biblical text, without
applying it to the faith community. Discoveries, in the Ancient Near East, of several
mythical narratives clearly related to the Genesis narratives strongly suggest a need
to interpret the biblical text within the historical context in which it was born, and to try
to ascertain how the biblical author used mythical language in the narratives of
Genesis, chapters 1 to 11, to convey his theological message, a message with a
strong ethical emphasis. As well as investigating these questions, the present
dissertation attempts to expound the biblical text in such a way as to facilitate
dialogue between Faith and Science. As to its construction, this dissertation is based
on bibliographical research, for, as our theoretical base indicates, our main sources
are previous studies, including those based on archaeological discoveries,
particularly those related to the discovery of the Mesopotamian and Canaanite texts
studied. Our comparative studies of the myths and the Genesis text show that the
biblical author, faced with a mythical world, was able to modify that, to de-
mythologize the creation, and to proclaim the sovereignty of the One God, and the
ethical implications of that teaching for the life of God´s people.

Keywords: Genesis; Myth; Mythical Language; De-mythologize; Creation; Ethical


Emphasis.
SUMÁRIO

LISTA DE QUADROS

INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 09

I. MITO, NARRATIVA MÍTICA E GÊNERO LITERÁRIO............................................ 14


1.1 – O mito enquanto fenômeno............................................................................. 15
1.2 – Os mitos orientais antigos expressos em textos............................................. 18
1.3 – O mito como gênero literário bíblico................................................................ 27

II. GÊNESIS CAPÍTULOS 1 A 11 COMO FRUTO DO CONFRONTO ENTRE ISRAEL


E OS MITOS ORIENTAIS ANTIGOS........................................................................ 32

III. OS MITOS DA CRIAÇÃO DO MUNDO NATURAL: DA CONFUSÃO À ORDEM 40


3.1 – A criação como ordem de Deus sobre o caos............................................... 42
3.2 – O nome ‘elohim.............................................................................................. 46
3.3 – A demitização dos elementos do mundo natural.......................................... 48

IV. OS MITOS DA CRIAÇÃO DO SER HUMANO: DO SER DIVINIZADO AO SER


AUTORIZADO........................................................................................................... 51
4.1 – O ser humano divinizado e o sentido ético do ser humano autorizado......... 56
4.2 – O sentido ético do ser humano como imagem e semelhança de Deus.... 57
4.3 – O sentido ético da sexualidade humana como fruto da criação.................... 60

V. OS MITOS DA QUEDA: O SER HUMANO EM BUSCA DE SUA DIVINIZAÇÃO E


O SER HUMANO NA REALIDADE DE SUA LIMITAÇÃO..........................................63
5.1 – A árvore do conhecimento do bem e do mal e a busca da divinização.........65
5.2 – A árvore da vida e a busca da imortalidade na tentativa da divinização plena
dos seres humanos ................................................................................................... 69
5.3 – As conseqüências da queda: os seres humanos limitados por Deus........... 72

VI. OS MITOS DA CIVILIZAÇÃO: DA AUTONOMIA HUMANA À DISSEMINAÇÃO


DO PECADO.............................................................................................................. 76
6.1 – Caim e sua descendência: civilização sem Deus......................................... 80
6.2 – Set e sua descendência: o andar com Deus................................................. 82
6.3 – A torre de Babel: autonomia e ruptura da unidade humana.......................... 84

VII. OS MITOS DO DILÚVIO: DOS DEUSES INCOMODADOS AO DILÚVIO


ÉTICO......................................................................................................................... 88
7.1 – Os mitos de divinização dos heróis................................................................ 93
7.2 – Os mitos do dilúvio e o dilúvio ético................................................................96

CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 101

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................ 108


LISTA DE QUADROS

QUADRO -TÍTULO PÁGINA

Quadro 1 – OS MITOS DA CRIAÇÃO DO MUNDO............................................................ 41


Quadro 2 – GÊNESIS 1.1-8, 1.14-19 E 2.4-5...................................................................... 41
Quadro 3 – OS MITOS DA CRIAÇÃO DO HOMEM I ......................................................... 52
Quadro 4 – GÊNESIS 1.26-31 E 2.4 b – 8........................................................................... 52
Quadro 5 – OS MITOS DA CRIAÇÃO DO HOMEM II.......................................................... 53
Quadro 6 – GÊNESIS 2.9-25................................................................................................ 53
Quadro 7 – A CRIAÇÃO DE ENKIDU................................................................................... 54
Quadro 8 – A DIVINIZAÇÃO DE ENKIDU............................................................................ 54
Quadro 9 – GILGAMESH E A PLANTA DA VIDA................................................................. 64
Quadro 10 – GÊNESIS 3.1-7 E 3.14-24................................................................................ 65
Quadro 11 – O MITO DE DUMUZI E ENKIDU I.................................................................... 77
Quadro 12 – GÊNESIS 4.1-8................................................................................................. 77
Quadro 13 – O MITO DE DUMUZI E ENKIDU II................................................................... 78
Quadro 14 – GÊNESIS 4.13-26............................................................................................. 78
Quadro 15 – OS REIS ANTEDILUVIANOS E O MITO DO ARREBATAMENTO DE ENLIL. 79
Quadro 16 – GÊNESIS 5.1-8 E 5.18-24................................................................................. 79
Quadro 17 – O MITO DA CRIAÇÃO DE BABILÔNIA............................................................ 80
Quadro 18 – GÊNESIS 11.1-9............................................................................................... 80
Quadro 19 – O MITO DO NASCIMENTO DOS DEUSES...................................................... 89
Quadro 20 – ISHTAR CORTEJA GILGAMESH E OS MITOS DO DILÚVIO I........................ 90
Quadro 21 – GÊNESIS 6.1-14............................................................................................... 90
Quadro 22 – OS MITOS DO DILÚVIO II................................................................................ 91
Quadro 23 – GÊNESIS 7.11,17 E 8.1-12............................................................................... 91
Quadro 24 – OS MITOS DO DILÚVIO III............................................................................... 92
Quadro 25 – GÊNESIS 8.15-16; 8.20-22; 9.1-2 E 9.6,8-9..................................................... 92
Quadro 26 – SEMELHANÇAS ENTRE AS NARRATIVAS DILUVIANAS.............................. 96
9

INTRODUÇÃO

Há séculos, os primeiros onze capítulos do livro do Gênesis têm sido alvo das
mais diversificadas discussões divisivas em torno de questões relativas à autoria
mosaica, à inspiração, à historicidade das narrativas sobre Adão e Eva, a queda, o
dilúvio, e a relação entre fé e ciência. Interpretações do referido texto geralmente
seguem uma de quatro tendências. A mais conservadora afirma a autenticidade das
narrativas a partir da teoria da inspiração mecânica, defendendo a historicidade dos
personagens envolvidos e encontrando uma seqüência histórica perfeita que
transmite aos leitores verdades de cunho científico sobre a criação e de cunho
espiritual sobre o estado da pecaminosidade humana iniciada em Adão.

Uma segunda tendência, secularizada, parte de arreligiosos que desprezam o


caráter histórico e científico destes relatos bíblicos. Esta tendência fortaleceu-se
depois da Idade Média, com as descobertas realizadas nas áreas das ciências
naturais, com a teoria de Charles Darwin e com as descobertas na área das ciências
astronômicas, cujos antecedentes encontram-se em Copérnico e em Galilei. E
estabeleceu-se um conflito entre Ciência e Fé, em virtude da incongruência da
leitura literal do Gênesis em face das aludidas descobertas científicas.

A influência do iluminismo europeu e o impacto das descobertas


arqueológicas do século XIX constituíram, para o início de um diálogo com a
Ciência, algo que marcou a terceira tendência. As descobertas de diversos textos
épicos e narrativas míticas na antiga Mesopotâmia e na Palestina apontaram para
um forte grau de parentesco entre os textos extra-bíblicos e o de Gênesis. Sob estas
influências, exegetas cristãos liberais começaram a trabalhar a Bíblia a partir de uma
visão crítica, compreendendo o texto bíblico como o reflexo de uma comunidade de
fé em ebulição, valorizando gêneros literários próprios dos povos orientais antigos e
extraindo das narrativas bíblicas detalhes antropológicos, sociológicos e teológicos,
e não detalhes históricos ou científicos.

Em virtude da decepção em face do liberalismo teológico do século XIX e da


necessidade de se autenticar o caráter sagrado do texto bíblico, surge uma quarta
10

tendência. De caráter concordista, ela tenta harmonizar o progresso científico com o


texto bíblico, aceitando a inspiração mecânica das Escrituras e a Ciência como
aliada da Religião e capaz de comprovar as afirmações encontradas na Bíblia,
afirmações essas que não devem ser lidas de forma literal, mas simbólica.

Essas formas de enxergar os primeiros onze capítulos do Gênesis levam,


tanto pelo lado crítico, quanto pelo zelo religioso, a duas posturas gerais,
norteadoras de sua exegese: primeiro, aquela postura que aliena o texto do seu
contexto original e que busca nele verdades científicas ou históricas; segundo, uma
preocupação demasiada com a leitura crítica do texto bíblico, que pode levar a uma
hermenêutica que aprisiona o texto no mundo ambiente do autor e que nega
qualquer relevância para o presente e, assim, o esvazia de seu caráter revelado. É
de se esperar que, no confronto entre céticos e religiosos, o leigo fique com dúvidas
sobre a natureza do texto de Gênesis capítulos 1 a 11 e sobre o sentido do mesmo
para a comunidade de fé que se reúne aos domingos, no culto. Percebe-se ainda a
dificuldade que cristãos enfrentam em ambientes acadêmicos, quando são
confrontados por céticos que geralmente minimizam o valor do texto bíblico diante
do valor da Ciência.

Todos os motivos acima citados objetivam compreender a natureza do texto


de Gênesis, capítulos 1 a 11, através de uma interpretação mais próxima do seu
ambiente histórico nascedouro, possibilitando assim saber como e o que o escritor
bíblico quis dizer ao apresentar suas narrativas da criação, queda, dilúvio e
emergência da civilização como resposta às propostas divinizadoras da criação
oriundas dos povos circunvizinhos a Israel. Como conseqüência desse objetivo
maior, a dissertação também exporá semelhanças e diferenças entre os textos
mesopotâmicos e cananeus antigos e o referido texto bíblico como ponto de partida
para a exegese bíblica. Pretende-se demonstrar a natureza da relação entre as
narrativas míticas orientais antigas e o texto bíblico, com ênfase na interação e na
ação modificadora da qual o texto bíblico é agente. Uma vez que é objetivo a
demonstração de uma interação entre as duas tradições, a partir do texto bíblico,
pretende-se ainda, e por continuidade, expor o texto bíblico sob uma perspectiva
exegética que permita o diálogo entre a Fé e a Ciência, mostrando que os capítulos
1 a 11 de Gênesis não são fontes de cientificismo bíblico, nem fontes para a
11

apologia de uma teoria de criacionismo bíblico que despreze as descobertas


científicas sobre o surgimento do universo, do planeta Terra e dos seres humanos.
Entende-se que é possível – e preciso – empreender uma nova leitura do texto
bíblico a partir de suas indicações teológicas, ou seja, a partir de sua proposta de
pregação da fé em um Deus ético. Tal leitura permitirá tanto ao homem da Ciência
quanto ao homem da Fé, perceber o texto numa mesma perspectiva, a saber, a
perspectiva da fé.

Para que se possa atingir os objetivos desta pesquisa, torna-se essencial a


delimitação do assunto a ser trabalhado. Parte-se do princípio de que é preciso
examinar tanto o texto de Gênesis capítulos 1 a 11 quanto os textos míticos
mesopotâmicos e cananeus. Dentre os textos acessíveis destacam-se Enuma-Elish,
Atra-hasis, Os Reis Antediluvianos, a Epopéia de Gilgamesh, Dumuzi e Enkidu, Baal
e o Mar e o Nascimento dos Deuses, todos remontando ao período compreendido
entre o final do terceiro milênio e o século onze antes de Cristo.

Nesta pesquisa, não se pretende estudar essas narrativas detalhadamente


nem fazer uma exegese completa do texto de Gênesis capítulos 1 a 11,
principalmente no que se refere às fontes usadas na sua composição. Isto quer dizer
que a pesquisa não se prenderá à polêmica da autoria do Pentateuco ou, ainda, ao
estudo de suas ênfases teológicas. Seu intuito está em um campo mais restrito,
visando somente demonstrar como o escritor bíblico utilizou seu conhecimento das
narrativas míticas em questão.

O problema norteador desta pesquisa surgiu quando foi percebido que o texto
bíblico tem uma série de semelhanças com os textos mesopotâmicos e cananeus
antigos. Surgiu então a seguinte pergunta: por que existe tanta semelhança entre os
textos bíblicos de Gênesis capítulos 1 a 11 e os textos mesopotâmicos e cananeus
da criação, da queda e do dilúvio? Decorrente dessa primeira questão, surgiu uma
outra: qual a relação entre essas duas tradições narrativas e, por isso, qual a
natureza dos textos bíblicos em Gênesis capítulos 1 a 11?

Desta maneira, a hipótese a ser testada é a de que o autor bíblico de Gênesis


capítulos 1 a 11 conheceu as narrativas míticas mesopotâmicas e cananitas de seu
12

tempo, entrando numa relação com elas, não de dependência, nem de


independência, mas de interação, servindo-se da linguagem mítica para lutar contra
o princípio que os mitos defendiam, qual seja, a divinização da criação e, em virtude
de seus objetivos nitidamente teológicos, para dar à própria criação um caráter ético
elevado.

Para provar a hipótese enunciada, a pesquisa partirá de uma base descritiva


e chegará a uma investigação explicativa. Pelo fato de passar pela investigação
explicativa, a pesquisa não deixa de ser exegética, mas este não é seu objetivo
principal, conforme já asseverado, mas sim um objetivo intermediário, visto que
serão trabalhados somente aqueles aspectos dos textos de Gênesis capítulos 1 a 11
que confluem para fundamentar a hipótese levantada. A exegese não é o ponto de
partida para a pesquisa, mas o ponto de chegada. Pelo fato da exegese ser ponto de
chegada, a parte das considerações finais desta dissertação abre caminho para uma
reflexão ainda embriônica acerca dos resultados da pesquisa para situações
existenciais do povo brasileiro.

A disposição dos capítulos nesta dissertação segue a ordem do texto bíblico:


a exceção é a decisão de reunir os capítulos 4 e 11 de Gênesis num só bloco, em
virtude da sua ênfase unívoca, qual seja, a falibilidade da civilização humana. Vale
salientar ainda que a tentativa de enfocar os onze primeiros capítulos de Gênesis
numa única pesquisa confere à presente obra um caráter singular, visto que a
maioria das publicações afins não faz isso. É o caso de Loretz (1979), por exemplo,
que aprecia somente os textos concernentes à criação, à queda e aos gigantes. A
decisão de pesquisar os assuntos dos onze capítulos provém da convicção de que
eles compõem um só bloco de narrativas das origens, que pertencem a um mesmo
gênero literário, principalmente porque quando expostos ao método comparativo,
refletem uma perspectiva redacional única, qual seja, o uso da linguagem mítica
contra o mito, conforme explicado no enunciado.

Quanto aos meios para a construção desta dissertação, seguir-se-á o molde


da pesquisa bibliográfica, visto que o referencial teórico no qual a presente pesquisa
está amparada é fruto de estudos anteriores, contando inclusive com o amparo de
descobertas arqueológicas, quais sejam, os textos mesopotâmicos e cananeus
13

utilizados. Quanto à questão da tradução e da transliteração de termos dos textos


originais, deve-se observar o seguinte: primeiro, no que diz respeito aos termos do
hebraico bíblico, estes serão transliterados e traduzidos na seqüência em que forem
aparecendo, e de acordo com dois critérios. Para a transliteração dos nomes
próprios, será adotado o princípio de transliteração utilizado na Bíblia adotada como
referência, objetivando igualar os nomes citados no corpo da dissertação aos nomes
usados na Bíblia e transcritos nos quadros comparativos. Já para os demais termos,
será adotado o princípio de transliteração utilizado por Kelley (1998, p. 17).

Segundo, no que diz respeito à tradução das narrativas míticas, será utilizada
a tradução para o português feita por Duprat do texto, em francês, do livro A criação
e o dilúvio: segundo os textos do Oriente Médio Antigo (BRIEND et al, 1990). As
únicas exceções são aquelas narrativas míticas que não aparecem no aludido texto;
na medida em que estas ocorrerem, serão mencionados os tradutores em nota de
rodapé.

Terceiro, a versão bíblica adotada é a BÍBLIA DE JERUSALÉM (Nova Edição


Revista, São Paulo: Paulus, 1985). Esta tradução foi escolhida em virtude de ser
mais próxima do hebraico original, independente dos textos clássicos da Septuaginta
e da Vulgata, e dedicada a reproduzir o sentido antropológico do hebraico primitivo.
14

I. MITO, NARRATIVA MÍTICA E GÊNERO LITERÁRIO

Toda e qualquer leitura bíblica deve ser realizada dentro de uma determinada
situação de vida que originou a parte chamada texto. Não existe leitura puramente
espiritualizada. Por leitura espiritualizada entenda-se aqui a interpretação feita de
um texto bíblico sem qualquer conexão com o ambiente de produção textual como
se o texto bíblico tivesse sido produzido diretamente para o mundo hodierno. Por
outro lado, o texto bíblico possui uma propriedade peculiar, a saber, a da
aplicabilidade, em função de seu caráter sagrado, conforme adotado tanto por
judeus quanto por cristãos. Apesar de ter sido escrito em tempos antigos, ele tem a
pretensão de falar ao homem hodierno, através da utilização de recursos tais como a
analogia.

O trecho de Gênesis capítulos 1 a 11 não foge à regra do princípio da


aplicabilidade. Entretanto, até chegar-se a esse princípio, deve-se procurar
compreender, primeiro, o que o texto bíblico significou para a comunidade de fé que
o produziu e o recebeu, o que passará necessariamente pelo estudo das formas que
o autor bíblico1 utilizou na escritura do texto. A observação dos textos
mesopotâmicos e cananeus produzidos a partir do segundo milênio antes de Cristo e
encontrados nas descobertas arqueológicas a partir do início do século XIX, em
comparação com textos de Gênesis capítulos 1 a 11, mostrará que o povo de Israel
foi profundamente marcado pela mentalidade oriental antiga.

O autor bíblico interagiu com essa mentalidade, falando a seu povo aquilo que
é conhecido como palavra de Deus e produzindo um ensinamento contrário àquilo
que os mitos ensinavam, numa postura ética e missionária, que buscava desviar o
povo israelita do politeísmo reinante nas entrelinhas dessas narrativas.

1
Doravante será utilizado o termo autor bíblico do Gênesis como forma de se referir ao texto em si
mesmo e à mensagem ali exposta. O autor desta dissertação não defende a autoria mosaica de
Gênesis capítulos 1 a 11; antes, compreende a formação desse texto a partir das tradições do Javista
(século X antes de Cristo) e do Sacerdotal (século VI antes de Cristo), conforme explicitadas na
crítica literária bíblica, levando-se ainda em consideração a atuação de um redator final que deu
forma ao texto completo, no período pós-exílico. As duas tradições, javista e sacerdotal, têm algo em
comum: a convergência ética em torno de um único e suficiente criador, numa proposta catequética
ao povo de Israel, seduzido pelos cultos da divinização da criação.
15

De fato, todos os autores bíblicos se apropriaram das formas literárias de seu


tempo para produzirem seus textos, não necessariamente como peças literárias de
cunho artístico ou puramente estético, mas como verdadeiros atores, conhecendo os
dramas humanos espelhados nesses textos como tributários da mentalidade
oriental, ao tempo em que passavam adiante novos valores morais e espirituais
através do texto produzido. Essas formas2 ou gêneros literários eram, em geral,
comuns a todos os povos do Oriente Médio Antigo. Robert e Feuillet (1970, p. 145-
154) listam uma série desses gêneros que se constituíam na forma de narrativas
nomísticas, etiológicas, míticas, didáticas, novelísticas e lendárias, além de formas
poéticas, sapienciais e proféticas, levando-se ainda em consideração formas
peculiares a Israel, como o gênero apocalíptico. Deve-se agora, perguntar por essa
relação entre o mito, enquanto fenômeno, a narrativa mítica e o gênero literário.

1.1 – O mito enquanto fenômeno

Para Grelot (1982, p. 17) não é fácil dar uma definição de mito que satisfaça a
todos os pesquisadores da matéria. Argumenta que os mitos antigos se
apresentavam, em geral, como histórias que colocavam em cena seres divinos,
deuses e deusas, bem como seres humanos, num processo de interação entre eles.
Na verdade, os povos orientais antigos tratavam suas grandes questões existenciais,
os seus dramas, espelhando-se no drama dos deuses. Inquietações tais como o
sofrimento, a morte e o fim das coisas, a existência do ser humano, a misteriosa
atração sexual entre as pessoas, o porquê das inundações que destruíam
plantações e vidas humanas, tudo isso se expressava na forma de narração
explicativa que projetava sonhos e angústias da humanidade através de rituais
(GRELOT, 1982, p. 17).

Piazza (1976, p. 133) classifica os mitos em três grupos abrangentes.


Segundo ele, os mitos podem ser religiosos, quando estabelecem as relações entre
o homem e a divindade, tendo como exemplo a criação do ser humano;

2
Lohfink (1978, p. 54) não vê diferença entre forma e gênero literário, apesar de parte dos estudiosos
da crítica literária denominar de forma as unidades textuais menores e de gênero literário, as grandes
formas, unidades textuais maiores,como por exemplo, o romance e o drama.
16

classificatórios, quando estabelecem as relações dos homens entre si, tendo como
exemplo a criação das classes sociais; etiológicos, quando estabelecem as relações
do homem com o mundo que o cerca, tendo como exemplo o surgimento de animais
peculiares à região, acrescentando-se ainda a origem de determinados nomes ou
locais. Delimita-se assim o universo na ênfase do mito religioso. Este, por sua vez,
procede dos arquétipos3 (também conhecidos como mitologemas), que operam
comumente em todas as religiões, imagens que funcionam como elementos básicos
da expressão religiosa universal. Alguns exemplos de arquétipos são: o céu, como
símbolo da transcendência; o sol, como símbolo da soberania; a lua, como símbolo
dos ritmos da vida; a terra, como símbolo da maternidade (ELIADE, 1993, p. 98-99).
A narrativa mítica utiliza os arquétipos, visto que eles evocam nas pessoas
realidades intrínsecas aos símbolos constituintes dos mitos. Acerca da relação entre
o mito e o arquétipo ou mitologema, afirma Piazza (1976, p. 133-134):

Mas se quisermos ir mais a fundo na questão, devemos levar em


consideração os problemas do homem, que elaborou o mito. Este, por mais
primitivo que fosse, não deixou de perceber que [ …] o mundo, apesar de
todas as possibilidades que lhe oferecia, não lhe dava um apoio
suficientemente sólido para justificar os seus anseios de totalidade e
transcendência […] Ora, o mito é a expressão deste anseio pelo absoluto,
mediatizado pelo símbolo.

Não é parte do objetivo desta pesquisa o tratamento do mito dentro da


concepção mais popular que o vê como um conjunto de histórias fictícias ou
explicações infundadas, criadas pelo ser humano para lidar com causas não
compreensíveis na explicação científica ou histórica atual, principalmente no âmbito
religioso, conforme arrazoado de Hinnells (1984, p. 173). No estudo das religiões, os
mitos são encarados como símbolos que transmitem verdades acerca da existência
humana ou da realidade sobrenatural. A rigor, o mito encerra uma tradição. Rocha
(1985, p. 9-10) trabalha a forma como o mito plenifica uma tradição, sendo ele
próprio essa tradição:

3
Arquétipos são modelos ideais dos seres criados, bases para construção dos mitos e portadores
dos motivos mitológicos. Constituem-se ainda em imagens que funcionam como elementos básicos
da expressão religiosa universal. O termo arquétipo foi tomado emprestado de Agostinho de Hiponna
por Jung na Psicanálise. Para Jung (1978, p. 86), os mitos estão numa área da mente humana, um
lugar onde repousam todas as impressões extraídas da experiência coletiva, chamada por ele de
inconsciente coletivo. Os arquétipos seriam imagens primordiais, herdadas dos ancestrais humanos
(FADIMAN; FRAGER; 1986, P. 50).
17

A partir dessa idéia podemos pensar que o mito carrega consigo uma
mensagem que não está dita diretamente, uma mensagem cifrada. O mito
esconde alguma coisa. O que ele procura dizer não é explicitado literalmente.
Não “está na cara”. O mito não é “objetivo”, tipo pão, pão, queijo, queijo. O
que ele afirma o faz, de toda evidência, com muita sutileza. O mito fala
enviesado, fala bonito, fala poético. Fala sério sem ser direto e óbvio.

Entretanto, nas camadas populares e na religiosidade fundamentalista, o


termo mito se constitui em grande ameaça à fé, pelo fato da compreensão que falar
em mito, significa destruir a realidade histórica. O conceito popular e depreciativo do
mito como tudo aquilo que se contrapõe à realidade é um legado não só do
Iluminismo e do Positivismo (LORETZ, 1979, p. 13) mas, segundo Eliade (1993, p.
11), tem raízes nos primeiros cristãos, para os quais tudo aquilo que não achava
fundamentação no Antigo ou no Novo Testamento deveria ser considerado como
falso, uma fábula a ser desprezada. Contrapondo-se à abordagem popularesca, Jesi
(1976, p. 94) utiliza o termo mito a partir de uma terminologia técnica própria dos
estudos das ciências humanas desde o século XIX, unindo a Etnologia4 e a
Teologia, mudando apenas as perspectivas em que essas duas ciências se
baseiam.

Na Etnologia, o mito dá testemunho daquilo que Jesi (1976, p. 95) chama de


rosto transcendente da história, ou seja, o mito articula-se paralelamente à história,
como ponto de referência que lhe confere sentido transcendente, justificando-a no
plano metafísico, verificando-se, desse modo, uma via filosófica no caminho do mito.
Por isso, o mito não é simplesmente a narração de um conto, mas uma realidade
vivente, conforme Malinowsky, citado por Childs (1960, p. 18). Essa realidade foi
exposta em narrativas, não necessariamente histórias inventadas ou verdadeiras do
ponto de vista histórico, mas o resultado de manifestações de uma realidade
superior e mais importante para o grupo primitivo, e que determina o modo de vida e
o destino das pessoas. Isso que dizer que o homem primitivo projetava nos deuses
os seus próprios dramas correntes, dramas esses que se espelhavam na pergunta
pelas constantes estiagens, na pergunta pela realidade da morte, na pergunta pela
tragédia humana, quer marcada pelas guerras, quer marcada pelas enchentes.
Pode-se dizer, por isso, que o mito representou para os seres humanos das

4
A Etnologia é a ciência que estuda os povos e as raças, nos pontos de vista de seus caracteres
psíquicos e culturais, de suas diferenças e afinidades, de suas origens e relações de parentesco.
18

sociedades primitivas a única manifestação válida da realidade, conforme aponta


Childs (1960, p. 17-18).

Dentro do universo teológico, poder-se-ia afirmar que o mito seria a tentativa


do ser humano procurar projetar-se dentro da vontade de Deus, buscando ver aquilo
que Jesi (1976, p. 98) chama de o rosto de Deus . No seu entender, todo mito revela
algo do rosto de Deus e, ao mesmo tempo, joga o ser humano para a sua condição
limitada de não poder enxergar esse rosto em sua total essência. Isso quer dizer que
o mito não era simples produto da fantasia, mas era construído a serviço da reflexão.

Cabe aqui uma questão em torno da forma como esses mitos eram
preservados nas culturas antigas. Nesse sentido, Bentzen (1968, p. 261) assevera a
relação entre o mito e o rito, em que o mito foi celebrado e explicado através dos
ritos anuais, verdadeiras festas de ano novo, nas quais os dramas humanos eram
expostos através das histórias dos deuses. Para ele, os mitos da criação foram os
mais expressos em ritos, e encontrados por Israel a partir do assentamento das
tribos na terra de Canaã. Armstrong (1994, p. 25) endossa esse pensamento,
inserindo o conceito de que os ritos revelam a distância entre os celebrantes e os
deuses mencionados nos mitos. As pessoas não esperavam que os deuses se
envolvessem em suas vidas profanas, visto que as ações divinas haviam se
realizado em um tempo sagrado, fora do alcance e da compreensão humana.
Contudo, o que era mito e rito se tornou expressão textual. Deve-se, assim, partir
para a busca da pesquisa dos mitos orientais antigos expressos em textos. É o que
está exposto a seguir.

1.2 – Os mitos orientais antigos expressos em textos

Uma vez analisado o mito enquanto fenômeno religioso, deve-se procurar


pela sua apresentação através de textos antigos, narrativas oriundas do ambiente do
Oriente Médio Antigo. Até a primeira metade do século XIX depois de Cristo, ainda
não eram conhecidas as tabuinhas dispostas na escrita cuneiforme com os mitos
mesopotâmicos e cananeus, que abordavam a criação e o dilúvio. As escavações
arqueológicas trouxeram à tona uma série de narrativas que esclareceram,
19

sobretudo, a forma como os antigos povos mesopotâmicos e cananeus refletiam


sobre os dramas da morte, da relação ser humano versus agricultura, da fertilidade e
do sexo.

As pesquisas realizadas sobre o ambiente do Oriente Médio Antigo têm


demonstrado ainda como esses povos construíam suas imagens acerca da origem
do mundo, da origem do ser humano e de sua relação com o divino. De fato, essas
imagens eram de natureza mítica, no dizer de Loretz (1979, p. 11). Compreendendo
os mitos como construções dramáticas a partir dos mitologemas, verdadeiros
arquétipos de uma psicologia social desenvolvidos para explicar a própria
incapacidade dos seres humanos antigos de lidarem com o polinômio cosmo-ser
humano-deus(es)-morte, compreende-se também que eles representam
mentalidades formadas a partir de situações peculiares às respectivas culturas para,
enfim, ganharem forma textual.

Charpentier (1986, p. 31) faz uma comparação entre a mentalidade egípcia e


a mentalidade mesopotâmica, a partir de seus ambientes geográfico e histórico. A
mentalidade egípcia, mais otimista, era marcada pela fertilidade do rio Nilo, sempre
abundante, representando assim a bondade dos deuses egípcios. No entendimento
dos egípcios, esses deuses velavam pelas pessoas com promessas de vida
resplandecente após a morte, cuja glória era também evidenciada no orgulho
egípcio em ser uma potência político-militar, espelhado no poder do sol, vencedor
das potências noturnas, culminando assim no Hino ao Deus-Sol. Já a mentalidade
mesopotâmica, mais pessimista, era influenciada pelo medo, quer seja das
freqüentes e imprevisíveis enchentes a que estavam submetidos os rios Tigre e
Eufrates, quer seja do grande número de guerras, motivadas ora pelas invasões de
nômades procedentes do deserto da Arábia ou dos planaltos do Irã, ora pelos
sangrentos combates em Ur por volta do final do segundo milênio antes de Cristo,
conforme estudo feito por Bright (1978, p. 52-53). Como exceção desse pessimismo
mesopotâmico, existe a Suméria antiga, no que diz respeito às narrativas da
fecundidade divina, modelo para a fecundidade dos seres humanos, ilustrada nos
cultos de fertilidade à deusa Ninma. Justamente por esse pessimismo característico,
no entendimento de Charpentier, os deuses mesopotâmicos eram mais caprichosos
e viviam constantemente lutando entre si, tendo como vítima final, ou produto desse
20

capricho, os seres humanos. O conhecimento das narrativas míticas orientais


antigas revela grande semelhança com o texto de Gênesis capítulos 1 a 11, e a sua
comparação com o texto bíblico demonstra que o autor bíblico utilizou o
conhecimento dessas narrativas em sentido contrário ao politeísmo nelas
representado, para levar ao seu povo uma mensagem de conteúdo ético e
missionário. Os principais textos mesopotâmicos e cananeus trabalhados na
presente pesquisa são os seguintes :

(1) A Epopéia de Gilgamesh, uma narrativa em forma de lenda5, contém mitos


da queda, do dilúvio e da civilização, e é considerada (BARUCQ et al, 1992, p. 167)
como o mais importante texto mesopotâmico conhecido, isso em função de seu
tamanho e de sua diversidade de transmissão. O texto compõe-se de 12 tabuinhas
com, aproximadamente, 3.600 versos escritos na língua suméria, além de cópias
encontradas em língua acádia. A descoberta das tabuinhas foi feita de forma seriada
entre os anos 1849 e 1872, a partir dos trabalhos de escavação do arqueólogo
inglês Austen Henry Layard, no lugar onde surgia a antiga Nínive. De acordo com
Grelot (1982, p. 18), a literatura suméria se desenvolveu até perto do ano 2000
antes de Cristo, época em que o sumério deixou de ser falado como língua corrente.
Mas, como língua escrita, continuou a ser preservada por escolas escribistas através
das cópias de textos antigos até época bem tardia. Isso significa que a Epopéia de
Gilgamesh foi escrita entre 2500 e 2300 antes de Cristo6, levando-se ainda em
consideração que, nessa época, sumérios e acádios já viviam dentro de um
processo interativo em sua organização sócio-cultural no vale do Eufrates. Assim,
algumas características históricas eram comuns a esses dois povos: as memórias
das grandes enchentes que ceifavam vidas e destruíam a agricultura (GRELOT,
1982, p. 15).

Gilgamesh é apresentado como rei de Quis, herói orgulhoso e tirano que logo
recebe a antipatia dos deuses, que, por sua vez, providenciam um rival capaz de
vencê-lo. Esse rival chamado Enkidu, criado a partir do barro molhado, apresenta-se

5
A lenda é um tipo de saga , cujo objetivo é o de legitimar uma instituição ou situação. Por exemplo,
as lendas dos santuários antigos dão legitimidade a um determinado santuário como local de
peregrinação, visto que, em determinado tempo do passado, um importante patriarca ou herói ali
esteve oferecendo um culto.
6
As cópias encontradas por Layard são datadas por volta do século VII antes de Cristo e
representam o desenvolvimento textual da narrativa de Gilgamesh (SANDARS, 1992, p. 8).
21

como um bicho peludo, vivendo no meio dos animais selvagens. Enkidu perde sua
condição de ser criado pelos deuses como invencível, na medida em que é seduzido
por uma prostituta com a qual tem relações sexuais, passando à condição de ser
humano. Se o conhecimento sexual destitui Enkidu de sua invencibilidade, traz, ao
mesmo tempo como contribuição positiva, a expansão de sua inteligência. Isso é o
que lhe permite tornar-se parelho a Gilgamesh e, a partir daí, os dois vivem como
amigos que viajam realizando conquistas pelo mundo, proezas que incluem vitórias
sobre flagelos divinos enviados contra eles. Mas Enkidu adoece e morre, fazendo
Gilgamesh descobrir a realidade da morte. Numa tentativa desesperada para lutar e
vencer a morte, Gilgamesh recusa enterrar o corpo de Enkidu até o momento em
que testemunha a decomposição do corpo de seu amigo. Depois, encomenda uma
imagem na forma de estátua que lembre o corpo do amigo que está quase
desaparecendo, mas percebe que a estátua permanece imóvel e sem comunicação.

Finalmente, faz uma longa viagem cheia de perigos e de encontros com seres
míticos que procuram ensinar-lhe o sentido da vida e da morte, momento em que
recebe de Utnapishtim, único sobrevivente do dilúvio, a revelação do local onde se
encontra a planta da vida, um vegetal que pode dar a imortalidade a quem dele
comer. Gilgamesh encontra a planta da vida no fundo do mar, mas, depois de um
descuido, perde-a para uma serpente que, comendo-a, deixa para Gilgamesh a lição
que ele deverá conformar-se com a morte, que é o seu destino futuro.

A Epopéia de Gilgamesh segue uma linha de raciocínio em que os


mitologemas mesopotâmicos eram utilizados pela via contrária do que a história
parecia contar. Enkidu perde a sua condição de ser moldado com propriedades
divinas e assume a condição de ser finito; Gilgamesh parte em busca da
imortalidade, característica dos deuses, mas não consegue possui-la. A elaboração
mítica de Gilgamesh é um drama que espelha a necessidade de o ser humano
conformar-se com a morte. Deve-se ver também aqui o desejo interior de vencer
essa mesma morte, para a qual o ser humano primitivo estava despreparado e sem
explicações satisfatórias. O desejo da união com os deuses, expresso na
oportunidade que Gilgamesh teve de casar-se com a deusa Ishtar, pode resultar
numa confissão teológica mesopotâmica primitiva: o ser humano pode ser deus.
22

(2) Atra-hasis, antigo poema babilônico da criação do ser humano e do drama


do dilúvio, foi escrito em acádico, e existe em duas versões bem danificadas, sendo
sua cópia mais recente oriunda do primeiro milênio antes de Cristo, e a mais antiga e
menos danificada, oriunda do tempo do rei Ammi-saduca (1646 a 1626 a C),
disposta em três tabuinhas, contendo cerca de 1.245 linhas. A produção desse texto
deve estar situada em época mais antiga que o século dezessete antes de Cristo,
visto o texto não mencionar o nome do deus criador babilônico Marduk, divindade
elevada à categoria de deus supremo do panteão babilônico durante o reinado de
Hamurabi, entre 1792 e 1750 antes de Cristo, conforme Hinnells (1984, p. 163). Isso
poderia localizar o texto numa data próxima do início do segundo milênio antes de
Cristo (2000-1900).

O termo Atra-hasis significa o muito inteligente e designa o nome do herói


humano mencionado na segunda parte da obra. O mito desenha um ambiente em
que ainda não existia o ser humano, onde deuses superiores tinham que trabalhar
para prover as suas necessidades. Enfadando-se dessa rotina cansativa,
transferiram aos deuses inferiores suas tarefas através de pesados trabalhos,
causando mais tarde uma revolta que culmina com o ataque dos deuses inferiores
ao palácio dos grandes deuses. Estes, por sua vez, entendendo a razão dos deuses
revoltados, decidem criar o ser humano, matando um deus inexpressivo chamado
Uê, misturando sua carne e seu sangue ao barro molhado, fazendo surgir dali sete
homens e sete mulheres que, a partir de então, se responsabilizam pelas tarefas dos
deuses. Dentre outras atividades, os seres humanos prestam culto aos deuses,
através de oferendas alimentícias sempre acompanhadas de muito barulho advindo
dos tambores. Incomodado com o barulho dos seres humanos, o deus Enlil toma a
decisão de extinguir a humanidade através de calamidades sucessivas em intervalos
de 1.200 anos, tais como pestes e estiagem, dentre outras que não estão bem
identificadas devido ao estado de conservação das tabuinhas, sendo a última
calamidade, o dilúvio. No meio dessa perseguição promovida pelos deuses aos
seres humanos, o deus Ea parece gostar de Atra-hasis, herói humano e seu
protegido, que consegue sempre livrar-se das pragas divinas através de cultos
especiais a deuses específicos. Para escapar da última calamidade, o deus Ea
sugere a Atra-hasis que construa uma arca onde entrará com sua família e um casal
de todos os animais.
23

O mito de Atra-hasis representa a tão antiga quanto nova tentativa dos seres
humanos buscarem explicações para os males que os afligem em sua existência
finita. A transferência das responsabilidades de serviço pesado dos deuses
superiores aos deuses inferiores e, por último, aos seres humanos, é sempre uma
transferência de culpa que serve para explicar os males pela via inversa. Os seres
humanos sempre viram nos deuses incomodados pela finitude humana a culpa para
o seu infortúnio. A humanidade foi criada para os deuses e é fruto de seu capricho.
Talvez o culto possa aplacar a ira dos deuses.

(3) O Enuma-Elish, poema babilônico da criação, disposto em sete tabuinhas,


quase todas conservadas, contém aproximadamente 1.100 versos em escrita
acádica, cuja produção está situada entre 1150 e 1015 antes de Cristo pelo
arqueólogo inglês W. G. Lambert (1965), embora o assiriólogo W. von Soden, em
estudos posteriores aos de Lambert, a tenha situado no século XIV antes de Cristo
(BRIEND et al, 1990, p. 15). Allen (1987, p. 155) chega a propor, baseado em
evidências internas, uma data para o texto original por volta de 1700 antes de Cristo.
As tabuinhas foram descobertas nas escavações realizadas na biblioteca de
Assurbanipal, antiga Nínive, entre 1848 e 1876, pelos arqueólogos Austen Layard,
Hormuz Rassam e George Smith.

O termo Enuma-Elish é o conjunto compreendido pelas duas primeiras


palavras do poema e significa Quando no alto. O poema foi recitado durante as
festas de ano novo com rituais caracterizados pela pompa. O Enuma-Elish inicia
com a narrativa sobre o universo primitivo dominado pelo deus Apsu (personificação
das águas doces) e pela deusa Tiamat (personificação das águas salgadas),
divindades totalmente interligadas em dois princípios sexuados, visto que, em sua
essência, na crença antiga, o universo teve suas origens nas águas. Tiamat, deusa
e monstro, é a representação do abismo caótico, visto que reina soberana no meio
dos mares, agitando seus tentáculos nas águas cada vez mais desgovernadas.
Torna-se mãe de gerações sucessivas de deuses identificados com as potências
cósmicas que, cada vez mais individualizados, entram em luta contra os deuses
originais, chegando um deles, o deus Ea, a matar o deus Apsu. Como ato de
vingança, Tiamat reúne seus deuses partidários para lutar contra todos os seus
24

filhos revoltosos, confiando a chefia ao deus Kingu, seu novo marido. Tal preparo
da deusa-mãe gerará a união desses filhos-deuses caracteristicamente
personalizados que, uma vez intimidados, abrem mão de suas individualidades para
concederem o poder ao filho de Ea, o deus Marduk. Depois de grande combate,
Marduk consegue matar sua mãe Tiamat e divide o seu corpo em partes com as
quais cria a abóbada celeste. Na seqüência, Marduk imola o deus Kingu, moldando
o ser humano com o sangue desse deus, imprimindo ao homem as tarefas dos
deuses, já cansados de trabalhar. Mas a criação não pára aí; como obra final, surge
a Babilônia. O Enuma-Elish tem por fim último legitimar a realeza universal de
Marduk sobre os outros deuses, considerados como aspectos do deus criador, mas
também adorados em seus respectivos níveis, não chegando o povo babilônico à
capacidade de superar esse politeísmo sincrético para formularem uma crença no
deus único (BARUCQ et al, 1992, p. 159).

(4) Os Reis Antediluvianos é a parte inicial de um texto maior denominado


Lista Real Suméria, cuja datação é incerta, mas pode ser localizada
aproximadamente no século XIX antes de Cristo. O texto contém narrativas sobre
cinco cidades sumérias e os nomes dos seus reis em anos acumulados por grupo de
reis. Fato digno de nota é o exagero da durabilidade de cada reino, chegando, por
exemplo, a uma duração de 43.200 anos (o rei Enmenluanna). Briend (1990, p. 58)
comenta essa extravagância na longevidade dos reinados sumérios. Para ele, existe
uma grande preocupação de preencher uma espécie de hiato entre a origem do
mundo e a atuação dos heróis primitivos em seqüência, no estilo das listas
genealógicas, com totais de anos individuais e totais de anos de reis sumérios em
conjunto. Um outro aspecto é o da idéia primitiva de que a vida passava mais
lentamente e, por isso, podia-se viver mais tempo. Briend (1990, p. 58-59) cita um
texto sumério de origem desconhecida, onde aparece a seguinte narração: Naquele
tempo, a criança levava 100 anos para não mais se sujar; uma vez crescida passava
(ainda) 100 anos sem que lhe fosse confiado um trabalho; ela era pequena, era
tola, sua mãe tomava conta; seu berço era colocado no curral.

(5) Dumuzi e Enkidu é uma narrativa disposta em três tabuinhas parcialmente


fragmentadas, contendo 90 linhas escritas na língua suméria. As tabuinhas foram
encontradas nas escavações em Nippur, situada na antiga Babilônia central, atual
25

Nuffar, e remontam à primeira metade do segundo milênio antes de Cristo. A


tradução da narrativa foi feita em 1947 (PRITCHARD, 1969, p. 41). Os personagens
do mito são Inanna7, a deusa-mãe; seu irmão Utu, o deus-sol; Dumuzi, o deus-
pastor; e Enkidu, o deus-agricultor; No drama, Utu insta sua irmã a casar-se com o
Dumuzi, o deus-pastor. Inanna recusa esta orientação, visto que já está determinada
a casar-se com o deus-agricultor. Apesar das tabuinhas estarem avariadas nesse
ponto, percebe-se que Dumuzi dirige uma série de argumentos para Inanna,
detalhando suas qualidades pastoris, conseguindo fazer com que a deusa mude de
idéia, casando-se, enfim, com ele. Nesse momento, encontra o deus-agricultor,
Enkidu, com quem trava uma disputa, que termina pacificamente. Enkidu oferece
presentes aos noivos, produtos extraídos da agricultura, participando assim daquele
casamento.

O mito de Dumuzi e Enkidu é uma lembrança de que, na Mesopotâmia


antiga, a deusa-mãe era adorada como a própria fonte da vida. Ela era o poder
manifestado em toda a fertilidade e em todas as suas formas, humana, vegetal e
animal. Através dos ritos celebrados anualmente, ela se unia ao deus-pastor
Dumuzi, que encarnava os poderes criativos da primavera. A morte dele no outono
simbolizava o declínio das estações e a reunião de ambos na primavera
representava a renovação da terra. Mas o deus era apenas o agente da renovação,
sendo a própria deusa quem o ressuscitava. Ela era a personificação do poder
criativo em toda a sua plenitude. O que se constata na investigação dos cultos
matriarcais é uma certa harmonia e uma profunda segurança na união sagrada entre
a mãe e seu filho-amante.

Apesar da ascensão das culturas guerreiras (tipificadas na disputa entre o


deus-pastor e o deus-agricultor) que prosperavam mais com a conquista e a
escravidão, sabe-se que os cultos à deusa-mãe sobreviveram e prosperaram até a
época dos romanos. As deusas locais eram facilmente assimiladas à adoração da
deusa-mãe (Cibele na Ásia Menor; Ísis, primeiro no Egito, depois em Roma; Gaia na
Grécia), por serem essencialmente a mesma divindade. Porém, cada vez mais, o
conflito entre os deuses patriarcais e a deusa-mãe foi se intensificando. No final do

7
Na Assíria a deusa correlata a Inanna era Ishtar e, para Dumuzi, Tamuz.
26

Império Romano do Ocidente, os cultos à deusa-mãe haviam se tornado dispersos,


suprimidos, assimilados, distorcidos.

(6) Os mitos ugaríticos de Baal são uma série de textos dispostos em


tabuinhas no estilo da escrita cuneiforme, que foram encontrados em 1929 pelo
francês M. Claude Schaeffer na Síria, na localidade conhecida por Ugarit e
escavados em um sítio arqueológico chamado Ras Shamra. Seus caracteres são
mais simples que os caracteres cuneiformes babilônicos, visto que continham de
uma a cinco cunhas para formar uma letra. Eram, ao todo, 30 sinais gráficos, sendo
8 a mais que o alfabeto fenício, que continha 22 consoantes. Essas tabuinhas
mediam em torno de 26 centímetros de altura por 22 centímetros de largura, e
algumas estão em precário estado de conservação. Geralmente esses textos são
intitulados de cananeus, contudo, em virtude deles terem sido encontrados na Síria,
região norte da Palestina, portanto, mais próximos da Mesopotâmia, a denominação
cananeus é mais um apelido atribuído pelos lingüistas ao ramo de línguas semíticas
representadas pelo hebraico e o fenício, línguas aparentadas, as quais legaram à
posteridade textos completos. Entretanto, se a referência é apenas aos povos
cananeus, habitantes da região média da Palestina por volta do século treze antes
de Cristo, então a denominação é equivocada, visto que tanto cananeus quanto
filisteus não legaram à posteridade uma literatura (BARUCQ et al, 1992, p. 219). Por
isso, a denominação mais utilizada pelos eruditos tem sido a de textos ugaríticos.

Nessas tabuinhas, ficou conhecido o panteão ugarítico: o deus principal é El,


idoso, bom e sábio, habitante nas origens dos abismos e das águas, responsável
pelo equilíbrio do mundo, equivalente a Iahweh para Israel. Tão importante, contudo
mais ativo que El, é o deus Baal, mais jovem, valente e lutador, responsável pelas
chuvas e pela fertilidade. Ashera, conselheira de El, simboliza a astúcia, e Anat, irmã
de Baal, é mais violenta que heróica. As histórias sobre Baal e os deuses eram
contadas em episódios como se formassem um ciclo, refletindo talvez com isso os
rituais religiosos ou as estações agrícolas. Dentro desse ciclo, os dois mitos mais
importantes são Baal e o Mar e o Nascimento dos Deuses.
27

Em Baal e o Mar existem narrativas sobre a vitória do deus Baal sobre Yam,
deus do mar, e sobre Nahar, deus dos rios8. Yam tenta submeter Baal ao seu
domínio através da construção de um palácio para demonstrar sua supremacia.
Neste tempo, pressiona o panteão de El para que Baal seja entregue, algo que
quase acontece. Baal censura os deuses covardes e parte para a luta com Yam,
chegando à vitória depois de ter sido armado pelo deus Kuthar, deus ferreiro e
arquiteto. O relato contém partes semelhantes ao mito mesopotâmico do Enuma-
Elish, visto que existe, tanto aqui quanto ali, uma grande luta dos primórdios, na qual
um deus maior é morto pelo deus menor, acontecendo a criação. O mais provável é
que o texto ugarítico esteja celebrando o domínio dos povos agricultores sobre os
povos que habitam as ilhas do mar (BRIEND et al, 1990., p. 118).

O mito Nascimento dos Deuses celebra o encontro, à beira do oceano, do


deus El com duas deusas, sendo uma delas, Athirat. Depois de uma tentativa
fracassada de copular com as deusas, El é vítima de impotência sexual e só
recupera seu vigor após ter caçado com um dardo um pássaro que voava no céu,
após o que assa e come a ave. Recuperado, El engravida suas duas esposas, que
geram dois filhos, Shahar e Shalim, deuses astros, simbolizando a estrela d’alva e a
estrela vespertina, representando a criação do tempo. Depois de uma nova investida
sexual de El, as deusas ficam grávidas e dão à luz a dois deuses cujos nomes não
são mencionados na tabuinha, mas que simbolizam a glutonaria. Esses deuses
precisam constantemente das oferendas dos homens para se saciarem, mas as
ofertas dos cultos humanos, à base de peixes e aves, nunca lhes bastam. As ofertas
que são bem recebidas são as da agricultura, ou seja, dos frutos da terra. Esse mito
tem duas funções primordiais: a primeira é a de celebrar a fertilidade através da
união dos deuses. A segunda é ensinar que o serviço dos deuses era a razão de ser
da agricultura, elemento essencial da civilização (BARUCQ et al, 1992, p. 249).

Uma das grandes contribuições das escavações em Ugarit é que a religião


cananéia da época do Êxodo do povo de Israel tornou-se mais conhecida pelos
estudantes da Bíblia, visto que as citações sobre Baal no Antigo Testamento foram
aferidas com as narrativas míticas encontradas em Ras Shamra em 1929. Até essa

8
O texto ugarítico não está bem preservado no tocante ao papel que Nahar faz dentro da luta dos
deuses. Contudo, ele é introduzido aqui de acordo com Pixley (1971, p.56).
28

época, boa parte do conhecimento do culto a Baal estava limitado ao texto bíblico.
Agora, através da associação das descobertas feitas em Ugarit com as descobertas
dos textos míticos mesopotâmicos, começa-se a perceber o texto bíblico como um
texto inserido dentro desse contexto maior, o que leva à idéia da comparação da
maneira bíblica de relatar as tradições de Israel com a maneira dos textos míticos
ora citados. Parte-se assim da compreensão do texto bíblico como gênero literário,
assunto a ser trabalhado no próximo item.

1.3 – O mito como gênero literário bíblico

Para a continuidade da pesquisa faz-se necessário definir o tipo de gênero


literário de que a porção textual de Gênesis, capítulos 1 a 11, se utiliza. Essa
definição torna-se possível graças às descobertas das narrativas míticas orientais
antigas, aliadas às pesquisas da chamada crítica literária bíblica, que teve os seus
primórdios no início do século dezoito da era cristã. Conforme citação de Schmidt
(1994, p. 49), Henning Bernhard Witter, em 1711, já percebia a diferença entre os
nomes ‘elohim e Iahweh nos dois primeiros capítulos de Gênesis. Assim, Witter
passou a entender esta diferença como prova da existência de fontes primárias
independentes de uma origem mosaica. Sua hipótese foi rejeitada por quase dois
séculos.

Entretanto, Julius Wellhausen tem sido considerado a referência mais


importante da crítica literária bíblica desde o último quarto do século XIX . Em sua
obra Die Komposition des Hexateuchs, publicada em 1877, reforçou as idéias de
Witter, expondo suas pesquisas sobre as quatro fontes de composição do
Pentateuco, assim denominadas : Javista, composto cerca de 950 antes de Cristo,
na época de Salomão e representando pela letra J ; Eloísta, composto cerca de 800
antes de Cristo, no norte de Israel, e representado pela letra E; Deuteronomista,
composto no século VII antes de Cristo, um pouco antes da destruição de
Jerusalém, representado pela letra D; Sacerdotal, composto no final do exílio
babilônico, por volta de 550 antes de Cristo, representado pela letra P (do alemão
Priester, que traduzido é sacerdote); A idéia é que essas fontes teriam existido num
estágio antigo da história da composição dos cinco primeiros livros do Antigo
29

Testamento como documentos literários independentes e que teriam sido reunidos


mais tarde para formar um texto maior.

Uma outra descoberta da crítica literária bíblica foi a existência de uma relação
entre os gêneros literários mesopotâmicos, egípcios e cananitas e os textos bíblicos
do Antigo Testamento, não na forma da dependência ou da independência, mas na
forma da interatividade. Isso é o que Dattler (1984, p. 16) chama de mito
desenvolvido, o que quer dizer que Israel tomou conhecimento e desenvolveu uma
criatividade modificadora face aos gêneros literários de seu tempo, chegando
mesmo o autor bíblico a alterar nomes dos personagens míticos para adaptá-los à
mensagem de cunho monoteísta.

A crítica literária bíblica, então, estuda o processo anterior à formação dos


escritos bíblicos com o objetivo de estabelecer a autoria e a época dos mesmos.
Nela estudam-se a gama de gêneros textuais, as figuras de linguagem e as
características próprias da língua hebraica que denunciam o ambiente formador do
texto bíblico. A crítica literária parte do princípio que os orientais, para exprimir o que
tinham em suas mentes, nem sempre usaram formas e maneiras de dizer das quais
os ocidentais hodiernos se servem, mas empregaram formas cujo uso era comum e
entendido pelas pessoas de seu tempo. Essas formas não são facilmente
determinadas pela leitura simples do texto da Bíblia, entretanto podem ser
esclarecidas quando confrontadas com outros textos não bíblicos oriundos do antigo
oriente e conhecidos através da pesquisa arqueológica. Um pensamento importante
aqui é o fato de que o que está escrito na Bíblia possui, em primeiro lugar, um
sentido para quem o produziu, sentido esse que pode estar expresso nas mais
variadas formas e gêneros literários que, em última análise, revelam um tipo de
diálogo entre o autor e a sociedade de seu tempo. De acordo com Robert e Feuillet
(1970, p. 128), os gêneros literários não são criações arbitrárias ou peças literárias9
dos autores. São fenômenos sociais. Então, a crítica literária bíblica é um convite ao
conhecimento do autor e de sua época através do jeito de expor seus dramas em
forma de narrativas. A crítica literária bíblica leva em conta que a literatura de Israel

9
Nesse sentido, o lingüista Marcuschi (2002, p. 3-4, 10, 14) evita a utilização do termo gênero
literário, substituindo-o por gênero textual. Ele quer evitar a compreensão dos autores como criadores
de peças de cunho estético, mas como redatores de textos resultantes de desenvolvimentos culturais
e históricos.
30

está enraizada numa tradição oral viva, vindo depois a configurar-se na forma
escrita.

A conclusão primária da crítica literária sobre o enraizamento da literatura do


Antigo Testamento em tradições orais veio a introduzir mais tarde a crítica das
formas10. Em 1895, Hermann Gunkel publicou uma obra intitulada Schöpfung und
Chaos in Urzeit und Endzeit (apud SCHMIDT, 1994, p. 60), na qual destacou dentro
do texto do Gênesis perícopes, conceituadas por ele como sagas11. A partir das
descobertas de Gunkel, começou-se a perceber o texto, não como uma peça
literária, e o autor, não como um artista ou criador, mas o texto enquanto espelho de
um estado social, uma psicologia coletiva, um desenvolvimento histórico que
reproduzia uma reação diante das condições de vida, enfim, algo chamado pelo
próprio Gunkel de Sitz im Leben que, no alemão, significa situação na vida.

Entretanto, desde o último quarto do século vinte, pesquisadores como Rolf


Rendtorff (1977) começaram a levantar dúvidas sobre a possibilidade de
reconstrução das fontes J, E, D e P, visto que nem sempre é possível saber quando
uma porção textual é só javista, ou quando tem os elementos javista e eloísta
(PURY, 1996, p. 91). Para Rendtorff, o Pentateuco se compõe de unidades maiores,
caracterizadas por coerência interna e quase independentes umas em relação às
outras, transmitidas durante um longo período e, também, de maneira independente.
Assim, ele separa Gênesis capítulos 1 a 11, com sua história das origens, de
Gênesis capítulos 12 a 50, com a história dos patriarcas. No entendimento de
Rendtorff, os últimos autores ou redatores do Pentateuco teriam reunido as unidades
maiores e formado o texto atual a partir de uma intenção bem determinada. Assim,
Rendtorff rompe quase totalmente com o método histórico-crítico.

Não cabe nessa pesquisa a adoção de interpretações provenientes de uma


única escola crítica, quer seja da crítica literária bíblica (com as contribuições

10
Denomina-se de crítica das formas a escola de crítica bíblica surgida a partir dos trabalhos de
Hermann Gunkel, em 1895, na qual se utilizam os recursos da crítica literária para o alcance da fase
anterior ao processo de escritura da Bíblia, a saber, a fase oral, em que as histórias bíblicas se
configuravam através de formas fixas, intimamente relacionadas aos gêneros literários bíblicos.
11
Sagas são histórias das origens e de conquistas a partir da presença de um herói de relação
histórica estreita com o povo, cujas narrativas vinham recheadas de teofanias (Por exemplo, a história
de Abraão, a partir de Gênesis 12).
31

teológicas do Javista e do Sacerdotal), quer seja da escola das formas (com sua
preocupação com o ambiente formador do texto); porém, serão apreciadas as
contribuições de cada uma destas escolas para observar a relação entre o texto de
Gênesis, capítulos 1 a 11, o seu gênero literário e os textos mesopotâmicos do
oriente antigo, textos estes cuja característica visível e marcante é o mito. O que se
pretende afirmar nesta pesquisa é que o texto de Gênesis capítulos 1 a 11 utiliza a
linguagem mítica para abordar o drama humano da compreensão do cosmo, de si
mesmo e do seu relacionamento com Deus, dentro de uma postura ética divergente
daquela engastada nas narrativas míticas orientais antigas. O termo mito pode gerar
na comunidade religiosa que se reúne para o culto um certo constrangimento,
podendo existir uma discrepância entre os estudos teológicos de nível acadêmico e
a fé da pessoa crente em Deus. Entretanto, conhecendo-se o que os mitos antigos
significavam, poder-se-á compreender o texto do Gênesis, capítulos 1 a 11, bem
como interagir com ele, mesmo no culto ou na prática de fé. Sobre essa
interatividade entre o mito e a linguagem mítica, Grelot (1982, p. 22) escreve:

A mitologia é uma representação do mundo transcendente que multiplica os


deuses; ora, vimos que a revelação do Deus único excluiu radicalmente de
Israel todas essas ‘histórias divinas’. Quanto à linguagem mítica, ela é um
modo de combinar símbolos e imagens para exprimir, em forma de narração
ou drama, certos aspectos da experiência humana ou das realidades divinas.
A revelação excluiu a mitologia mas aceitou, incólume, o risco da linguagem
mítica .

Loretz (1979, p. 14), referindo-se aos três primeiros capítulos do Gênesis,


lembra que a Ciência tem demonstrado que os mesmos falam das origens usando
uma linguagem mítica. Loretz, dessa forma, rompe com a exegese tradicional,
remetendo-a para a cultura medieval, seu provável nascedouro, em virtude da
necessidade que a Igreja tinha em filtrar todo o conhecimento científico a partir da
leitura bíblica. Uma vez definido o conhecimento dos dramas humanos expostos
através do mito no Oriente Médio Antigo, bem como a compreensão da linguagem
mítica como gênero literário bíblico, deve-se buscar compreender de que maneira
Israel lidou com o mito e qual a relação que essa compreensão tem com o texto de
Gênesis capítulos 1 a 11. É o que será abordado no próximo capítulo.
32

II. GÊNESIS CAPÍTULOS 1 A 11 COMO FRUTO DO CONFRONTO ENTRE ISRAEL


E OS MITOS ORIENTAIS ANTIGOS

Conforme a hipótese da presente pesquisa, a leitura do texto de Gênesis


capítulos 1 a 11, feita a partir de uma nova perspectiva, a saber, a partir da utilização
dos recursos da crítica literária e da pesquisa arqueológica, comparando-os às
narrativas míticas orientais antigas, revela que o autor bíblico utilizou-se da
linguagem mítica para subverter a crença politeísta da divinização da criação. Para
entender o confronto entre Israel e os mitos orientais antigos, é preciso compreender
a dinâmica do conhecimento desses mitos por parte de Israel, até a conseqüente
formação do texto bíblico de Gênesis. Esse estudo é de vital importância para a
constatação do caráter da religião israelita, que incide sobre as tradições
mesopotâmicas e cananitas, interagindo com elas e até transformando-as a ponto de
trazer uma mensagem com ênfase teológica. Aduz-se o fato que Israel não cria
mitos para exprimi-los em forma textual, mas que utiliza a linguagem mítica e a
exprime na forma textual :

Se definirmos o mito como “uma narração na qual os personagens principais


são deuses”, não existem mitos no AT por causa da fé no Deus único. Israel,
devido também em grande parte ao papel importante da história na sua
religião, não chegou a criar mitos, pois estes se caracterizam pela
transposição de um acontecimento importante ou que, por uma necessidade
vital, se repete continuamente, em um complexo de peripécias de deuses no
tempo primordial e no final. Mas o AT está cheio da linguagem mitológica, isto
é, de antropomorfismos, dos quais o homem não pode prescindir ao falar de
Deus (SCHREINER, 1978, p. 66).

Bright (1978, p. 113-114) afirma que as narrativas míticas mesopotâmicas


foram trazidas para a Palestina através dos movimentos migratórios da primeira
metade do segundo milênio antes de Cristo, por clãs de pastores seminômades,
dentre os quais estariam aqueles a quem a Bíblia trata como patriarcas. Essas
tradições mesopotâmicas já eram, portanto, conhecidas em Israel no século X antes
de Cristo, uma vez que Israel não teve contatos diretos com os povos
mesopotâmicos entre o seu estabelecimento na Palestina (fase do assentamento
dos grupos tribais no século XIII antes de Cristo) e a elevação da monarquia, a partir
do décimo século antes de Cristo.
33

Já as tradições cananitas, acompanhadas dos mitos de Baal, foram


conhecidas por Israel a partir do assentamento das tribos na Palestina no século XIII
antes de Cristo, e formas cananitas de culto foram aprendidas e praticadas pelos
israelitas (PIXLEY, 1971, p. 37-38). Leve-se ainda em consideração o fato de que os
mitos mesopotâmicos exerceram grande influência sobre a religião cananita,
gerando um sincretismo que foi aprendido e apreendido por Israel. Esse sincretismo
ficou constatado através das descobertas arqueológicas na localidade síria de
Ugarit, em 1929 (FOHRER, 1982b, p. 45-46).

Entretanto, a assimilação que Israel fez dos mitos orientais recebidos não
ocorreu de forma tal que não tenha recebido uma reação contrária e apologética12.
Essa reação não gera, de imediato, o texto de Gênesis capítulos 1 a 11, mas a
tradição oral que, entre o século X e o século VI antes de Cristo13, dá origem aos
primeiros escritos do Gênesis. Para Heidt (1969, p. 7), esses dois séculos
testemunham o resultado da reflexão de duas das correntes literárias do texto de
Gênesis capítulos 1 a 11, a saber, respectivamente, o javista e o sacerdotal.
Contudo, segundo Brueggemann (1982, p. 25), é no século VI antes de Cristo,
durante o exílio babilônico, que Israel, ao deparar-se com a teologia babilônica
expressa nos mitos e nos ritos sumérios, formula (através da linguagem que toma
emprestada) a sua refutação do politeísmo babilônico. Essa formulação ocorre a
partir do momento em que o orgulho nacional e religioso babilônico tenta insistir na
idéia de que os deuses babilônicos são maiores que o Deus de Israel. O autor
bíblico utiliza, nesse momento, o conhecimento das narrativas mesopotâmicas da
criação, da queda e do dilúvio para refutar a crença politeísta babilônica, criando um
solo para a confiança em Deus por parte de Israel, apesar da situação histórica
contrária aos exilados, conclui Brueggemann (1982, p. 25). O texto de Gênesis
capítulos 1 a 11, visto como refutação da teologia politeísta babilônica, torna-se mais
claro ainda quando comparado a outro texto do mesmo período babilônico, o

12
Apesar do termo ter sido usado com mais propriedade na época da Patrística, é utilizado nesta
pesquisa na ênfase da defesa da fé no Deus único de Israel contra as propostas divinizadoras da
criação das quais eram portadores os mitos mesopotâmicos e ugaríticos.
13
O século VI antes de Cristo aparece como época fundamental nessa reflexão, visto que, nesse
período, os judeus tomaram contato direto com os mitos mesopotâmicos através dos ritos
presenciados durante o exílio babilônico.
34

Dêutero-Isaías, em passagens onde há afirmações acerca do Deus único e da


nulidade dos deuses mesopotâmicos14.

Heidt (1969, p. 7) complementa que a religião israelita transformou os mitos


da Mesopotâmia em instrumentos catequéticos a serviço da verdade e da
moralidade, começando essa catequese oral, em tempos anteriores à monarquia.
Sobre essa referência à monarquia, Lapple (1984, p. 22) afirma que os primeiros
escritos bíblicos do livro de Gênesis são resultantes de um interesse maior, a saber,
o de ligar a história de Davi e de Salomão aos ancestrais dos israelitas, e que isso
se deu no momento em que as tribos já estavam devidamente assentadas e
organizadas, por volta do século X antes de Cristo, isto é, no início da monarquia.
Nesse mesmo sentido, Grelot (1982, p. 7) traça a ordem de surgimento das
narrativas do livro de Gênesis de forma contrária àquela que está disposta na
seqüência de Gênesis capítulos 1 a 50, a saber, primeiro, as narrativas das origens
do mundo (1-11), e depois as origens nacionais (12-50). Para ele, algum tempo
depois da sedentarização das tribos israelitas na Palestina, cuja parte final se deu
por volta do século X antes de Cristo, Israel se pôs a questionar sobre seu passado,
sua história, encontrando nas sagas dos patriarcas, tipificados em Abraão, Isac e
Jacó, suas origens nacionais. Tal reflexão culminou no texto de Gênesis capítulos
12 a 50 e atendia a questões do tipo: quem somos nós como povo? e como
chegamos nesta terra?

Depois desse momento, surgiu a questão em torno dos outros povos. Com o
assentamento das tribos israelitas, as diversas tradições mesopotâmicas e cananitas
puseram Israel para pensar em dramas mais existenciais, sendo essa reflexão
concluída no século VI antes de Cristo, na Babilônia. Seriam perguntas do tipo:
quem eu sou dentre os povos? e o que significa o ser humano e sua relação com o
criador? e ainda, por que a vida? e mais, porque esta vida marcada pelo mal, pelo
sofrimento, pela morte? (GRELOT, 1982, p. 8). É justamente dentro desse contexto
que surge, do ponto de vista literário, o conteúdo dos capítulos 1 a 11 de Gênesis,
texto que culmina no capítulo 11 com a genealogia de Abraão, fazendo uma espécie

14
O Dêutero-Isaías compõe-se dos capítulos 40 a 55 do livro de Isaías canônico, tendo sua origem
no período do exílio babilônico, sob a responsabilidade de um profeta anônimo, discípulo do Isaías de
Jerusalém. Alguns textos sobre a nulidade dos deuses: Isaías 40.18,19; 41.2-7; 44.6-20; 45.21; 46.1-
7;
35

de ligação entre a história das origens e a história dos patriarcas, cuja proposta, de
caráter teológico, vincula-se ao propósito divino de salvar o homem:

[…] e toda a narração está preparada para introduzir no cenário da história da


salvação o personagem histórico da salvação, o personagem histórico de
Abraão. No desenvolvimento, os caminhos de Deus até o homem e os do
homem até Deus adquirem uma formulação dramática, servindo como uma
excelente abertura não apenas para o Gênesis, mas também para toda a
Sagrada Escritura (HEIDT, 1969, p. 6).

Se, conforme supracitado, o conteúdo de Gênesis capítulos 1 a 11 é fruto de


uma reflexão que Israel faz em torno de seus próprios dramas existenciais, após um
período de sedimentação das tradições orais maturadas em virtude do confronto
entre os mitos mesopotâmicos e cananitas e a fé em um Deus único, o que se pode
deduzir é que tanto a mentalidade oriental mítica como o uso que Israel fez dos
mitos devem ser levados em consideração na leitura do texto bíblico de Gênesis
capítulos 1 a 11. Assim, Grelot (1982, p. 20), por exemplo, ressalta o rompimento de
Israel com todos os sistemas religiosos de seu tempo, através de Gênesis capítulos
1 a 11, na medida em que faz a opção em torno da adoração única e exclusiva a
Iahweh.

A influência que a mentalidade oriental antiga exerceu sobre Israel, a ponto


de chegar a fazer a sua própria reflexão contrária, é detectada por meio de uma
comparação entre as narrativas míticas mesopotâmicas e ugaríticas e o texto de
Gênesis capítulos 1 a 11. O que mais chama a atenção nos textos comparados são
as semelhanças do seus enredos e dos seus personagens. Contudo, mais dignas de
nota são as diferenças do ponto de vista teológico que separam os textos
comparados. Craigie (1986, p. 107-108), numa comparação entre Gênesis capítulos
1 a 11 e a narrativa mítica de Atra-hasis, ressalta que grandes são as diferenças
entre os dois textos, principalmente no que diz respeito aos detalhes das histórias e
à perspectiva religiosa. Ao mesmo tempo, ele afirma que as semelhanças de estilo
literário são evidentes e perceptíveis, havendo um claro paralelo entre os dois textos.
Conclui que as narrativas da história das origens bíblicas foram formadas a partir
dos gêneros literários orientais antigos.

Poder-se-ia aqui, então, perguntar pelo porquê das semelhanças existentes


entre as duas narrativas. A questão surge devido ao fato de que se poderia pensar
36

que o texto bíblico é mera cópia das narrativas míticas orientais, o que já foi
descartado em função das diferenças aludidas neste capítulo e da comparação entre
os textos, registrada nos próximos capítulos desta dissertação. As semelhanças não
colocam em dúvida a unidade da mensagem bíblica; as diferenças denunciam o fato
de que Israel transforma o material que tomou emprestado dos mitos para integrá-lo
às suas próprias tradições, dando-lhe um novo sentido ético, conforme Martin-
Achard (1970, p. 45). Pensamento semelhante é achado em Sellin-Fohrer (1977, p.
108):

Contudo, os motivos e narrativas míticos não foram assumidos por Israel


sem alterações. Pelo contrário, foram incorporados à fé javista, e
desvinculados do politeísmo e postos em relação com o Deus uno de Israel,
de modo que o mito cosmogônico passou a estar subordinado
evidentemente à fé no Criador. Esta fé, porém, encontra-se vinculada, por
sua vez, às relações existentes entre Deus e o homem, entendidas como o
agir de Deus na vida e nos destinos da humanidade e dos povos. O mito,
portanto, não foi “historicizado”, mas transferido da relação politeísta para a
relação pessoal entre Deus e o homem.

Uma comparação semelhante feita por Bauer (SCHREINER, 1978, p. 121-


122) leva-o a deduzir que o mito percorre toda a Bíblia e que Israel fez uso do
conhecimento dos mitologemas, interagindo com a linguagem de seu tempo e do
seu ambiente oriental, mas sempre de forma nova e criativa. Novamente, ressalta-se
que, enquanto os mitos orientais expressam a crença politeísta com características
atemporais, a narrativa bíblica exalta a adoração de um único Deus com acentuada
historicidade. Por exemplo, nota-se o interesse do autor de Gênesis, capítulos 1 a
11, em localizar o Éden geograficamente, em Gênesis 2.10-14.

Essa apropriação de mitos orientais antigos e extra-bíblicos não se limita ao


texto de Gênesis capítulos 1 a 11. Seguindo o mesmo princípio, Timóteo Carriker
demonstrou, citando uma comparação do Salmo 104 com o hino egípcio ao deus-sol
feita por Othmar Schiling em 1978, que o salmista se apropriou do formato do hino
egípcio, mas mudou a essência da mensagem do mesmo para falar da glória e do
domínio universal de Deus, bem como da mensagem missionária da esperança
messiânica. Para Carriker (2000, p. 121, 123): Enquanto o faraó adora o Sol do
Egito, o Salmo 104 exalta o criador do sol, Iahweh, que está infinitamente acima de
toda a sua criação. A abordagem de Carriker se aproxima do sentido ético que as
37

narrativas de Gênesis capítulos 1 a 11 possuem, na medida em que enfatiza a


finalidade missionária do Salmo 104. Sobre isso, Carriker (2000, p.124) afirma:

Em resumo, Israel utilizou a mesma forma poética das culturas vizinhas, isto
é, o estilo, a estrutura, a rima e, freqüentemente, até mesmo as mesmas
figuras de linguagem a fim de efetuar uma comunicação familiar e
compreensível ao nível popular. Todavia, rejeitou qualquer material que não
coadunava com a fé em Iahweh, e modificou outros materiais para exprimir as
verdades de sua fé.

Entretanto, o fenômeno da apropriação dos mitos por parte de Israel precisa


ser entendido quanto à forma como ocorre. Já se mencionaram no capítulo anterior
alguns dos mitos mesopotâmicos e cananeus, dentre os quais os da criação do
mundo natural em Enuma-Elish e em Baal e o Mar. Percebe-se que os mitos antigos
falavam da criação na forma de um grande combate cósmico com requintes de
extrema violência entre os deuses primordiais, a saber, o deus criador e a deusa-
monstro dos mares. De acordo com Pixley (1971, p. 57-58), Israel tomou
conhecimento dos mitos da criação dos céus e da terra, e então, a partir da fixação
do povo na terra cultivada de Canaã, assimilou esses mitos em seu universo de
crenças, adaptando-os, por exemplo, às tradições da vitória sobre os egípcios na
passagem pelo mar (PIXLEY, 1971, p. 59) e chegando mesmo a repetir essas
histórias em suas celebrações festivas anuais. Fora de Gênesis capítulos 1 a 11
(Salmos 74.12-17, Salmos 89.11, Isaías 30.7 e Jó 26.12-13), o monstro dos mares
recebe outros nomes, a saber, Rahab e Leviatan: não importa seu nome, o monstro
está sempre derrotado, numa afirmação da soberania de Iahweh sobre os deuses
que promoviam o caos.

Essa constatação de Pixley levanta o fato de que Israel, tendo sido exposto
aos mitos orientais antigos, estava também sendo exposto aos valores que esses
mitos defendiam, principalmente àqueles ligados à idolatria e à divinização da
criação. Nesse sentido, Von Rad (1976, p. 130) alerta que os maiores ataques que
Israel recebeu das religiões de divinização da natureza vieram dos cananeus.
Segundo ele, a gravidade dessa crise é conhecida graças aos livros de
Deuteronômio e do profeta Oséias. Contudo, nem Oséias nem Deuteronômio
atacam a divinização da natureza a partir da fé na criação, mas a partir da fé na
promessa de Iahweh. Iahweh havia prometido a terra e trazido seu povo Israel do
Egito para a terra de Canaã, com bênçãos que, em última análise, se caracterizavam
38

pela posse da terra e pelos frutos da terra. Por isso, o texto de Gênesis capítulos 1 a
11 torna-se singular dentro do universo do Antigo Testamento, pois, apesar de ter o
conhecimento de todos os mitos, utiliza a narrativa mítica contra o mito, subvertendo
os valores idólatras que os mitos carregavam no bojo. E isso sem mencionar os
nomes dos deuses ou monstros e sem orientar acerca de ritos alternativos a serem
celebrados nas festas de ano novo. O Gênesis quer falar da soberania e da
singularidade de Iahweh.

Sobre essa singularidade, argumenta Mckenzie (1971, p. 28) que a criação


não é um evento a ser repetido, como nos rituais de ano novo mesopotâmico, pois
tudo o que Deus fez é bom. A vitória de Deus sobre o caos não conhece inimigos
com nomes, pois só Iahweh é Deus. Os outros deuses não são apresentados como
personagens de um combate cósmico na narrativa do Gênesis. O descanso
sabático, além de confirmar a plenitude do trabalho criador de Deus, também nega
qualquer possibilidade de Deus ter que ficar protegendo a sua obra, visto que não há
adversários, o que é uma afirmação da soberania do Deus Único. Sobre essa
exclusão dos deuses e a soberania de Deus, Grelot (1982, p. 21) afirma:

A exclusão dos outros deuses é uma inovação sensacional. Ela supõe uma
verdadeira “desmitização” do universo inteiro: as forças cósmicas voltam ao
que são de fato, criaturas. De repente a situação do homem no universo e
diante de Deus se modifica totalmente, embora, na prática, a adaptação da
mentalidade corrente dos israelitas a essa mudança radical se tenha
processado lentamente e com dificuldade. O homem não é mais joguete e a
vítima eventual entre potências rivais (os “deuses”), em luta pelo governo do
universo.

Deduz-se, então, que não se pode mais ler o texto de Gênesis capítulos 1 a
11 sem levar em consideração a evidente relação entre Israel e os mitos orientais
antigos. Essa relação não ocorreu na forma da dependência desses mitos porque,
segundo Fohrer (1982a, p. 168), o Antigo Testamento nunca acolheu de forma
integral um mito, até porque os israelitas não criaram mitos em sua literatura ou em
seu universo conceptual. Tampouco ocorreu na forma de independência, como
pretende Wilson ( apud HARRISON, 1970, p. 555), porque não é possível considerar
Gênesis capítulos 1 a 11 sem qualquer conexão com os mitos mesopotâmicos e
cananeus. Ocorreu, sim, na forma da interação, porque Israel arrancou o mito do
mundo politeísta e o inseriu na concepção veterotestamentária da relação pessoal
entre Iahweh e o ser humano:
39

O Antigo Testamento não acolheu integralmente, mas só em parte, os mitos


estrangeiros. Contudo, ao mesmo tempo em que eram recebidos, eles
também eram elaborados, para que pudessem se inserir na fé
veterotestamentária. E assim, com base na consciência da senhoria
exclusiva de Deus, os mitos da origem do mundo foram subordinados à fé
da criação: com isso,o aspecto tipicamente mítico é eliminado no momento
em que Deus cria o mundo com sua palavra (FOHRER,1982a, p. 273).

Em Israel, a fé em Deus se defrontou com os mesmos problemas de vida para


os quais a sabedoria oriental procurava soluções. Justamente aqui, a narrativa
mítica defronta-se com o mito dentro do esquema sustentado por Charpentier (1986,
p. 37): É compreensível que a Bíblia tenha usado esta linguagem para exprimir a sua
própria reflexão; mas ela a transformou profundamente. Gênesis capítulos 1 a 11
não é uma apresentação textual abstrata da origem do universo e sim uma narrativa
revestida de um caráter teológico e pastoral para um problema histórico, a própria
situação de Israel como povo exilado (BRUEGGEMANN, 1982, p. 25). Assevera-se,
pois, o sentido ético da narrativa bíblica.

Na mesma linha de Brueggemann, Renckens (1969, p. 26-40) dedica boa


parte de seu texto para mostrar como, no confronto entre Israel e os povos vizinhos,
houve um desenvolvimento de um tipo de fé depurada e ímpar, de características
éticas, confluindo numa espécie de monoteísmo próprio de Israel, servindo-se,
inclusive, das categorias lingüísticas de seu tempo. Para Renckens (1969, p. 33):
Israel fala, portanto, a linguagem do seu tempo. Novamente, percebe-se a
interatividade do autor bíblico em relação aos textos orientais antigos, mas não a sua
dependência ou independência em relação a esses mesmos textos. Resta-nos
comparar mais minuciosamente o texto bíblico de Gênesis capítulos 1 a 11 e as
principais narrativas míticas, o que será feito a partir do próximo capítulo.
40

III. OS MITOS DA CRIAÇÃO DO MUNDO NATURAL: DA CONFUSÃO À ORDEM

Um estudo comparativo das narrativas míticas mesopotâmicas e ugaríticas


revela, como foi abordado no capítulo anterior, semelhanças e diferenças entre estas
e o texto de Gênesis capítulos 1 a 11. Neste capítulo serão examinados alguns
textos do poema Enuma-Elish, Tabuinha 1, linhas 1 a 11, Tabuinha 4, linhas 128 a
140 (Quadro 1), Tabuinha 5, linhas 1-615 (Quadro 1), comparados aos textos de
Gênesis capítulo 1, versos 1 a 8, capítulo 1, versos 14 a 19, e o capítulo 2, versos 4
a 5 (Quadro 2). Neste primeiro momento, verifica-se que o autor do capítulo 1 de
Gênesis, ao refletir sobre a criação do mundo natural, e diante do confronto com os
mitos politeístas, não se desfaz da forma lingüística e dos arquétipos de que era
portador o mito. Contudo, transmite uma mensagem de cunho ético, a saber, o
ensino da não divinização dos elementos do mundo natural, bem como da soberania
de um único Deus diante de sua própria criação.

Para a verificação de como o autor bíblico do primeiro capítulo de Gênesis


utilizou a narrativa mítica contra a mensagem mítica, trabalhar-se-á a comparação
entre as duas narrativas a partir de três concepções bíblicas expostas em Gênesis
capítulo 1, verso 1 até o verso 5 do capítulo 2. Primeiro, a questão da narrativa
bíblica da criação, mas não creatio ex nihilo (pensamento defendido por Agostinho,
segundo o qual o mundo teria sido criado a partir do nada, conforme o termo latino
ex nihilo), e sim como a ordem de Deus sobre o caos; segundo, a questão em torno
do nome ‘elohim atribuído ao Deus de Israel; terceiro, a questão da demitização dos
elementos do mundo natural na narrativa de Gênesis.

15
Tradução feita sob a responsabilidade do autor desta dissertação do texto em inglês de Pritchard
(1969, p. 67).
41

QUADRO 1–OS MITOS DA CRIAÇÃO DO MUNDO QUADRO 2– GÊNESIS 1.1-8, 1.14-19 E 2.4-5
ENUMA-ELISH – TABUINHA 1 – LINHAS 1 A 11 GÊNESIS 1.1-8.
1 – Quando no alto o céu não se nomeava ainda 1-No princípio, Deus criou o céu e a terra.
2 – e embaixo a terra firme não recebera nome, 2-Ora, a terra estava vazia e vaga e as trevas
3 – foi Apsu, o iniciante, que os gerou, cobriam o abismo e um vento de Deus pairava
4 – a causal Tiamat que a todos deu a luz; sobre as águas.
5 – como suas águas se confundiam, 3-Deus disse: “Haja luz” e houve luz.
6 – nenhuma morada divina fora construída, 4-Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a
7 – nenhum canavial tinha ainda aparecido. luz e as trevas.
8 – Quando nenhum dos deuses começara a 5-Deus chamou à luz “dia” e às trevas “noite”.
existir, Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia.
9 – e coisa alguma tivesse recebido nome, 6-Deus disse: “Haja um firmamento no meio das
10 – nenhum destino fora determinado, águas e que ele separe as águas das águas”, e
11 – em seu seio foram então criados. assim se fez.
7-Deus fez o firmamento, que separou as águas
ENUMA-ELISH-TABUINHA 4 –LINHAS 128-140 que estão sob o firmamento das águas que estão
128 – Voltou atrás em direção a Tiamat que ele acima do firmamento, 8-e
havia capturado. Deus chamou ao firmamento “céu”. Houve uma
129 – O Senhor destruiu Tiamat tarde e uma manhã: segundo dia.
130 – e com sua massa inexorável despedaçou-
lhe o crânio; GÊNESIS 1.14-19.
131 – Seccionou as artérias de seu sangue 14-Deus disse: “Que haja luzeiros no firmamento
132 – e deixou que o vento do norte o levasse do céu para separar o dia e a noite; que eles
para lugares desconhecidos. sirvam de sinais, tanto para as festas quanto
133 – Vendo tal gesto, seus pais se alegraram, para os dias e os anos.
rejubilaram; 15-que sejam luzeiros no firmamento do céu
134 – E a ele ofereceram dons e presentes. para iluminar a terra” e assim se fez.
135 – Tendo-se acalmado, o Senhor examinou 16-Deus fez os dois luzeiros maiores: o grande
seu cadáver; luzeiro para governar o dia e o pequeno luzeiro
136 – quer dividir o monstro, formar algo para governar a noite, e as estrelas.
engenhoso; 17-Deus os colocou no firmamento do céu para
137 – ele a cortou pelo meio, como é em dois iluminar a terra,
cortado um peixe na secagem, 18-para governarem o dia e a noite, para
138 – dispôs uma metade como céu, em forma separarem a luz e as trevas, e Deus viu que isso
de abóbada; era bom.
139 – Esticou a pele, instalou guardas, 19-Houve uma tarde e uma manhã: quarto dia.
140-confiou-lhes a missão de não deixar sair
GÊNESIS 2.4-5
suas águas. 4-Essa é a história do céu e da terra, quando
foram criados. No tempo em que Iahweh Deus
fez a terra e o céu,
ENUMA-ELISH – TABUINHA 5 – LINHAS 1-6
5-não havia ainda nenhum arbusto dos campos
1-Ele construiu estações para os grandes
sobre a terra e nenhuma erva dos campos tinha
deuses,
ainda crescido porque Iahweh Deus não tinha
2-estabelecendo suas semelhanças astrais
feito chover sobre a terra e não havia homem
quanto as imagens.
para cultivar o solo.
3-Ele determinou o ano para designar as zonas:
4-Ele levantou três constelações para cada um
dos doze meses.
5-Depois definiu os dias do ano para significar as
imagens celestiais.
6-Ele fundou a estação de Nebiru para
determinar seus arcos celestiais.
42

3.1 – A criação como ordem de Deus sobre o caos

Para se obter o sentido do primeiro capítulo de Gênesis, deve-se passar pela


compreensão que os povos orientais primitivos tinham do mundo que os cercava,
incluindo-se aqui Israel. Com base na comparação entre as narrativas do Enuma-
Elish (Quadro 1) e o capítulo primeiro de Gênesis (Quadro 2), verifica-se que os
povos antigos entendiam o mundo criado a partir do elemento água, sendo a terra
um produto posterior que aparece como um disco que flutua sobre as águas que, de
tão distantes, se tornam em abismos. Esse disco chamado terra é coberto por um
toldo, chamado céu, no qual estão suspensos os astros. Sobre o toldo circulam as
águas superiores que, de tempos em tempos, são derramadas na forma de chuva
através de aberturas chamadas comportas, janelas do céu16. A luz e as trevas são
aceitas como poderes bem diferentes, com lugares próprios de repouso, até o
momento em que devem projetar-se sobre o céu para designar o dia e a noite, cada
um no seu respectivo turno (LAPPLE, 1984, p. 41). Esse resumo do conteúdo geral
de narrativas antigas acerca da criação indica que o texto do Gênesis não é tão
diferente dos demais textos míticos: diferente é a maneira como o autor bíblico
compreendeu e utilizou esse conhecimento, subvertendo o ensino divinizante do
mito.

No Enuma-Elish existe a idéia da criação como resultado de um forte combate


no qual os adversários são a deidade criadora e o inimigo representado pelo caos.
Este não tem forma, ou seja, é o caos por definição, contudo aparece como monstro
de dimensões cósmicas, na forma da deusa Tiamat, na concepção mitológica
mesopotâmica. De acordo com Mckenzie (1971, p. 89), nesse tipo de combate, os
princípios que se opõem são exemplificados através de dualismos, tais como luz e
trevas, ordem e desordem (caos), o bom e o mau. No dualismo, a oposição entre
esses dois elementos é o que sustenta a realidade, e a vida da terra é o resultado
dessa tensão. A tensão entre os dois pólos é normalmente neutra, e bom e mau se
tornam termos inapropriados para descrevê-los. Nenhum dos pólos pode existir sem
o outro.

16
Vide Gênesis 8.2
43

Os antigos contavam a história através de conflitos dos deuses, tais como a


narrativa do conflito entre Marduk e Tiamat. Esses conflitos eram, na verdade,
representações da realidade dos antigos, que espelhavam conflitos sociais através
dos conflitos dos deuses. O mito mesopotâmico da criação espelha a vida das
pessoas em um mundo sustentado pela tensão constante, por exemplo, pelo conflito
entre Marduk e Tiamat. Essa tensão é constatada no fato de que o mito
mesopotâmico da criação estava inserido nas festividades de ano novo, que
reviviam, através de rituais de morte e vida, o ciclo da fertilidade. Tiamat precisa
morrer para que o mundo possa ser criado; da mesma forma, um deus foi morto e
do seu sangue foi criado o ser humano. A criação celebrada no ano novo
mesopotâmico não era um princípio absoluto, mas um evento anual, cíclico e
ritualístico, por isso, repetitivo. Todos os anos a divindade criadora deveria derrotar o
seu adversário, que nunca será totalmente nem finalmente destruído.

Para Grelot (1982, p. 45) a criação bíblica não pode ser concebida dentro de
um campo fechado, no qual se defrontam princípios opostos, bons e maus. O
dualismo proposto nos mitos orientais antigos é excluído na proposta bíblica visto
que tudo o que Deus criou é bom - b/f ( tôbh). Gênesis 1 apresenta uma única

criação, com um único criador, sem interlocutores: todo o ato criador se dá a partir
dele, e é seguido pelo descanso sabático, representando o cessar da atividade
criativa. A criação tem um começo, um fim e um único causador (MCKENZIE, 1980,
p. 23). Nesse sentido, a criação não é um ato a ser repetido ritualisticamente, pois o
verbo ar;B; (bara’) que, traduzido é, ele criou, está expresso no modo perfeito, o que

significa que a ação ou estado que o verbo indica foi plenamente satisfeito ou
completo. Observa-se, assim, que o autor do Gênesis coloca a divindade criadora
fora dos ciclos das forças naturais, não confundindo a criação com o próprio criador
(MCKENZIE, 1971, p. 90).

Gunkel (apud ROBERT e FEUILLET, 1970, p. 311-312) fez uma comparação


entre os mitos babilônicos da criação do mundo e a narrativa do capítulo 1 de
Gênesis, mostrando que o caráter ético do texto bíblico distingue-o do Enuma-Elish.
Argumenta Gunkel que, enquanto os mitos babilônicos são expressos através de
44

uma poesia selvagem e grotesca, titânica e bárbara17, o texto bíblico da criação


reflete a calma solene e sublime de uma prosa sóbria18. No mito mesopotâmico da
criação, os deuses surgem em meio ao curso dos acontecimentos, sendo que, em
Gênesis, capítulo 1, Deus continua o mesmo do início até o fim da criação. Na
narrativa mítica, o ato criador é bem enfatizado, na medida em que Marduk golpeia
a deusa-monstro no decorrer de uma luta dura, construindo o mundo com partes do
seu corpo. Em Gênesis, capítulo 1, a criação não é fruto de uma luta titânica, mas é
simplesmente resultado da palavra criadora de Deus. Deus fala e as coisas
acontecem. Assim, a ênfase bíblica não está no ato criador, mas no seu resultado, a
saber, a obra criada. Na narrativa bíblica, o mundo criado não é o resultado de um
difícil equilíbrio de forças, mas é regido pelo desígnio soberano de Deus.

A partir da constatação de que o criador está apartado do jogo entre as forças


naturais e os deuses por elas representados, poder-se-á entender o verso 2 do
capítulo 1 de Gênesis : “Ora, a terra estava vazia e vaga e as trevas cobriam o
abismo e um vento de Deus pairava sobre as águas”. O texto lembra-nos, por
comparação, que as águas abismais e desordenadas dos mitos mesopotâmicos
eram regidas por Tiamat (águas salgadas) e Apsu, seu marido (águas doces), e
misturadas em um único princípio. A deusa-monstro demonstra seu grande poder
agitando as águas abismais e, com isso, provoca o caos e a desordem. O autor de
Gênesis capítulo 1, no dizer de Mckenzie (1980, p. 28), reescreveu o mito sumério
de tal forma que esvaziou a idéia do combate cósmico. O mundo não poderia ter
surgido de um combate entre deuses, como no poema Enuma Elish, porque na
proposta teológica do autor bíblico não há outra realidade divina que não seja ‘elohim
(Deus). O escriba transforma o mito em um evento singular e único, na medida em
que não menciona os nomes dos deuses, visto que não há inimigos contra a
soberania divina. Por exemplo, Tiamat é a deusa-monstro do caos na narrativa do
Enuma Elish, mas nunca é citada como deusa na narrativa bíblica. Todavia, em

Gênesis 1.2 aparecem os termos Whbow: Whto (tohu wabhohu) que traduzido, é

17
Tradução do texto em espanhol de Robert e Fueillet sob a responsabilidade do autor desta
dissertação.
18
Tradução do texto em espanhol de Robert e Fueillet sob a responsabilidade do autor desta
dissertação. Observe-se ainda a idéia que apesar das diferenças teológicas entre a narrativa bíblica e
os mitos orientais antigos serem mais relevantes que as diferenças formais, estas últimas podem
encaminhar a pesquisa para a idéia da transformação que o autor bíblico fez dos mitos.
45

vazia e vaga, e &v,jw] (wehoshech), que traduzido é e trevas, e

ainda, !/ht] (tehom), que traduzido é abismo. O termo tehom é alusão direta às

águas primordiais já existentes no momento da criação, a partir de que Deus fez a


divisão entre as águas superiores e as águas inferiores. O termo tem sido muito
discutido em função de uma provável associação com o nome Tiamat. Para Allen
(1987, p. 155), não há uma relação de derivação entre os dois termos, mas é
provável que tanto um quanto outro derivem de uma palavra mais antiga. Isso
significa que os deuses são destituídos de personalidade e poder na narrativa bíblica
do Gênesis. Os termos hebraicos supracitados representam emanações do caos e
têm, na mentalidade mítica oriental, a idéia do ambiente de manifestação do
combate cósmico, onde as personalidades nefastas exibem seus poderes de
dominação e medo, sem qualquer indicação nominal dos deuses.

A esse caráter de esvaziamento do sentido mítico ou politeísta das narrativas


mesopotâmicas e ugaríticas, Briend (1990, p. 90) atribui a função de demitização.
Para ele, o primeiro capítulo de Gênesis, em comparação com os mitos orientais
antigos, aponta para a fé israelita de que os monstros marinhos, as grandes
criaturas do mar, nada mais, nada menos são do que criaturas de Deus, sendo,
portanto, submissas ao criador. A criação não é Deus. Apesar do homem israelita
conhecer as narrativas sobre os combates cósmicos e ter figuras paralelas aos
deuses em sua cosmogonia, figuras tais como Leviatã e o Dragão do Mar, ele não
os menciona no texto de Gênesis capítulos 1 a 11, mas sim em outros textos, como
Isaias 27.1, Salmos 74.13-14 e Salmos 104.26.

O que deve ser dissipado pela narrativa da criação bíblica, através do termo
luz, como primeiro evento a existir, é a idéia do combate cósmico, visto não haver
qualquer reação das trevas contra o poder da luz. Essa luz não é proveniente do sol,
da lua, nem de outros luminares celestes; estes só passam a existir, a partir do
quarto dia da criação. A luz nesse texto é a interferência modificadora de Deus,
pondo ordem no caos representado pelas trevas. A reflexão do autor bíblico não se
preocupa com o problema de um caos não criado, existente antes da criação, nem
tampouco com o problema da criação do caos, conforme refletiam os teólogos
escolásticos. A ação criadora de Deus não combina com a desordem do caos. Não é
46

o que existe antes da criação o objeto da reflexão do autor do primeiro capítulo de


Gênesis, mas a idéia de que Deus é livre e soberano para ordenar a sua criação,
frustrando qualquer possibilidade de confusão ou caos. Sobre esse pensamento,
escreve Loretz (1979, p. 95-96):

Pode-se, portanto, afirmar que, em Gn 1,1-2,4a, o conceito da creatio ex


nihilo não encontra nenhuma justificativa e apoio. A absoluta força criadora de
Deus não é aí descrita ainda com as expressões lingüísticas da filosofia
grega. Isto acontece em Gn 1,1-2,4a, segundo as possibilidades de
expressão do mito: superação do caos, vitória da luz sobre a treva,
transformação da terra em espaço vital. O Deus de Israel realiza tudo isto e o
seu povo o chama criador.

O autor bíblico não estava pensando na criação a partir do nada, mas no


estado de tensão entre a luz as trevas, ou seja, no poder de Deus que, com a sua
luz (elemento peculiar à divindade criadora), põe ordem no caos (escuridão). Sendo
assim, o caos não está diretamente relacionado à criação no sentido de vir dela ou
de independer dela (CHILDS, 1960, p. 31). Reforça-se a idéia de que o autor do
Gênesis descarta as lutas primordiais, mas utiliza o conhecimento dessas lutas para
mostrar que Deus é soberano e, debaixo dele, não há caos ou desordem, pois o seu
j''Wr (ruah), sopro ou vento (traduzido pela Septuaginta por espírito), põe ordem

sobre as águas agitadas. Os deuses não são nada diante do criador absoluto. Sua
criação não é resultado de tramas entre os deuses, mas é ordenada no primeiro dia,
no segundo dia, no terceiro dia, no quarto dia, no quinto dia, no sexto dia, com a
constatação de que o que tinha feito era bom, chegando, no final, à constatação de
que tudo era muito bom. Dessa forma, os seis dias da criação representam o modo
de ação de Deus, criando e transformando a partir da confusão reinante no caos
para a ordem própria de sua personalidade (KIDNER, 1979, p. 43), confluindo assim
para o descanso sabático, momento em que o ser criado presta culto ao criador
(WESTERMANN, 1987, p. 80-81).

3.2 – O nome ‘elohim

A criação bíblica não possui deuses, mas apenas um Deus, chamado !yhiloa>
(‘elohim), traduzido por Deus no capítulo 1 de Gênesis. O termo ‘elohim é plural em
sua forma ordinária, ou seja, deuses. Em função disso, busca-se aqui estabelecer
47

uma relação do nome com os mitos antigos, visto que em Ugarit a divindade criadora
é El. Albright (1942, p. 213) afirma que o uso pluralizado vem da tendência do
antigo oriente de chamar os seus deuses pelo nome plural, como por exemplo, a
variação de Anat para Anatot, e de Ashtart para Ashtorot. Poder-se-ia então pensar
que o termo é uma cópia do termo ugarítico El, contudo, conforme pesquisas feitas
por Oehler (1883, p. 88), ‘elohim ocorre apenas no hebraico e em nenhuma outra
língua semítica. Sobre essa tendência de pluralização das divindades no mundo
oriental antigo, defendida por Albright, supracitado, também argumenta Colunga
(1967, p. 48) :

Nos documentos extra-bíblicos encontramos exemplos deste plural de


intensidade aplicado a uma pessoa singular, e precisamente no vocábulo
equivalente a Elohim. Assim, nas cartas de Tell Amarna se designa em seu
cabeçalho ao faraó Amenofis IV Akenaton com o título de Ilâni (deuses, forma
plural de Ilû ) […] Não há, pois, a mínima alusão a um suposto politeísmo
19
latente, posto que está superado na mente do autor sagrado .

Permanece então o senso de que o termo seria, na verdade, uma pluralização


de Deus, não no sentido politeísta, mas para efeito contrário, ou seja, monoteísta,
visto que ‘elohim, conforme a referência já citada de Albright, se refere à majestade
do Deus criador. É como se o autor bíblico do primeiro capítulo de Gênesis quisesse
dizer aos seus ouvintes que o ‘elohim (Deus) de Israel vale por todos os ‘elohim
(deuses) dos povos, sem mencionar explicitamente essa crença, visto que o capítulo
1 de Gênesis exclui os deuses da criação.

A utilização de ‘elohim no primeiro capítulo de Gênesis revela que o autor


bíblico não estava alienado nem assumiu postura independente das tradições
religiosas, ainda que politeístas, dos povos cananeus. Ainda que isso não venha a
significar que o termo seja um resquício de uma época em que os israelitas tenham
sido henoteístas20 ou, até mesmo, politeístas (VAN DEN BORN, 1977, p. 445) e, por
isso, dependentes diretos de uma tradição cananita, pode-se aludir ao pensamento
de que Israel interagiu com os mitos orientais antigos a ponto de transformá-los,
dando à criação um sentido ético, esvaziando agora os ‘elohim (deuses) da

19
Tradução do texto em espanhol sob a responsabilidade do autor.
20
O Henoteísmo é a crença na existência de diversos deuses, mas a adoração exclusiva de um único
Deus. Alguns textos bíblicos pressupõem essa crença, como em Salmos 82.1; 86.8. O Monoteísmo
absoluto exclui a possibilidade de existência de outros deuses, mantendo a adoração de um único
Deus.
48

divindade que lhes era atribuída, ensinando através do texto bíblico sobre um único
‘elohim (Deus) que está sobre a sua criação. Quando o escritor bíblico quer distinguir
Deus de deuses, ele o faz através da concordância verbal (VAN DEN BORN, 1977,
p. 445). Cite-se como exemplo o texto de Gênesis 1.1, onde se vê a seguinte

construção em hebraico : !yhiloa> ar;B; tyciareB] (bere’shit bara’ ‘elohim) que,

traduzido é: em um princípio Deus criou. Percebe-se que o substantivo ‘elohim está


na forma plural, mas o verbo que com ele concorda, na forma singular, ou seja, criou
e não criaram (ROWLEY, 1977, p. 52).

3.3 - A demitização dos elementos do mundo natural

A narrativa mítica apresenta os elementos da natureza como divindades. Isto


está evidenciado nas linhas 137 a 140 da Tabuinha 4 do Enuma-Elish (Quadro 1).
Ali a abóbada celeste foi criada da carcaça de Tiamat. Na Tabuinha 5, linhas 1-6
(Quadro 1), percebe-se que ocorre o mesmo com a criação dos astros (MCKENZIE,
1971, p. 88-89). Entretanto, uma outra narrativa, o mito ugarítico do Nascimento dos
Deuses, merece uma ponte de comparação. De acordo com Pixley (1971, p. 57), os
mitos ugaríticos e babilônicos são variantes de um mesmo tronco semítico. Os
acádios, que formavam a maior parte da população mesopotâmica, chegaram na
Mesopotâmia por volta do terceiro milênio antes de Cristo, vindos do mesmo deserto
arábico do qual eram provenientes os cananeus. O mito ugarítico chega a nomear os
deuses-astros, filhos do deus El. Eles são, respectivamente, Shamash (divindade
solar), Sin (divindade lunar), Shahar (a estrela d’alva) e Shalim (a estrela
vespertina). Sendo deuses, os astros deviam ser adorados, visto que propiciavam a
força e a fecundidade (ELIADE, 1993, p. 99). Contudo, o texto de Gênesis 1.14-19,
ao falar da criação dos astros, não cita os seus nomes como se fossem deuses e,
até mesmo, não os denomina de sol e lua. Na versão bíblica da criação os astros
são apenas luzeiros e estão na abóbada celeste, não para serem adorados, mas
simplesmente para fazerem separação entre o dia e a noite, marcando os dias e as
estações do ano. Sua utilização é para o calendário e não a astrologia. Se Deus não
os chama pelos seus nomes, isso representa um golpe do escritor do texto do
Gênesis nos cultos cananeus. Heidt (1969, p. 23) apresenta uma discussão em torno
49

da nomeação e da não nomeação dos astros maiores. Em seu argumento, os corpos


celestes nada têm de superioridade em relação ao resto da criação.

Essa concepção dos astros esvaziados do sentido mítico conduz o israelita a


um tipo de fé historicizada, ou seja, o encontro com Deus não se dá nos mitos
atemporais, mas na história da criação. Nos mitos ugaríticos, o deus El é conhecido
como abu shanima, ou seja, pai dos anos (HARRISON, 1970, p. 363), o que é um
indício da mitologização do tempo. Isso é o que está implícito em Gênesis 2.4a, na

utilização do termo t/dl]/t (toledot), traduzido por história, origem, descendência

ou ainda genealogia. A criação é demitizada a partir da concepção do começo da


história nesse verso. A criação não é uma seqüência de gerações divinas, como nos
mitos mesopotâmicos e cananeus. Von Rad (1973, p. 146-147), escrevendo sobre a
história da salvação acentua o caráter ético do texto de Gênesis 2.4a:

A concepção da criação teve, pois, conseqüências de grande alcance. A


criação é uma ação histórica de Javé, que se inscreve no tempo. Inaugura-
se realmente com ela uma nova perspectiva da história, pois se situa de
fato, como primeira ação de Javé, no começo longínquo. Mas não fica
isolada porque a seguem outras ações. A narrativa sacerdotal dá especial
relevo a esta intercalação no tempo, introduzindo-a no esquema das
“Toledot”, o grande “andaime genealógico” de P (Gn.2.4s), e conferindo-lhe
assim um ritmo temporal que se pode hoje determinar. E se a história da
criação faz parte agora do tempo, é que deixou definitivamente de ser um
mito, uma revelação intemporal manifestada no ciclo da natureza.

Conclui-se assim que o autor de Gênesis 1.1-25 e 2.4-5 estava consciente da


realidade que os mitos mesopotâmicos e ugaríticos expressavam para o seu tempo.
Entretanto, ele não os reproduziu no texto bíblico, a não ser na maneira como os
utilizou. Ele esvaziou os mitos do politeísmo embutido no papel atribuído aos
deuses, narrando a criação a partir da palavra de Deus num ambiente onde o caos é
submisso à criação de Deus, sendo ordenado pelo criador. Todos os elementos do
mundo natural que nos mitos orientais antigos aparecem dotados de personalidade
divina são demitizados, para que Israel, diante da ameaça de assimilação dos cultos
da natureza, possa reformular sua fé de que a criação não é igual a Deus, antes é
submissa e dependente dele. Gênesis anuncia, assim, que a criação não é Deus, e
o texto bíblico constitui-se, em última análise, numa exortação a Israel para que evite
as propostas divinizadoras dos cultos cananeus e mesopotâmicos.
50

Se os elementos do mundo natural não são iguais a Deus, da mesma forma


não deve ser considerado o ser humano. A luta contra a divinização da criação do
mundo natural entrevista no texto de Gênesis 1.1-25 e 2.4-5, repete-se no relato da
criação dos seres humanos, na ênfase de uma mensagem de caráter ético,
buscando tirar o ser humano de sua pretensa condição de ser divinizado para a
condição de ser autorizado por Deus à vida, tema a ser tratado no próximo capítulo.
51

IV. OS MITOS DA CRIAÇÃO DO SER HUMANO: DO SER DIVINIZADO AO SER


AUTORIZADO

No capítulo anterior, foi trabalhada a idéia da divinização da criação dos


elementos naturais através das antigas narrativas míticas do Oriente Próximo, bem
como a maneira como o autor bíblico de Gênesis capítulos 1.1-25 e 2.4-5 esvaziou
esse sentido divinizante, apresentando um monoteísmo de face ética. Essa proposta
divinizante continua ao longo do texto de Gênesis 1.26-31 e 2.4b-25 dentro da
perspectiva da criação do ser humano. Isso pode ser constatado na comparação do
texto bíblico supracitado com as narrativas míticas mesopotâmicas dispostas em
quadros a seguir. Destacam-se as semelhanças das narrativas visto que, por
exemplo, nos mitos mesopotâmicos o barro molhado é um dos componentes da
formação do ser humano e, no texto de Gênesis, fala-se na formação do ser humano
a partir da modelagem do pó da terra.

A comparação dos textos mostra as diferenças entre as narrativas, o que


denuncia a capacidade transformadora da tradição bíblica e demonstra a intenção
do autor dessa perícope de Gênesis em trazer uma mensagem específica ao seu
público alvo. Assim, a forma de dar vida é diferente em uma e outra narrativa: nos
mitos mesopotâmicos de Atra-hasis e Enuma-Elish o princípio de vida é o sangue de
um deus imolado que, misturado à argila, vivifica os seres humanos; no texto bíblico,
é o hálito de vida concedido por Deus que muda a situação do ser humano de um
boneco de barro para uma alma vivente. Esse hálito ou fôlego não o iguala a Deus,
visto que lhe é concedido por empréstimo. Ao morrer o ser humano, Deus pede de
volta esse fôlego pois o homem é autorizado à vida por Deus até o limite da
soberania divina: o ser humano não tem o sangue divino, mas é pó e ao pó voltará21.

O confronto entre as semelhanças e diferenças nas duas tradições mostra


assim que o autor bíblico utilizou a narrativa mítica contra o mito, ou seja, serviu-se
do conhecimento dos mitos mesopotâmicos sobre a criação dos seres humanos
para transmitir aos israelitas uma mensagem que esvazia a divinização do homem,
algo que se constitui no caráter ético da narrativa bíblica. Para uma melhor

21
Gênesis 3.19; Jó 34.14-15; Salmos 104.29-30.
52

demonstração serão expostas em quadros as narrativas de Atra-hasis22, Tabuinha 1,


linhas 1-6, 20-21, 34-44, 182-191 (Quadro 3), linhas 208-213, 223-241, Enuma-Elish,
Tabuinha 4, linhas 29-36 (Quadro 5)), e de Gênesis capítulo 1, versos 26-31 e
capítulo 2, versos 4 b–25 (Quadro 4), capítulo 2, versos 9-25 (Quadro 6).

QUADRO 3 – MITOS DA CRIAÇÃO DO HOMEM I QUADRO 4 – GÊNESIS 1.26-31 E 2.4b-8


ATRA-HASIS -TABUINHA 1 – LINHAS 1-6 GÊNESIS 1.26-31
1-Quando os deuses tinham o papel do homem, 26-Deus disse: “Façamos o homem à nossa
2-carregavam o cesto; imagem, como nossa semelhança e que eles
3-o cesto dos deuses era grande dominem sobre os peixes do mar, as aves do
4-e a tarefa, pesada. céu, os animais domésticos, todas as feras e
5-Os grandes Anunnaku, o grupo dos sete, todos os répteis que rastejam sobre a terra”.
6-queriam encarregar os Igigu da tarefa. 27-Deus criou o homem à sua imagem, à
imagem de Deus ele o criou, homem e mulher
ATRA-HASIS- TABUINHA 1– LINHAS 20-21 e ele os criou.
34-44 28-Deus os abençoou e lhes disse: “Sede
20-impuseram a tarefa aos Igigu. fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e
submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as
21-Os deuses puseram-se a cavar cursos de
aves do céu e todos os animais que rastejam
água.
sobre a terra.”
34-Eles contaram os anos de servidão,
29-Deus disse: “Eu vos dou todas as ervas que
35-O grande cerrado de juncos.
dão semente, que estão sobre toda a superfície
36-Eles contaram os anos de servidão;
da terra, e todas as árvores que dão frutos que
37-Os Igigu, durante 2500 anos,
dão semente: isso será vosso alimento.
38-suportaram noite e dia um excessivo e
30-A todas as feras, a todas as aves do céu, a
pesado trabalho.
tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado
39-Eles se queixam e acusam,
de vida, eu dou como alimento toda a verdura
40-murmuram contra a escavação:
das plantas” e assim se fez.
41-“Vamos procurar nosso vigilante, o arauto,
31-Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito
42-que ele nos descarregue de nossa pesada
bom. Houve uma tarde e uma manhã: sexto dia.
tarefa;
43-o Senhor, o conselheiro dos deuses, o
GÊNESIS 2.4b-8
destemido.
4b-No tempo em que Iahweh Deus fez a terra e o
44-Vinde, retiremo-lo do seu trono.
céu,
5-não havia ainda nenhum arbusto dos campos
ATRA-HASIS-TABUINHA 1- LINHAS 182-191
sobre a terra e nenhuma erva dos campos tinha
182-Ea abriu a boca
ainda crescido, porque Iahweh Deus não tinha
183-e dirigiu-se aos deuses seus irmãos:
feito chover sobre a terra e não havia homem
184-“De que nós os acusaríamos?
para cultivar o solo.
185-Pesado é seu trabalho, grande o seu
6-Entretanto, um manancial subia da terra e
tormento.
regava toda a superfície do solo.
186-Cada dia a terra…
7-Então Iahweh Deus modelou o homem com a
187-o sinal de alarme…
argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito
188-Há…
de vida e o homem se tornou um ser vivente.
189-“Ela lá está, Belet-ili, a matriz;
8-Iahweh Deus plantou um jardim em Éden, no
190-que a matriz venha a parir, que ela modele
oriente, e aí colocou o homem que modelara.
191-e que o homem carregue o cesto do deus!”

22
Os textos de Atra-hasis pontuados por reticências referem-se a partes avariadas da tabuinha.
53

QUADRO 5- MITOS DA CRIAÇÃO DO HOMEM II QUADRO 6 – GÊNESIS 2.9-25


ATRA-HASIS- TABUINHA 1 – LINHAS 208-213. GÊNESIS 2.9-25
208-Que se abata um determinado deus 9-Iahweh Deus fez crescer do solo toda espécie
209-e que os deuses se purifiquem pela imersão. de árvores formosas de ver e boas de comer, e a
210-À sua carne e ao seu sangue árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do
211-Que Nintu Misture a argila conhecimento do bem e do mal.
212-que parte do deus e parte do homem sejam 10-Um rio saía de Éden para regar o jardim e de
misturadas lá se dividia formando quatro braços.
213-juntos na argila! 11-O primeiro chama-se Fison; rodeia toda a
terra de Hevila, onde há ouro;
ATRA-HASIS- TABUINHA 1- LINHAS 223-241. 12-é puro o ouo dessa terra na qual se
223-Wê, um deus que possuía a razão encontram o bdélio e a pedra de ônix.
224-Abateram em sua assembléia 13-O segundo rio chama-se Geon: rodeia toda a
225-À sua carne e ao seu sangue terra de Cuch.
226-Nintu misturou a argila 14-O terceiro rio se chama Tigre: corre pelo
227…para sempre! oriente da Assíria. O quarto rio é o Eufrates.
228-Da carne do deus houve um espírito; 15-Iahweh Deus tomou o homem e o colocou no
229-deu sinal de si aos vivos jardim de Éden para o cultivar e o guardar.
230-e, para impedir o esquecimento, surgiu um 16-E Iahweh Deus deu ao homem este
espírito; mandamento: “Podes comer de todas as árvores
231-após misturar esta argila, do jardim.
232-ela chamou os Anunna, os grandes deuses. 17-Mas da árvore do conhecimento do bem e do
233-os Igigu, os grandes deuses, mal não comerás, porque no dia em que dela
234-cuspiram na argila. comeres terás que morrer.”
235-Mami abriu a boca 18-Iahweh Deus disse: “Não é bom que o
236-e dirigiu-se aos grandes deuses: homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe
237-”Vós me ordenastes uma obra corresponda.”
238- e eu a cumpri; 19-Iahweh Deus modelou então, do solo, todas
239-vós abatestes um deus com sua razão; as feras selvagens e todas as aves do céu e as
240-retirei vosso pesado trabalho, conduziu ao homem para ver como ele as
241-impus ao homem vosso cesto”. chamaria: cada qual devia levar o nome que o
homem lhe desse.
ENUMA-ELISH- TABUINHA 4- LINHAS 29-36. 20-O homem deu nomes a todos os animais, às
29-“Foi Kingu quem provocou o combate, aves do céu e a todas as feras selvagens, mas,
30-que revoltou Tiamat e organiza a batalha!” para o homem, não encontrou a auxiliar que lhe
31-Tendo-o capturado, trouxeram-no à presença correspondesse.
de Ea; 21-Então Iahweh Deus fez cair um torpor sobre o
32-impuseram-lhe o castigo e lhe cortaram o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas
sangue. costelas e fez crescer carne em seu lugar.
33-de seu sangue, ele formou a humanidade, 22-Depois, da costela que tirara do homem,
34-ele lhe impôs a tarefa dos deuses e liberou os Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao
deuses. homem.
35-Após Ea, o sábio, ter formado a humanidade, 23-Então o homem exclamou: “Esta, sim, é osso
36-Ela lhe impôs a tarefa dos deuses. de meus ossos e carne de minha carne! Ela será
chamada ‘mulher’, porque foi tirada do homem!”
24-Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe,
se une à sua mulher, e eles se tornam uma só
carne.
25-Ora, os dois estavam nus, o homem e sua
mulher, e não se envergonhavam.

Para efeito de demonstração do aspecto do ser humano criado à imagem e


semelhança de Deus, e da criação da mulher, transcrevem-se também partes da
Tabuinha 1 da Epopéia de Gilgamesh, Coluna 2, linhas 76-94 (Quadro 7), Coluna 4,
54

linhas 6-7 e 19-34. As partes23 transcritas a seguir mostram como foi a formação de
Enkidu, criatura animal, modelado do barro para lutar contra o herói Gilgamesh,
tornando-se, mais tarde, seu amigo.

QUADRO 7 – A CRIAÇÃO DE ENKIDU


EPOPÉIA DE GILGAMESH – TABUINHA 1 – COLUNA 2 – LINHAS 76-94
76-Eles chamaram Aruru, a Grande:
77-“Tu, Aruru, tu formaste […];
78-agora, forma o que ele diz.
79-Que […] seja igual ao ardor do seu coração;
80-que se comparem sem cessar um ao outro e que Uruk fique em paz!”
81-Quando Aruru ouviu o que foi dito,
82-ela concebeu em seu coração o que Anu dizia.
83-Aruru lavou as mãos,
84-tomou um punhado de argila e atirou-a na estepe;
85-[…] ela formou Enkidu, o guerreiro,
86-progenitura do silêncio noturno, aprimoramento de Ninurta.
87-Ele tem o corpo coberto de pêlos,
88-é provido de uma cabeleira igual à de uma mulher;
89-crescem eriçados como cereais.
90-Ele não conhece pessoas nem países.
91-Está vestido com um traje semelhante ao de Shakkan ;
92-com as gazelas ele come a relva.
93-com o gado ele caminha em direção à fonte.
94-com os animais apraz-lhe estar na água.

QUADRO 8 - A DIVINIZAÇÃO DE ENKIDU


EPOPÉIA DE GILGAMESH – TABUINHA 1 – COLUNA 4 – LINHAS 6-7 E 19 A 34
6-A prostituta o viu, lullu,
7-o jovem devastador do meio da estepe;

19-Ela lhe fez, ao lullu, o ato da mulher.


20-seu ardor sexual exprimiu-se nela.
21-Seis dias e sete noites Enkidu acoplou-se com a prostituta.
22-Quando se saciou de seus encantos,
23-voltou-se para seu rebanho;
24-quando as gazelas o viram, retiraram-se às pressas.
25-O gado da estepe fugiu de sua presença.
26-Enkidu quis arremessar seu corpo sem defeito,
27-mas seus joelhos fixaram-se no lugar porque seu rebanho se afastara;
28-diminuído, Enkidu não podia correr como antes;
29-mas desenvolveu-se e se tornou repleto de inteligência.
30-Voltou-se…e sentou-se aos pés da prostituta.
31-Então fixou o olhar na face da prostituta.
32-E aguçou os ouvidos à prostituta que falava.
33-A prostituta a ele, a Enkidu, disse:
34-“És sábio agora, Enkidu, como um deus…”

23
Os textos apresentados por colchetes e reticências referem-se a partes avariadas da tabuinha.
55

Do que se percebe da leitura das linhas 239-241 de Atra-hasis (Quadro 5) e


das linhas 33-36 do Enuma-Elish (Quadro 5), o ser humano surgiu do capricho dos
deuses. Cansados de trabalhar, os deuses superiores transferem a responsabilidade
do arado aos deuses inferiores que, por sua vez, reclamam do pesado encargo que
sobre eles é posto. Rebelam-se, assim, contra os deuses superiores, os quais criam
o homem a partir do sangue de um deus inferior morto, impondo-lhe o trabalho
escravo. Nesse caso, os seres humanos recebem a criação como fardo dos deuses,
explicando-se assim, pelo arquétipo babilônico, o drama da escravidão dos povos
antigos. Em contrapartida, Gênesis 2.15 (Quadro 6) insiste que o trabalho de cultivar
e guardar o jardim criado por Deus é dado ao ser humano, não como um encargo
devido ao cansaço divino, mas como um ato de criação, e um padrão divino a ser
seguido pelas suas criaturas humanas. O trabalho também é um ato de Deus,
suspenso apenas pelo descanso sabático; este modelo deverá ser seguido pelas
suas criaturas humanas.

À luz dessa comparação, verifica-se, a partir do texto de Gênesis, como o


autor bíblico utilizou as narrativas míticas (LORETZ, 1979, p. 73) com um sentido
anti-mítico, a ponto de subverter o ensino divinizante e politeísta do mito, dando à
criação bíblica do ser humano um caráter ético. Existem três pontes de comparação
entre as narrativas extra-bíblicas e o texto de Gênesis que devem ser consideradas
para efeito de constatação do sentido ético que a tradição bíblica imprimiu ao jeito
mítico de escrever, conforme verificado a seguir. Primeiramente, será abordada a
questão do ser humano divinizado e o ser humano autorizado; em segundo lugar, o
sentido da criação do ser humano à imagem e semelhança de Deus; em terceiro
lugar, o sentido ético da sexualidade humana como fruto da criação. Conforme
explicado na introdução deste trabalho, o mesmo não se prenderá à análise dos
textos de Gênesis capítulos 1 a 11 a partir das descobertas da crítica literária bíblica,
quanto à ênfase teológica das diferentes tradições, uma, a do escritor sacerdotal na
perícope de Gênesis 1.1 a 2.4a, e outra, a do escritor javista a partir de Gênesis
2.4b, ambas sobre o relato da criação dos seres humanos. Não obstante as
diferenças textuais internas24, permanece a idéia de que o autor bíblico imprimiu um
sentido ético através do uso da linguagem mítica.

24
No escrito sacerdotal, em Gênesis 1.27, Deus cria, de uma só vez, o homem e a mulher; no escrito
javista, em Gênesis 2.7,22, homem e mulher são criados em turnos diferentes.
56

4.1 – O ser humano divinizado e o sentido ético do ser humano autorizado

Para entender a terminologia ser humano divinizado e ser humano autorizado,


é necessário fazer uma comparação entre as linhas 208-213 e 223-229 de Atra-
hasis (Quadro 5) e Gênesis 2.6-7 (Quadro 6). Primeiro, tanto nos mitos
mesopotâmicos quanto no texto do Gênesis, o homem é formado do barro molhado,
tendo, na narrativa mítica, um novo elemento fundamental: o homem é formado pelo
sangue dos deuses, o que indica a sua divinização, conforme argumenta Blocher
(1984, p. 82). Enquanto na narrativa mítica o homem é um deus, na narrativa bíblica
o homem não possui o sangue dos deuses, mas o que ele tem de Deus é o
!yiYj'' tm''v]nI (nish’mat hayyyim) que, traduzido é, fôlego de vidas. Isto lhe permite ser
uma hY:j' vp,n<= (nephesh hayyah), traduzido por ser vivente, ou mais literalmente,

alma vivente.

Wolff (1975, p. 21-41) faz um estudo antropológico do termo vp,n< (nephesh),


e mostra a sua relação direta com o hm;v;n] (neshamah), usado com freqüência junto
de j''Wr (ruah), sopro, vento, espírito. Esse fôlego ou sopro é aquilo que é de Deus e
que é emprestado ao ser humano, mas não o habilita a ser igual a Deus, pois o
mesmo Deus o reclama de volta quando da morte do ser humano. Isto é o que está
evidente na afirmação do personagem Eliú em Jó 34.14-15. Se levasse de novo a si
o seu espírito, se concentrasse em si o seu sopro, expiraria toda a carne no mesmo
instante, e o homem voltaria a ser pó. Assim, a alma significa o ser humano
necessitado de Deus, do Deus que o autoriza a viver e a ser. Dessa forma, o autor
bíblico de Gênesis capítulos 1 a 11 retira o ser humano da posição proposta nos
mitos, a de ser divinizado, para a situação ética, a de ser autorizado pelo criador
para ser limitado pela própria soberania divina. O ser humano não tem o sangue dos
deuses, por isso, não é igual a Deus.
57

4.2 – O sentido ético do ser humano como imagem e semelhança de Deus

Foi demonstrado no item 4.1 que as narrativas mesopotâmicas da criação dos


seres humanos tinham a proposta de divinização dos seres humanos, visto que
estes possuíam o sangue dos deuses. A idéia bíblica do ser humano como imagem
e semelhança de Deus, em Gênesis 1.26, deve ser entendida tendo como pano de
fundo o ambiente mítico de identificação do ser humano com a divindade criadora.

Os termos WnteWmd]Ki Wnmel]x'B] (betsalemenu kidemutenu), traduzidos por à nossa

imagem, como nossa semelhança, são dispostos no texto na forma de paralelismo


hebraico e significam uma mesma coisa, ou seja, imagem é também semelhança
(HEIDT, 1969, p. 27).

O termo !l,x, (tselem), traduzido por imagem, é também atribuído a qualquer

representação de uma realidade visível ou invisível, como, por exemplo, ídolos


(Números 33.52), pinturas (Ezequiel 23.14) ou ainda, designa as cópias em ouro dos
ratos e inchaços que afligiam os filisteus, conforme I Samuel 6.5,11 (HARRIS, 1998,
p. 1288). O paralelismo repete-se em Gênesis 5.3 quando o texto diz: Quando Adão
completou cento e trinta anos, gerou um filho à sua semelhança, como sua imagem,
e lhe deu o nome de Set. Há uma semelhança física entre Adão e seu filho, como
decorrência da semelhança entre Deus e o próprio Adão. Entretanto, a relação entre
um e outro pára nesse ponto, pois Adão não é Set e Set não é Adão; Adão é
semelhante a Set e Set semelhante a Adão. Da mesma forma, a relação de
semelhança entre o criador e a sua criatura humana vem, não para confundir os
seres humanos com o seu criador, mas para distingui-los um do outro, face ao
ambiente de divinização da criação de que o mito era portador. A imagem de Deus é
transmitida às sucessivas gerações, assim como a imagem de um pai é transmitida
a seu filho, o que significa que todas as pessoas continuam portando a imagem
divina (SMITH, 2001, p. 223).

A natureza dessa imagem e semelhança entre Deus e o ser humano é


percebida a partir de um exame textual da Tabuinha 1 da Epopéia de Gilgamesh,
Coluna 2, linhas 76-94 (Quadro 7) e Coluna 4, linhas 6-7 e 19-29 (Quadro 8),
comparadas ao texto de Gênesis 1.26-31 (Quadro 4). As narrativas míticas
58

descrevem a criação de Enkidu, modelado a partir da argila pelos deuses, para lutar
contra Gilgamesh e seu instinto tirânico. Nota-se que Enkidu tem o aspecto de um
animal selvagem (Quadro 7, linha 91, da expressão Shakkan, deus do gado). Sobre
essa relação entre Enkidu e Gilgamesh, comenta Barucq (1992, p. 168) :

Quando a obra começa, Gilgamesh é apresentado como altaneiro de braço


tirânico, para o que os deuses suscitam um rival capaz de vencê-lo. Para
triunfar do rei corrompido da cidade, eles criam de uma porção de argila um
selvagem hirsuto, o qual vive a vida simples da natureza no meio dos
animais selvagens. O destino de Gilgamesh, sob muitos aspectos, é então
semelhante ao dos primeiros homens. Estes tinham em si algo de divino,
graças ao sacrifício do deus Weila. De modo análogo, Gilgamesh era deus
em dois terços, e homem em um terço, uma vez que era filho da deusa
Ninzhum. Enkidu representava, para Gilgamesh, o barulhento, uma
tentativa de destrui-lo, semelhante à peste e à fome que se abateram sobre
os primeiros homens, segundo o poema de Atra-hasis.

A narrativa mítica apresenta o ser humano esvaziado de seu aspecto


unicamente humano. Ora ele é divinizado, como Gilgamesh, que tem dois terços de
divindade, ora é animalizado, como Enkidu, que é criado à semelhança de um
selvagem peludo. A condição humana é atribuída a Enkidu com a perda de sua
agilidade, mas com o ganho de inteligência, quando de sua união sexual com a
prostituta. Isso é o que se pode constatar na leitura do texto constante no Quadro 8.

A narrativa bíblica também apresenta, em Gênesis 2.19, os animais como


modelados a partir do barro, como os seres humanos o foram. Em Gênesis 1.22, os
animais recebem a mesma bênção divina de fecundidade que os seres humanos
recebem em Gênesis 1.28. Mas, na narrativa bíblica, o ser humano não pode ser
assemelhado aos animais. Pelo contrário, ao procurar uma outra pessoa que lhe
seja idônea, o homem não a encontra entre os quadrúpedes (Gênesis 2.18-20,
Quadro 6), e até recebe de Deus a orientação para dominar os animais.

Para Loretz (1919, p. 73), existe um contraste moral entre as narrativas


míticas mesopotâmicas e o texto de Gênesis. No mito de Atra-hasis, linhas 190-191
(Quadro 5), o ser humano recebe a mesma posição em relação aos deuses
superiores e inferiores que os animais irracionais recebem em relação ao ser
humano na narrativa bíblica. Formado no último dia da criação (Gênesis 1.26,
Quadro 4), o ser humano assume uma posição de destaque, não como escravo,
mas como administrador e dominador, visto que recebe o jardim para cultivar e
59

guardar (Gênesis 2.15, Quadro 6). O ser humano deve dominar (Gênesis 1.26) os
animais e deve atribuir-lhes nomes (Gênesis 2.19-20, Quadro 6), determinando
assim a extensão da vida dos animais irracionais (DATTLER, 1984, p. 48). O verbo
utilizado para dominar, hd;r; (radah) possui o sentido de governar pisando, como o

governo do tirano, conforme análise de White (apud HARRIS, 1998, p. 1402). Isso
pode revelar um papel de força atribuído ao homem na criação, um papel de
dominador em relação ao animais inferiores, e não de dominado ou escravizado
pelos deuses. Segundo Mckenzie (1971, p. 104-105), é nesse sentido que o homem
foi feito à imagem e semelhança de Deus. O ser humano não é Deus, nem animal
irracional. Ele é simplesmente ser humano.

O sentido ético do ser humano enquanto imagem e semelhança de Deus em


Gênesis 1.26-28 tem um paralelo na pergunta do salmista, no Salmo 8.5: que é o
mortal, para dele te lembrares. E um filho de Adão, que venhas visitá-lo? A resposta
está contida nos versos 6 e 7: E o fizeste pouco menor do que um deus, coroando-o
de glória e beleza. Para que domine as obras de tuas mãos sob seus pés tudo
colocaste. Von Rad (1977, p. 68-69) observa como o autor bíblico de Gênesis
utilizou o conhecimento das tradições extra-bíblicas sobre a imagem e semelhança
de Deus para falar sobre o aspecto ético da criação da humanidade, a saber, a
soberania de Deus e a dignidade do ser humano:

Temos visto em vários mitos paleo-orientais que um deus forma a um homem


(ou a outro deus) à sua semelhança. Também merece que atribuamos
importância ao fato de que no antigo Egito o Faraó seja “imagem vivente de
Deus na terra”. Nosso texto não deve ser dissociado de amplo parentesco
com estas imagens que, evidentemente, eram comuns a todo o Oriente […]
Contudo, o Salmo 8 nos oferece um importante complemento desta
concepção. Nele Yahweh é interpelado; apesar disto se diz ali que o homem
foi feito pouco menor que “elohim”. Isto significa que esta semelhança com
Deus não se refere diretamente a Yahweh, mas aos “anjos”. No verso 26
ocorre o mesmo: o curioso plural (“façamos”) impede colocar a semelhança
com Deus em relação demasiadamente direta com Yahweh, o Senhor. Deus
se junta aos seres celestiais que o rodeiam e se esconde nessa pluralidade.

Essa proximidade do ser humano com o Deus criador no nível da imagem e


da semelhança exclui a possibilidade de idolatria por parte do povo israelita. A
linguagem mítica utilizada para descrever a relação ser humano-Deus enfatiza o
aspecto sagrado e não mitológico da vida das pessoas. Deus não pode ser
representado nas imagens de esculturas, o que se pode deduzir do segundo
60

mandamento do Decálogo (Êxodo 20.4). O fato de o ser humano ser criado à


imagem de Deus implica que Deus não tem qualquer outra forma melhor de se
mostrar ao mundo a não ser a partir daquela criatura humana que o representa na
terra. Todo o ser humano é a imagem de Deus, sem distinção de espírito e corpo.
Toda a humanidade, sem distinção, é a imagem de Deus, no dizer de Clines (apud
SMITH, 2001, p. 234).

4.3 – O sentido ético da sexualidade humana como fruto da criação

Um outro aspecto a ser levado em consideração nas narrativas da criação


dos seres humanos é o do surgimento da diferenciação sexual. A reflexão proposta
por Gênesis capítulo 2 constitui-se mais numa explicação do mistério da sexualidade
do que numa história da origem do ser humano (MCKENZIE, 1971, p. 106). Nas
narrativas ugaríticas e mesopotâmicas, os deuses criadores são concebidos como
divindades sexuadas25. Os arquétipos que buscavam explicar a fecundidade do solo
e das pessoas estavam ligados ao sexo dos deuses. Essas imagens de deuses
sexuados estão relacionadas com os cultos de fertilidade próprios da cultura siro-
palestina que se constituíram em um forte atrativo para os israelitas quando
deixaram a vida semi-nômade do deserto para a vida na terra cultivada de Canaã,
principalmente nos cultos agrícolas prestados a Baal, Anat, Ashera e Astarte
(LORETZ, 1979, p. 98).

Em contrapartida, o Deus bíblico não é apresentado na criação como


divindade sexual26, conforme argumenta Deissler (1984, p.35), visto que, em
Gênesis 1.27, tanto homem quanto mulher são imagem e semelhança de Deus.
Nessa mesma linha, Loretz (1979, p. 98) afirma que a construção bíblica modifica
substancialmente a lógica do mito oriental da sexualidade dos deuses, servindo-se
da linguagem mítica. A sexualidade é esvaziada do seu sentido mítico na narrativa

25
Vide Quadro 5, Atra-hasis (linhas 211, 233, 235); Quadro 5, Enuma-Elish (linhas 30, 35); Quadro 7,
Epopéia de Gilgamesh (linha 76).
26
De acordo com Mckenzie (1971, p. 106) Deus é naturalmente masculino, mas não no sentido da
distinção do sexo. A narrativa do Gênesis, em forma de uma história, coloca a origem do sexo no
mundo como decisão do Deus criador, o qual está acima da sexualidade, da mesma forma que está
acima de todas as demais criaturas.
61

bíblica. Ela não se confunde com o criador, mas é obra sua. Sobre esse
pensamento, argumenta Grelot (1982, p. 35):

Desse modo, a sexualidade, em todos os seus aspectos, se liga à obra do


criador. O autor a extrai das antigas mitologias, nas quais os pares
sexuados de deuses e deusas presidiam ao seu funcionamento. A família
humana, na qual o homem “deixa seu pai e sua mãe e se une à sua
mulher”, corresponde a esse modelo que o autor coloca nas origens. Mas o
modelo está no mesmo plano que o de nossa história atual: ele não é um
“mito” situado fora do tempo: é a emergência da consciência humana na
criação que abre essa história.

A identificação da sexualidade com os rituais de fertilidade, proposta, por


exemplo, na narrativa ugarítica do Nascimento dos Deuses (Quadro 15), é, no texto
do Gênesis, posta abaixo. Nesse mito, o deus El foi curado de sua impotência sexual
para conseguir copular com as divindades femininas. Dessas uniões resulta o
nascimento das divindades astrais. Mas o autor bíblico extrai do mito a relação ideal
para os seres humanos: um homem deixa seu pai e sua mãe, une-se sexualmente à
sua mulher e se tornam ambos uma só carne, resolvendo assim o problema
existencial do ser só (Gênesis 2.18). A atração sexual existe porque um saiu do
outro, sendo assim um comum ao outro. Essa ética elevada não pára por aí. A figura
da mulher em toda a cultura oriental antiga foi depreciada em função de sua
situação de posse com relação ao homem, quer pela filiação paterna, quer pela
relação conjugal. Mckenzie (1971, p. 106-107) defende que, na cultura
mesopotâmica, a mulher teve situação mais elevada em relação aos outros povos
semitas, provavelmente por causa do seu papel de deusa do prazer, o que,
paradoxalmente, a torna objeto do homem. Ela é divinizada em seu aspecto sexual,
mas é depreciada em seu ser humano.

A demitização da divindade feminina é instrumento essencial na compreensão


ética da mulher no mundo antigo. O instrumento para essa demitização dentro do
texto bíblico é a própria linguagem do autor, ou seja, a utilização de
antropomorfismos (COLUNGA, 1967, p. 80). Por exemplo, em Gênesis 2.21, a
mulher é tirada da costela do ‘adam através de uma intervenção cirúrgica divina, e
recebe o apelido de rz<[, (‘ezer), ajuda, no sentido de socorro27, o mesmo termo que

aparece no Salmo 121.1-2: Elevo os meus olhos para os montes, de onde me virá o

27
A Bíblia de Jerusalém traduz o termo por auxiliar.
62

socorro ? Ela foi criada para estar defronte do homem, numa situação semelhante à
de um espelho, onde o ser humano confronta-se com sua própria imagem. Em

Gênesis 2.18, o termo hebraico /Dg]]n<K] (kenegdo), traduz-se por como que defronte
do outro, ou, como traduz a Bíblia de Jerusalém, que lhe corresponda. Essa situação
de paridade original eleva a mulher à condição de co-participante no projeto de
dominar as criaturas animais, até porque ela não surgiu da modelagem dos animais
inferiores, como era de se esperar no momento em que Deus viu que não era bom
que o homem fosse sozinho (Gênesis 2.18-19, Quadro 6). A paridade do casal só é
rompida com o pecado das origens, tema que será abordado a partir do estudo dos
mitos da queda, no próximo capítulo.
63

V. OS MITOS DA QUEDA: O SER HUMANO EM BUSCA DE SUA DIVINIZAÇÃO E


O SER HUMANO NA REALIDADE DE SUA LIMITAÇÃO

O capítulo 3 do livro de Gênesis tem suscitado discussões teológicas desde


os tempos da Patrística, principalmente no que diz respeito à questão da queda do
ser humano e à conseqüente entrada do pecado na história da humanidade. Na
visão de Agostinho (apud CAPANAGA, 1952, p. 213, 215), a leitura do capítulo 3 de
Gênesis devia ser filtrada pela teologia paulina acerca do primeiro e do segundo
Adão; nesse sentido, Agostinho entendia que o ser humano herdava, por via de
geração, a culpabilidade adquirida pelo primeiro Adão. Porém, Agostinho, em suas
reflexões acerca da teologia sistemática, e juntamente com ele outros pensadores
da época patrística, não tiveram acesso ao conhecimento das descobertas
arqueológicas em torno das antigas narrativas míticas orientais. Conforme temos
visto, a descoberta desses textos impele a pesquisa teológica a buscar explicações
para as semelhanças e diferenças existentes entre os mitos e Gênesis capítulos 1 a
11.

A comparação entre os mitos mesopotâmicos e o capítulo 3 de Gênesis


reforça a idéia de que o autor bíblico utilizou-se das narrativas míticas para trazer
uma mensagem de cunho ético. Para seus leitores, o sentido ético, no caso
específico do capítulo 3 de Gênesis, é produto da luta do autor bíblico contra a
divinização dos seres humanos (LORETZ, 1979, p. 139), produto de seu esforço
para mostrar a Israel a dura realidade da limitação humana, resultante da queda e
simbolizada no primeiro casal. Para tanto, o autor bíblico não despreza o universo de
arquétipos de que o mito se servia. Ele destrói o mito, mas não destrói os arquétipos.
Portanto, deve-se buscar o significado de arquétipos comuns aos mitos
mesopotâmicos e ugaríticos. Esses símbolos, tais como o arquétipo da mulher, da
árvore da vida e da serpente, quando inseridos no contexto bíblico, conduzem a uma
leitura que tem como preocupação principal a busca do sentido do texto para a mais
primitiva comunidade de fé israelita que o produziu e o recebeu, culminando em
etapas posteriores na leitura que o Novo Testamento fez do Gênesis e, no mundo
hodierno, na aplicabilidade desse texto.
64

Serão trabalhados, a título de comparação, os textos da Epopéia de


Gilgamesh, com as narrativas sobre Enkidu e a prostituta já transcritas na Tabuinha
1, Coluna 4, linhas 6-7 e 19-34 (Quadro 8, constantes no quarto capítulo desta
dissertação); narrativas sobre Gilgamesh e a perda da planta da vida28, Tabuinha 11,
Coluna 3, linhas 264-270, 280-282 e 285-291 (Quadro 9); Gênesis 3.1-7 e 3.14-24
(Quadro 10). Os conceitos comparados serão, em primeiro lugar, o conceito da
árvore do conhecimento do bem e do mal como busca da divinização; em segundo
lugar, a busca da imortalidade através da árvore da vida como uma tentativa de
divinização plena, e, por último, a limitação dos seres criados como conseqüência da
queda primitiva.

QUADRO 9 – GILGAMESH E A PLANTA DA VIDA


EPOPÉIA DE GILGAMESH-TABUINHA 11 – COLUNA 3 – LINHAS 264-270; 280-282; 285-291.
UTNAPSHTIM FALA PARA GILGAMESH:

264-“Gilgamesh, vieste, te afadigaste, te cansaste,


265-o que tenho para te dar agora que voltas ao teu país?
266-Vou te revelar, Gilgamesh, uma coisa secreta,
267-e (um segredo dos deuses) te direi:
268-Ela é uma planta semelhante ao espinho alvar,
269- seu espinho, como uma rosa, te fere a mão;
270-se tuas mãos tocarem esta planta,
encontrarás a vida”.

GILGAMESH MERGULHA NO MAR E PEGA A PLANTA:

280-“Vou levá-la para dentro dos recintos de Uruc,


281-a farei comer, a farei crescer, a planta cortarei.
282-Seu nome é: o velho se torna jovem. Comerei dela e voltarei à minha juventude”.

GILGAMESH PERDE A PLANTA PARA A COBRA:

285-Viu Gilgamesh um poço, cujas águas eram frescas,


286-Desceu para dentro dele e se lavou nas suas águas.
287-Uma serpente sentiu o odor da planta,
288-Saiu da água e roubou a planta.
289-Voltou, atirou fora as suas escamas.
290-Gilgamesh então, sentou-se e chorou,
291-Sobre as suas faces desciam as suas lágrimas.

28
A tradução foi feita por José Américo de Assis Coutinho, com base no texto original de Loretz em
alemão (1979, p. 140-142).
65

QUADRO 10 – GÊNESIS 3.1-7 E 3.14-24


GÊNESIS 3.1- 7 E 3.14-24.
1-A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que Iahweh Deus tinha feito. Ela
disse à mulher: “Então Deus disse: vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?”
2-a mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim.
3-Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não
tocareis, sob pena de morte.”
4-A serpente disse então à mulher: “Não, não morrereis!
5-Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como
deuses, versados no bem e no mal.
6-A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore era desejável
para adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também a seu marido, que com ela
estava e ele comeu.
7-Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas de figueira
e se cingiram.

14-Então Iahweh Deus disse à serpente: “Porque fizeste isso és maldita entre todos os animais
domésticos e todas as feras selvagens. Caminharás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias
de tua vida.
15-Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a
cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar.”
16-À mulher ele disse: “Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Teu desejo
te impelirá ao teu marido e ele te dominará.”
17-Ao homem, ele disse: “Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te
proibira comer, maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua
vida.
18-Ele produzirá para ti espinhos e cardos, e comerás a erva dos campos.
19-Com o suor de teu rosto comerás o teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu
és pó e ao pó tornarás.
20-O homem chamou sua mulher “Eva”, por ser a mãe de todos os viventes.
21-Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele e os vestiu.
22-Depois disse Iahweh Deus: “Se o homem já é como um de nós, versado do bem e do mal, que
agora ele não estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma e viva para sempre!”
23-Iahweh Deus o expulsou do jardim de Éden para cultivar o solo de onde for a tirado.
24-Ele baniu o homem e colocou diante do jardim de Éden os querubins e a chama da espada
fulgurante para guardar o caminho da árvore da vida.

5.1 – A árvore do conhecimento do bem e do mal e a busca da divinização

A pesquisa etnográfica tem mostrado, a partir da comparação entre várias


culturas, que diversos simbolismos aparecem com freqüência, tanto nas narrativas
míticas de não poucas culturas, quanto em Gênesis capítulos 1 a 11. Dentro desta
divisão da presente pesquisa, interessam três arquétipos, tanto quanto base para a
compreensão do texto bíblico à luz das narrativas míticas mesopotâmicas e
ugaríticas, como para o entendimento da mensagem de cunho ético que o autor
bíblico quer passar. Primeiro, há o arquétipo da árvore, como um símbolo dos cultos
agrícolas. Os símbolos da vegetação estão diretamente ligados aos ritos de
66

renovação, quer seja de renovação da colheita, quer seja na celebração da


renovação da vida, que é a chegada de um novo ano. Nesse sentido, a árvore era
vista como portadora de poderes sagrados, visto que possui a propriedade
regeneradora, pois, ao perder velhas folhas, novas folhas nascem, simbolizando o
processo de morte e de ressurreição (ELÍADE, 1993, p. 213-216). Assim, a árvore é
considerada como habitação da divindade, local sagrado, o que pode explicar a
fabricação de ídolos a partir de árvores29. Eliade (1993, p. 219) transcreve um
poema babilônico sobre a árvore Kiskanu, nascida no local sagrado relativo à deusa
Bau, mãe do deus Ea: Em Eridu cresceu um Kiskanu negro, num lugar santo foi
criado. O seu brilho é o do lápis-lazuli brilhante, e estende-se até o apsu. É o
deambulatório de Ea na opulenta Eridu. A sua morada é um lugar de repouso para
Bau.

Um segundo arquétipo, também ligado ao rituais agrícolas, é o da mulher.


Eliade (1993, p.93-94) comenta sobre a mulher no mundo antigo, comparando-a
com a terra cultivada. No caso, uma mulher estéril seria como um campo onde nada
cresce. A mulher é símbolo da agricultura e tem sua figura intimamente ligada à
fertilidade e por isso, nos cultos agrícolas, chega a assumir o papel de prostituta
sagrada. O ritual é significativo: na eira, ao ter a relação sexual, jogando o sêmen
dentro da mulher, o homem está repetindo a dádiva de Baal, que manda a chuva
para fertilizar a terra. Esse ritual foi importante, principalmente na Palestina, onde as
estiagens eram constantes. Terra e mulher estão fundidas numa só idéia da deusa-
mãe. Os mitos que contam histórias de casamento entre os deuses também
possuem a função de celebração da fertilidade. Nesse caso, a prosperidade da terra
depende da imitação, por parte dos homens, do relacionamento sexual entre os
deuses, através dos cultos de fertilidade (ELÍADE, 1993, p. 289) .

Um terceiro arquétipo importante é o da serpente. Ligada às divindades


egípcias, a serpente simbolizava o dom da vida e da morte (CHILDS, 1960, p. 46),
talvez devido ao mistério do seu veneno, cujas propriedades não eram
cientificamente conhecidas. Não deixou, por isso, de ser uma divindade. Entretanto,
a serpente é mais propriamente, símbolo sexual, conforme assevera Mckenzie
(1971, p. 109). Brandon (1975, p. 1310) afirma que a serpente está associada ao

29
Isaías 44.14-17
67

órgão sexual masculino, mormente pela sua forma: a serpente que sai e entra em
seu ninho debaixo da terra é símbolo da atividade sexual. No texto de Gênesis 3,
aparecem elementos que reforçam esse pensamento, como por exemplo a vergonha
do casal de estar nu após a queda.

Tanto na religião mesopotâmica quanto na religião cananéia, a união entre os


arquétipos mulher-árvore-serpente expressa o desejo maior dos seres humanos de
unirem-se aos deuses (MCKENZIE, 1971, p. 111, 113), divinizando-se a si mesmos
e aos elementos da natureza. Essa identificação com os deuses é expressa na
forma de rituais dos cultos de fertilidade, em que as orgias sexuais eram constantes
e os ritos de Baal eram a garantia da continuidade da fecundidade da terra-mãe. Ao
falar da síntese entre a árvore do conhecimento do bem e do mal e a serpente,
Stendebach (1983, p. 11, 12) comenta :

Ora, a serpente e a árvore sagrada têm um papel específico na religião dos


cananeus. A serpente é a representação de Baal, deus da fertilidade. É a
serpente quem produz frutos, expande a vida, renova a vida. É o consorte
masculino da deusa da fecundidade […] Se em Gn 3, 1 lemos que a serpente
é o mais astuto de todos os animais do campo, encontramos coisa
semelhante nos textos descobertos no norte da Síria, nas ruínas da cidade
portuária de Ugarit. Segundo estes textos, a serpente do deus Baal é dotada
de astúcia e sabedoria.

Pixley ( 1971, p. 40) mostra como Israel assimilou o culto agrário de Baal no
decorrer do assentamento das tribos na Palestina até o período da monarquia. Da
mesma forma mostra a luta de profetas tais como Oséias, o qual se apropria da
linguagem do amor tão característica dos cultos sexuais para falar de Deus ao seu
povo. Semelhantemente, o autor do Gênesis subverte a idéia da divinização da
criação que os mitos passavam, mostrando que essa tentativa primitiva do querer
ser igual a Deus ou aos deuses, se constituiu na queda ou pecado das origens. Este
é o argumento da serpente para o casal no Éden: …sereis como deuses, versados
no bem e no mal (Gênesis 3.5, Quadro 10). Convém lembrar o sentido de versados

e bem e mal. O termo y[ed]iyo (yode’ey ), traduzido por versados, tem o sentido de

conhecedores, mas não no sentido meramente intelectual. Traz também a idéia de


intimidade, de experimento, de estar familiarizado com, e até mesmo a idéia de
poder, princípio que pertence aos deuses, de acordo com as narrativas míticas.
Assim, na narrativa da Epopéia de Gilgamesh, no trecho da criação de Enkidu
68

(linhas 19-34, Quadro 8), é graças à união sexual com a prostituta que Enkidu perde
a sua condição selvagem e é comparado a um deus, tendo adquirido a sabedoria
(conhecimento) dos deuses na cópula com a mulher.

Por sua vez, o binômio bem e mal está carregado, não do sentido das
virtudes bem e mal (VON RAD, 1973, p. 162), mas do sentido da totalidade das
coisas, de tudo (LORETZ, 1979, p. 127). Evidências bíblicas internas reforçam esta
idéia. Por exemplo, em II Samuel 14.17, a mulher de Técua diz sobre Davi: …que a
palavra do senhor meu rei nos traga o sossego, porque o meu rei é como o Anjo de
Deus para discernir o bem e o mal. Da mesma forma, a oração de Salomão explicita
o desejo do rei saber de tudo o que se refere à atividade de um monarca: Dá, pois, a
teu servo um coração que escuta para governar o teu povo e para discernir entre o
bem e o mal, pois quem poderia governar teu povo, que é tão numeroso? (I Reis
3.9).

Então, a tentação da serpente atinge a totalidade das coisas e envolve sexo,


mas não é o sexo em si mesmo, visto que, em Gênesis 1.28, a sexualidade humana
é dada como bênção divina, e, em Gênesis 2.25, a sexualidade é algo natural e livre
na experiência do casal. Como ponte de semelhança entre Enkidu e Adão, vê-se
que tanto na narrativa mítica (Quadro 7) quanto no capítulo 2 de Gênesis (6, versos
19-20, Quadro 6), estes dois personagens viveram entre os animais, antes de
conhecerem uma mulher (COLUNGA, 1967, p. 89). Mas as diferenças são bem mais
evidentes. Enkidu é um selvagem; Adão deve dominar os selvagens, visto que é ser
humano e não consegue achar alguém parecido com ele no meio dos animais. Em
Enkidu, a sexualidade o torna como os deuses, cheio de sabedoria; em Adão, a
sexualidade confere a identificação do homem com a sua mulher.

Vê-se, por isso, que a narrativa bíblica esvazia o mito de seu sentido
divinizante e confere à criatura um sentido ético de sua existência e participação na
terra. A sexualidade questionada na versão do autor bíblico é a da prostituição
sagrada, própria do culto de Baal, no qual todos os elementos envolvidos30 são
divinizados na expressão do rito de fertilidade desenvolvido na eira. O capítulo 3 de

30
O homem, enquanto adorador, a mulher enquanto objeto que simboliza a terra, a serpente
enquanto divindade viril, a terra, enquanto a grande mãe produtora da vida (PIAZZA, 1976, p. 102).
69

Gênesis reflete a luta da fé em Deus contra o culto baalista da divinização dos seres
humanos e de toda a criação, apresentando Iahweh como Deus verdadeiro. O autor
de Gênesis 3 demonstra como o ser humano, ao ceder à tentação da serpente,
tornou-se culpado pela ruptura de sua comunhão com Deus por sua livre iniciativa.
Nesse sentido, o processo em que a tentação ocorre nada tem de mitológico, mas
advém do mito, servindo-se da narrativa mítica (VON RAD, 1977, p. 105).

A maneira como o autor do Gênesis apresenta essa mensagem de cunho


ético, engajado na estrutura da linguagem mítica, o torna filho de sua época
(STENDEBACH, 1983, p. 15). Por isso, a leitura de Gênesis capítulo 3 deve ser feita
com o suporte do capítulo segundo, visto que ali temos a situação ideal da criação
do homem e da mulher. Ao instalar o casal em um jardim, cuja situação é descrita
geograficamente, o autor bíblico tira o drama do mundo dos deuses e o situa na vida
dos humanos (Gênesis 2.8-15, Quadro 6). Se a tentativa de querer ser igual a Deus
através da participação nos cultos cananeus de fertilidade tem, na árvore do
conhecimento do bem e do mal, um símbolo fundamental, um outro símbolo, o da
imortalidade como prerrogativa dos deuses, é abordado no arquétipo da árvore da
vida, assunto do próximo item.

5.2 – A árvore da vida e a busca de imortalidade na tentativa da divinização plena


dos seres humanos

Conforme constatado anteriormente, a árvore do conhecimento do bem e do


mal significa a tentativa do ser humano em igualar-se a Deus, através dos cultos
cananeus da fertilidade (o que se constitui em desobediência contra Iahweh), mas
também significa a morte, visto que a morte é a conseqüência da participação no
fruto dessa árvore31. Por isso, a necessidade de uma outra árvore, a árvore da vida,
conhecida na Epopéia de Gilgamesh (Quadro 9) como a planta da vida. Conforme
visto no item 5.1, a árvore evoca símbolos divinizadores. Assim, para Piazza (1976,
p.105), o sentido da árvore da vida está intimamente ligado à imortalidade, o desejo
maior dos homens que não conseguem aceitar sua finitude. A razão é simples: a
70

árvore da vida é o protótipo de todas aquelas árvores mágicas que trazem cura para
as enfermidades e renovam a juventude: a imortalidade é o seu fim maior.

Um paralelo importante com o texto bíblico (Quadro 10) é a narrativa da


busca de Gilgamesh pela planta da vida (Quadro 9). Abalado com a morte do amigo,
Gilgamesh parte em busca da planta da vida que poderia conceder a dádiva da
imortalidade, dom dos deuses. Depois de achar a planta, por conselho de
Utnapishtim, herói do dilúvio, Gilgamesh a perde para uma serpente, que a rouba
depois de um descuido seu em banhar-se num poço deixando a planta da vida
desguarnecida. A narrativa mítica desenvolve a idéia do descuido do herói, mas a
bíblica, a de uma queda moral. Robinson (1953, p. 94)32 acentua o caráter ético da
narrativa bíblica ao compara-la aos mitos mesopotâmicos:

Não existe indicação de que Gilgamesh perdeu sua chance de imortalidade


pela desobediência à ordem divina; a única moral a ser tirada seria a
abstinência de um banho na troca por algo mais precioso. A Babilônia tem
uma história da criação e uma história do dilúvio, mas não uma história da
queda, e este é um fato significante sobre a ênfase hebréia na moralidade.

E Gilgamesh tem que se conformar em não alcançar a imortalidade desejada,


nem para o seu amigo morto nem para ele mesmo. O mito de Gilgamesh explica a
insatisfação dos antigos com a morte e o desejo constante, expresso nos ritos de
renovação da vida, de lutar contra a realidade da finitude humana.

Quanto ao texto de Gênesis, uma observação criteriosa de 2.9 (Quadro 6)


demonstra que, ao criar o Éden, Iahweh colocou ali três tipos de árvores, a saber:
árvores formosas de ver e boas de comer, a árvore da vida no meio do jardim e a
árvore do conhecimento do bem e do mal. Contudo, em Gênesis 2.16-17 (Quadro 6),
ao orientar o casal sobre a dieta vegetariana que deve seguir, só dois tipos de
árvores são mostrados para o homem: as árvores permitidas, a saber, todas as
árvores do jardim; e a proibida, a saber, a árvore do conhecimento do bem e do mal.
Deduz-se que a omissão da divulgação para o casal da existência da árvore da vida
é um segredo que está protegido pelo conhecimento do bem e do mal. Conforme foi

31
De acordo com Dattler (1984, p. 58), o morrerás de Gênesis 2.17 não deve ser entendido como
uma punição imediata, mas como a instituição da morte como uma realidade a ser experimentada
como uma ameaça constante e imprevisível.
32
Tradução do texto original em inglês sob a responsabilidade do autor.
71

trabalhado no item anterior, esse conhecimento de tudo é uma das pontes da


tentativa de divinização do ser humano.

Mas, o tudo não é tudo. Até mesmo a serpente está enganada, pois ela pensa
que, para ser Deus, é preciso tão somente comer da árvore do conhecimento do
bem e do mal. Falta a ela e ao casal o conhecimento da árvore da vida, que é a
segunda e definitiva ponte de divinização, da divinização plena do ser humano (VON
RAD, 1973, p. 162), porém vetada pela soberania divina, que expulsou o casal do
jardim para que não tivesse acesso à árvore da vida, agora conhecida (Gênesis
3.22, Quadro 10). Essa árvore da vida é o antídoto contra a condição de morte
legada da desobediência que era o comer da árvore do conhecimento do bem e do
mal. Nesse sentido, o ser humano e a serpente são esvaziados de seus símbolos
divinos e remetidos à sua real condição: a de criaturas de Deus. Von Rad (1973, p.
161) defende que o texto de Gênesis, a partir do capítulo três, não deve ser
chamado de mito, mas que os arquétipos e personagens ali mencionados provêm
dos antigos mitos para produzir uma mensagem teológica, a saber, manifestar o que
fez o homem de suas relações com Deus e a reação de Deus em face da
profanação cada vez mais grave de sua ordem.

Para Fohrer (1982a, p. 282-284), a expulsão do homem e da mulher do Éden


é um indicativo da limitação que Deus impõe à humanidade contra a pretensa
tentativa desta de atingir a imortalidade. Tal imortalidade implicaria em sua plena
divinização, visto que, para querer participar da árvore da vida, o ser humano teve,
primeiro, que adquirir o conhecimento de sua limitação através da morte, ao provar
do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Nesse sentido a criação do ser
humano com a propriedade de poder escolher pela desobediência é um risco de
Deus, na terminologia utilizada por Fohrer (1982a, p. 284):

Nesse comportamento da criatura reside o risco de Deus, que a chamou à


vida […] E, quando se apresenta a oportunidade, o homem logo tenta superar
os seus limites, apropriando-se de poderes divinos ou tentando tomar o céu
de assalto, como é o caso do relato da árvore da vida no jardim de Deus,
árvore por meio da qual o homem poderia conquistar a vida eterna. Com
efeito, parece que em Gn 2-3 teriam sido elaborados alguns fragmentos
segundo os quais o homem teria procurado se apoderar da árvore da vida,
mas teria sido afastado desse objetivo para que a sua força vital não pudesse
tornar-se excessiva, conferindo-lhe a imortalidade.
72

Os mitos mesopotâmicos e ugaríticos refletem as propostas divinizadoras que


tentam igualar a criatura ao criador, em função do drama da morte, drama esse
nunca resolvido totalmente na reflexão dos povos antigos, mas idealizado no sonho
da união com os deuses, conforme expresso nos ritos sumérios e cananeus. O autor
bíblico de Gênesis capítulo 3 mostra não só que a autonomia humana em
desobedecer ao criador ao tentar igualar-se a ele por via das propostas dos cultos
politeístas expirou, mas também que essa desobediência trouxe consigo
conseqüências nefastas, objeto de estudo do próximo item.

5.3 – As conseqüências da queda: os seres humanos limitados por Deus

A reflexão sobre as conseqüências da queda é feita através do uso de uma


etiologia33 e o mito é utilizado como linguagem para revelar a soberania do criador
diante da situação de rebeldia advinda do politeísmo reinante (EICHRODT, 1975, p.
400). Assim, Grelot (1982, p. 49) afirma: Pode-se falar de uma desmitização desses
símbolos, uma vez que não representam mais potências divinas, mas somente seres
inferiores, cuja atividade se desenrola no interior da criação e nos limites
compatíveis com a onipotência do Criador. Mas o modo de exprimir-se é o da
linguagem mítica. O texto de Gênesis capítulo 3 apresenta essa demitização34
através de uma série de mudanças na situação real dos seres criados, antes e
depois da queda.

Primeiro, há mudança quanto à posição ambígua da mulher nos cultos de


fertilidade e no universo mesopotâmico, onde a mulher é a grande deusa do prazer,
divinizada em seu aspecto sexual com a função elevada de prostituta sagrada, mas,
sob o ponto de vista social, inferiorizada e objeto de uso masculino, sem dignidade
pessoal. Na criação bíblica, porém, ela é tirada do osso do homem e é colocada na
frente dele, em situação parelha. Ela é sua companheira e auxiliar que lhe

33
Etiologias são histórias contadas no presente, valendo-se de personagens bem antigos, para
explicar a causa de situações atuais, legitimando assim posturas morais, culturais, sociais, históricas
e religiosas.
34
Nesta pesquisa os termos aparecem os termos desmitização e demitização, referindo-se ao mesmo
processo. Nas citações deve-se respeitar a forma como o termo aparece. O autor desta dissertação
usa o termo demitização, devido a sua utilização popularizada no ambiente acadêmico teológico.
73

corresponda (Gênesis 2.18). Ela é feita para participar de sua vida e não meramente
de suas experiências sexuais, no dizer de Mckenzie (1971, p. 108). Fica claro que o
autor do Gênesis subverteu o que o mito ensinava. Ao falar da queda como
desobediência à ordem original de Deus, ele a insere na história e mostra que tudo
aquilo que o mito ensina sobre a criação é, na verdade, conseqüência do pecado
das origens. No caso da mulher, o ensino bíblico é que ela não é a deusa-mãe, visto
que, por causa do pecado, ela será sujeita aos desejos do homem e terá suas dores
de parto extremamente aumentadas. A divinização da criatura proposta pelos cultos
de fertilidade degrada a mulher, criada à imagem e semelhança de Deus, embora
não igual a Deus.

Segundo, há mudança quanto ao homem. Este deve compreender que não se


torna Deus através dos cultos de fertilidade. As conseqüências advindas de sua
desobediência ao criador relacionam-se com o trabalho penoso e nem sempre
produtivo: Com sofrimentos dele (do solo) te nutrirás todos os dias de tua vida
(Gênesis 3.17 b). Essa situação de penúria contrasta com a situação original do
homem, a de cultivador e administrador pacífico do jardim (Gênesis 2.15). Assim, os
mitos da criação do homem como escravo dos deuses (Atra-hasis, Quadro 3)
representam, para o autor bíblico, um desvio do verdadeiro sentimento ético da
própria criação, uma criação submissa a Deus, mas nunca degradada.

Para Eichrodt (1975, p. 404), a realidade anunciada por Deus como o castigo
da desobediência não é o simples fato da morte, mas a escravidão de toda uma vida
sob os poderes hostis da morte, quais sejam o sofrimento, a dor, a fadiga e a luta.
Westermann (1987, p.82-83) trabalha o conceito de limitação do ser humano como
conseqüência direta do pecado, limitação essa que consiste, não só na realidade da
morte, mas na pecabilidade do ser humano :

A conclusão lógica desta imagem precária do homem é que a sua existência


é antes uma linha curva do que uma linha reta […] ele não é o mesmo
durante o percurso desde o nascimento até o fim. Gn 3, 14-19 retrata o poder
da morte como algo invadindo a vida humana com os fenômenos da velhice,
das doenças, das angústias, do desespero, da solidão, da resignação. Sim, o
homem é limitado! A outra restrição da existência humana é a faculdade de
pecar, de cometer crime, de se perder, de ser seduzido.
74

Terceiro, existe a demitização da terra, considerada nos cultos agrários a


terra-mãe, tipificada na mulher. No texto bíblico, a terra é amaldiçoada (Gênesis
3.17, Quadro 10) e nem sempre pode dar os bons frutos, mas pode dar, também,
espinhos e cardos (Gênesis 3.18, Quadro 10), o que quer dizer que a terra não é a
deusa-mãe, adorada nos ritos de fertilidade. A fertilidade proposta nos cultos
agrários entra em xeque, pois é uma proposta de divinização da criação, portanto,
uma afronta (pecado) contra Deus.

Quarto, a serpente também é amaldiçoada, sendo limitada por Deus em seus


movimentos, como conseqüência do pecado. O autor bíblico do Gênesis não pensa
na serpente como Satã (ALLEN, 1987, p. 182), associação que é fruto da releitura
cristã desse texto, configurada no Apocalipse de João (Apocalipse 12.9). Em
Gênesis, a serpente é vista simplesmente como um animal do campo, criado por
Deus (Gênesis 3.1, Quadro 10), e que deveria continuar em sua situação original,
visto que foi criada para ser dominada pelo homem, conforme Gênesis 2.19-20. Com
o pecado, a situação de domínio do homem sobre a serpente se converte em
conflito permanente (Gênesis 3.14-15).

Conclui-se que toda essa seqüência de desobediência e conseqüência na


queda está intrinsecamente ligada à proposta do ser igual a Deus, colocada na boca
da serpente, como uma crítica aos cultos cananeus, nos quais a serpente emanava
um símbolo fálico. Dessa forma, pode-se compreender o estado de vergonha do
casal após a queda, ao encontrar-se nu. Sobre essa vergonha, escreve Mckenzie
(1971, p. 111) :

É agudamente irônico o fato de se acharem nus aqueles que procuravam


ser como deuses, quando acabaram de praticar o ato proibido. Ao lugar
para alcançar o nível do divino, apenas descobriram em si a bruta
animalidade. Foi somente quando o homem e a mulher fizeram do corpo
humano um deus que este se tornou um objeto de vergonha pois o homem
foi realmente feito à imagem e semelhança de Deus. Foi só quando o
apetite sexual se encarnou numa divindade feminina e se pôs no lugar do
próprio Deus que se acompanhou de um senso de vergonha. Por isso a
história sugere, como cremos, que a comunhão com a divindade, que os
antigos procuravam no culto da fertilidade, não os divinizou mas os
rebaixou.

O culto fálico de Baal redunda, assim, no pensamento do capítulo 3 de


Gênesis, na degradação da relação entre a criatura e o criador (ser humano versus
75

Deus), entre a criatura e a outra criatura (homem versus mulher), e entre a criatura
e toda a criação (ser humano versus natureza, animais e solo). Passa, assim, o ser
humano, de uma situação original de lugar importante na criação para a degradação
e, como situação última, a morte, conseqüência maior da queda. É o drama do ser
criado que aspira à divinização, mas termina por ser limitado pelo criador único e
soberano. As narrativas das conseqüências da desobediência do casal refletem a
proposta do autor bíblico em ressaltar a distância ética entre a situação original do
ser criado e a situação atual do ser limitado pela soberania do Deus criador, devido à
tentativa do ser humano de se igualar a Deus. Para transmitir essa verdade de fé, o
autor bíblico de Gênesis capítulo 3 utilizou o conhecimento dos mitos
mesopotâmicos e ugaríticos antigos, esvaziando a mensagem divinizadora de que
os mesmos eram portadores. O autor bíblico caminha em uma nova direção, na
medida em que trabalha a disseminação do pecado, inaugurado na primeira queda,
através dos projetos de autonomia do ser humano em construir a civilização, como
se fosse o seu criador. Este é o tema a ser abordado no próximo capítulo.
76

VI. OS MITOS DA CIVILIZAÇÃO: DA AUTONOMIA HUMANA À DISSEMINAÇÃO


DO PECADO

As narrativas a partir do capítulo 4 de Gênesis devem ser entendidas, de


acordo com Grelot (1982, p. 54), como a continuação da história do paraíso perdido,
tendo como mensagem básica a continuidade do pecado e de suas conseqüências
trágicas, agora não apenas no nível do casal, mas da civilização humana. Há listas
de nomes de indivíduos com suas habilidades manuais, a descrição de um projeto
de civilização, de construção do mundo de pedra, de cidades. Em tudo isso, o autor
bíblico mostra como o pecado foi disseminado por toda a face da terra, como
conseqüência da invectiva humana, do desejo do homem autônomo35 tornar-se
Deus. Transformar-se em Deus significa considerar-se criador (ELLUL, 1970, p. 19),
criador de cidades de pedra, possuidor das atividades criativas e fabris e, por último,
construtor de uma torre que pudesse chegar aos céus.

Em Gênesis, capítulos 1 a 11, todos os projetos de civilização a partir da


autonomia humana culminam, não no objetivo intentado, a saber, na auto-
divinização, mas na ruptura da unidade humana, situação real oposta àquela
situação de unidade original que houve em Adão e Eva, conforme evocada pela
narrativa das origens, no capítulo dois de Gênesis (GRELOT, 1982, p. 78). Mas
essas narrativas não são mera criação literária do autor bíblico: são fruto de sua
reflexão face ao mundo desenvolvido, já encontrado pelos israelitas, quer pela
experiência de fixação nas suas novas cidades no período da Conquista, quer pela
experiência do Exílio na Babilônia, por volta do sexto século antes de Cristo. Essas
experiências eram acompanhadas do elemento mítico que foi celebrado nos cultos e
ritos politeístas. Os referidos ritos foram impostos na dominação cultural e política de
povos militarmente mais fortes, como os babilônios. A ufania de ser povo dominador
era, ao mesmo tempo, a de ter o deus dominador.

Especificamente, a pesquisa em torno dos capítulos 4-5 e 10-11 de Gênesis


demonstra que o autor bíblico, servindo-se da linguagem mítica, proclama que o ser

35
Vale ressaltar aqui que a idéia de autonomia não está ligada à criatividade humana, visto que o
próprio Deus ordenou ao homem dominar a terra (Gn.1.28). Autonomia tem a ver com a rejeição de
Deus como Senhor, quando o ser humano põe de lado a soberania divina, em sua auto-divinização.
77

humano tornou-se cada vez mais fugitivo da presença divina, com o objetivo de
transformar-se em Deus pelos seus próprios métodos. Com isso, o mesmo autor
trouxe uma mensagem de chamada à dependência de Deus para o seu próprio
povo, o que caracteriza a natureza ética do discurso bíblico. Visando a comprovação
do uso que o autor bíblico fez dos mitos orientais antigos, serão dispostos em
quadros os principais textos bíblicos e extra-bíblicos. Serão comparados o mito de
Dumuzi e Enkidu36, linhas 10-16, 23-25 (Quadro 11), linhas 37-51, 70, 72-80
(Quadro 13) com o texto de Gênesis 4.1-8 (Quadro 12) e 4.13-26 (Quadro 14); as
narrativas dos Reis Antediluvianos, linhas 1-23, 39 (Quadro 15) e da Epopéia de
Gilgamesh, Tabuinha 11, linhas 189-196 (Quadro 15) com o texto de Gênesis 5.1-8
e 5.18-24 (Quadro 16); narrativas do Enuma-Elish, Tabuinha 6, linhas 47-63 (Quadro
17) com o texto de Gênesis 11.1-9 (Quadro 18). A pesquisa comparativa trabalhará
separadamente as narrativas referentes a Caim e sua descendência, a Set e sua
descendência, e à torre de Babel e a subseqüente ruptura da unidade da raça
humana.

QUADRO 11 – O MITO DE DUMUZI E ENKIDU QUADRO 12 – GÊNESIS 4.1-8


DUMUZI E ENKIDU - LINHAS 10-16, 23-25. GÊNESIS 4.1-8;
10-O irmão dela, o herói, o guerreiro Utu 1-O homem conheceu Eva, sua mulher; ela
11-diz para a pura Inanna: concebeu e deu à luz Caim, e disse: “Adquiri um
12-Oh, minha irmã, deixa o pastor Dumuzi homem com a ajuda de Iahweh”.
desposar-te 2-Depois ela deu também à luz Abel, irmão de
13-Oh serviçal Inanna, porque tu és teimosa? Caim. Abel tornou-se pastor de ovelhas e Caim
14-A gordura (dos animais) dele é boa e o leite é cultivava o solo.
bom. 3-Passado o tempo, Caim apresentou produtos
15-O pastor, tudo que toca nas mãos dele é do solo em oferenda a Iahweh;
esplendor. 4-Abel, por sua vez, também ofereceu as
16-Oh Inanna, deixa o pastor desposar-te. primícias e a gordura de seu rebanho. Ora,
Iahweh agradou-se de Abel e de sua oferenda.
23-Eu, a serviçal, deixo o agricultor casar. 5-Mas não se agradou de Caim e de sua
24-O agricultor que faz as plantas crescerem oferenda, e Caim ficou muito irritado e com o
abundantemente, rosto abatido.
25-O agricultor que faz as sementes crescerem 6-Iahweh disse a Caim: “Por que estás irritado e
abundantemente. por que teu rosto está abatido?
7-Se estivesses bem disposto, não levantarias a
cabeça? Mas se não estás bem disposto não jaz
o pecado à porta, como animal acuado que te
espreita; podes acaso dominá-lo? “
8-Entretanto Caim disse a seu irmão Abel:
“Saiamos.” E, como estavam no campo, Caim se
lançou sobre seu irmão Abel e o matou.

36
Extraído do texto de Pritchard (1969, p.41-42), com tradução da versão inglesa feita por Sueli Costa
Miranda Bitencourt.
78

QUADRO 13 – O MITO DE DUMUZI E ENKIDU II QUADRO 14 – GÊNESIS 4.13-26

DUMUZI E ENKIDU-LINHAS 37-51;70, 72-80 GÊNESIS 4.13-26


37-O pastor Dumuzi…
38-para falar… 13-Então Caim disse a Iahweh: “Minha culpa é
39-O agricultor é mais do que eu, o agricultor é muito pesada para suportá-la.
mais do que 14-Vê! Hoje tu me banes do solo fértil, terei que
40-eu, o que o agricultor tem mais do que eu? ocultar-me longe de tua face e serei um errante
41-Enkidu, o homem do obstáculo, do fugitivo sobre a terra: mas o primeiro que me
desbravamento e do labor. encontrar me matará!”
42- mais do que eu. O que o agricultor tem mais 15-Iahweh lhe respondeu: “Quem matar Caim
do que eu? será vingado sete vezes.” E Iahweh colocou um
43-Ele deveria dar-me sua vestimenta preta. sinal sobre Caim a fim de que não fosse morto
44-Eu daria a ele, o agricultor, minha ovelha por quem o encontrasse.
preta, por isso 16-Caim se retirou da presença de Iahweh e foi
45-ele deveria dar-me suas vestimentas brancas. morar na terra de Nod, a leste de Éden.
46-Eu daria a ele, o agricultor, minha ovelha 17-Caim conheceu sua mulher, que concebeu e
branca, por isso deu à luz Henoc. Tornou-se um construtor de
47-ele deveria esbanjar-me sua recente cidade e deu à cidade o nome de seu filho
bebedeira de vinho, Henoc.
48- Eu o esbanjaria, o agricultor, meu leite 18-A Henoc nasceu Irad, e Irad gerou Maviael, e
amarelo, por isso Maviael gerou Matusael, e Matusael gerou
49-ele deveria esbanjar-me o bom e recente Lamec.
vinho dele. 19-Lamec tomou para si duas mulheres: o nome
50-Eu o esbanjaria, o agricultor, meu melhor da primeira era Ada e o nome da segunda, Sela.
leite, por isso 20-Ada deu à luz Javel: ele foi o pai dos que
51-ele deveria esbanjar-me o seu vinho mais vivem sob tenda e têm rebanhos.
recente. 21-O nome de seu irmão era Jubal: ele foi o pai
de todos os que tocam lira e charamela.
70-O agricultor Enkidu aproximou-se 22-Sela, por sua vez, deu à luz Tubalcaim: ele foi
o pai de todos os laminadores em cobre e ferro;
72-Em sua campina, o pastor começa uma a irmã de Tubalcaim era Noema.
disputa com ele. 23-Lamec disse às suas mulheres: “Ada e Sela,
73-Eu contra ti, o pastor contra ti. ouvi minha voz, mulheres de Lamec, escutai
74-Por que eu lutarei ? minha palavra: Eu matei um homem por uma
75-Para mim que sou um pastor em meu ferida, uma criança por uma contusão.
casamento, 24-É que Caim é vingado sete vezes, mas
76-Oh, agricultor, sejas contado como meu Lamec, setenta e sete vezes!”
amigo. 25-Adão conheceu sua mulher. Ela deu à luz um
77-Oh, agricultor Enkidu, como meu amigo. filho e lhe pôs o nome de Set “porque,” disse ela,
78-Eu lhe traria feijões. “ele me concedeu outra descendência no lugar
79-Na disputa que tomou o lugar entre o pastor e de Abel, que Caim matou.
o agricultor. 26-Também a Set nasceu um filho, e ele lhe deu
80- Oh, serviçal Inanna, teu louvor é bom! o nome de Enós, que foi o primeiro a invocar o
nome de Iahweh.
79

QUADRO 15 – OS REIS ANTEDILUVIANOS E O QUADRO 16 – GÊNESIS 5.1-8 E 5.18-24


MITO DO ARREBATAMENTO DE ENLIL
OS REIS ANTEDILUVIANOS – LINHAS 1-23 E GÊNESIS 5.1-8 e 5.18-24
39.
1-Eis o livro da descendência de Adão: No dia
1-Quando a realeza desceu do céu, em que Deus criou Adão, ele o fez à semelhança
2-a realeza foi para Eridu. de Deus.
3-Em Eridu, Alulin foi feito rei; 2-Homem e mulher ele os criou, abençoou-os e
4-ele reinou 28.800 anos; lhes deu o nome de “Homem”, no dia em que
5-Alalgar reinou 36.600 anos; foram criados.
6/7-ao todo 2 reis reinaram 64.800 anos. 3- Quando Adão completou cento e trinta anos,
8-Eridu caiu, gerou um filho à sua semelhança, como sua
9/10-sua realeza foi transferida para Bad-Tibira imagem, e lhe deu o nome de Set.
11/12-Em Bad-Tibira, Enmenluanna reinou 4-O tempo que viveu Adão depois do nascimento
43.200 anos; de Set foi de oitocentos anos, e gerou filho e
13/14-Enmengalanna reinou 28.800 anos; filhas.
15-Dumuzi, o pastor, reinou 36.000 anos; 5-Toda a duração da vida de Adão foi de
16/17-ao todo 3 reis 108.000 anos. novecentos e trinta anos, depois morreu.
18-Bad-Tibira caiu, 6-Quando Set completou cento e cinco anos,
19-sua realeza foi transferida para Larak. gerou Enós.
20/21-Em Larak, Ensipazianna reinou 28.800 7-Depois do nascimento de Enós, Set viveu
anos; oitocentos e quinze anos e gerou filhos e filhas.
22/23-ao todo 1 rei reinou 8.800 anos. 8-Toda a duração da vida de Set foi de
novecentos e doze anos, depois morreu.
39-…Então o dilúvio ocorreu.

18-Quando Jared completou cento e sessenta e


dois anos, gerou Henoc.
19-Depois no nascimento de Jared, Malaleel
EPOPÉIA DE GILGAMESH – TABUINHA 11 – viveu oitocentos e trinta anos e gerou filhos
LINHAS 189-196 filhas.
20-Toda a duração da vida de Jared foi de
novecentos e sessenta e dois anos, depois
189-Enlil subiu então no barco, morreu.
190-tomou-me pela mão e fez-me subir; 21-Quando Henoc completou sessenta e cinco
191-fez também subir e ajoelhar minha mulher a anos, gerou Matusalém.
meu lado. 22-Henoc andou com Deus. Depois do
192-Tocou nossas frontes e, de pé entre nós, nascimento de Matusalém, Henoc viveu
abençoou-nos: trezentos anos e gerou filhos e filhas.
193-“Antes, Utnapishtim possuía e sua mulher 23-Toda a duração da vida de Henoc foi de
tornem-se como nós, os deuses; trezentos e sessenta e cinco anos.
194-e que Utnapishtim permaneça longe, na 24-Henoc andou com Deus, depois
embocadura dos rios”. desapareceu, pois Deus o arrebatou.
195-Eles me tomaram (arrebataram) e me
fizeram ficar à distância,
196-na embocadura dos rios.
80

QUADRO 17– O MITO DA CRIAÇÃO DE QUADRO 18 – GÊNESIS 11.1-9


BABILÔNIA
ENUMA-ELISH- TABUINHA 6 - LINHAS 47-63. GÊNESIS 11.1-9.

47-Os Anunnaki abriram suas bocas 1-Todo o mundo se servia de uma mesma língua
48-e disseram a Marduk, seu Senhor: e das mesmas palavras.
49-“Agora, Senhor, que nos tens livrado, 2-Como os homens emigrassem para o oriente,
50-qual será nossa mensagem para ti? encontraram um vale na terra de Senaar e aí se
51-Edifiquemos um santuário cujo nome será estabeleceram.
52-O Santuário , uma câmara para nosso 3-Disseram um ao outro: “Vinde! Façamos tijolos
descanso noturno; descansemos nela ! e cozamo-los ao fogo!” O tijolo lhes serviu de
53-Edifiquemos um santuário, uma alcova para pedra e o betume de argamassa.
sua morada! 4-Disseram: “Vinde! Construamos uma cidade e
54-No dia que chegaremos; descansaremos uma torre cujo ápice penetre nos céus! Façamo-
nele”. nos um nome e não sejamos dispersos sobre a
55-Quando Marduk ouviu isto, terra! “
56-suas faces resplandeceram como o dia: 5-Ora, Iahweh desceu para ver a cidade e a torre
57-“Construí Babilônia, cujo edifício vós tendes que os homens tinham construído.
pedido. 6-E Iahweh disse: “Eis que todos constituem um
58-Seja sua obra de ladrilho acabada. A só povo e falam uma só língua. Isso é o começo
chamarás ‘O Santuário’. de suas iniciativas! Agora, nenhum desígnio será
59-Os Anunnaki aplicaram os seus instrumentos; irrealizável para eles.
60-Durante todo o ano moldaram ladrilhos. 7-Vinde! Desçamos! Confundamos a sua
61-Quando o segundo ano chegou linguagem para que não mais se entendam uns
62-Eles levantaram o topo para o alto de Esagila aos outros.
como Apsu (abismo). 8-Iahweh os dispersou dali por toda a face da
63-Tendo construindo uma torre de degraus terra, e eles cessaram de construir a cidade.
tanto para o alto quanto para Apsu (absimo). 9-Deu-se-lhe por isso o nome de Babel, pois foi
lá que Iahweh confundiu a linguagem de todos
os habitantes da terra e foi lá que ele os
dispersou sobre toda a face da terra.

6.1 – Caim e sua descendência: civilização sem Deus

As narrativas começam com a história de Caim e Abel, dois irmãos, filhos de


Adão, que no capítulo 4 são apresentados como um pastor de ovelhas e um
agricultor, respectivamente. Os dois oferecem em sacrifício a Deus os frutos de seus
trabalhos, mas o sacrifício de Caim, tomado dos frutos da terra, é rejeitado por Deus,
preterido em favor do cheiro de carne queimada das ovelhas de Abel. Não se
pretende aqui fazer uma exegese desse texto à luz da leitura do Novo Testamento,
que julga o sacrifício de Abel mais excelente porque fora oferecido pela fé (Hebreus
11.4). A presente reflexão limita-se ao conhecimento que o autor bíblico tinha das
narrativas míticas relacionadas com o confronto entre Dumuzi e Enkidu (Quadros 11
e 13), personagens que representam, ao seu turno, o deus-pastor e o deus-
agricultor. Dumuzi, o deus-pastor, é rejeitado pela deusa Inanna, sendo preterido em
favor do deus-agricultor, Enkidu. Para Baéz-Camargo (1979, p. 27), o mito de
81

Dumuzi e Enkidu serve para responder ao drama humano sobre a mudança do estilo
de vida dos antepassados seminômades, de pastores para a vida sedentária na
terra cultivada, cheia de infortúnios, como as repetidas estiagens e enchentes. A
adaptação das pessoas a esses infortúnios era feita através do mito, representado,
dessa forma, através do drama dos deuses. Em contraste com o mito de Dumuzi e
Enkidu, o relato do capítulo 4 do Gênesis diz que a oferta do agricultor é rejeitada e
a do pastor, aceita. Já no mito sumério, a oferta do deus-agricultor é aceita e a do
deus-pastor é rejeitada.

Evidentemente, o autor do Gênesis mudou propositadamente a ordem que o


mito propunha, e entende-se que ele fez isso visando transmitir uma mensagem de
cunho ético, dentro das seguintes características: primeiro, Caim e Abel não são
apresentados como deuses, mas como pessoas pertencentes a uma genealogia e
encerradas na história. Segundo, o autor bíblico está consciente do confronto entre
os cultos agrícolas de Baal, representados na oferta de Caim, e os sacrifícios de
ovelhas próprios dos antigos patriarcas hebreus (HEIDT, 1969, p. 63), representados
na oferta de Abel. Estes significam mais propriamente a luta da fé de Israel para
não ser tragada pelas propostas divinizadoras e idólatras do culto de Baal, um culto
apresentado como moralmente perverso, sendo ele a continuidade do pecado, raiz
do primeiro homicídio.

Um aspecto da continuidade do pecado a partir do primeiro homicídio é o


exposto através da descendência de Caim, a saber, o do surgimento de uma
civilização resultante da fuga de Caim da presença de Iahweh (Gênesis 4.16).
Fohrer (1982a, p. 366-368) situa essa reflexão no ambiente dos profetas do oitavo
século antes de Cristo, momento em que foi percebida a falência do projeto
monárquico de Salomão, caracterizado como um projeto humano falido, fruto do
sincretismo Israel-Canaã e, portanto, causa principal da divisão do povo israelita:

Naturalmente, logo começaram a se manifestar aspectos negativos da


utilização ilimitada desse progresso. Com efeito, a cultura Cananéia exercia
notável influência, absorvendo tanto a fé veterotestamentária como outros
aspectos da vida, conduzindo assim ao sincretismo. Em plena contraposição
com uma atitude crítica, a fé deixou-se condicionar pela cultura de inspiração
Cananéia, que foi logo secularizada e seguiu suas próprias leis, ameaçando a
fé também desse ponto de vista.
82

Para refletir sobre a gravidade do pecado e como ele se desenvolveu na


história humana, o autor de Gênesis capítulo 4 (Quadro 14) mostra, a partir do verso
17, a busca do homem pela civilização. Aparecem os criadores da construção civil
(v. 17), a poligamia (v. 19), as artes musicais (v. 21), os instrumentos agrícolas e de
guerra (v. 22 a) e a prostituição (v. 22 b – do nome Noema, significando a amada37).
Como conseqüência da civilização, Lamec (v. 23), descendente de Caim, torna-se
mais violento ainda que o seu ancestral, matando um homem e uma criança por
motivos fúteis. Estes personagens são representações simbólicas das origens da
civilização, marcas da continuidade da história humana alienada de Deus (GRELOT,
1982, p. 55). O autor bíblico desenvolve sua reflexão demonstrando que a civilização
deturpa a ordem original da criação. Assim, o homem que cria cidades é uma afronta
ao Deus que cria o Éden, paraíso rural; a poligamia é uma afronta à ordem original
de Deus na criação do homem e de sua mulher (Gênesis 2.24); a criação de
instrumentos de ferro e laminados, utilizados na guerra, é uma afronta para a
atividade pacífica do homem, que cultiva, na situação anterior à queda, o jardim
através da atividade agrícola. Enfim, a civilização é um projeto da autonomia
humana, é o homem criando como se Deus fosse. A disposição dos relatos bíblicos
mostra como esse projeto culminou na disseminação e aumento do pecado, bem
como de suas conseqüências.

6.2 – Set e sua descendência: o andar com Deus

Se a disseminação do pecado corresponde à disseminação da civilização


afastada de Deus, o autor do Gênesis propõe, dentro do mesmo texto, uma reflexão
de que as coisas poderiam ter sido diferentes. Apresenta a descendência de Set,
outro filho de Adão, como pessoas que, ao invés de gerarem civilização, geram culto
a Iahweh (Gênesis 4.26). Esses personagens e seus descendentes são tratados
como pessoas que andam com Deus (Gênesis 5.24). Fato digno de nota é que as
narrativas dos patriarcas descendentes de Set (a partir do capítulo 4.25 e 5.1,
quadros 14 e 16) em muito se assemelham aos mitos dos deuses que baixavam à
terra para reinar sobre os homens, os chamados Reis Antediluvianos (Quadro 15).

37
O termo é um epônimo para explicar o surgimento da prostituição.
83

Nesses mitos, os reis são apresentados com reinados de durabilidade


exagerada, conforme os resultados das pesquisas arqueológicas de Jacobsen
(BRIEND et al, 1990, p.57) e de suas leituras de textos sumérios antigos. Nessas
leituras, fica claro que existe nos mitos dos Reis Antedeluvianos a idéia de que, em
épocas bem antigas, vivia-se mais lentamente e, por isso, vivia-se muito mais tempo.
Um dos fragmentos de um texto sumério contém a seguinte narrativa: Naquele
tempo, a criança levava 100 anos para não mais se sujar; uma vez crescida passava
ainda 100 anos sem que lhe fosse confiado um trabalho; ela era pequena, era tola;
sua mãe toma conta (dela); seu berço era colocado no curral (BRIEND et al, 1990, p.
58)38. Mesmo assim, a narrativa de Gênesis tem um esquema fixo no capítulo 5.1-32
para mostrar a limitação dos seres humanos, não obstante a sua longevidade. De
cada descendente de Set se diz que, após ter vivido e gerado filhos e filhas: e
morreu. Não obstante a morte, seus anos são fartos. A narrativa bíblica, ao utilizar-
se de idades exageradas (embora bem mais modestas, se comparadas às dos reis
antediluvianos) quer enfatizar o aspecto ético daqueles que andavam com Deus.
Quanto menos o pecado se propaga na vida das pessoas, mais qualidade e
quantidade de vida se possui.

Dentro do aspecto da amizade entre os descendentes de Set e Iahweh, deve


ser ressaltado ainda um outro detalhe textual em consonância com a longevidade
dos patriarcas. É a alusão feita a Henoc, em Gênesis 5.24, que, de tanto andar com
Deus, foi arrebatado para Deus, sem experimentar a realidade da morte. Na
narrativa da Epopéia de Gilgamesh (Quadro 15), existe a menção de que, após o
dilúvio, o herói Utnapishtim, único sobrevivente da catástrofe, foi elevado à categoria
de deus, sendo arrebatado para junto dos deuses. A narrativa mítica enfatiza a
divinização dos seres humanos como fruto de uma conquista na qual o herói
diluviano consegue escapar da fúria dos deuses, que ficaram revoltados com a sua
sobrevivência. O texto de Gênesis se reveste de um aspecto ético elevado em
relação às narrativas extra-bíblicas, na medida em que deixa evidente na afirmação
do verso 24 duas coisas: primeiro, Henoc não é divinizado na experiência do
arrebatamento (GRELOT, 1982, p. 58); segundo, sua proximidade com Deus é um
aspecto de sua vida pautada numa amizade de caráter ético. O texto de Gênesis
reflete um ensino que combate a divinização dos seres humanos exposta no mito,

38
Tradição semelhante encontramos no Terceiro Isaías (65.20).
84

bem como é um modelo de descendência ideal que contraria o modelo de civilização


humana, desvinculada da dependência divina, proposta nos filhos de Caim. Em
última análise, o ensino do Gênesis remete o israelita contra a proposta de união
com os deuses, que aumenta mais ainda a influência do pecado na história da
humanidade, culminando com a ruptura da unidade humana.

6.3 – A torre de Babel: autonomia e ruptura da unidade humana

O autor de Gênesis levou a proposta de civilização como tentativa de


autonomia humana a uma certa conseqüência lógica, quando refletiu sobre a
construção da torre de Babel, numa proposta teológica de mostrar a frustração da
tentativa humana de identificação com os deuses. Para evidência dessa constatação
deve-se fazer uma digressão histórica, para recordar que, quando os judeus foram
exilados na Babilônia entre 597 e 586 antes de Cristo, de uma certa forma eles
foram impactados pelas dimensões físicas daquela cidade. Segundo Charpentier
(1986, p. 100), a cidade formava um grande quadrilátero de 13 km2 atravessado pelo
Rio Eufrates. Havia uma espécie de alameda onde ficavam os templos, sendo que
na região central se erguia o zigurate (do sumério, colina do céu), uma espécie de
torre com andares, chegando a medir cerca de 90 metros de altura. Diante dessas
construções, o povo exilado ouvia todos os anos, por ocasião da festa de ano novo,
a recitação do Enuma-Elish e da Epopéia de Gilgamesh. Toda a grandeza da
Babilônia era celebrada nos mitos repetidos em louvor ao criador Marduk, visto que
no Enuma-Elish a Babilônia é uma das suas últimas criações. Certamente, esse
conjunto de elementos, o deus Marduk, a cidade de Babilônia e o zigurate, soava
como uma pregação da superioridade dos deuses babilônicos sobre o Deus de
Israel.

Grelot (1982, p. 79) menciona inscrições encontradas nas ruínas de zigurates


na antiga Babilônia do sexto século antes de Cristo, inscrições nas quais a cidade é
interpretada como semelhante ao céu. O zigurate representa, por assim dizer, a
pretensão da civilização babilônica de se auto-afirmar como deus sobre os outros
povos, o que, em última análise, é uma prova da idolatria de si mesma e da
exaltação do poder despótico. Por isso, a Babilônia louvada no mito do Enuma-Elish
85

é a mesma Babel criticada no texto de Gênesis 11. Sobre a relação entre a


divinização do poder babilônico e a torre que toca os céus, deve-se ressaltar a
menção que Stendebach (1983, p. 30) faz de mitos sumérios que falam do templo
de Eninnu, cuja construção se levanta até o céu, bem como da narrativa da criação
da Babilônia por Marduk, constante no poema Enuma-Elish, transcrita no Quadro 17
(linhas 58-63), onde se diz que Marduk ordenou que os alicerces do santuário
fossem fixados tanto no mais profundo abismo, quanto nos mais altos céus. Sobre a
natureza dos zigurates, conforme citação de Parot (apud STENDEBACH, 1983, p.
30):

No alto desses zigurates estava o templo alto, uma plataforma na qual,


segundo os rituais encontrados, ofereciam-se sacrifícios aos deuses astrais.
Conforme notícias de Heródoto, havia no templo alto um grande leito,
ricamente adornado, e junto ao leito uma mesa de ouro. Aí passava a noite
uma mulher do país “escolhida pelo próprio deus”. O povo acreditava que de
vez em quando o deus descia ao templo alto e dormia no leito. Se é certa
esta notícia, é verossímil que se cumprisse no templo alto o rito das “núpcias
sagradas” [hierogamia]. O templo alto não era considerado como morada da
divindade, mas sim como lugar de encontro com o deus. Vinha a ser “o
templo de recepção, onde a divindade entrava em contato com a terra e
partia, não sem aceitar as homenagens e sacrifícios de seus fiéis”.

Conclui Stendebach (1983, p. 32) que a reflexão bíblica em Gênesis 11


subverte o ensino do mito, mostrando a culpabilidade dos seres humanos, visto que
compreende os zigurates como intimamente relacionados com as propostas de
cultos idólatras aos astros, e com os cultos de hierogamias e suas propostas
divinizantes dos seres humanos. Por isso, o texto bíblico apresenta a torre de Babel
como um projeto humano, no qual se tenta usar a autonomia humana, numa
tentativa de união das forças dos seres humanos, para a construção de algo
também humano, cujo fim último é chegar ao céu, onde o divino se encontra. O texto

bíblico utiliza o termo lb,B; (Babhel, que é, na verdade, um jogo de palavras próximo
da palavra ll''B; balal, constante em Gênesis 11.9 e que significa misturar,

confundir) para mostrar que o zigurate não é o local da reunião dos seres humanos,
mas o de sua desintegração e confusão. O texto de Gênesis 11.5 (Quadro 18)
contém um antropomorfismo de face irônica: o autor bíblico utiliza a linguagem
mítica dizendo que Iahweh desceu para ver a cidade e a torre que os homens
tinham construído. Nos ritos hierogâmicos se diz que o deus descia para o local alto
do templo babilônico para ali dormir com a mulher a ele consagrada, conforme texto
86

de Stendebach supracitado. Contudo, Iahweh não desce para aceitar a proposta


cúltica dos seres humanos, divinizando-os, mas para confundi-los em suas intenções
de conquistar o poder divino.

Para Bauer (apud SCHREINER, 1978, p. 136), a confusão das línguas é o


meio de que Deus se serve para opor um limite à vontade humana de poder. A
narrativa da torre de Babel não é apenas a resposta hebraica ao problema da
origem das línguas, mas também a afirmação de que essa multiplicidade que
dificulta a compreensão mútua entre os povos é um aspecto do mistério do pecado.
A idéia dos construtores da torre de Babel em edificá-la é traduzida pela expressão
façamo-nos um nome. Na situação original da criação, o criador dá nome ao ser
humano, homem e mulher por ele criado, transferindo depois para ele a
responsabilidade de dar nomes aos animais (Gênesis 2.19). A queda, estudada no
capítulo anterior, mostra como os seres humanos quiseram igualar-se a Deus. O
pecado avança na história da civilização e agora os seres humanos querem usar a
prerrogativa divina de dar um nome a si próprios, o que é não apenas uma tentativa
dos humanos de apoderarem-se do poder de Deus, mas de excluí-lo de sua própria
criação (ELLUL, 1972, p. 27).

Através da confusão das línguas, Deus impõe aos seres humanos um limite
para o seu desejo de ser Deus e de promover sua própria autonomia, e Deus faz
isso de forma não apenas preventiva, mas também punitiva (VON RAD, 1973, p.
165). A torre de Babel é um ensino permanente de que a autonomia humana deve
ser colocada na dependência do Deus único. Ao colocar a soberania de Deus em
evidência, o autor bíblico contrapõe-se ao mito da criação da Babilônia enquanto
criação do deus Marduk (Quadro 17), demonstrando que cidades não são criação de
Deus, mas criações humanas, e esvaziando a história da civilização da divinização.
Evidencia-se, assim, a utilização da linguagem mítica para fins éticos.

O capítulo 11 de Gênesis termina com um elo de ligação entre a história das


origens e a história dos patriarcas de Noé a Abraão. É uma demonstração do
esvaziamento dos antigos mitos mesopotâmicos atemporais, revelando assim que a
história bíblica é uma constante busca de Deus ao homem criado, decaído pelo
87

pecado, recriado no dilúvio, mas sempre decaído pelo pecado, com promessa de
que Deus continua e continuará salvando o ser humano (VON RAD, 1977, p. 187).
88

VII. OS MITOS DO DILÚVIO: DOS DEUSES INCOMODADOS AO DILÚVIO ÉTICO

O capítulo anterior versou sobre o projeto de civilização alienada de Deus


devido ao pecado e sobre a busca humana de uma autonomia cujo fim é o da
divinização dos seres humanos e cuja conseqüência é a ruptura da unidade da raça
humana. E foi verificado que, se por um lado, a descendência de Caim seguiu
crescendo em sua determinação de exclusão do Deus criador, por outro lado, a
descendência de Set tornou-se uma resposta contra os mitos divinizadores da raça
humana. A exceção, Henoc, do qual se diz que andou com Deus, não foi divinizado,
embora arrebatado em virtude de sua vida próxima da vontade divina. Esse é o
contexto das narrativas bíblicas do dilúvio, visto que há uma ligação direta entre as
narrativas da longevidade dos patriarcas (Gênesis capítulo 5) e a corrupção da raça
humana (Gênesis capítulo 6) através do principal personagem diluviano, Noé.

Conforme asseverado na introdução deste trabalho, não são objeto deste


estudo as relações entre o texto bíblico de Gênesis, capítulos 1 a 11, e a Ciência.
Assim, não se trata aqui de buscar no amparo das descobertas arqueológicas
provas para a existência de um dilúvio histórico39. Na verdade, o que as descobertas
do conhecido Leonard Woolley, por exemplo, revelaram foi a existência de várias
inundações de grandes proporções na Baixa Mesopotâmia, com conseqüências
trágicas para as populações locais. As narrativas míticas da Epopéia de Gilgamesh e
de Atra-hasis refletem o drama do homem primitivo ao lidar com essas ocorrências
freqüentes, atribuindo aos deuses as iniciativas de fazer chover impiedosamente
sobre a terra.

O objetivo deste capítulo é mostrar como o autor bíblico conheceu as


narrativas míticas e subverteu o que esses mitos ensinavam sobre a condição
humana e os deuses, trazendo uma mensagem de cunho ético para o israelita do

39
Em 1929, o inglês Sir Leonard Woolley, durante escavações realizadas na antiga Ur, próximo à
região dos rios Tigre e Eufrates, encontrou traços de uma avançada civilização sob uma espessa
camada de lama argilosa. Fato importante advindo dessa descoberta de Woolley não foi
necessariamente o aspecto de datação histórica do evento, e a possibilidade de fazê-lo harmonizar
com a narrativa bíblica. Essa possibilidade se tornou improvável com uma outra descoberta a norte
de Ur, depois de 1929, a qual dava conta de traços de inundações na antiga Quis, que remontam a
um período bem diferente da inundação de Ur.
89

seu tempo. Para constatação, serão comparados os textos do mito ugarítico O


Nascimento dos Deuses, linhas 30 a 35 (Quadro 19), Epopéia de Gilgamesh,
Tabuinha 6, linhas 5-11, 14-17 (Quadro 20)40, Atra-hasis, Tabuinha 1, linhas 352-
359 (Quadro 20), Tabuinha 3, Coluna 1, linhas 15-34 (Quadro 22); Epopéia de
Gilgamesh, Tabuinha 11, linhas 19-31, 91-93, 96-98, 113-114 (Quadro 22) e linhas
140-156 e 170-179, 185, 189-194 (Quadro 24); Gênesis 6.1-14 (Quadro 21), 7.11,17;
8.1-12 (Quadro 23); 8.15-16, 20-22 e 9.1-2, 6, 8-9 (Quadro 25).

A reflexão se dará em torno de dois temas: primeiro, o da disseminação do


pecado da humanidade como conseqüência dos mitos de divinização dos heróis; e
segundo, o dilúvio de face ética, como conseqüência punitiva e preventiva da parte
de Deus, contrariando as narrativas dos mitos sobre os deuses incomodados.

QUADRO 19 – O MITO DO NASCIMENTO DOS DEUSES

O NASCIMENTO DOS DEUSES -LINHAS 30 A 35 .

30-…à beira do mar, ele se aproximará à beira do oceano.


31-El prenderá as duas mulheres que fazem subir a água, que fazem subir a água até a borda da
bacia.
32-Uma se abaixará, a outra se erguerá. Uma gritará : “Papai, papai!”,
33-a outra exclamará: “Mamãe, mamãe!”, e o membro de El se alongará como o mar,
34-e o membro de El se alongará como a maré. O membro de El ficará longo como o mar
35-o membro de El ficará longo como a maré. El segurou as duas mulheres que fazem subir a água.

40
Tradução do mito disposto no texto original alemão de Loretz (1977, p.41) feita por José Américo
de Assis Coutinho para a língua portuguesa.
90

QUADRO 20 – ISHTAR CORTEJA GILGAMESH QUADRO 21 – GÊNESIS 6.1-14


E OS MITOS DO DILÚVIO I
EPOPÉIA DE GILGAMESH – TABUINHA 6 – GÊNESIS 6.1–14.
LINHAS 5-11 e 14-17.

1-Quando os homens começaram a ser


5-Quando Gilgamesh colocou na cabeça a tiara, numerosos sobre a face da terra, e lhes
6-a grande Ishtar elevou os olhos para a beleza nasceram filhas,
de Gilgamesh: 2-os filhos de Deus viram que as filhas dos
7-“Vem , Gilgamesh, serás o meu amante! homens eram belas e tomaram como mulheres
8-Dá-me o teu fruto de presente! todas as que lhes agradaram.
9-Tu serás meu marido, eu serei tua mulher. 3-Iahweh disse: “Meu espírito não se
10-Dar-te-ei um carro de lápis-lazúlis e de ouro, responsabilizará indefinidamente pelo homem,
11-com rodas de ouro e chifres de diamante. pois ele é carne; não viverá mais que cento e
14-À tua entrada em nossa casa. vinte anos.”
15-Os que se encontram perto dos batentes e 4-Ora, naquele tempo (e também depois),
estão sentados sobre tronos beijarão os teus quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos
pés. homens e estas lhes davam filhos, os Nefilim
16-Prostrar-se-ão aos teus pés os reis, os habitavam sobre a terra; estes homens famosos
senhores e os magnatas. foram os heróis dos tempos antigos.
17-Levar-te-ão como tributo os produtos das 5-Iahweh viu que a maldade do homem era
montanhas e do campo. grande sobre a terra, e que era continuamente
mau todo desígnio de seu coração.
6-Iahweh arrependeu-se de ter feito o homem
sobre a terra, e afligiu-se o seu coração.
7-E disse Iahweh: “Farei desaparecer da
ATRA-HASIS- O DILÚVIO – TABUINHA 1 – superfície do solo os homens que criei e com os
LINHAS 352-359. homens os animais, os répteis e as aves do céu,
porque me arrependo de os ter feito.”
8-Mas Noé encontrou graça aos olhos de
352-1200 não tinham ainda decorridos, Iahweh.
353- e o país já se tinha expandido, as pessoas 9-Eis a história de Noé: Noé era um homem
multiplicadas. justo, íntegro entre seus contemporâneos e
354-O país arruava como touros. andava com Deus.
355-O deus contrariou-se com o ruído que 10-Noé gerou três filhos: Sem, Cam e Jafé.
faziam; 11-A terra se perverteu diante de Deus e
356-Enlil ouviu seus gritos encheu-se de violência.
357-E disse aos grandes deuses: 12-Deus viu a terra: estava pervertida, porque
358-“Os gritos da humanidade me importunaram; toda carne tinha uma conduta perversa sobre a
359-fico privado de sono pelo rumor que fazem.” terra.
13-Deus disse a Noé: “Chegou o fim de toda
carne, eu o decidi, pois a terra está cheia de
violência por causa dos homens, e eu os farei
desaparecer da terra.
14-Faze uma arca de madeira resinosa; tu a
farás de caniços e a calafetarás com betume por
dentro e por fora.”
91

QUADRO 22 – OS MITOS DO DILÚVIO II QUADRO 23 – GÊNESIS 7.11,17; 8.1-12


ATRA-HASIS – O DILÚVIO –TABUINHA 3, GÊNESIS 7.11,17
COLUNA 1, LINHAS 15-34;
11-No ano seiscentos da vida de Noé, no
15-Enki abriu a boca segundo mês, nesse dia jorraram todas as fontes
16-e dirigiu-se a seu servo: do grande abismo e abriram-se as comportas do
17-“Tu dizes: posso eu estar atento em meu céu.
quarto de dormir. 17-Durante quarenta dias houve o dilúvio sobre a
18-A mensagem que te vou dizer, terra; cresceram as águas e ergueram a arca,
19-retém-na. que ficou elevada acima da terra.
20-Tabique, ouça-me bem;
21-Choupana de junco, retém o que vou dizer:
22-foge da tua casa, constrói um barco; GÊNESIS 8.1-12
23-despreza os bens
24-e conserva a vida! 1-Deus lembrou-se então de Noé e de todas as
25-Que do barco que construirás feras e de todos os animais domésticos que
26-…sejam iguais. estavam com ele na arca; Deus fez passar um
27-…cômodos. vento sobre a terra e as águas baixaram.
28-Forra-lhe o teto como foi forrado o Apsu. 2-Fecharam-se as fontes do abismo e as
29-Que o sol não veja o interior! comportas do céu: deteve-se a chuva do céu
30-Que ele seja forrado de alto a baixo; 3-e as águas pouco a pouco se retiraram da
31-que seu equipamento seja reforçado; terra; as águas baixaram ao cabo de cento e
32-que o betume esteja firme, torne sólido o cinqüenta dias
barco. 4-e, no sétimo mês, no décimo sétimo dia do
33-Quanto a mim, após o que foi dito, farei mês, a arca encalhou sobre os montes de Ararat.
chover 5-As águas continuaram escoando até o décimo
34-para ti. mês e, no primeiro do décimo mês, apareceram
os picos das montanhas.
EPOPÉIA DE GILGAMESH – O DILÚVIO – 6-No fim de quarenta dias, Noé abriu a janela
TABUINHA 11, LINHAS 19-31; 91-93; 96-98; que fizera na arca
113-114 7-e soltou o corvo, que foi e voltou, esperando
que as águas secassem sobre a terra.
19-O príncipe Ea, que jurara com eles, 8-Soltou então a pomba que estava com ele para
20-repetiu suas propostas na choupana de junco: ver se tinham diminuído as águas na superfície
21-choupana, choupana, tabique, tabique, do solo.
22-choupana escuta, tabique, esteja atento. 9-A pomba, não encontrando um lugar onde
23-Homem de Shuruppak, filho de Ubar-Tutu, pousar as patas, voltou para ele na arca, porque
24-passa a demolir tua casa, constrói um barco havia água sobre toda a superfície da terra; ele
25-renuncia à riqueza e busca a vida; estendeu a mão, pegou-a e a fez entrar para
26-despreza os bens e conserva a vida. junto dele na arca.
27-Faze subir à barca viventes de todas as 10-Ele esperou ainda outros sete dias e soltou
espécies. de novo a pomba for a da arca.
28-Que da barca que construirás, 11-A pomba voltou para ele ao entardecer, e eis
29-as dimensões se correspondam: que ela trazia, no bico, um ramo novo de oliveira!
30-que sua largura e comprimento sejam iguais Assim Noé ficou sabendo que as águas tinham
31-cobre-a como é coberto o Apsu. escoado da superfície da terra.
12-Ele esperou ainda outros sete dias e soltou a
91-Eu vi o aspecto do tempo, pomba, que não mais voltou para ele.
92-o tempo estava terrível para se ver.
93-Entrei no barco e fechei a porta;
96-Aos primeiros albores da manhã,
97-uma nuvem escura surgiu no horizonte;
98-Adad dela trovejava.
113-Os deuses se amedrontaram com o dilúvio,
114-afastaram-se e subiram aos céus de Anu
92

QUADRO 24 – OS MITOS DO DILÚVIO III QUADRO 25 – GÊNESIS 8.15-16; 8.20-22; 9.1-2


E 9.6,8-9.
EPOPÉIA DE GILGAMESH – O DILÚVIO – GÊNESIS 8.15-16; 8.20-22
TABUINHA 11, LINHAS 140 A 156; 170-179,185,
189-194. 15-Então assim falou Deus a Noé:
16-” Sai da arca, tu e tua mulher, teus filhos e as
140-A embarcação acostou no monte Nicir; mulheres de teus filhos contigo.”
141-o monte Nicir segurou a embarcação e não 20-Noé construiu um altar a Iahweh e, tomando
a deixou mais mover. de animais puros e de todas as aves puras,
142-Um primeiro dia, um segundo dia, o monte ofereceu holocaustos sobre o altar.
Nicir dito 21-Iahweh respirou o agradável odor e disse
143-um terceiro dia dia, um quarto dia, o monte consigo: “Eu não amaldiçoarei nunca mais a
Nicir dito terra por causa do homem, porque os desígnios
144-um quinto, um sexto, o monte Nicir dito. do coração do homem são maus desde a sua
145-Quando chegou o sétimo dia, infância; nunca mais destruirei todos os viventes,
146-fiz sair uma pomba e soltei-a; como fiz.
147-a pomba se foi e voltou: 22-Enquanto durar a terra, semeadura e colheita,
148-não encontrando onde pousar, voltou. frio e calor, verão e inverno, dia e noite não hão
149-Fiz sair uma andorinha e soltei-a; de faltar.”
150-a andorinha se foi e voltou:
151-não encontrando onde pousar, voltou. GÊNESIS 9.1-2, 6, 8-9.
152-Fiz sair um corvo e soltei-o;
153-o corvo se foi e, vendo o refluxo das águas 1-Deus abençoou Noé e seus filhos, e lhes disse:
154-comeu, patinhou, crocitou, e não voltou. “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra.
155-Fiz outros saírem, em todas as direções, 2-Sede o medo e o pavor de todos os animais da
ofereci um sacrifício; terra e de todas as aves do céu,como de tudo o
156-fiz uma oferta, expandida sobre o piso da que se move na terra e de todos os peixes do
montanha; mar: eles são entregues nas vossas mãos.
6-Quem derrama o sangue do homem pelo
170-Logo após Enlil ter chegado, homem terá seu sangue derramado. Pois à
171-Enlil viu a embarcação e enfureceu-se; imagem de Deus o homem foi feito
172-cheio de rancor contra os deuses Igigu: 8-Deus falou assim a Noé e a seus filhos:
173-“Alguém escapou com vida! ninguém 9-“Eis que estabeleço minha aliança convosco e
deveria sobreviver à catástrofe!” com os vossos descendentes depois de vós.”
174-Ninurta abriu a boca e disse, dirigindo-se ao
valente Enlil:
175-“Quem, pois, senão Ea poderia inventar
coisa semelhante?
176-Porque Ea é todo artifício”.
177-Ea abriu a boca e disse, dirigindo-se ao
intrépido Enlil:
178-“Tu, o tão sábio dentre os deuses, o valente,
179-como explicar não teres refletido e teres
provocado um dilúvio?
185-Em vez de teres provocado um dilúvio, que
Erra tivesse surgido e massacrado toda gente!
189-Enlil subiu no barco,
190-tomou-me pela mão e fez-me subir;
191-Fez também subir e ajoelhar minha mulher a
meu lado.
192-Tocou nossas frontes e, de pé entre nós,
abençoou-nos:
193-“Antes, Utnapishtim possuía natureza
humana; agora, que Utnapishtim e sua mulher
tornem-se como nós, os deuses;
194-e que Utnapishtim permaneça longe, na
embocadura dos rios”.
93

7.1 – Os mitos de divinização dos heróis

O texto de Gênesis 6.1-4 (Quadro 21), com suas narrativas sobre a união
sexual dos filhos de Deus com as filhas dos homens, constitui-se num dos maiores
problemas hermenêuticos do texto bíblico. Tem sido comum, no decorrer da história
da interpretação da Bíblia, alguns exegetas trabalharem a idéia da união dos
patriarcas descendentes da geração piedosa de Set, homens que andaram com
Deus, os filhos de Deus, com as mulheres descendentes da geração pecaminosa de
Caim, as filhas dos homens (FRANCISCO, 1979, p. 41). Nesse caso, os Nefilim
(gigantes) resultantes dessa união seriam relacionados aos antigos ancestrais dos
cananeus, amonitas e moabitas, isto é, povos impuros (DATTLER, p. 74)41. Numa
segunda interpretação, exegetas cristãos, influenciados pela tradução do termo
!yhiloa>h;AyneB] b’ney-ha’elohim, filhos de Deus por anjos, chegaram a propor uma

harmonização com passagens do Novo Testamento, tais como Judas 6 e II Pedro


2.4, além do livro apócrifo de Henoc (COLUNGA, 1967, p. 126). Segundo essa
interpretação, os anjos abandonaram suas casas celestiais e uniram-se a outra
carne, isto é, às mulheres da terra. Por punição, tiveram mãos e pés algemados, e
foram lançados nos abismos e cobertos de trevas (LORETZ, 1979, p. 31).

Entretanto, com as descobertas dos mitos ugaríticos e mesopotâmicos, novas


leituras começaram a aparecer, a partir da comparação dessas narrativas com o
texto de Gênesis. Os mitos orientais antigos traziam narrativas de uniões sexuais
entre um deus e mulheres (O Nascimento dos Deuses, Quadro 19), ou entre uma
deusa e um homem (Epopéia de Gilgamesh, Quadro 20). Vê-se, como fruto dessas
uniões, a divinização dos filhos gerados, ou a elevação do ser humano para uma
posição de comando divino, quer na plenitude da divindade, quer na situação de
semideus. Loretz (1979, p. 30-34) aborda as diversas possibilidades de
interpretação quanto à identidade dos !yhiloa>h;AyneB] (b’ney-ha’elohim, que traduz-se
por os filhos de Deus, ou ainda, filhos dos deuses), dando conta de que o termo os

41
Argumentos a esse favor são baseados na elevada estatura dos habitantes de Canaã, conforme
relatório do espia Caleb em Números 13.32-33; conferir ainda: I Samuel 17.4; e II Samuel 23.8-10.
94

filhos de Deus é, na verdade, um idiomatismo para a expressão deuses. Loretz


baseia-se, não só nessa expressão idiomática, mas em outros textos bíblicos tais
como Deuteronômio 32.43, Jó 1.6; 2.1, Salmos 29.1-2 e 89.7, em que a expressão
se refere a seres celestiais. Além disso, Loretz examina evidências externas,
comparando o texto de Gênesis 6.1-4 com mitos tais como o ugarítico Nascimento
dos Deuses (Quadro 19) e o mesopotâmico Epopéia de Gilgamesh (Quadro 20). Nos
mitos antigos, o casamento dos deuses, ou o casamento com os deuses, é, em
última análise, o desejo dos seres humanos de se tornarem deuses, parte do drama
do inconformismo com a finitude que a morte provoca no ser.

Esse inconformismo com a limitação dos seres humanos, que é a morte, está
expresso no resultado da união entre os filhos de Deus e as filhas dos homens: o
nascimento dos Nefilim, ou gigantes. Nos mitos antigos, os Nefilim são os
semideuses, qualificados de heróis, como Gilgamesh, divino em dois terços e
humano no outro42. Assim, Stendebach (1983, p. 22) lembra que, entre os povos
vizinhos de Israel, os filhos de Deus eram considerados deuses de categoria inferior.
Por isso, na linha de pensamento de Loretz (1979, p. 43), o autor do Gênesis quer
mostrar a Israel que aquilo que os mitos ensinavam sobre Deus, ou seja, que a
união sexual com os deuses transforma os seres humanos em deuses ou em
antigos heróis, não corresponde à realidade. Pelo contrário, provoca a degradação e
a corrupção das pessoas. Seguindo a mesma reflexão de Loretz, Stendebach (1983,
p. 25) demonstra como o autor de Gênesis 4 esvaziou o que o mito ensinava,
servindo-se, entretanto, de sua linguagem para pregar uma mensagem de cunho
ético:

O que para o ambiente pagão era bom e apetecível é, a seus olhos, um


pecado contra o Deus de Israel. Curioso é que nesta sentença não se castiga
os verdadeiros culpados, os filhos de Deus, e sim os homens, cuja vida é
abreviada. Isto nos permite perceber melhor a distância interior do javista com
respeito ao mito. Para ele, os filhos de Deus nada são, nem sequer é
necessária a intervenção de Iahweh contra eles. O mito, aos olhos do javista,
não é uma realidade, mas simples imagem ou parábola: a parábola das
tentativas humanas de ultrapassar os próprios limites, arrogando-se o ser e o
poder de Deus.

42
A esse respeito, consultar texto da Epopéia de Gilgamesh (não transcrito em quadro), Tabuinha 1,
Coluna 2, linhas 1-2 (PRITCHARD, 1969, p. 72).
95

Para Stendebach (1983, p. 25), a preocupação do autor de Gênesis 4 consiste em


ensinar ao seu povo que a degradação da raça humana está intimamente ligada ao
fato de que o homem é rc;B; (basar), carne, ou seja, homem efêmero, conforme

leitura antropológica de Wolff (1975, p. 43,48). Por isso, não viverá mais que cento e
vinte anos (Gênesis 6.3). O texto bíblico expõe assim a dura realidade humana da
limitação da vida por Deus, como conseqüência do pecado, mensagem essa que
não era trabalhada nos mitos antigos.

O autor bíblico de Gênesis capítulo 6 conheceu esses mitos da união entre os


seres humanos e os deuses, deles se utilizando para, através da subversão do mito
e da utilização de sua linguagem, transmitir uma mensagem de cunho ético ao povo
israelita, uma mensagem que consistia na apresentação de um esquema de
disseminação e aumento da pecaminosidade no mundo, desde a queda do casal no
Éden, passando por Caim e sua descendência, até à comunidade pré-diluviana
(BRIEND et al, 1990, p. 92). Essa pecaminosidade está intimamente ligada ao tema
da união com os deuses proposta em Gênesis 6.1-4.

Para Loretz (1979, p. 49), embora o autor de Gênesis tenha aproveitado o


mito, sua visão não é mítica, e sim histórica: embora se encontre fora da esfera
mítica, serve-se, todavia, do mito, a fim de colocar em evidência a importância
universal do povo eleito. O pecado aconteceu no tempo e no espaço, e os seres
humanos tornaram-se extremamente violentos e maldosos em suas disposições
morais, demonstrando assim a continuidade da disseminação e aumento da
pecaminosidade; mas a conseqüência da pecaminosidade humana com a
experiência do dilúvio serve para mostrar o interesse de Deus por seu povo. Este
povo não deve cair na tentação da divinização da criação proposta pelos cultos
politeístas, o que se constitui em afronta contra a soberania divina. Ao narrar sobre a
união dos filhos de Deus com as filhas dos homens, o autor de Gênesis 6 quer
transmitir uma mensagem de cunho ético, preparando assim o seu povo para refletir
sobre as causas do dilúvio, próximo estágio da narrativa bíblica, quando introduzirá o
ensino da misericórdia divina, a ser verificado no item a seguir.
96

7.2 – Os mitos do dilúvio e o dilúvio ético

Dentro do texto de Gênesis capítulos 1 a 11, as narrativas do dilúvio são


aquelas que têm mais correlatos nos mitos mesopotâmicos antigos, constituindo-se
assim em um dos temas que mais chamam a discussão dos teólogos, quando
comparadas as duas tradições. Deve-se levar em consideração que a tradição
mesopotâmica tem três importantes narrativas: uma, em sumério, disposta em uma
única tabuinha em precário estado de conservação, contendo o relato diluviano com
a presença do herói Ziusudra (BARUCQ et al, 1992, p. 163); outra, com versões em
sumério e acádico, encontra-se na Epopéia de Gilgamesh, tendo como herói,
Utnapishtim (quadros 22 e 24); uma terceira narrativa, em acádico, encontra-se no
poema de Atra-hasis (quadros 20 e 22). Não obstante a existência destas narrativas
diversas, há semelhanças43 entre as tradições mítica e bíblica. Giordani (1987, p.
245-246) lista uma série dessas semelhanças:

QUADRO 26 – SEMELHANÇAS ENTRE AS NARRATIVAS DILUVIANAS

NARRATIVAS BÍBLICAS NARRATIVAS MÍTICAS ANTIGAS


Iahweh decide destruir a humanidade por Os deuses decidem destruir a humanidade.
causa da maldade dos homens.
Noé advertido por Iahweh, constrói a arca, Ea adverte Utnapishtim e este constrói uma
casa flutuante, calafetada com betume. casa flutuante calafetada com betume.
Homens e animais entram na arca. Homens e animais ocupam a embarcação.
O dilúvio extermina os seres vivos. O dilúvio destrói a humanidade.
A arca encalha no monte Ararat , situado na A embarcação estaciona no cimo de uma
Armênia. montanha da Armênia.
Noé solta pássaros (um corvo e, mais tarde, Utnapishtim procura averiguar a baixa das
uma pomba), para certificar-se da baixa das águas soltando pássaros: pomba, andorinha,
águas. corvo.
Noé constrói um altar e oferece um sacrifício Utnapishtim oferece um sacrifício aos deuses.
ao Senhor.
Iahweh sente o odor suave da oferenda e Os deuses sentem, igualmente, o perfume da
abençoa Noé com seus filhos. oferta. Enlil abençoa Utnapishtim e sua
mulher.

43
Essas semelhanças têm sido utilizadas por alguns teólogos (MESQUITA, 1980, p. 43) como
argumento para provar a universalidade do dilúvio. Entretanto, conforme asseverado na introdução
deste capítulo, as descobertas arqueológicas na Mesopotâmia antiga evidenciam inundações em
períodos diferentes (FOHRER, 1982a, p. 291). Por isso, não é objeto desta pesquisa a busca
científica do dilúvio, mas como a tradição bíblica, mais recente que a mesopotâmica, serviu-se do
conhecimento das narrativas míticas disponíveis, para trazer uma mensagem de face ética ao povo
israelita.
97

Contudo, não apenas semelhanças são notadas. As diferenças são evidentes,


apontando para uma utilização modificadora do autor de Gênesis capítulos 1 a 11.
No entendimento de Grelot (1982, p. 72), essas diferenças encerram o sentido
teológico da narrativa bíblica. Estabelece-se, assim, um parentesco entre as duas
tradições. Acerca disto, escreve Giordani (1987, p. 247):

Apesar das dessemelhanças, é inegável o parentesco entre a tradição bíblica


e a tradição cuneiforme. Como explicar tal parentesco? Do confronto
estabelecido, podemos desde logo afirmar com certeza: a) Ambas as
tradições referem-se ao mesmo acontecimento. b) A narrativa bíblica é
nitidamente superior quanto ao conteúdo religioso. Destas premissas parece-
nos lógico concluir: existiu uma antiqüíssima tradição da qual derivaram as
tradições cuneiformes e a tradição bíblica; a tradição bíblica passou por um
verdadeiro “filtro” que a depurou das grosseiras manifestações de caráter
politeístico.

Deve-se ressaltar agora as principais diferenças entre as narrativas em


questão, através da comparação entre as mesmas. A primeira ponte de comparação
diz respeito às causas do dilúvio. Nos mitos mesopotâmicos, o dilúvio é enviado
sobre os homens por deuses incomodados pelo barulho causado pelos tambores
dos cultos prestados a eles próprios pelos seres humanos (Atra-hasis, linhas 352-
359, Quadro 20). Os deuses são servidos pelos seres que eles mesmos desprezam,
algo que aponta para o caráter caprichoso deles. Na narrativa bíblica, a questão é
ética. O capítulo 6 de Gênesis mostra que os seres humanos tornaram-se
extremamente violentos e maldosos em suas disposições morais, dando
continuidade ao tema da disseminação e aumento da pecaminosidade, abordado
pelo autor bíblico de forma seriada e contínua. Gênesis 6.5 (Quadro 21) afirma:
Iahweh viu que a maldade do homem era grande sobre a terra, e que era
continuamente mau todo desígnio de seu coração. É o pecado dos seres humanos
que incomoda o criador e não o seu barulho cúltico, conforme análise de Fohrer
(1982a, p. 293).

Uma segunda ponte de comparação diz respeito à postura moral dos deuses
no drama. Nas narrativas míticas, os deuses encontram-se divididos quanto a
extensão da punição que eles mesmos estabelecem, prova daquilo que Eichrodt
(1975, p. 164) chama de atitude incalculável e caprichosa. No decreto de destruição
estabelecido pelos deuses não pode haver qualquer sobrevivente. Mas um deles,
indo contra essa decisão, ordena ao herói diluviano que construa um barco sem
98

necessariamente revelar a causa do dilúvio (Atra-hasis, linhas 15-34, Quadro 22;


Epopéia de Gilgamesh, linhas 19-31, Quadro 22). Os deuses, durante o dilúvio,
estão trêmulos e, por isso, fugindo da terra, buscam proteção em suas moradas
divinas (Epopéia de Gilgamesh, linhas 91-114, Quadro 22). A narrativa bíblica, por
outro lado, apresenta uma visão monoteísta de Deus, um Deus superior e soberano
sobre a sua criação e também sobre o dilúvio. Ele não é limitado pelo dilúvio, nem
atingido por sua decisão de enviá-lo sobre a humanidade, a não ser pela tristeza de
ver sua própria criação obstinada pela maldade das intenções humanas (Quadro
21). Diferente de Atra-hasis, o Noé bíblico é conscientizado das intenções de Deus e
preparado devidamente para a execução da vontade divina (Gênesis 6.13, Quadro
21).

Uma terceira ponte de comparação tem relação com os resultados do dilúvio.


Na narrativa da Epopéia de Gilgamesh, Enlil fica extremamente raivoso quando vê a
barca com Utnapishtim, herói do dilúvio e seu único sobrevivente (linhas 170 a 179,
Quadro 24). Nesse momento, Enlil fala que seria melhor que o deus Erra tivesse
descido e massacrado toda a humanidade para não ficar ninguém vivo (linha 185,
Quadro 24). Justamente aqui, a ira dos deuses expressa no mito contrasta com a
misericórdia do Deus bíblico, o qual decide impor um limite à sua própria ira,
prometendo não destruir mais a humanidade com o dilúvio (Gênesis 8.21-22,
Quadro 25). Evidencia-se assim como característica distintiva da narrativa de
Gênesis, o aspecto gracioso do Deus bíblico (VON RAD, 1977, p. 151) apesar do
pecado dos homens, pecado que continua sendo uma realidade histórica, mesmo
após a punição diluviana. Gênesis 8.21-22 mostra que o coração do homem
continua mau, mas Deus percebe isso, salva sua criação e, apesar do próprio
homem, conduz a criação dentro de seu propósito. No entendimento de Carriker
(2000, p. 31,33), esse propósito é a aliança prometida, antes mesmo do dilúvio, de
uma nova humanidade com leis de proteção contra a violência humana (Gênesis
9.6, Quadro 25), leis que restringem a extensão da ação pecaminosa, culminando na
idéia de que, através de sua ação julgadora, Deus pretende redimir o ser humano.

Uma quarta ponte de comparação aparece num detalhe no final do mito de


Gilgamesh (linhas 193 e 194, Quadro 24). Ali, Utnapishtim, sobrevivente do dilúvio, é
elevado à categoria de deus e introduzido em uma nova morada especialmente
99

preparada para ele. Para Fohrer (1982a, p. 294), este é o cerne da mentalidade
mítica, a saber, que só se pode escapar à crise provocada pelos dramas humanos
quando se é arrancado de toda miséria humana e colocado entre os deuses. O autor
do Gênesis atribui a Noé em sua nova situação, face à mudança da ordem do
cosmos produzida pelas águas do dilúvio, a situação humana original, proposta na
criação dos seres humanos. A mesma ordem de Gênesis 1.28 (Quadro 4) é dada em
Gênesis 9.1-2 (Quadro 25), isto é, o ser humano é abençoado por Deus e conduzido
à tarefa de se reproduzir e de dominar as demais criaturas. Cabe a ele ser
simplesmente humano e viver sob a orientação divina. Em outras palavras, o autor
de Gênesis continua perseguindo sua meta teológica, evidente nas narrativas desde
o seu primeiro capítulo, para ensinar que a criação não pode ser igualada ao criador.

Diante da exposição das diferenças claras entre as narrativas mítica e bíblica


do dilúvio, não convém partir para a diminuição do valor das tradições
mesopotâmicas em detrimento da tradição judaico-cristã. As narrativas míticas têm o
seu valor, visto que revelam, nas entrelinhas, a universalidade da condição humana.
De acordo com Grelot (1982, p. 73), […] é provável , por isso, que atrás da lenda
local da Mesopotâmia, haja um tema mítico muito mais universal e mais antigo, no
qual os homens das diversas civilizações teriam sintetizado sua sensação de
esmagamento diante das catástrofes naturais. Fohrer (1982a, p. 292) também
participa dessa reflexão e define o cerne dos mitos diluvianos através da expressão
experiência fundamental. Esclarece-nos:

Em que consiste essa experiência fundamental? Na contínua verificação de


ter chegado ao fim e ao fracasso. Com seu mundo, que quer e deve dominar,
e com a cultura que criou, o homem encontra-se sempre no fim e diante do
nada. Ele vê em ação forças maiores do que as dele, que revelam o caráter
ilusório de seu domínio e colocam em discussão a sua civilização. Ele próprio
está à mercê dessas forças, tanto no bem como no mal: é como um joguete
em suas mãos. Os relatos do dilúvio apresentam essa experiência.

Assim, a tradição bíblica participa da reflexão sobre a condição humana, mas


abandona a proposta politeísta divinizadora da criação, e imprime o caráter ético do
julgamento divino. Nesse caráter, Deus, apesar da pecaminosidade dos seres
humanos, não abandona a sua criação. A ordem divina para o mundo natural
continua, e as semeaduras e colheitas, o frio e o calor, o verão e o inverno, o dia e a
100

noite, não sofrem solução de continuidade. O mundo natural obedece ao intento


divino. Deve o ser humano fazê-lo também.

O autor de Gênesis capítulos 1 a 11 entende que, não obstante a bênção da


fecundidade ser renovada após o dilúvio, remetendo assim o ser humano à sua
condição original, a maldade humana continua a existir, mas agora sob leis
propostas pelo próprio Deus para a punição da violência e para serem administradas
pelo próprio ser humano (Gênesis 9.6, Quadro 25). O Deus bíblico revela-se como
um Deus sem caprichos, que não precisa enviar catástrofes sobre os seres humanos
sempre que estes o afrontam (PURY, 1996, p. 97). Se, apesar do dilúvio, o mundo
jamais será bom e muito bom (condição primordial na criação), Deus trata de fazer
um pacto com o ser humano, inserindo-se, desta forma, como Deus gracioso e
misericordioso na história de um povo. O autor bíblico demonstra esse interesse
divino através de listas genealógicas dos descendentes de Noé, com ênfase em
Sem (ascendente dos semitas), que culminam na família de Abraão (Gênesis 11.10-
32). Deus, ao enviar o dilúvio, não estava apenas punindo os seres humanos, mas
preservando o próprio homem de sua maldade, visto que nem mesmo Noé sobraria
no mundo diante da violência humana, não fosse a intervenção de Deus
(WESTERMANN, 1987, p. 35).
101

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A linha de pensamento proposta nesta dissertação trilhou pelo conhecimento


que o autor de Gênesis capítulos 1 a 11 teve dos mitos mesopotâmicos e ugaríticos,
a fim de mostrar que esse autor entrou numa relação interativa com os mitos
antigos, esvaziando-os de sua roupagem politeísta, roupagem esta que implicou na
divinização dos seres humanos e de toda a ordem criada. Para tal empreendimento,
o autor bíblico serviu-se da linguagem mítica, não destruindo os arquétipos
fundadores dos mitos, mas utilizando-os a ponto de trazer ao povo israelita,
ameaçado em sua fé pelos cultos politeístas, uma mensagem de cunho ético.

Para a constatação da hipótese levantada na pesquisa, foi trabalhado, ao


longo do texto, o formato teológico que o autor bíblico deu às narrativas do Gênesis
capítulos 1 a 11, no modo comparativo, confrontando as tradições bíblicas e extra-
bíblicas entre si, extraindo-se desta comparação o sentido teológico dado na
narrativa israelita. Este sentido e esta mensagem consistiram no chamado ao
reconhecimento do Deus criador, único e soberano, cujo caráter é contrário à
pecaminosidade da raça humana, condição essa que corrompia as relações entre os
próprios seres humanos, entre os seres humanos e a ordem criada e,
principalmente, entre os seres humanos e Deus. Por isso, Gênesis capítulos 1 a 11,
antes de ser uma versão israelita da história das origens, é uma confissão de fé dos
antecedentes da religião judaica diante de um mundo cercado pelos deuses e pela
autodeterminação dos povos dominadores, quer cananeus, quer babilônicos, cujas
premissas de fé eram incompatíveis com o caráter ético do Deus israelita. Durante o
desenvolvimento da reflexão, verificou-se que a polêmica entre as duas tradições
resultou num conhecimento sobre o universo literário de parte do Antigo Testamento
e de algumas confissões significativas da fé veterotestamentária. Deve-se ressaltar
as seguintes ênfases:

1. Percebe-se a capacidade modificadora do autor de Gênesis capítulos 1 a


11, diante do universo mítico ao seu redor e do qual era tributário. Esse autor não
vivia em um mundo cujos referenciais para explicar a realidade eram fundados no
método científico: em sua época, a condição humana era expressa em dramas de
102

deuses, chamados mitos, e perpetuados nos ritos religiosos. O mito era a expressão
mais legítima da realidade vivida, e o autor de Gênesis, encontrando-se em meio a
esse ambiente, serviu-se de arquétipos existentes de tal forma que nem mesmo
chegou a descrer deles. Mas descreu das implicações que deles resultavam para a
vida dos seres humanos em seus relacionamentos interpessoais mais simples até o
desejo de dominar povos. Desta maneira, a narrativa bíblica modifica a condição
humilhante a que eram submetidos os seres humanos diante das justificativas
apresentadas a partir das decisões dos deuses em suas assembléias. Por exemplo,
o ser humano criado como escravo dos deuses nas narrativas míticas é remetido à
sua condição original e ideal na narrativa bíblica: ele não é escravo de Deus, mas foi
criado à sua imagem e semelhança, digno e responsável por uma tarefa de
administração de um jardim e dos animais irracionais.

2. A demitização dos elementos do mundo natural trouxe uma fé desprovida


de características mágicas, mas engajada em uma visão historicizada da relação
entre Deus e os homens. Por exemplo, elementos como a terra, o firmamento, as
águas, os astros, todos eles são esvaziados de suas personalidades divinas,
atribuídas pelos mitos. A narrativa bíblica atribui aos astros apenas um valor
instrumental, ou seja, eles foram criados para servirem como referenciais para o
calendário e as estações, e como sinais que orientam o plantio e a colheita na
agricultura. A relação dos homens com os elementos da natureza não deve ser
cúltica, visto que a relação cúltica é exclusividade de Deus, e a forma de se
relacionar com ele deve ser através do reconhecimento da sua soberania como
criador, ponto de partida para uma vida pautada por uma ética, da qual o próprio
Deus é exemplo.

3. A negação que a Bíblia faz da divinização do ser humano no ato criador de


Deus remete o ser humano a um sentimento de dependência de Deus, visto que a
concepção da criação do ser humano exposta em Gênesis capítulos 1 a 11 tira este
da situação contraditória engastada na visão politeísta, conferindo-lhe uma condição
de simplicidade e dignidade. Nos mitos, o homem é criado como escravo dos
deuses, fruto do joguete de forças divinas superiores e inferiores que transferiam
entre si responsabilidades de um trabalho cansativo que não mais queriam realizar.
Ao mesmo tempo e contraditoriamente, o ser humano é divinizado, visto ser ele
103

produto do sangue de um deus morto. Na narrativa bíblica, o homem é criado como


ser autorizado por Deus à vida, pois possui um fôlego vital que lhe é pedido de volta
por ocasião de sua morte, mas que não lhe confere, de modo algum, status de
divindade. O homem criado é parecido com Deus, mas não igual a Deus, devendo
ele estar debaixo do domínio de Deus, e dominar os animais irracionais e a terra
cultivada, e ser parelho à sua costela, ou seja, em situação de igualdade com
relação ao seu próximo.

4. A realidade resultante da queda remete o ser humano ao estado de sua


limitação. Assim, há no texto bíblico uma demitização dos cultos de fertilidade,
simbolizados na serpente e portadores de uma mensagem de divinização plena da
criatura, visto que o arquétipo da árvore da vida está relacionado com a busca da
imortalidade. A reflexão de Gênesis capítulos 1 a 11 encerra-se dentro de um
sentido ético, visto que na Epopéia de Gilgamesh a perda da planta da vida para a
serpente é um descuido do herói mesopotâmico, enquanto na narrativa bíblica o ser
humano é avisado do perigo em tomar parte da árvore do conhecimento do bem e
do mal, desobedecendo a Deus por uma decisão pautada no argumento enganoso
da serpente de que ele poderia ser igual a Deus. Na Bíblia, a questão é moral, e a
realidade que resulta após a decisão errada do ser humano é a da subversão da
ordem criada. A relação entre o ser humano e os animais, o ser humano e o seu
próximo, o ser humano e a terra, o ser humano e Deus, torna-se corrompida e
retirada de seu estado primordial. Essa corrupção é evidenciada na degradação da
imagem do homem e da mulher nos cultos politeístas.

5. Ensina-se que o pecado não é um drama do mundo dos deuses. Ele é uma
realidade experimentada, primeiro, na queda primordial, depois, num processo
contínuo de crescimento da violência e maldade humanas e nos projetos de
civilização humana, projetos pelos quais o ser humano se arvora em criar uma
cultura cujo fim é o de alcançar os céus, igualando-se assim a Deus. Deus cria um
jardim, mas o homem constrói um mundo de pedra do seu jeito, mudando assim a
ordem original, como se ele mesmo fosse o criador. Mas Deus frustra qualquer
projeto de construção humana tendencioso a divinizar pessoas, reinos e poderes
terrenos, e a ruptura da unidade da raça humana é evidência de que a autonomia
humana não trouxe o que dela se esperava, mas que essa autonomia, reflexo do
104

pecado, redundou em um estado de confusão dos seres humanos, divididos e


espalhados para longe do Éden, símbolo de um estado ideal de proximidade de
Deus.

6. Ensina-se que Deus está acima de sua própria criação e não permitirá que
ela seja destruída pela maldade humana, conseqüência direta de sua autonomia.
Nos mitos diluvianos mesopotâmicos, os deuses punem o ser humano por se
sentirem incomodados com o barulho de seus cultos e desprezam o homem que
eles mesmos criaram, por meio da punição irrestrita que era o dilúvio, de tal forma
que nenhum ser humano possa sobreviver. Divididos entre si quanto ao destino do
ser humano, amedrontam-se por causa do furor da tempestade que eles mesmos
enviam. Revoltam-se com a sobrevivência de um herói, mas contraditoriamente o
promovem à condição divina. Num contraste completo, o texto de Gênesis ensina
que, enquanto a maldade humana avança, Deus envia o dilúvio, não apenas como
uma punição ética, mas como uma providência misericordiosa, por meio da qual
salva a humanidade da destruição que ela traz sobre si.

Além destas seis reflexões, a maneira como o autor de Gênesis capítulos 1 a


11 utilizou-se da linguagem mítica para produzir um ensinamento ético sobre Deus e
sua criação também tem uma série de implicações para o mundo hodierno, que
abrangem áreas tais como o diálogo entre a Fé e a Ciência, a exegese e a
pregação. Quanto à relação entre Fé e Ciência, os caminhos que estas duas
disciplinas têm percorrido durante séculos têm sido de um conflito constante. A Fé,
representada pela Igreja, sentiu-se ameaçada pela Ciência e passou a adotar – e
ainda adota – duas posturas para resolver o dilema. A primeira foi a de salvar a
Bíblia, esvaziando o valor das descobertas científicas, quer pela mofa em relação à
própria Ciência, quer pela perseguição àqueles que se arvoraram em divulgar suas
descobertas. Outra postura foi a do cientificismo bíblico, no qual se tenta justificar a
Bíblia, através da harmonização de textos bíblicos com descobertas científicas44.
Esta última postura é a que está mais em voga hoje, existindo ainda uma leitura

44
Um exemplo dessa postura é a referência que Oliveira (1979, p. 44) faz da descoberta do
astrônomo inglês Edwin Ball de uma perda de 24 horas do tempo solar, confirmada pelos cientistas
espaciais em Green Belt, Maryland, para confirmar o sol detido em Josué 10.12-14.
105

bíblica filtrada pela Ciência, como se a mensagem bíblica fosse tributária das
premissas científicas e delas dependesse para ser, de fato, uma palavra de Deus.

Além das descobertas científicas, a crítica literária bíblica também contribuiu


para a polemização entre Fé e Ciência. Primeiro, porque, com o auxílio da teoria das
quatro fontes de composição do Pentateuco, popularizada em Wellhausen,
divergências internas do texto de Gênesis capítulos 1 a 11 tornaram-se evidentes45,
constatando-se que o texto não fornecia pistas para a explicação científica da
formação do mundo, mas que, em virtude de suas diferenças, estava encerrado
dentro de ênfases teológicas; segundo, porque a crítica literária bíblica não
minimizou a Ciência, até porque estava enraizada numa reflexão mais afeita ao
ambiente acadêmico, de face racional; terceiro, porque com as descobertas das
narrativas míticas ugaríticas e mesopotâmicas no século XIX, constatou-se um
parentesco com o texto bíblico de Gênesis capítulos 1 a 11, relação essa trabalhada
no corpo desta dissertação.

A implicação principal de tudo isso para o mundo hodierno é que,


paradoxalmente, a crítica literária bíblica abriu as portas para o diálogo entre a Fé e
a Ciência, visto que se começou a entender que as duas disciplinas possuem
métodos distintos quanto às formas de conhecimento. A Ciência conhece o objeto
de estudo a partir da observação e do empirismo; a Fé, através da revelação. A Fé
não se apoia em experimentos de laboratório; a Ciência não se fundamenta a partir
do encontro com o divino. Respeita-se assim a fronteira entre as duas disciplinas.
Dessa forma, o cientista pode ler a Bíblia sem ser lesado em sua fonte de
conhecimento, da mesma forma que o texto de Gênesis é verdade em matéria de
Fé, sem qualquer ameaça das descobertas científicas. Ciência e Fé respeitam-se no
mundo de seus métodos.

Da síntese entre Ciência e Fé, advém uma segunda implicação importante da


reflexão proposta nesta dissertação para o mundo hodierno: a exegese. Enquanto a
leitura fundamentalista rejeita a contribuição das escolas críticas para o estudo

45
Observa-se que no capítulo 1 de Gênesis o ser humano é a última das criações de Deus, feito
macho e fêmea, a um só turno; no capítulo 2, o ser humano masculino é criado antes dos vegetais e
dos demais animais selvagens, vindo por último, a mulher.
106

bíblico, propõe-se aqui uma exegese que não despreze a contribuição da crítica
literária bíblica. Compreende-se que, à luz da pesquisa feita sobre a linguagem
mítica contra o mito, o autor bíblico estava transmitindo ao seu povo uma mensagem
de Deus, de cunho ético. Mas, o texto bíblico, a despeito de ter sido transmitido
numa cultura e época diferentes da atual, ainda pode, pelo fato de ser palavra de
Deus, ter sentido numa cultura e numa época que não é mais a do Oriente Antigo.
Desta maneira, se faz necessário um caminho exegético para o Antigo Testamento
que passe por três perguntas bem definidas: Primeiro, que sentido teve o texto para
a comunidade de fé que o produziu e o recebeu? Segundo, que releitura sua foi feita
pela comunidade do Novo Testamento? Terceiro, o que essa mensagem tem a ver
com o mundo hodierno, com a comunidade na qual o leitor está inserido? Essas
questões são trabalhadas pela exegese do Antigo Testamento, mas encontram seu
ambiente de resposta principalmente, na pregação da igreja.

Sem dúvida, um dos grandes desafios para a pregação e ensino da igreja


atual é o de apresentar Gênesis capítulos 1 a 11 sem comprometer a essência da
mensagem que o autor bíblico quis transmitir e, ao mesmo tempo, torná-la relevante
para o homem hodierno. É comum o pregador não refletir adequadamente sobre a
relação Fé versus Ciência, nem trabalhar métodos de exposição que visem
transformar as imagens descritas na narrativa bíblica em valores, éticos ou
espirituais. Diante de tais falhas e omissões, Gênesis capítulos 1 a 11 lega à
pregação cristã da atualidade dois importantes paradigmas, mencionados a seguir.

O primeiro paradigma é o da linguagem teológica. Observa-se como o autor


bíblico dispôs dos mitos antigos, expressões verdadeiras da condição humana dos
povos do Oriente Médio. O formato da linguagem mítica, bem como os seus
arquétipos, permaneceram inalterados, tendo sido modificados os valores morais
agregados aos personagens e aos componentes da criação em duas situações:
uma, primordial, a de seres criados; outra, real, a de seres degradados. Falando na
linguagem mítica, o autor bíblico estava se fazendo entender, visto que o mito era
expressão legítima e popular da realidade.

Fazendo uma ponte de comparação entre o universo mítico oriental antigo e a


realidade social do universo regional, ambiente nascedouro e no qual se insere essa
107

dissertação, percebem-se traços de parentesco entre a condição do homem


mesopotâmico e a condição do povo nordestino brasileiro. Sua relação com o divino
é, como nos mitos antigos, recheada de politeísmo e expressa em ritos religiosos e
rotinas culturais, tais como o maracatu rural e a literatura de cordel, esta última rica
em imagens e representações míticas, com deuses, heróis, vilões e seres humanos,
transferidos de tempos em tempos para o ambiente divino. O desafio para o ensino e
a pregação cristã é o de incorporar às suas formas a linguagem que tais mitos
contemporâneos empregam.

Um segundo paradigma para a pregação em Gênesis capítulos 1 a 11 é o da


atualização do conteúdo ético do texto transmitido aos antigos israelitas. Cada parte
do texto bíblico tem pontes para analogia com questões atuais que envolvem, não
apenas a individualidade, mas também a coletividade. Assim, Gênesis 1 traz
implicações para uma reflexão em torno de uma ecologia centrada na fé em Deus
como criador, de tal forma que seja o alvo do cristão o esforço por uma natureza
digna; Gênesis 1 e 2 trazem implicações para uma visão da dignidade do ser
humano, criado à imagem e semelhança de Deus, donde se extrai uma ética que
clame contra a exploração do homem pelo homem, contra o trabalho escravo, contra
o racismo, contra quaisquer atitudes que diminuam a dignidade da mulher; Gênesis
3 ensina o ser humano a reconhecer-se como pecador finito e limitado, motivo pelo
qual deve encontrar-se com a graça de Deus; Gênesis 4 e 11 trazem importantes
ensinamentos sobre as más disposições da vontade humana, quando esta se
distancia do culto ao Deus único e passa a cultuar a própria autonomia humana. O
projeto de civilização da descendência de Caim e a torre de Babel lembram-nos que,
na história geral, todo o orgulho humano por suas conquistas e descobertas,
verdadeiros legados de sua autonomia e de seu desejo por ser Deus, não redundou
no progresso que se esperava.

Assim, hoje, por exemplo, a manipulação bacteriológica trouxe, como


proposta primordial, a cura de doenças mortais, mas, ao mesmo tempo, a invenção
de armas bacteriológicas utilizadas nas guerras; a descoberta do átomo encheu o
homem de orgulho e Hiroshima e Nagazaki de destruição. E o que o orgulho da
clonagem humana reservará para as futuras gerações? Em meio a estas posturas
de autonomia arrogante, Gênesis 5 mostra que é possível ao ser humano viver de
108

acordo com a vontade de Deus, andando com ele, e Gênesis 6-10, além de ressaltar
o juízo divino, também exalta a misericórdia de Deus, mostrando que, apesar da
maldade do ser humano, Deus continuará a estar soberano sobre sua criação e que
sua aliança com os homens é de fidelidade absoluta.

A leitura de Gênesis capítulos 1 a 11 proposta nesta dissertação tem ainda


outras implicações que, por fugirem ao seu escopo, representam um desafio para
futuras pesquisas, por exemplo, na área da Teologia Sistemática e na área dos
estudos da literatura pós-exílica do Antigo Testamento46. Entendemos que esta
dissertação, bem como outros estudos, confirmam inequivocamente a hipótese
inicial enunciada: há continuidade e descontinuidade na relação entre o autor de
Gênesis capítulos 1 a 11 e as antigas narrativas míticas mesopotâmicas e ugaríticas.
Israel tomou emprestados muitos conceitos de seus contemporâneos culturais e
reagiu de maneira teológica a estes mesmo conceitos, legando à posteridade uma
mensagem de cunho ético.

46
Uma obra recente, editada por Baker e Arnold (1999), aprecia o papel e a reapropriação do mito no
Antigo Testamento, conforme ênfase de F. W. Cross, Paul Hanson e W. R. Millar.
109

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