RECIFE
2002
MARCOS ANTÔNIO MIRANDA BITENCOURT
RECIFE
2002
TERMO DE APROVAÇÃO
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Dra. Joyce Elizabeth W. Every-Clayton
(orientadora)
_____________________________________
Dr. Houston Greenhaw
__________________________________
Dr. Zaqueu Moreira de Oliveira
Ao amigo e colega, Pr. Ney Ladeia, pelo estímulo constante e pelo apoio
material.
Durante diversos séculos, os primeiros onze capítulos do Gênesis têm sido motivo
de conflito entre Fé e Ciência, gerando, com isso, posturas divergentes, quais sejam,
aquela postura caracterizada pela leitura fixista da Bíblia, que aliena o texto do seu
contexto original e que busca nele verdades científicas ou históricas, bem como uma
outra, caracterizada pela preocupação demasiada com a leitura crítica do texto
bíblico sem uma aplicação para a comunidade de fé. As descobertas, no Oriente
Antigo, de diversas narrativas míticas com laços de parentesco com as narrativas do
Gênesis levantaram a questão da necessidade de se interpretar o texto bíblico
dentro do seu ambiente histórico nascedouro, possibilitando assim saber como o
autor bíblico serviu-se da linguagem mítica, através das narrativas de Gênesis,
capítulos 1 a 11, para, com isso, atualizar a sua mensagem teológica, portadora de
um forte caráter ético. Além disso, objetiva-se expor o texto bíblico sob uma
perspectiva exegética que permita o diálogo entre a Fé e a Ciência. Quanto aos
métodos para a construção desta dissertação, seguir-se-á o molde da pesquisa
bibliográfica, visto que o referencial teórico no qual a presente pesquisa está
amparada é fruto de estudos anteriores, contando inclusive com o amparo de
descobertas arqueológicas, quais sejam os textos mesopotâmicos e cananeus
utilizados. O estudo feito através das comparações entre os mitos e o texto de
Gênesis revelou a capacidade modificadora do autor bíblico diante do seu universo
mítico, seguindo um padrão de demitização da criação e anunciando a soberania de
um único Deus e as implicações éticas de seu ensino para a vida do povo de Israel.
For centuries the first eleven chapters of Genesis have motivated conflicts between
Faith and Science, and these conflicts have produced divergent ways of reading the
biblical text. On the one hand is the static view of the Bible which alienates the text
from its original context and which looks for scientific or historical truth in the Bible.
Others give excessive attention to the critical reading of the biblical text, without
applying it to the faith community. Discoveries, in the Ancient Near East, of several
mythical narratives clearly related to the Genesis narratives strongly suggest a need
to interpret the biblical text within the historical context in which it was born, and to try
to ascertain how the biblical author used mythical language in the narratives of
Genesis, chapters 1 to 11, to convey his theological message, a message with a
strong ethical emphasis. As well as investigating these questions, the present
dissertation attempts to expound the biblical text in such a way as to facilitate
dialogue between Faith and Science. As to its construction, this dissertation is based
on bibliographical research, for, as our theoretical base indicates, our main sources
are previous studies, including those based on archaeological discoveries,
particularly those related to the discovery of the Mesopotamian and Canaanite texts
studied. Our comparative studies of the myths and the Genesis text show that the
biblical author, faced with a mythical world, was able to modify that, to de-
mythologize the creation, and to proclaim the sovereignty of the One God, and the
ethical implications of that teaching for the life of God´s people.
LISTA DE QUADROS
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 09
INTRODUÇÃO
Há séculos, os primeiros onze capítulos do livro do Gênesis têm sido alvo das
mais diversificadas discussões divisivas em torno de questões relativas à autoria
mosaica, à inspiração, à historicidade das narrativas sobre Adão e Eva, a queda, o
dilúvio, e a relação entre fé e ciência. Interpretações do referido texto geralmente
seguem uma de quatro tendências. A mais conservadora afirma a autenticidade das
narrativas a partir da teoria da inspiração mecânica, defendendo a historicidade dos
personagens envolvidos e encontrando uma seqüência histórica perfeita que
transmite aos leitores verdades de cunho científico sobre a criação e de cunho
espiritual sobre o estado da pecaminosidade humana iniciada em Adão.
O problema norteador desta pesquisa surgiu quando foi percebido que o texto
bíblico tem uma série de semelhanças com os textos mesopotâmicos e cananeus
antigos. Surgiu então a seguinte pergunta: por que existe tanta semelhança entre os
textos bíblicos de Gênesis capítulos 1 a 11 e os textos mesopotâmicos e cananeus
da criação, da queda e do dilúvio? Decorrente dessa primeira questão, surgiu uma
outra: qual a relação entre essas duas tradições narrativas e, por isso, qual a
natureza dos textos bíblicos em Gênesis capítulos 1 a 11?
Segundo, no que diz respeito à tradução das narrativas míticas, será utilizada
a tradução para o português feita por Duprat do texto, em francês, do livro A criação
e o dilúvio: segundo os textos do Oriente Médio Antigo (BRIEND et al, 1990). As
únicas exceções são aquelas narrativas míticas que não aparecem no aludido texto;
na medida em que estas ocorrerem, serão mencionados os tradutores em nota de
rodapé.
Toda e qualquer leitura bíblica deve ser realizada dentro de uma determinada
situação de vida que originou a parte chamada texto. Não existe leitura puramente
espiritualizada. Por leitura espiritualizada entenda-se aqui a interpretação feita de
um texto bíblico sem qualquer conexão com o ambiente de produção textual como
se o texto bíblico tivesse sido produzido diretamente para o mundo hodierno. Por
outro lado, o texto bíblico possui uma propriedade peculiar, a saber, a da
aplicabilidade, em função de seu caráter sagrado, conforme adotado tanto por
judeus quanto por cristãos. Apesar de ter sido escrito em tempos antigos, ele tem a
pretensão de falar ao homem hodierno, através da utilização de recursos tais como a
analogia.
O autor bíblico interagiu com essa mentalidade, falando a seu povo aquilo que
é conhecido como palavra de Deus e produzindo um ensinamento contrário àquilo
que os mitos ensinavam, numa postura ética e missionária, que buscava desviar o
povo israelita do politeísmo reinante nas entrelinhas dessas narrativas.
1
Doravante será utilizado o termo autor bíblico do Gênesis como forma de se referir ao texto em si
mesmo e à mensagem ali exposta. O autor desta dissertação não defende a autoria mosaica de
Gênesis capítulos 1 a 11; antes, compreende a formação desse texto a partir das tradições do Javista
(século X antes de Cristo) e do Sacerdotal (século VI antes de Cristo), conforme explicitadas na
crítica literária bíblica, levando-se ainda em consideração a atuação de um redator final que deu
forma ao texto completo, no período pós-exílico. As duas tradições, javista e sacerdotal, têm algo em
comum: a convergência ética em torno de um único e suficiente criador, numa proposta catequética
ao povo de Israel, seduzido pelos cultos da divinização da criação.
15
Para Grelot (1982, p. 17) não é fácil dar uma definição de mito que satisfaça a
todos os pesquisadores da matéria. Argumenta que os mitos antigos se
apresentavam, em geral, como histórias que colocavam em cena seres divinos,
deuses e deusas, bem como seres humanos, num processo de interação entre eles.
Na verdade, os povos orientais antigos tratavam suas grandes questões existenciais,
os seus dramas, espelhando-se no drama dos deuses. Inquietações tais como o
sofrimento, a morte e o fim das coisas, a existência do ser humano, a misteriosa
atração sexual entre as pessoas, o porquê das inundações que destruíam
plantações e vidas humanas, tudo isso se expressava na forma de narração
explicativa que projetava sonhos e angústias da humanidade através de rituais
(GRELOT, 1982, p. 17).
2
Lohfink (1978, p. 54) não vê diferença entre forma e gênero literário, apesar de parte dos estudiosos
da crítica literária denominar de forma as unidades textuais menores e de gênero literário, as grandes
formas, unidades textuais maiores,como por exemplo, o romance e o drama.
16
classificatórios, quando estabelecem as relações dos homens entre si, tendo como
exemplo a criação das classes sociais; etiológicos, quando estabelecem as relações
do homem com o mundo que o cerca, tendo como exemplo o surgimento de animais
peculiares à região, acrescentando-se ainda a origem de determinados nomes ou
locais. Delimita-se assim o universo na ênfase do mito religioso. Este, por sua vez,
procede dos arquétipos3 (também conhecidos como mitologemas), que operam
comumente em todas as religiões, imagens que funcionam como elementos básicos
da expressão religiosa universal. Alguns exemplos de arquétipos são: o céu, como
símbolo da transcendência; o sol, como símbolo da soberania; a lua, como símbolo
dos ritmos da vida; a terra, como símbolo da maternidade (ELIADE, 1993, p. 98-99).
A narrativa mítica utiliza os arquétipos, visto que eles evocam nas pessoas
realidades intrínsecas aos símbolos constituintes dos mitos. Acerca da relação entre
o mito e o arquétipo ou mitologema, afirma Piazza (1976, p. 133-134):
3
Arquétipos são modelos ideais dos seres criados, bases para construção dos mitos e portadores
dos motivos mitológicos. Constituem-se ainda em imagens que funcionam como elementos básicos
da expressão religiosa universal. O termo arquétipo foi tomado emprestado de Agostinho de Hiponna
por Jung na Psicanálise. Para Jung (1978, p. 86), os mitos estão numa área da mente humana, um
lugar onde repousam todas as impressões extraídas da experiência coletiva, chamada por ele de
inconsciente coletivo. Os arquétipos seriam imagens primordiais, herdadas dos ancestrais humanos
(FADIMAN; FRAGER; 1986, P. 50).
17
A partir dessa idéia podemos pensar que o mito carrega consigo uma
mensagem que não está dita diretamente, uma mensagem cifrada. O mito
esconde alguma coisa. O que ele procura dizer não é explicitado literalmente.
Não “está na cara”. O mito não é “objetivo”, tipo pão, pão, queijo, queijo. O
que ele afirma o faz, de toda evidência, com muita sutileza. O mito fala
enviesado, fala bonito, fala poético. Fala sério sem ser direto e óbvio.
4
A Etnologia é a ciência que estuda os povos e as raças, nos pontos de vista de seus caracteres
psíquicos e culturais, de suas diferenças e afinidades, de suas origens e relações de parentesco.
18
Cabe aqui uma questão em torno da forma como esses mitos eram
preservados nas culturas antigas. Nesse sentido, Bentzen (1968, p. 261) assevera a
relação entre o mito e o rito, em que o mito foi celebrado e explicado através dos
ritos anuais, verdadeiras festas de ano novo, nas quais os dramas humanos eram
expostos através das histórias dos deuses. Para ele, os mitos da criação foram os
mais expressos em ritos, e encontrados por Israel a partir do assentamento das
tribos na terra de Canaã. Armstrong (1994, p. 25) endossa esse pensamento,
inserindo o conceito de que os ritos revelam a distância entre os celebrantes e os
deuses mencionados nos mitos. As pessoas não esperavam que os deuses se
envolvessem em suas vidas profanas, visto que as ações divinas haviam se
realizado em um tempo sagrado, fora do alcance e da compreensão humana.
Contudo, o que era mito e rito se tornou expressão textual. Deve-se, assim, partir
para a busca da pesquisa dos mitos orientais antigos expressos em textos. É o que
está exposto a seguir.
Gilgamesh é apresentado como rei de Quis, herói orgulhoso e tirano que logo
recebe a antipatia dos deuses, que, por sua vez, providenciam um rival capaz de
vencê-lo. Esse rival chamado Enkidu, criado a partir do barro molhado, apresenta-se
5
A lenda é um tipo de saga , cujo objetivo é o de legitimar uma instituição ou situação. Por exemplo,
as lendas dos santuários antigos dão legitimidade a um determinado santuário como local de
peregrinação, visto que, em determinado tempo do passado, um importante patriarca ou herói ali
esteve oferecendo um culto.
6
As cópias encontradas por Layard são datadas por volta do século VII antes de Cristo e
representam o desenvolvimento textual da narrativa de Gilgamesh (SANDARS, 1992, p. 8).
21
como um bicho peludo, vivendo no meio dos animais selvagens. Enkidu perde sua
condição de ser criado pelos deuses como invencível, na medida em que é seduzido
por uma prostituta com a qual tem relações sexuais, passando à condição de ser
humano. Se o conhecimento sexual destitui Enkidu de sua invencibilidade, traz, ao
mesmo tempo como contribuição positiva, a expansão de sua inteligência. Isso é o
que lhe permite tornar-se parelho a Gilgamesh e, a partir daí, os dois vivem como
amigos que viajam realizando conquistas pelo mundo, proezas que incluem vitórias
sobre flagelos divinos enviados contra eles. Mas Enkidu adoece e morre, fazendo
Gilgamesh descobrir a realidade da morte. Numa tentativa desesperada para lutar e
vencer a morte, Gilgamesh recusa enterrar o corpo de Enkidu até o momento em
que testemunha a decomposição do corpo de seu amigo. Depois, encomenda uma
imagem na forma de estátua que lembre o corpo do amigo que está quase
desaparecendo, mas percebe que a estátua permanece imóvel e sem comunicação.
Finalmente, faz uma longa viagem cheia de perigos e de encontros com seres
míticos que procuram ensinar-lhe o sentido da vida e da morte, momento em que
recebe de Utnapishtim, único sobrevivente do dilúvio, a revelação do local onde se
encontra a planta da vida, um vegetal que pode dar a imortalidade a quem dele
comer. Gilgamesh encontra a planta da vida no fundo do mar, mas, depois de um
descuido, perde-a para uma serpente que, comendo-a, deixa para Gilgamesh a lição
que ele deverá conformar-se com a morte, que é o seu destino futuro.
O mito de Atra-hasis representa a tão antiga quanto nova tentativa dos seres
humanos buscarem explicações para os males que os afligem em sua existência
finita. A transferência das responsabilidades de serviço pesado dos deuses
superiores aos deuses inferiores e, por último, aos seres humanos, é sempre uma
transferência de culpa que serve para explicar os males pela via inversa. Os seres
humanos sempre viram nos deuses incomodados pela finitude humana a culpa para
o seu infortúnio. A humanidade foi criada para os deuses e é fruto de seu capricho.
Talvez o culto possa aplacar a ira dos deuses.
filhos revoltosos, confiando a chefia ao deus Kingu, seu novo marido. Tal preparo
da deusa-mãe gerará a união desses filhos-deuses caracteristicamente
personalizados que, uma vez intimidados, abrem mão de suas individualidades para
concederem o poder ao filho de Ea, o deus Marduk. Depois de grande combate,
Marduk consegue matar sua mãe Tiamat e divide o seu corpo em partes com as
quais cria a abóbada celeste. Na seqüência, Marduk imola o deus Kingu, moldando
o ser humano com o sangue desse deus, imprimindo ao homem as tarefas dos
deuses, já cansados de trabalhar. Mas a criação não pára aí; como obra final, surge
a Babilônia. O Enuma-Elish tem por fim último legitimar a realeza universal de
Marduk sobre os outros deuses, considerados como aspectos do deus criador, mas
também adorados em seus respectivos níveis, não chegando o povo babilônico à
capacidade de superar esse politeísmo sincrético para formularem uma crença no
deus único (BARUCQ et al, 1992, p. 159).
7
Na Assíria a deusa correlata a Inanna era Ishtar e, para Dumuzi, Tamuz.
26
Em Baal e o Mar existem narrativas sobre a vitória do deus Baal sobre Yam,
deus do mar, e sobre Nahar, deus dos rios8. Yam tenta submeter Baal ao seu
domínio através da construção de um palácio para demonstrar sua supremacia.
Neste tempo, pressiona o panteão de El para que Baal seja entregue, algo que
quase acontece. Baal censura os deuses covardes e parte para a luta com Yam,
chegando à vitória depois de ter sido armado pelo deus Kuthar, deus ferreiro e
arquiteto. O relato contém partes semelhantes ao mito mesopotâmico do Enuma-
Elish, visto que existe, tanto aqui quanto ali, uma grande luta dos primórdios, na qual
um deus maior é morto pelo deus menor, acontecendo a criação. O mais provável é
que o texto ugarítico esteja celebrando o domínio dos povos agricultores sobre os
povos que habitam as ilhas do mar (BRIEND et al, 1990., p. 118).
8
O texto ugarítico não está bem preservado no tocante ao papel que Nahar faz dentro da luta dos
deuses. Contudo, ele é introduzido aqui de acordo com Pixley (1971, p.56).
28
época, boa parte do conhecimento do culto a Baal estava limitado ao texto bíblico.
Agora, através da associação das descobertas feitas em Ugarit com as descobertas
dos textos míticos mesopotâmicos, começa-se a perceber o texto bíblico como um
texto inserido dentro desse contexto maior, o que leva à idéia da comparação da
maneira bíblica de relatar as tradições de Israel com a maneira dos textos míticos
ora citados. Parte-se assim da compreensão do texto bíblico como gênero literário,
assunto a ser trabalhado no próximo item.
Uma outra descoberta da crítica literária bíblica foi a existência de uma relação
entre os gêneros literários mesopotâmicos, egípcios e cananitas e os textos bíblicos
do Antigo Testamento, não na forma da dependência ou da independência, mas na
forma da interatividade. Isso é o que Dattler (1984, p. 16) chama de mito
desenvolvido, o que quer dizer que Israel tomou conhecimento e desenvolveu uma
criatividade modificadora face aos gêneros literários de seu tempo, chegando
mesmo o autor bíblico a alterar nomes dos personagens míticos para adaptá-los à
mensagem de cunho monoteísta.
9
Nesse sentido, o lingüista Marcuschi (2002, p. 3-4, 10, 14) evita a utilização do termo gênero
literário, substituindo-o por gênero textual. Ele quer evitar a compreensão dos autores como criadores
de peças de cunho estético, mas como redatores de textos resultantes de desenvolvimentos culturais
e históricos.
30
está enraizada numa tradição oral viva, vindo depois a configurar-se na forma
escrita.
10
Denomina-se de crítica das formas a escola de crítica bíblica surgida a partir dos trabalhos de
Hermann Gunkel, em 1895, na qual se utilizam os recursos da crítica literária para o alcance da fase
anterior ao processo de escritura da Bíblia, a saber, a fase oral, em que as histórias bíblicas se
configuravam através de formas fixas, intimamente relacionadas aos gêneros literários bíblicos.
11
Sagas são histórias das origens e de conquistas a partir da presença de um herói de relação
histórica estreita com o povo, cujas narrativas vinham recheadas de teofanias (Por exemplo, a história
de Abraão, a partir de Gênesis 12).
31
teológicas do Javista e do Sacerdotal), quer seja da escola das formas (com sua
preocupação com o ambiente formador do texto); porém, serão apreciadas as
contribuições de cada uma destas escolas para observar a relação entre o texto de
Gênesis, capítulos 1 a 11, o seu gênero literário e os textos mesopotâmicos do
oriente antigo, textos estes cuja característica visível e marcante é o mito. O que se
pretende afirmar nesta pesquisa é que o texto de Gênesis capítulos 1 a 11 utiliza a
linguagem mítica para abordar o drama humano da compreensão do cosmo, de si
mesmo e do seu relacionamento com Deus, dentro de uma postura ética divergente
daquela engastada nas narrativas míticas orientais antigas. O termo mito pode gerar
na comunidade religiosa que se reúne para o culto um certo constrangimento,
podendo existir uma discrepância entre os estudos teológicos de nível acadêmico e
a fé da pessoa crente em Deus. Entretanto, conhecendo-se o que os mitos antigos
significavam, poder-se-á compreender o texto do Gênesis, capítulos 1 a 11, bem
como interagir com ele, mesmo no culto ou na prática de fé. Sobre essa
interatividade entre o mito e a linguagem mítica, Grelot (1982, p. 22) escreve:
Entretanto, a assimilação que Israel fez dos mitos orientais recebidos não
ocorreu de forma tal que não tenha recebido uma reação contrária e apologética12.
Essa reação não gera, de imediato, o texto de Gênesis capítulos 1 a 11, mas a
tradição oral que, entre o século X e o século VI antes de Cristo13, dá origem aos
primeiros escritos do Gênesis. Para Heidt (1969, p. 7), esses dois séculos
testemunham o resultado da reflexão de duas das correntes literárias do texto de
Gênesis capítulos 1 a 11, a saber, respectivamente, o javista e o sacerdotal.
Contudo, segundo Brueggemann (1982, p. 25), é no século VI antes de Cristo,
durante o exílio babilônico, que Israel, ao deparar-se com a teologia babilônica
expressa nos mitos e nos ritos sumérios, formula (através da linguagem que toma
emprestada) a sua refutação do politeísmo babilônico. Essa formulação ocorre a
partir do momento em que o orgulho nacional e religioso babilônico tenta insistir na
idéia de que os deuses babilônicos são maiores que o Deus de Israel. O autor
bíblico utiliza, nesse momento, o conhecimento das narrativas mesopotâmicas da
criação, da queda e do dilúvio para refutar a crença politeísta babilônica, criando um
solo para a confiança em Deus por parte de Israel, apesar da situação histórica
contrária aos exilados, conclui Brueggemann (1982, p. 25). O texto de Gênesis
capítulos 1 a 11, visto como refutação da teologia politeísta babilônica, torna-se mais
claro ainda quando comparado a outro texto do mesmo período babilônico, o
12
Apesar do termo ter sido usado com mais propriedade na época da Patrística, é utilizado nesta
pesquisa na ênfase da defesa da fé no Deus único de Israel contra as propostas divinizadoras da
criação das quais eram portadores os mitos mesopotâmicos e ugaríticos.
13
O século VI antes de Cristo aparece como época fundamental nessa reflexão, visto que, nesse
período, os judeus tomaram contato direto com os mitos mesopotâmicos através dos ritos
presenciados durante o exílio babilônico.
34
Depois desse momento, surgiu a questão em torno dos outros povos. Com o
assentamento das tribos israelitas, as diversas tradições mesopotâmicas e cananitas
puseram Israel para pensar em dramas mais existenciais, sendo essa reflexão
concluída no século VI antes de Cristo, na Babilônia. Seriam perguntas do tipo:
quem eu sou dentre os povos? e o que significa o ser humano e sua relação com o
criador? e ainda, por que a vida? e mais, porque esta vida marcada pelo mal, pelo
sofrimento, pela morte? (GRELOT, 1982, p. 8). É justamente dentro desse contexto
que surge, do ponto de vista literário, o conteúdo dos capítulos 1 a 11 de Gênesis,
texto que culmina no capítulo 11 com a genealogia de Abraão, fazendo uma espécie
14
O Dêutero-Isaías compõe-se dos capítulos 40 a 55 do livro de Isaías canônico, tendo sua origem
no período do exílio babilônico, sob a responsabilidade de um profeta anônimo, discípulo do Isaías de
Jerusalém. Alguns textos sobre a nulidade dos deuses: Isaías 40.18,19; 41.2-7; 44.6-20; 45.21; 46.1-
7;
35
de ligação entre a história das origens e a história dos patriarcas, cuja proposta, de
caráter teológico, vincula-se ao propósito divino de salvar o homem:
que o texto bíblico é mera cópia das narrativas míticas orientais, o que já foi
descartado em função das diferenças aludidas neste capítulo e da comparação entre
os textos, registrada nos próximos capítulos desta dissertação. As semelhanças não
colocam em dúvida a unidade da mensagem bíblica; as diferenças denunciam o fato
de que Israel transforma o material que tomou emprestado dos mitos para integrá-lo
às suas próprias tradições, dando-lhe um novo sentido ético, conforme Martin-
Achard (1970, p. 45). Pensamento semelhante é achado em Sellin-Fohrer (1977, p.
108):
Em resumo, Israel utilizou a mesma forma poética das culturas vizinhas, isto
é, o estilo, a estrutura, a rima e, freqüentemente, até mesmo as mesmas
figuras de linguagem a fim de efetuar uma comunicação familiar e
compreensível ao nível popular. Todavia, rejeitou qualquer material que não
coadunava com a fé em Iahweh, e modificou outros materiais para exprimir as
verdades de sua fé.
Essa constatação de Pixley levanta o fato de que Israel, tendo sido exposto
aos mitos orientais antigos, estava também sendo exposto aos valores que esses
mitos defendiam, principalmente àqueles ligados à idolatria e à divinização da
criação. Nesse sentido, Von Rad (1976, p. 130) alerta que os maiores ataques que
Israel recebeu das religiões de divinização da natureza vieram dos cananeus.
Segundo ele, a gravidade dessa crise é conhecida graças aos livros de
Deuteronômio e do profeta Oséias. Contudo, nem Oséias nem Deuteronômio
atacam a divinização da natureza a partir da fé na criação, mas a partir da fé na
promessa de Iahweh. Iahweh havia prometido a terra e trazido seu povo Israel do
Egito para a terra de Canaã, com bênçãos que, em última análise, se caracterizavam
38
pela posse da terra e pelos frutos da terra. Por isso, o texto de Gênesis capítulos 1 a
11 torna-se singular dentro do universo do Antigo Testamento, pois, apesar de ter o
conhecimento de todos os mitos, utiliza a narrativa mítica contra o mito, subvertendo
os valores idólatras que os mitos carregavam no bojo. E isso sem mencionar os
nomes dos deuses ou monstros e sem orientar acerca de ritos alternativos a serem
celebrados nas festas de ano novo. O Gênesis quer falar da soberania e da
singularidade de Iahweh.
A exclusão dos outros deuses é uma inovação sensacional. Ela supõe uma
verdadeira “desmitização” do universo inteiro: as forças cósmicas voltam ao
que são de fato, criaturas. De repente a situação do homem no universo e
diante de Deus se modifica totalmente, embora, na prática, a adaptação da
mentalidade corrente dos israelitas a essa mudança radical se tenha
processado lentamente e com dificuldade. O homem não é mais joguete e a
vítima eventual entre potências rivais (os “deuses”), em luta pelo governo do
universo.
Deduz-se, então, que não se pode mais ler o texto de Gênesis capítulos 1 a
11 sem levar em consideração a evidente relação entre Israel e os mitos orientais
antigos. Essa relação não ocorreu na forma da dependência desses mitos porque,
segundo Fohrer (1982a, p. 168), o Antigo Testamento nunca acolheu de forma
integral um mito, até porque os israelitas não criaram mitos em sua literatura ou em
seu universo conceptual. Tampouco ocorreu na forma de independência, como
pretende Wilson ( apud HARRISON, 1970, p. 555), porque não é possível considerar
Gênesis capítulos 1 a 11 sem qualquer conexão com os mitos mesopotâmicos e
cananeus. Ocorreu, sim, na forma da interação, porque Israel arrancou o mito do
mundo politeísta e o inseriu na concepção veterotestamentária da relação pessoal
entre Iahweh e o ser humano:
39
15
Tradução feita sob a responsabilidade do autor desta dissertação do texto em inglês de Pritchard
(1969, p. 67).
41
QUADRO 1–OS MITOS DA CRIAÇÃO DO MUNDO QUADRO 2– GÊNESIS 1.1-8, 1.14-19 E 2.4-5
ENUMA-ELISH – TABUINHA 1 – LINHAS 1 A 11 GÊNESIS 1.1-8.
1 – Quando no alto o céu não se nomeava ainda 1-No princípio, Deus criou o céu e a terra.
2 – e embaixo a terra firme não recebera nome, 2-Ora, a terra estava vazia e vaga e as trevas
3 – foi Apsu, o iniciante, que os gerou, cobriam o abismo e um vento de Deus pairava
4 – a causal Tiamat que a todos deu a luz; sobre as águas.
5 – como suas águas se confundiam, 3-Deus disse: “Haja luz” e houve luz.
6 – nenhuma morada divina fora construída, 4-Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a
7 – nenhum canavial tinha ainda aparecido. luz e as trevas.
8 – Quando nenhum dos deuses começara a 5-Deus chamou à luz “dia” e às trevas “noite”.
existir, Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia.
9 – e coisa alguma tivesse recebido nome, 6-Deus disse: “Haja um firmamento no meio das
10 – nenhum destino fora determinado, águas e que ele separe as águas das águas”, e
11 – em seu seio foram então criados. assim se fez.
7-Deus fez o firmamento, que separou as águas
ENUMA-ELISH-TABUINHA 4 –LINHAS 128-140 que estão sob o firmamento das águas que estão
128 – Voltou atrás em direção a Tiamat que ele acima do firmamento, 8-e
havia capturado. Deus chamou ao firmamento “céu”. Houve uma
129 – O Senhor destruiu Tiamat tarde e uma manhã: segundo dia.
130 – e com sua massa inexorável despedaçou-
lhe o crânio; GÊNESIS 1.14-19.
131 – Seccionou as artérias de seu sangue 14-Deus disse: “Que haja luzeiros no firmamento
132 – e deixou que o vento do norte o levasse do céu para separar o dia e a noite; que eles
para lugares desconhecidos. sirvam de sinais, tanto para as festas quanto
133 – Vendo tal gesto, seus pais se alegraram, para os dias e os anos.
rejubilaram; 15-que sejam luzeiros no firmamento do céu
134 – E a ele ofereceram dons e presentes. para iluminar a terra” e assim se fez.
135 – Tendo-se acalmado, o Senhor examinou 16-Deus fez os dois luzeiros maiores: o grande
seu cadáver; luzeiro para governar o dia e o pequeno luzeiro
136 – quer dividir o monstro, formar algo para governar a noite, e as estrelas.
engenhoso; 17-Deus os colocou no firmamento do céu para
137 – ele a cortou pelo meio, como é em dois iluminar a terra,
cortado um peixe na secagem, 18-para governarem o dia e a noite, para
138 – dispôs uma metade como céu, em forma separarem a luz e as trevas, e Deus viu que isso
de abóbada; era bom.
139 – Esticou a pele, instalou guardas, 19-Houve uma tarde e uma manhã: quarto dia.
140-confiou-lhes a missão de não deixar sair
GÊNESIS 2.4-5
suas águas. 4-Essa é a história do céu e da terra, quando
foram criados. No tempo em que Iahweh Deus
fez a terra e o céu,
ENUMA-ELISH – TABUINHA 5 – LINHAS 1-6
5-não havia ainda nenhum arbusto dos campos
1-Ele construiu estações para os grandes
sobre a terra e nenhuma erva dos campos tinha
deuses,
ainda crescido porque Iahweh Deus não tinha
2-estabelecendo suas semelhanças astrais
feito chover sobre a terra e não havia homem
quanto as imagens.
para cultivar o solo.
3-Ele determinou o ano para designar as zonas:
4-Ele levantou três constelações para cada um
dos doze meses.
5-Depois definiu os dias do ano para significar as
imagens celestiais.
6-Ele fundou a estação de Nebiru para
determinar seus arcos celestiais.
42
16
Vide Gênesis 8.2
43
Para Grelot (1982, p. 45) a criação bíblica não pode ser concebida dentro de
um campo fechado, no qual se defrontam princípios opostos, bons e maus. O
dualismo proposto nos mitos orientais antigos é excluído na proposta bíblica visto
que tudo o que Deus criou é bom - b/f ( tôbh). Gênesis 1 apresenta uma única
criação, com um único criador, sem interlocutores: todo o ato criador se dá a partir
dele, e é seguido pelo descanso sabático, representando o cessar da atividade
criativa. A criação tem um começo, um fim e um único causador (MCKENZIE, 1980,
p. 23). Nesse sentido, a criação não é um ato a ser repetido ritualisticamente, pois o
verbo ar;B; (bara’) que, traduzido é, ele criou, está expresso no modo perfeito, o que
significa que a ação ou estado que o verbo indica foi plenamente satisfeito ou
completo. Observa-se, assim, que o autor do Gênesis coloca a divindade criadora
fora dos ciclos das forças naturais, não confundindo a criação com o próprio criador
(MCKENZIE, 1971, p. 90).
Gênesis 1.2 aparecem os termos Whbow: Whto (tohu wabhohu) que traduzido, é
17
Tradução do texto em espanhol de Robert e Fueillet sob a responsabilidade do autor desta
dissertação.
18
Tradução do texto em espanhol de Robert e Fueillet sob a responsabilidade do autor desta
dissertação. Observe-se ainda a idéia que apesar das diferenças teológicas entre a narrativa bíblica e
os mitos orientais antigos serem mais relevantes que as diferenças formais, estas últimas podem
encaminhar a pesquisa para a idéia da transformação que o autor bíblico fez dos mitos.
45
ainda, !/ht] (tehom), que traduzido é abismo. O termo tehom é alusão direta às
O que deve ser dissipado pela narrativa da criação bíblica, através do termo
luz, como primeiro evento a existir, é a idéia do combate cósmico, visto não haver
qualquer reação das trevas contra o poder da luz. Essa luz não é proveniente do sol,
da lua, nem de outros luminares celestes; estes só passam a existir, a partir do
quarto dia da criação. A luz nesse texto é a interferência modificadora de Deus,
pondo ordem no caos representado pelas trevas. A reflexão do autor bíblico não se
preocupa com o problema de um caos não criado, existente antes da criação, nem
tampouco com o problema da criação do caos, conforme refletiam os teólogos
escolásticos. A ação criadora de Deus não combina com a desordem do caos. Não é
46
sobre as águas agitadas. Os deuses não são nada diante do criador absoluto. Sua
criação não é resultado de tramas entre os deuses, mas é ordenada no primeiro dia,
no segundo dia, no terceiro dia, no quarto dia, no quinto dia, no sexto dia, com a
constatação de que o que tinha feito era bom, chegando, no final, à constatação de
que tudo era muito bom. Dessa forma, os seis dias da criação representam o modo
de ação de Deus, criando e transformando a partir da confusão reinante no caos
para a ordem própria de sua personalidade (KIDNER, 1979, p. 43), confluindo assim
para o descanso sabático, momento em que o ser criado presta culto ao criador
(WESTERMANN, 1987, p. 80-81).
A criação bíblica não possui deuses, mas apenas um Deus, chamado !yhiloa>
(‘elohim), traduzido por Deus no capítulo 1 de Gênesis. O termo ‘elohim é plural em
sua forma ordinária, ou seja, deuses. Em função disso, busca-se aqui estabelecer
47
uma relação do nome com os mitos antigos, visto que em Ugarit a divindade criadora
é El. Albright (1942, p. 213) afirma que o uso pluralizado vem da tendência do
antigo oriente de chamar os seus deuses pelo nome plural, como por exemplo, a
variação de Anat para Anatot, e de Ashtart para Ashtorot. Poder-se-ia então pensar
que o termo é uma cópia do termo ugarítico El, contudo, conforme pesquisas feitas
por Oehler (1883, p. 88), ‘elohim ocorre apenas no hebraico e em nenhuma outra
língua semítica. Sobre essa tendência de pluralização das divindades no mundo
oriental antigo, defendida por Albright, supracitado, também argumenta Colunga
(1967, p. 48) :
19
Tradução do texto em espanhol sob a responsabilidade do autor.
20
O Henoteísmo é a crença na existência de diversos deuses, mas a adoração exclusiva de um único
Deus. Alguns textos bíblicos pressupõem essa crença, como em Salmos 82.1; 86.8. O Monoteísmo
absoluto exclui a possibilidade de existência de outros deuses, mantendo a adoração de um único
Deus.
48
divindade que lhes era atribuída, ensinando através do texto bíblico sobre um único
‘elohim (Deus) que está sobre a sua criação. Quando o escritor bíblico quer distinguir
Deus de deuses, ele o faz através da concordância verbal (VAN DEN BORN, 1977,
p. 445). Cite-se como exemplo o texto de Gênesis 1.1, onde se vê a seguinte
21
Gênesis 3.19; Jó 34.14-15; Salmos 104.29-30.
52
22
Os textos de Atra-hasis pontuados por reticências referem-se a partes avariadas da tabuinha.
53
linhas 6-7 e 19-34. As partes23 transcritas a seguir mostram como foi a formação de
Enkidu, criatura animal, modelado do barro para lutar contra o herói Gilgamesh,
tornando-se, mais tarde, seu amigo.
23
Os textos apresentados por colchetes e reticências referem-se a partes avariadas da tabuinha.
55
24
No escrito sacerdotal, em Gênesis 1.27, Deus cria, de uma só vez, o homem e a mulher; no escrito
javista, em Gênesis 2.7,22, homem e mulher são criados em turnos diferentes.
56
alma vivente.
descrevem a criação de Enkidu, modelado a partir da argila pelos deuses, para lutar
contra Gilgamesh e seu instinto tirânico. Nota-se que Enkidu tem o aspecto de um
animal selvagem (Quadro 7, linha 91, da expressão Shakkan, deus do gado). Sobre
essa relação entre Enkidu e Gilgamesh, comenta Barucq (1992, p. 168) :
guardar (Gênesis 2.15, Quadro 6). O ser humano deve dominar (Gênesis 1.26) os
animais e deve atribuir-lhes nomes (Gênesis 2.19-20, Quadro 6), determinando
assim a extensão da vida dos animais irracionais (DATTLER, 1984, p. 48). O verbo
utilizado para dominar, hd;r; (radah) possui o sentido de governar pisando, como o
governo do tirano, conforme análise de White (apud HARRIS, 1998, p. 1402). Isso
pode revelar um papel de força atribuído ao homem na criação, um papel de
dominador em relação ao animais inferiores, e não de dominado ou escravizado
pelos deuses. Segundo Mckenzie (1971, p. 104-105), é nesse sentido que o homem
foi feito à imagem e semelhança de Deus. O ser humano não é Deus, nem animal
irracional. Ele é simplesmente ser humano.
25
Vide Quadro 5, Atra-hasis (linhas 211, 233, 235); Quadro 5, Enuma-Elish (linhas 30, 35); Quadro 7,
Epopéia de Gilgamesh (linha 76).
26
De acordo com Mckenzie (1971, p. 106) Deus é naturalmente masculino, mas não no sentido da
distinção do sexo. A narrativa do Gênesis, em forma de uma história, coloca a origem do sexo no
mundo como decisão do Deus criador, o qual está acima da sexualidade, da mesma forma que está
acima de todas as demais criaturas.
61
bíblica. Ela não se confunde com o criador, mas é obra sua. Sobre esse
pensamento, argumenta Grelot (1982, p. 35):
aparece no Salmo 121.1-2: Elevo os meus olhos para os montes, de onde me virá o
27
A Bíblia de Jerusalém traduz o termo por auxiliar.
62
socorro ? Ela foi criada para estar defronte do homem, numa situação semelhante à
de um espelho, onde o ser humano confronta-se com sua própria imagem. Em
Gênesis 2.18, o termo hebraico /Dg]]n<K] (kenegdo), traduz-se por como que defronte
do outro, ou, como traduz a Bíblia de Jerusalém, que lhe corresponda. Essa situação
de paridade original eleva a mulher à condição de co-participante no projeto de
dominar as criaturas animais, até porque ela não surgiu da modelagem dos animais
inferiores, como era de se esperar no momento em que Deus viu que não era bom
que o homem fosse sozinho (Gênesis 2.18-19, Quadro 6). A paridade do casal só é
rompida com o pecado das origens, tema que será abordado a partir do estudo dos
mitos da queda, no próximo capítulo.
63
28
A tradução foi feita por José Américo de Assis Coutinho, com base no texto original de Loretz em
alemão (1979, p. 140-142).
65
14-Então Iahweh Deus disse à serpente: “Porque fizeste isso és maldita entre todos os animais
domésticos e todas as feras selvagens. Caminharás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias
de tua vida.
15-Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a
cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar.”
16-À mulher ele disse: “Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Teu desejo
te impelirá ao teu marido e ele te dominará.”
17-Ao homem, ele disse: “Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te
proibira comer, maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua
vida.
18-Ele produzirá para ti espinhos e cardos, e comerás a erva dos campos.
19-Com o suor de teu rosto comerás o teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu
és pó e ao pó tornarás.
20-O homem chamou sua mulher “Eva”, por ser a mãe de todos os viventes.
21-Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele e os vestiu.
22-Depois disse Iahweh Deus: “Se o homem já é como um de nós, versado do bem e do mal, que
agora ele não estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma e viva para sempre!”
23-Iahweh Deus o expulsou do jardim de Éden para cultivar o solo de onde for a tirado.
24-Ele baniu o homem e colocou diante do jardim de Éden os querubins e a chama da espada
fulgurante para guardar o caminho da árvore da vida.
29
Isaías 44.14-17
67
órgão sexual masculino, mormente pela sua forma: a serpente que sai e entra em
seu ninho debaixo da terra é símbolo da atividade sexual. No texto de Gênesis 3,
aparecem elementos que reforçam esse pensamento, como por exemplo a vergonha
do casal de estar nu após a queda.
Pixley ( 1971, p. 40) mostra como Israel assimilou o culto agrário de Baal no
decorrer do assentamento das tribos na Palestina até o período da monarquia. Da
mesma forma mostra a luta de profetas tais como Oséias, o qual se apropria da
linguagem do amor tão característica dos cultos sexuais para falar de Deus ao seu
povo. Semelhantemente, o autor do Gênesis subverte a idéia da divinização da
criação que os mitos passavam, mostrando que essa tentativa primitiva do querer
ser igual a Deus ou aos deuses, se constituiu na queda ou pecado das origens. Este
é o argumento da serpente para o casal no Éden: …sereis como deuses, versados
no bem e no mal (Gênesis 3.5, Quadro 10). Convém lembrar o sentido de versados
e bem e mal. O termo y[ed]iyo (yode’ey ), traduzido por versados, tem o sentido de
(linhas 19-34, Quadro 8), é graças à união sexual com a prostituta que Enkidu perde
a sua condição selvagem e é comparado a um deus, tendo adquirido a sabedoria
(conhecimento) dos deuses na cópula com a mulher.
Por sua vez, o binômio bem e mal está carregado, não do sentido das
virtudes bem e mal (VON RAD, 1973, p. 162), mas do sentido da totalidade das
coisas, de tudo (LORETZ, 1979, p. 127). Evidências bíblicas internas reforçam esta
idéia. Por exemplo, em II Samuel 14.17, a mulher de Técua diz sobre Davi: …que a
palavra do senhor meu rei nos traga o sossego, porque o meu rei é como o Anjo de
Deus para discernir o bem e o mal. Da mesma forma, a oração de Salomão explicita
o desejo do rei saber de tudo o que se refere à atividade de um monarca: Dá, pois, a
teu servo um coração que escuta para governar o teu povo e para discernir entre o
bem e o mal, pois quem poderia governar teu povo, que é tão numeroso? (I Reis
3.9).
Vê-se, por isso, que a narrativa bíblica esvazia o mito de seu sentido
divinizante e confere à criatura um sentido ético de sua existência e participação na
terra. A sexualidade questionada na versão do autor bíblico é a da prostituição
sagrada, própria do culto de Baal, no qual todos os elementos envolvidos30 são
divinizados na expressão do rito de fertilidade desenvolvido na eira. O capítulo 3 de
30
O homem, enquanto adorador, a mulher enquanto objeto que simboliza a terra, a serpente
enquanto divindade viril, a terra, enquanto a grande mãe produtora da vida (PIAZZA, 1976, p. 102).
69
Gênesis reflete a luta da fé em Deus contra o culto baalista da divinização dos seres
humanos e de toda a criação, apresentando Iahweh como Deus verdadeiro. O autor
de Gênesis 3 demonstra como o ser humano, ao ceder à tentação da serpente,
tornou-se culpado pela ruptura de sua comunhão com Deus por sua livre iniciativa.
Nesse sentido, o processo em que a tentação ocorre nada tem de mitológico, mas
advém do mito, servindo-se da narrativa mítica (VON RAD, 1977, p. 105).
árvore da vida é o protótipo de todas aquelas árvores mágicas que trazem cura para
as enfermidades e renovam a juventude: a imortalidade é o seu fim maior.
31
De acordo com Dattler (1984, p. 58), o morrerás de Gênesis 2.17 não deve ser entendido como
uma punição imediata, mas como a instituição da morte como uma realidade a ser experimentada
como uma ameaça constante e imprevisível.
32
Tradução do texto original em inglês sob a responsabilidade do autor.
71
Mas, o tudo não é tudo. Até mesmo a serpente está enganada, pois ela pensa
que, para ser Deus, é preciso tão somente comer da árvore do conhecimento do
bem e do mal. Falta a ela e ao casal o conhecimento da árvore da vida, que é a
segunda e definitiva ponte de divinização, da divinização plena do ser humano (VON
RAD, 1973, p. 162), porém vetada pela soberania divina, que expulsou o casal do
jardim para que não tivesse acesso à árvore da vida, agora conhecida (Gênesis
3.22, Quadro 10). Essa árvore da vida é o antídoto contra a condição de morte
legada da desobediência que era o comer da árvore do conhecimento do bem e do
mal. Nesse sentido, o ser humano e a serpente são esvaziados de seus símbolos
divinos e remetidos à sua real condição: a de criaturas de Deus. Von Rad (1973, p.
161) defende que o texto de Gênesis, a partir do capítulo três, não deve ser
chamado de mito, mas que os arquétipos e personagens ali mencionados provêm
dos antigos mitos para produzir uma mensagem teológica, a saber, manifestar o que
fez o homem de suas relações com Deus e a reação de Deus em face da
profanação cada vez mais grave de sua ordem.
33
Etiologias são histórias contadas no presente, valendo-se de personagens bem antigos, para
explicar a causa de situações atuais, legitimando assim posturas morais, culturais, sociais, históricas
e religiosas.
34
Nesta pesquisa os termos aparecem os termos desmitização e demitização, referindo-se ao mesmo
processo. Nas citações deve-se respeitar a forma como o termo aparece. O autor desta dissertação
usa o termo demitização, devido a sua utilização popularizada no ambiente acadêmico teológico.
73
corresponda (Gênesis 2.18). Ela é feita para participar de sua vida e não meramente
de suas experiências sexuais, no dizer de Mckenzie (1971, p. 108). Fica claro que o
autor do Gênesis subverteu o que o mito ensinava. Ao falar da queda como
desobediência à ordem original de Deus, ele a insere na história e mostra que tudo
aquilo que o mito ensina sobre a criação é, na verdade, conseqüência do pecado
das origens. No caso da mulher, o ensino bíblico é que ela não é a deusa-mãe, visto
que, por causa do pecado, ela será sujeita aos desejos do homem e terá suas dores
de parto extremamente aumentadas. A divinização da criatura proposta pelos cultos
de fertilidade degrada a mulher, criada à imagem e semelhança de Deus, embora
não igual a Deus.
Para Eichrodt (1975, p. 404), a realidade anunciada por Deus como o castigo
da desobediência não é o simples fato da morte, mas a escravidão de toda uma vida
sob os poderes hostis da morte, quais sejam o sofrimento, a dor, a fadiga e a luta.
Westermann (1987, p.82-83) trabalha o conceito de limitação do ser humano como
conseqüência direta do pecado, limitação essa que consiste, não só na realidade da
morte, mas na pecabilidade do ser humano :
Deus), entre a criatura e a outra criatura (homem versus mulher), e entre a criatura
e toda a criação (ser humano versus natureza, animais e solo). Passa, assim, o ser
humano, de uma situação original de lugar importante na criação para a degradação
e, como situação última, a morte, conseqüência maior da queda. É o drama do ser
criado que aspira à divinização, mas termina por ser limitado pelo criador único e
soberano. As narrativas das conseqüências da desobediência do casal refletem a
proposta do autor bíblico em ressaltar a distância ética entre a situação original do
ser criado e a situação atual do ser limitado pela soberania do Deus criador, devido à
tentativa do ser humano de se igualar a Deus. Para transmitir essa verdade de fé, o
autor bíblico de Gênesis capítulo 3 utilizou o conhecimento dos mitos
mesopotâmicos e ugaríticos antigos, esvaziando a mensagem divinizadora de que
os mesmos eram portadores. O autor bíblico caminha em uma nova direção, na
medida em que trabalha a disseminação do pecado, inaugurado na primeira queda,
através dos projetos de autonomia do ser humano em construir a civilização, como
se fosse o seu criador. Este é o tema a ser abordado no próximo capítulo.
76
35
Vale ressaltar aqui que a idéia de autonomia não está ligada à criatividade humana, visto que o
próprio Deus ordenou ao homem dominar a terra (Gn.1.28). Autonomia tem a ver com a rejeição de
Deus como Senhor, quando o ser humano põe de lado a soberania divina, em sua auto-divinização.
77
humano tornou-se cada vez mais fugitivo da presença divina, com o objetivo de
transformar-se em Deus pelos seus próprios métodos. Com isso, o mesmo autor
trouxe uma mensagem de chamada à dependência de Deus para o seu próprio
povo, o que caracteriza a natureza ética do discurso bíblico. Visando a comprovação
do uso que o autor bíblico fez dos mitos orientais antigos, serão dispostos em
quadros os principais textos bíblicos e extra-bíblicos. Serão comparados o mito de
Dumuzi e Enkidu36, linhas 10-16, 23-25 (Quadro 11), linhas 37-51, 70, 72-80
(Quadro 13) com o texto de Gênesis 4.1-8 (Quadro 12) e 4.13-26 (Quadro 14); as
narrativas dos Reis Antediluvianos, linhas 1-23, 39 (Quadro 15) e da Epopéia de
Gilgamesh, Tabuinha 11, linhas 189-196 (Quadro 15) com o texto de Gênesis 5.1-8
e 5.18-24 (Quadro 16); narrativas do Enuma-Elish, Tabuinha 6, linhas 47-63 (Quadro
17) com o texto de Gênesis 11.1-9 (Quadro 18). A pesquisa comparativa trabalhará
separadamente as narrativas referentes a Caim e sua descendência, a Set e sua
descendência, e à torre de Babel e a subseqüente ruptura da unidade da raça
humana.
36
Extraído do texto de Pritchard (1969, p.41-42), com tradução da versão inglesa feita por Sueli Costa
Miranda Bitencourt.
78
47-Os Anunnaki abriram suas bocas 1-Todo o mundo se servia de uma mesma língua
48-e disseram a Marduk, seu Senhor: e das mesmas palavras.
49-“Agora, Senhor, que nos tens livrado, 2-Como os homens emigrassem para o oriente,
50-qual será nossa mensagem para ti? encontraram um vale na terra de Senaar e aí se
51-Edifiquemos um santuário cujo nome será estabeleceram.
52-O Santuário , uma câmara para nosso 3-Disseram um ao outro: “Vinde! Façamos tijolos
descanso noturno; descansemos nela ! e cozamo-los ao fogo!” O tijolo lhes serviu de
53-Edifiquemos um santuário, uma alcova para pedra e o betume de argamassa.
sua morada! 4-Disseram: “Vinde! Construamos uma cidade e
54-No dia que chegaremos; descansaremos uma torre cujo ápice penetre nos céus! Façamo-
nele”. nos um nome e não sejamos dispersos sobre a
55-Quando Marduk ouviu isto, terra! “
56-suas faces resplandeceram como o dia: 5-Ora, Iahweh desceu para ver a cidade e a torre
57-“Construí Babilônia, cujo edifício vós tendes que os homens tinham construído.
pedido. 6-E Iahweh disse: “Eis que todos constituem um
58-Seja sua obra de ladrilho acabada. A só povo e falam uma só língua. Isso é o começo
chamarás ‘O Santuário’. de suas iniciativas! Agora, nenhum desígnio será
59-Os Anunnaki aplicaram os seus instrumentos; irrealizável para eles.
60-Durante todo o ano moldaram ladrilhos. 7-Vinde! Desçamos! Confundamos a sua
61-Quando o segundo ano chegou linguagem para que não mais se entendam uns
62-Eles levantaram o topo para o alto de Esagila aos outros.
como Apsu (abismo). 8-Iahweh os dispersou dali por toda a face da
63-Tendo construindo uma torre de degraus terra, e eles cessaram de construir a cidade.
tanto para o alto quanto para Apsu (absimo). 9-Deu-se-lhe por isso o nome de Babel, pois foi
lá que Iahweh confundiu a linguagem de todos
os habitantes da terra e foi lá que ele os
dispersou sobre toda a face da terra.
Dumuzi e Enkidu serve para responder ao drama humano sobre a mudança do estilo
de vida dos antepassados seminômades, de pastores para a vida sedentária na
terra cultivada, cheia de infortúnios, como as repetidas estiagens e enchentes. A
adaptação das pessoas a esses infortúnios era feita através do mito, representado,
dessa forma, através do drama dos deuses. Em contraste com o mito de Dumuzi e
Enkidu, o relato do capítulo 4 do Gênesis diz que a oferta do agricultor é rejeitada e
a do pastor, aceita. Já no mito sumério, a oferta do deus-agricultor é aceita e a do
deus-pastor é rejeitada.
37
O termo é um epônimo para explicar o surgimento da prostituição.
83
38
Tradição semelhante encontramos no Terceiro Isaías (65.20).
84
bíblico utiliza o termo lb,B; (Babhel, que é, na verdade, um jogo de palavras próximo
da palavra ll''B; balal, constante em Gênesis 11.9 e que significa misturar,
confundir) para mostrar que o zigurate não é o local da reunião dos seres humanos,
mas o de sua desintegração e confusão. O texto de Gênesis 11.5 (Quadro 18)
contém um antropomorfismo de face irônica: o autor bíblico utiliza a linguagem
mítica dizendo que Iahweh desceu para ver a cidade e a torre que os homens
tinham construído. Nos ritos hierogâmicos se diz que o deus descia para o local alto
do templo babilônico para ali dormir com a mulher a ele consagrada, conforme texto
86
Através da confusão das línguas, Deus impõe aos seres humanos um limite
para o seu desejo de ser Deus e de promover sua própria autonomia, e Deus faz
isso de forma não apenas preventiva, mas também punitiva (VON RAD, 1973, p.
165). A torre de Babel é um ensino permanente de que a autonomia humana deve
ser colocada na dependência do Deus único. Ao colocar a soberania de Deus em
evidência, o autor bíblico contrapõe-se ao mito da criação da Babilônia enquanto
criação do deus Marduk (Quadro 17), demonstrando que cidades não são criação de
Deus, mas criações humanas, e esvaziando a história da civilização da divinização.
Evidencia-se, assim, a utilização da linguagem mítica para fins éticos.
pecado, recriado no dilúvio, mas sempre decaído pelo pecado, com promessa de
que Deus continua e continuará salvando o ser humano (VON RAD, 1977, p. 187).
88
39
Em 1929, o inglês Sir Leonard Woolley, durante escavações realizadas na antiga Ur, próximo à
região dos rios Tigre e Eufrates, encontrou traços de uma avançada civilização sob uma espessa
camada de lama argilosa. Fato importante advindo dessa descoberta de Woolley não foi
necessariamente o aspecto de datação histórica do evento, e a possibilidade de fazê-lo harmonizar
com a narrativa bíblica. Essa possibilidade se tornou improvável com uma outra descoberta a norte
de Ur, depois de 1929, a qual dava conta de traços de inundações na antiga Quis, que remontam a
um período bem diferente da inundação de Ur.
89
40
Tradução do mito disposto no texto original alemão de Loretz (1977, p.41) feita por José Américo
de Assis Coutinho para a língua portuguesa.
90
O texto de Gênesis 6.1-4 (Quadro 21), com suas narrativas sobre a união
sexual dos filhos de Deus com as filhas dos homens, constitui-se num dos maiores
problemas hermenêuticos do texto bíblico. Tem sido comum, no decorrer da história
da interpretação da Bíblia, alguns exegetas trabalharem a idéia da união dos
patriarcas descendentes da geração piedosa de Set, homens que andaram com
Deus, os filhos de Deus, com as mulheres descendentes da geração pecaminosa de
Caim, as filhas dos homens (FRANCISCO, 1979, p. 41). Nesse caso, os Nefilim
(gigantes) resultantes dessa união seriam relacionados aos antigos ancestrais dos
cananeus, amonitas e moabitas, isto é, povos impuros (DATTLER, p. 74)41. Numa
segunda interpretação, exegetas cristãos, influenciados pela tradução do termo
!yhiloa>h;AyneB] b’ney-ha’elohim, filhos de Deus por anjos, chegaram a propor uma
41
Argumentos a esse favor são baseados na elevada estatura dos habitantes de Canaã, conforme
relatório do espia Caleb em Números 13.32-33; conferir ainda: I Samuel 17.4; e II Samuel 23.8-10.
94
Esse inconformismo com a limitação dos seres humanos, que é a morte, está
expresso no resultado da união entre os filhos de Deus e as filhas dos homens: o
nascimento dos Nefilim, ou gigantes. Nos mitos antigos, os Nefilim são os
semideuses, qualificados de heróis, como Gilgamesh, divino em dois terços e
humano no outro42. Assim, Stendebach (1983, p. 22) lembra que, entre os povos
vizinhos de Israel, os filhos de Deus eram considerados deuses de categoria inferior.
Por isso, na linha de pensamento de Loretz (1979, p. 43), o autor do Gênesis quer
mostrar a Israel que aquilo que os mitos ensinavam sobre Deus, ou seja, que a
união sexual com os deuses transforma os seres humanos em deuses ou em
antigos heróis, não corresponde à realidade. Pelo contrário, provoca a degradação e
a corrupção das pessoas. Seguindo a mesma reflexão de Loretz, Stendebach (1983,
p. 25) demonstra como o autor de Gênesis 4 esvaziou o que o mito ensinava,
servindo-se, entretanto, de sua linguagem para pregar uma mensagem de cunho
ético:
42
A esse respeito, consultar texto da Epopéia de Gilgamesh (não transcrito em quadro), Tabuinha 1,
Coluna 2, linhas 1-2 (PRITCHARD, 1969, p. 72).
95
leitura antropológica de Wolff (1975, p. 43,48). Por isso, não viverá mais que cento e
vinte anos (Gênesis 6.3). O texto bíblico expõe assim a dura realidade humana da
limitação da vida por Deus, como conseqüência do pecado, mensagem essa que
não era trabalhada nos mitos antigos.
43
Essas semelhanças têm sido utilizadas por alguns teólogos (MESQUITA, 1980, p. 43) como
argumento para provar a universalidade do dilúvio. Entretanto, conforme asseverado na introdução
deste capítulo, as descobertas arqueológicas na Mesopotâmia antiga evidenciam inundações em
períodos diferentes (FOHRER, 1982a, p. 291). Por isso, não é objeto desta pesquisa a busca
científica do dilúvio, mas como a tradição bíblica, mais recente que a mesopotâmica, serviu-se do
conhecimento das narrativas míticas disponíveis, para trazer uma mensagem de face ética ao povo
israelita.
97
Uma segunda ponte de comparação diz respeito à postura moral dos deuses
no drama. Nas narrativas míticas, os deuses encontram-se divididos quanto a
extensão da punição que eles mesmos estabelecem, prova daquilo que Eichrodt
(1975, p. 164) chama de atitude incalculável e caprichosa. No decreto de destruição
estabelecido pelos deuses não pode haver qualquer sobrevivente. Mas um deles,
indo contra essa decisão, ordena ao herói diluviano que construa um barco sem
98
preparada para ele. Para Fohrer (1982a, p. 294), este é o cerne da mentalidade
mítica, a saber, que só se pode escapar à crise provocada pelos dramas humanos
quando se é arrancado de toda miséria humana e colocado entre os deuses. O autor
do Gênesis atribui a Noé em sua nova situação, face à mudança da ordem do
cosmos produzida pelas águas do dilúvio, a situação humana original, proposta na
criação dos seres humanos. A mesma ordem de Gênesis 1.28 (Quadro 4) é dada em
Gênesis 9.1-2 (Quadro 25), isto é, o ser humano é abençoado por Deus e conduzido
à tarefa de se reproduzir e de dominar as demais criaturas. Cabe a ele ser
simplesmente humano e viver sob a orientação divina. Em outras palavras, o autor
de Gênesis continua perseguindo sua meta teológica, evidente nas narrativas desde
o seu primeiro capítulo, para ensinar que a criação não pode ser igualada ao criador.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
deuses, chamados mitos, e perpetuados nos ritos religiosos. O mito era a expressão
mais legítima da realidade vivida, e o autor de Gênesis, encontrando-se em meio a
esse ambiente, serviu-se de arquétipos existentes de tal forma que nem mesmo
chegou a descrer deles. Mas descreu das implicações que deles resultavam para a
vida dos seres humanos em seus relacionamentos interpessoais mais simples até o
desejo de dominar povos. Desta maneira, a narrativa bíblica modifica a condição
humilhante a que eram submetidos os seres humanos diante das justificativas
apresentadas a partir das decisões dos deuses em suas assembléias. Por exemplo,
o ser humano criado como escravo dos deuses nas narrativas míticas é remetido à
sua condição original e ideal na narrativa bíblica: ele não é escravo de Deus, mas foi
criado à sua imagem e semelhança, digno e responsável por uma tarefa de
administração de um jardim e dos animais irracionais.
5. Ensina-se que o pecado não é um drama do mundo dos deuses. Ele é uma
realidade experimentada, primeiro, na queda primordial, depois, num processo
contínuo de crescimento da violência e maldade humanas e nos projetos de
civilização humana, projetos pelos quais o ser humano se arvora em criar uma
cultura cujo fim é o de alcançar os céus, igualando-se assim a Deus. Deus cria um
jardim, mas o homem constrói um mundo de pedra do seu jeito, mudando assim a
ordem original, como se ele mesmo fosse o criador. Mas Deus frustra qualquer
projeto de construção humana tendencioso a divinizar pessoas, reinos e poderes
terrenos, e a ruptura da unidade da raça humana é evidência de que a autonomia
humana não trouxe o que dela se esperava, mas que essa autonomia, reflexo do
104
6. Ensina-se que Deus está acima de sua própria criação e não permitirá que
ela seja destruída pela maldade humana, conseqüência direta de sua autonomia.
Nos mitos diluvianos mesopotâmicos, os deuses punem o ser humano por se
sentirem incomodados com o barulho de seus cultos e desprezam o homem que
eles mesmos criaram, por meio da punição irrestrita que era o dilúvio, de tal forma
que nenhum ser humano possa sobreviver. Divididos entre si quanto ao destino do
ser humano, amedrontam-se por causa do furor da tempestade que eles mesmos
enviam. Revoltam-se com a sobrevivência de um herói, mas contraditoriamente o
promovem à condição divina. Num contraste completo, o texto de Gênesis ensina
que, enquanto a maldade humana avança, Deus envia o dilúvio, não apenas como
uma punição ética, mas como uma providência misericordiosa, por meio da qual
salva a humanidade da destruição que ela traz sobre si.
44
Um exemplo dessa postura é a referência que Oliveira (1979, p. 44) faz da descoberta do
astrônomo inglês Edwin Ball de uma perda de 24 horas do tempo solar, confirmada pelos cientistas
espaciais em Green Belt, Maryland, para confirmar o sol detido em Josué 10.12-14.
105
bíblica filtrada pela Ciência, como se a mensagem bíblica fosse tributária das
premissas científicas e delas dependesse para ser, de fato, uma palavra de Deus.
45
Observa-se que no capítulo 1 de Gênesis o ser humano é a última das criações de Deus, feito
macho e fêmea, a um só turno; no capítulo 2, o ser humano masculino é criado antes dos vegetais e
dos demais animais selvagens, vindo por último, a mulher.
106
bíblico, propõe-se aqui uma exegese que não despreze a contribuição da crítica
literária bíblica. Compreende-se que, à luz da pesquisa feita sobre a linguagem
mítica contra o mito, o autor bíblico estava transmitindo ao seu povo uma mensagem
de Deus, de cunho ético. Mas, o texto bíblico, a despeito de ter sido transmitido
numa cultura e época diferentes da atual, ainda pode, pelo fato de ser palavra de
Deus, ter sentido numa cultura e numa época que não é mais a do Oriente Antigo.
Desta maneira, se faz necessário um caminho exegético para o Antigo Testamento
que passe por três perguntas bem definidas: Primeiro, que sentido teve o texto para
a comunidade de fé que o produziu e o recebeu? Segundo, que releitura sua foi feita
pela comunidade do Novo Testamento? Terceiro, o que essa mensagem tem a ver
com o mundo hodierno, com a comunidade na qual o leitor está inserido? Essas
questões são trabalhadas pela exegese do Antigo Testamento, mas encontram seu
ambiente de resposta principalmente, na pregação da igreja.
acordo com a vontade de Deus, andando com ele, e Gênesis 6-10, além de ressaltar
o juízo divino, também exalta a misericórdia de Deus, mostrando que, apesar da
maldade do ser humano, Deus continuará a estar soberano sobre sua criação e que
sua aliança com os homens é de fidelidade absoluta.
46
Uma obra recente, editada por Baker e Arnold (1999), aprecia o papel e a reapropriação do mito no
Antigo Testamento, conforme ênfase de F. W. Cross, Paul Hanson e W. R. Millar.
109
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