O romance do sueco Fabian Pär Lagerkvist, Barrabás, que ganhou o prêmio Nobel de Literatura em
1952, descreve de maneira sugestiva a dialética que acompanha todo o desenvolvimento da
sociedade moderna, entre uma postura religiosa e uma racionalista. A obra apresenta Barrabás,
uma figura marginal nos Evangelhos, preso nas masmorras do império romano, condenado à morte
e inesperadamente libertado pelo clamor popular, que o preferiu a Jesus.
As personagens são dos primórdios do cristianismo, mas as questões levantadas são tipicamente
modernas e a narrativa introduz o leitor no âmago do drama da liberdade diante do Mistério. O
romance confirma a tese de Octávio Paz, de 1984, segundo a qual a literatura do século passado,
muitas vezes irreligiosa e secularizada, não consegue se afastar do mistério, antes permanece a ele
vinculada, como eixo de uma inevitável problemática, com a qual o homem do século XX se vê
impelido a confrontar-se, mesmo que de maneira irreverente ou blasfema.
Lagerkvist (1952) apresenta o drama de Barrabás com uma linguagem simples e direta, numa
sobriedade elegante, deixando entrever, por trás das cenas descritas, situações e posturas nas
quais o leitor pode-se reconhecer. O romance, escrito como anotações sucintas dos acontecimentos
relatados, deixa amplos espaços para que o leitor, movido por discretas sugestões, se envolva com
a problemática.
Barrabás é apresentado como um bandido, violento e admirador da força, parricida, cioso de sua
autonomia. Ele tem sua vida salva graças a Jesus, pois Pilatos o libertou em lugar do carpinteiro
nazareno. Barrabás vive por causa de um outro que morreu em seu lugar e ele não sabe por quê.
Experimenta uma irresistível urgência de compreender quem é esse por obra do qual está vivo,
procurando compreendê-lo no horizonte explicativo de seu mundo, a partir dos critérios e dos
valores com os quais está familiarizado. Ele é símbolo do homem moderno, com o qual guarda
muitas semelhanças: este também é violento, pois construiu a civilização da qual se gloria ao
clamor dos canhões, e é parricida, tendo eliminado o Pai do seu horizonte. O homem moderno
reconhece no cristianismo a fonte dos valores que impuseram ao mundo a sua cultura e, como
Barrabás, tem necessidade de compreender a origem da qual recebeu tudo o que tem de mais
precioso. Procura enquadrar a tradição cristã nos esquemas da racionalidade iluminista mas, ao
fazer isso, perde a possibilidade de abrir um verdadeiro diálogo com essa realidade [1] .
Sabendo que Jesus tinha dito que iria ressuscitar ao terceiro dia, o personagem de Lagerkvist se
posta perto do túmulo para ver o que iria acontecer. De repente, um clarão deixa-o quase cego por
alguns momentos. Em seguida, ele vê o túmulo vazio e encontra uma mulher que exulta de alegria,
afirmando que Jesus ressuscitou. De início, ele pensa que está diante de uma situação
extraordinária, que poderia explicar o que aconteceu nos últimos dias. Mas, logo em seguida, ele
pondera que sua vista ficou ofuscada porque tinha permanecido muito tempo na escuridão da
prisão e a primeira luz do dia certamente devia ter produzido aquela cegueira momentânea. E,
regozijando-se interiormente por constatar que tudo estava dentro dos padrões da normalidade
com os quais estava familiarizado, sentiu pena da mulher que, na sua simplicidade, estava alegre
por algo irreal, quase certamente fruto de sua imaginação, sugestionada pelos acontecimentos dos
dias anteriores.
Todo o romance é um contínuo suceder-se de idas e vindas entre uma irresistível exigência de
saber se Jesus é realmente o Filho de Deus e a confirmação de que tudo corre de acordo com as
leis da natureza e segundo as regras do poder. A cada página, ele parece atraído a juntar-se
1
àquelas pessoas que conviveram com Jesus e que são estranhamente fascinantes, mas acaba por
prevalecer a distância, sugerida pela visão da realidade à qual está acostumado.
Barrabás entrevista Lázaro, que Jesus ressuscitara, mas não se persuade da divindade do Mestre. A
exaltação da humildade e da misericórdia feita pelos cristãos provoca sentimentos de repulsa num
homem como ele, admirador da força e da violência. As circunstâncias o levam a uma mina do
império romano, onde deve trabalhar amarrado com uma corrente de ferro a um escravo que era
discípulo de Jesus. Barrabás fica impressionado pela transformação que observa no rosto do
companheiro de desventura quando reza ajoelhado; ele admira a força interior que vê emanar
desse homem que parece falar com Deus. Era uma força que Barrabás desconhecia e queria para si.
Risca o símbolo de Cristo no verso da placa de identificação dos escravos, como estava na placa do
amigo, mas não consegue rezar e chega a considerar tudo uma ilusão, toma as distâncias também
desse companheiro e, por fim, o denuncia. É levado a Roma e quando ouve dizer que os cristãos
estão tocando fogo na cidade, fica entusiasmado. Quem sabe, eles deram o passo para rebelar-se à
prepotência romana e usar a violência para defender-se. Agora, sim, tem algo em comum com
essas pessoas e pode fazer parte desse grupo. Ele também, então, começa a atear fogo à cidade.
O romance termina com Barrabás na prisão, junto com os cristãos. Sofre a maior decepção quando
descobre que os cristãos negam sua responsabilidade pelo incêndio. O entusiasmo dele devia-se a
um equívoco. Eles o reconheceram; a maioria olhava para ele com certa hostilidade, porque o
amado Mestre morrera em lugar dele. Ele fica afastado de todos, solitário. Estranhamente, histórias
e temperamentos tão distintos continuam entrelaçando-se. Apesar de todas as diferenças, a
Barrabás e aos cristãos é reservado um destino semelhante. Com efeito, no final, ele também é
crucificado. A cena guarda uma impressionante proximidade e, ao mesmo tempo, a maior distância
com o que acontecera com Jesus em Jerusalém: no alto da cruz, ao dar o último suspiro, Barrabás
grita: “Nas tuas mãos entrego o meu espírito”, que são palavras quase idênticas às pronunciadas
por Jesus. Mas o autor marca a diferença dizendo que Barrabás emitiu o seu grito “dirigindo-se às
trevas” e não “ao Pai” como fizera Jesus [2] . Na forma como Barrabás encerra sua aventura
terrena, pode-se reconhecer uma alusão ao niilismo, que emerge como a última meta para a qual o
homem moderno se encaminha.
O homem moderno entende a razão como medida de todas as coisas, não admitindo outra
autoridade para ter certeza a respeito dos diversos aspectos da realidade. O racionalismo teve início
como tentativa de superar a superstição, a magia e, principalmente, os conflitos religiosos nascidos
com o cisma protestante. Mesmo com variações entre posturas moderadas e outras mais radicais,
ele declara que tudo o que está fora do território que a razão pode controlar, além dos limites de
sua possível ação, não interessa à república dos letrados e não merece esforços de compreensão. O
homem moderno considera fabulação tudo o que está fora do domínio da sua razão e, por isso, não
lhe atribui qualquer importância, pois não pode ser conhecido e nem tem poder para influenciá-lo. A
mulher com a qual Barrabás tinha-se encontrado e que afirmava ter visto Jesus vivo, parecia, à sua
postura racional, fora de lógica e a alegria dela sem fundamento.
Um trecho dos Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 44 de Karl Marx delineia com clareza esse
ideal de autonomia que, desde aquele tempo, até hoje, continuou crescendo e expandindo-se na
cultura moderna:
Um ser se considera independente somente quando é dono de si, e é dono de si somente quando é
devedor a si mesmo da própria existência. Um homem que vive da graça alheia considera-se como
um ser dependente. Mas eu vivo completamente da graça alheia quando sou devedor para com o
outro, não somente do sustento de minha vida, mas também quando este, além disso, criou a
minha vida, é a fonte da minha vida; e a minha vida tem necessariamente um tal fundamento fora
de si, quando não é a minha própria criação.
2
Mais adiante Marx conclui:
Sendo que para o homem socialista toda a assim chamada história do mundo nada mais é se não a
geração do homem por meio do trabalho humano, nada mais que o porvir da natureza do homem,
ele tem a prova evidente, irresistível, do seu nascimento através de si mesmo, do processo de sua
origem (MARX, 1968, 122-125).
A afirmação da autogênese do ser humano parece necessária para proclamar a própria liberdade,
que não poderia coexistir com o fato de depender de outrem. Isto é possível sob a condição de
contradizer a evidência elementar de que nós não nos fazemos por nós mesmos, somos feitos, a
começar pelo acontecimento da nossa geração por parte de outros. Ao proceder dessa maneira, o
homem moderno provocou um problema que provavelmente não tinha previsto, que não estava nos
seus planos, mas que originou a crise da modernidade, hoje universalmente reconhecida: ele
reduziu o campo de atuação da razão, deixando fora de seu foco, ou censurando, uma porção muito
significativa da experiência humana.
Realizou-se um grande desenvolvimento nos domínios das ciências e da técnica, mas o esforço para
dominar a natureza e a história acabou conduzindo a razão a servir ao poder: econômico, militar,
político e ideológico. Tendo abandonado as exigências elementares como ponto de referência para a
sua atividade, restou à razão colocar-se a serviço do poder e do mercado. Aspectos importantes da
realidade ficaram sob o domínio dos sentimentos e das emoções. Dessa maneira, expressões de
irracionalismo, antes limitadas ao âmbito da vida privada, ganharam espaço público, até receber
uma formulação ideologicamente elaborada e existência institucional. Acontecimentos históricos do
século XX documentam as conseqüências trágicas desse fenômeno, em contradição com a maior
parte dos ideais que marcaram a modernidade no seu nascedouro.
A sociedade moderna, então, não entra em crise por um excesso de racionalidade, que tornaria
árida a convivência social, devendo-se dar mais espaço ao sentimento para equilibrar a situação. A
sociedade moderna entra em crise por uma carência da razão, que não é mais capaz de dar conta
de todos os fatores da realidade, de orientar suas conquistas para responder às exigências
humanas. Com efeito, a razão não mais compara seus produtos com as exigências elementares do
ser humano, com as exigências de liberdade, justiça, verdade, felicidade, e sim com as exigências
do mercado, isto é, do lucro e do poder.
A Escola de Frankfurt elaborou a crítica mais consistente à razão de matriz iluminista, explicando as
causas da sua crise. A expressão “razão instrumental”, usada por Horkheimer e Adorno em 1976,
entrou na linguagem acadêmica e, depois disso, muitos autores dedicaram-se ao estudo da razão e
da sua incapacidade de dar conta, numa sociedade complexa como a moderna, de todos os fatores
da realidade. Nessa mesma linha, Horkheimer escreveu A eclipse da razão, onde se pode ler:
A preocupação de excluir do próprio horizonte qualquer realidade que estivesse além do alcance do
paradigma iluminista levou o homem moderno a descartar problemas e realidades que o
obrigassem a olhar para além dos limites traçados pela razão, para além do espaço que ele
considerava legítimo e viável para a sua atuação. Em função disso, combateu a metafísica,
entendida como um ramo da filosofia clássica, preocupada em investigar racionalmente o ser, isto
é, a essência de toda a realidade, a origem de todas as coisas, a finalidade última, o significado
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exaustivo de tudo. O paradigma iluminista, na sua fase tardia, considerou destituídas de sentido,
falsos problemas, não somente as respostas oferecidas pela metafísica a essas questões, mas as
próprias perguntas, inibindo, dessa maneira, até mesmo a possibilidade de dialogar a respeito.
Os cuidados para manter afastados problemas que apontassem para uma dimensão transcendente,
levaram a classe intelectual a desvalorizar questões relativas ao significado da vida e da morte, por
que e para que existem as coisas, prevalecendo preocupações práticas e técnicas, relativas ao
funcionamento, à utilidade, ao modo de fazer. Nesse clima, deve ser compreendida a batalha contra
a idéia de pecado e, de modo especial, de pecado original, que foi desencadeada a partir do século
XVIII (CASSIRER, 1992).
O homem moderno reconhece que tem falhas, imperfeições, erros, no entanto ele cultivava a
certeza de poder corrigir, pelo progresso da ciência, pelo desenvolvimento do conhecimento, essas
imperfeições. A razão estaria à altura da redenção do homem, do aperfeiçoamento da sociedade,
ela seria capaz de sanar seus males. Por isso, não pode admitir o pecado, isto é, uma raiz de mal,
uma ferida que somente um poder divino poderia curar. Reconhecer o pecado significa abrir espaço
para um Salvador, para alguém de fora do horizonte humano, para a presença de alguém
misericordioso, que perdoa e restaura a vida. É exatamente isso que o homem moderno procurou
evitar.
Hegel observa que o homem moderno percebe uma profunda divergência entre a inteligência e a
religião, e acha que se essa profunda divergência não for removida, precipita-se no desespero”.
[...] É derrubada a parede divisória entre religião e conhecimento [...] chegando-se assim à
coincidência entre religião e filosofia. [...] Segundo Hegel, a religião não seria outra coisa que a
filosofia mesma, em forma incipiente, ingênua, imatura (MONDIN, 1997, p.95-97).
O Iluminismo tinha limitado a aventura da razão ao espaço da finitude, mas o romantismo reabriu a
questão do absoluto, propondo de novo o problema da relação entre o finito e o infinito. Hegel tenta
resolver essa questão e dedica-se ao estudo da religião e da figura de Cristo, compreendido como
modelo de moral e como figura que concilia finito e infinito. A interpretação hegeliana reduz o
homem-Deus a simples momento do processo do pensamento humano e a realidade histórica de
Cristo ao caminho que cada homem e a humanidade inteira devem percorrer em si mesmos para
tornar-se espírito, para adquirir plena consciência de si. O divino é, assim, entendido como
totalmente imanente à história. A conciliação entre finito e infinito realiza-se na história e sua
máxima expressão é o Estado, última realização do destino humano. Todavia, o preço dessa
“conciliação” é a negação do valor do finito, da pessoa humana concreta, que é sacrificada à
totalidade (BORGHESI, 1983).
“Nessa altura já estavam colocadas todas as premissas para transformar a filosofia em ciência, a
teologia em antropologia, a religião em ateísmo” (MONDIN, 1997, p. 97). É o que ocorre logo
depois de Hegel, com Feuerbach, Comte, Marx, Engels, Nietzsche e outros. O processo mais
eficiente de secularização, contudo, foi realizado através da coincidência entre o funcionamento da
estrutura e da ética, num terreno mais amplo que a reflexão filosófica, tanto no liberalismo quanto
no socialismo, podendo alcançar, a partir desses modelos teóricos, toda a realidade social.
Com efeito, tanto o mercado capitalista quanto o sistema socialista são, ao mesmo tempo, modelos
econômicos e modelos éticos. O bom funcionamento dessas estruturas (concorrência perfeita ou
planejamento global, capaz de manter sob controle o maior número de variáveis) se encarregaria
de proporcionar, simultaneamente o máximo de produtividade (ou de lucro) e o máximo de
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felicidade, independentemente das intenções subjetivas, da tensão moral e ideal para viver a justiça
e a fraternidade (PETRINI, 1999, p.16).
Foi ganhando espaço na sociedade uma postura chamada de ‘laicismo’ que inicialmente se
restringia a um grupo de intelectuais. Segundo esta postura, Deus, se existe, não tem relevância
para a realidade concreta, ou, de acordo com a fórmula de Cornélio Fabro, “Deus, se existe, não
interessa” (FABRO, 1997, p.109). Deus fora afastado da realidade humana, para além das nuvens,
“no céu”, e o cristianismo era identificado com a doutrina e com a moral. A doutrina ficava sempre
mais estranha à mentalidade dos modernos, parecendo alheia aos problemas reais da existência.
Na etapa inicial da modernidade, a moral cristã era considerada funcional aos interesses do
capitalismo emergente, garantindo o respeito e a aceitação das normas que regulamentavam a
convivência social. Num segundo momento, sob a pressão de diversos fatores, a moral cristã
parecia apresentar mais problemas do que soluções para uma sociedade que necessitava de outros
valores e de outros direitos, quase sempre divergentes dos consolidados na tradição cristã. Assim, o
cristianismo deixou de ser funcional ao moderno processo produtivo.
Até a Segunda Grande Guerra, a controvérsia entre a sociedade secular e a Igreja referia-se a
algum ponto da moral, enquanto era aceita a arquitetura “cristã” da existência. Discutia-se, por
exemplo, o divórcio, mas se aceitava o matrimônio monogâmico, discutia-se o uso da pílula, mas se
aceitava a relação entre sexualidade, amor e procriação. Era apenas uma etapa de um longo
processo que iria desembocar, em breve tempo, numa nova antropologia, mais correspondente aos
novos parâmetros valorativos.
A perspectiva otimista da cultura do século XIX, alimentada pelo avanço do conhecimento científico
e suas maravilhosas conquistas e pelo hegelismo, que parecia divinizar o homem e a história,
encontrou uma crítica impiedosa na filosofia de Nietzsche. Ele mostrou que o projeto do
racionalismo ocidental constituía uma monumental mentira. Recusou uma racionalidade arrogante e
uma moralidade abstrata e negadora da vida, que identificava com o cristianismo, nas formas por
ele conhecidas no ambiente familiar durante a infância. A civilização ocidental já tinha concluído o
percurso que conduzia ao niilismo, mas não sabia sustentar o peso das conseqüências. Será ele a
anunciar: “Deus está morto! Nós o matamos”. O super-homem será capaz de sustentar a falta de
sentido e de afirmar a própria vontade de potência, na opção por uma autonomia que luta com
Deus, entendido como antagonista e inimigo do homem.
Nietzsche anuncia o fim da racionalidade, entendida como reflexo da verdade das coisas. Ao
pensamento, ele atribui apenas a tarefa de ser “escola da suspeita”, tensão para desvelar, atrás de
conceitos universais, a máscara de interesses particulares. Renuncia-se, nessa perspectiva, à visão
clássica da razão como abertura ao ser e como capacidade de elucidar a natureza das coisas. Isto
torna impossível o acesso a certezas indubitáveis. A verdade, então, não mais se apresenta como a
manifestação da evidência do ser à subjetividade, mas como um produto da “vontade de potência”.
“O problema da verdade transforma-se assim em problema de forças” (BARTH, 1971, p.262).
Nietzsche faz também uma crítica radical da moral, ele não acredita em valores eternos. Segundo
ele, os valores são o resultado de uma produção do homem e afirma que é preciso destruir a moral
para libertar a vida. Os valores passam por um processo de “transmutação”. “O que é bom?”,
pergunta Nitzsche, respondendo em seguida:
“[...] falta o fim, falta a resposta, o por quê, [...] o devir não tem em vista nada, não se alcança
nada. [...] O mundo é uma realidade destituída de sentido e de valor (apud MACHADO, 1999,
p.78).
No tempo presente, estamos diante da mais ampla difusão do niilismo na sociedade. Não se trata,
no entanto, do niilismo trágico como o de Nietzsche, inquieto na busca de um sentido. Hoje
estamos diante de um niilismo soft, que esquece a pergunta do significado e a substitui com uma
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consideração banal da realidade. Tentou-se silenciar, ou não considerar, os aspectos da existência
que, mesmo de forma indireta, pudessem remeter para uma realidade transcendente. A cultura de
massa, em decorrência disso, especializou-se em oferecer produtos culturais cuja marca principal é
a banalidade e certa retórica da vulgaridade. Seria necessária uma investigação empírica para
compreender o grau de influência dessa cultura da banalidade no vertiginoso aumento da violência
urbana nestas últimas décadas. Afinal de contas, “O relato sobre a banalidade do mal” de Hannah
Arendt, realizado em 1999 por ocasião do processo contra o criminoso nazista Eichmann, constitui
uma hipótese que lança uma ponte entre a banalidade e a violência, que abre um itinerário de
investigação e de explicação.
Seria essa a origem da desafeição para com a realidade, tão presente na cultura atual, e da busca
do sonho, da “viagem”, ou de um mundo virtual?
Em poucas décadas, sob o efeito de diversos fatores convergentes, tais como a revolução sexual, a
difusão da cultura de massa e a influência dos meios de comunicação social, as possibilidades
oferecidas pela manipulação genética, as mudanças na organização da produção, com o advento da
informatização e a automação dos processos produtivos e com a prevalência no mercado do capital
especulativo “volátil”, de alta rentabilidade, configurou-se um cenário cultural e social no qual
floresce uma imagem de homem e de mulher radicalmente diferentes dos anteriores. Alguns
autores falam de uma “mutação antropológica” (Scola, 1999, p.316), isto é, de uma visão
alternativa e global do homem e de todos os aspectos mais profundos da sua existência.
A mudança que atinge a maneira de compreender o ser humano constitui um processo complexo,
do qual são indicadas algumas etapas mais significativas. Começa a prevalecer um dualismo
antropológico que separa como mundos distintos o corpo e o espírito. O corpo passa a ser
considerado como um material bruto, sem significado pessoal intrínseco e dominado pelo
determinismo das leis biológicas e psicológicas. O espírito, representando o mundo da liberdade, da
busca da paz interior, da integração cósmica e da elevação mística, estaria justaposto ao corpo,
seguindo suas próprias exigências. A mudança mais relevante se verifica no campo da sexualidade
que, na nova perspectiva, pode ser vivida sem a abertura à procriação. Este fato retira da
sexualidade a característica de ser premissa para constituir uma relação de responsabilidade
recíproca, que dure no tempo, capaz de acolher e educar a eventual prole. O exercício da
sexualidade perde a exigência de um vínculo estável, em vista de um projeto comum de vida,
enquanto conserva o caráter de fonte de prazer. O aspecto lúdico, sempre presente na expressão
da sexualidade, acaba por ser a única dimensão que define seu valor, eliminando qualquer
responsabilidade da pessoa com o parceiro dos jogos sexuais.
Nesse quadro, o matrimônio e a família perdem significado. Diversas agências da ONU tornaram-se
caixas de ressonância dessa mentalidade e, nas Conferências de Cairo e de Pequim, defenderam
novos direitos, mais condizentes com a emergente imagem de homem e de mulher, de sexualidade
e de maternidade. Os “novos direitos”, no entanto, que são defendidos como sinal de uma maior
liberdade (ao aborto, à eutanásia, etc.), constituem na realidade a mais sutil submissão à lógica do
mercado, que coloniza todos os espaços da vida, difundindo seus critérios contábeis, de cálculo, de
conveniência, do intercâmbio de equivalentes, emergindo como critério fundamental para a tomada
das decisões a avaliação de custos e de benefícios (PETRINI, 2000).
A divergência da antropologia, até então aceita, pode ser percebida pelo relatório de Monsenhor
Renato Martino, observador do Vaticano junto à ONU: “O princípio de que a sexualidade é inerente
à relação conjugal foi tratado nas Conferências do Cairo e de Pequim como uma inútil relíquia do
passado. [...] Também a sacralidade da vida foi posta em ridículo e ofendida” (MARTINO, 1997,
p.76).
A procriação também pode ser realizada sem o concurso da união sexual sendo, assim,
assemelhada à produção de uma mercadoria. Com efeito, a fecundação pode ser obtida através de
técnicas de laboratório, não sendo mais necessária a relação sexual. Com o desenvolvimento da
clonagem, não será necessário nem mesmo o concurso de um elemento masculino e um feminino.
A procriação pode acontecer fora do ambiente da intimidade sexual entre um homem e uma
mulher, vivida como expressão do amor, assumindo todas as características de uma produção
industrial.
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A vida humana não mais é compreendida como relação com o Infinito e por isso inviolável,
inegociável. A vida e a morte passam a ser negociadas politicamente e submetidas à aprovação da
maioria ou ao arbítrio do indivíduo. A vida humana que começa e a que termina, dentro dessa
visão, podem ser suprimidas, sempre que os interesses em jogo assim o preferirem. O embrião não
passa de aglomerado de células, podendo ser submetido a qualquer tipo de manipulação. O corpo
reduz-se a instrumento de trabalho e de lazer, perdendo outras dimensões.
Diante desse novo cenário desenhado pela cultura pós-moderna, o Papa manifestou muitas vezes
sua preocupação, convidando cristãos e “homens de boa vontade” a retomar o desígnio de Deus
sobre a pessoa, o matrimônio e a família, para participar do debate em curso, tendo como ponto de
partida a visão cristã do ser humano na sua versão mais original. No “Evangelium Vitae” n. 28, ele
afirma:
Encontramo-nos diante de uma batalha gigantesca e dramática entre [...] a morte e a vida, entre a
cultura da morte e a cultura da vida. Encontramo-nos não apenas “diante”, mas necessariamente
no meio desse conflito: todos estamos envolvidos e tomamos parte nele, com ineludível
responsabilidade para decidir incondicionalmente em favor da vida (JOÃO PAULO II, 1995, p.57).
O Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família vem trabalhando, há
mais de vinte anos, para compreender essas mudanças e para elaborar uma antropologia adequada
às exigências humanas originárias, tendo em vista o diálogo com quantos estão atentos à evolução
sociocultural. De modo sucinto, são indicados, a seguir, alguns dos temas mais significativos que
vão construindo essa nova perspectiva de reflexão (A BÍBLIA de Jerusalém, 1981, p.34).
a) Homem e mulher - A diferença sexual introduz o ser humano na consciência de uma deficiência
e de uma solidão originárias, na evidência de uma fragilidade radical que poderia desembocar na
extinção da própria espécie. Estes limites o impelem à busca e ao conhecimento do outro de si, do
diferente, para o qual sente-se atraído e junto do qual pode enfrentar positivamente seus limites. A
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consciência de si, da própria identidade, nasce do encontro com o outro, que se realiza através do
corpo, sexualmente diferenciado. A autoconsciência nasce da reflexão sobre a experiência que
pessoalmente cada ser humano faz de si e dos relacionamentos que estabelece com toda a
realidade e com o outro sexo. Deficiência, solidão e fragilidade são insuperáveis sem o concurso do
outro, que começa a ser percebido como possibilidade de resposta, de solução ao próprio drama.
Nesta perspectiva, a sexualidade emerge como condição, como fator fundamental da própria
identidade de ser humano.
O ser humano não pode existir sozinho, mas somente como unidade de dois e, portanto, em relação
com uma outra pessoa. A diferença homem-mulher é compreendida, então, como a expressão de
uma originária unidade dual que implica e valoriza simultaneamente a identidade e a diferença. A
mesma dignidade e os mesmos direitos qualificam a identidade do ser humano que aparece na
história sempre e somente como homem e mulher, mesmo quando essas categorias parecem
culturalmente confusas.
Para compreender o significado da sexualidade humana é necessário, antes de mais nada, deixar
falar o dado, ao mesmo tempo fenomenológico e ontológico, que nenhum homem (ou nenhuma
mulher) pode ser por si só todo o ser humano: ele tem sempre diante de si a outra maneira de ser,
a ele inacessível. Uma alteridade que é diferença distingue o homem a causa de sua natureza
sexuada. Também sob este aspecto, manifesta-se inevitavelmente sua contingência (SCOLA 2002,
p.32).
c) O Mistério nupcial - Mistério nupcial é um dos conceitos mais importantes elaborado pelos
teólogos da sede central do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e
Família. Retomando uma antiqüissima tradição, já do Antigo Testamento, o conceito indica não
somente a relação nupcial entre um homem e uma mulher, mas, por analogia, a Aliança entre Deus
e o povo eleito. Por mistério nupcial, entende-se:
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[...] de um lado a unidade orgânica de diferença sexual, amor (relação objetiva com o outro) e
fecundidade, de outro, refere-se objetivamente, em virtude do princípio da analogia, às diversas
formas do amor, que caracterizam quer o homem-mulher com todos os seus derivados
(paternidade, maternidade, fraternidade, sororidade, etc.), quer a relação de Deus com o homem
no sacramento, na Igreja, em Jesus Cristo, para chegar até a Trindade mesma (SCOLA,
1998/2000).
Na sua acepção mais simples, nupcialidade indica uma relação entre um homem e uma mulher
caracterizada por uma certa qualidade. Refere-se à elaboração de um projeto de vida comum que
contém, em seu horizonte, a possibilidade de procriar filhos, de acolhê-los e educá-los. A simpatia e
a atração entre um homem e uma mulher, que encontram na relação sexual a expressão mais
plena, se orientam para a partilha estável da globalidade da existência, a ponto de constituir um
casal socialmente reconhecido, caracterizado pela comunhão de habitação, de tarefas, de recursos,
em vista da edificação de uma realidade comum, que encontra no matrimônio e na família a sua
plena realização. Viver a paternidade e a maternidade no horizonte da nupcialidade, aceitando o
empenho de educar a prole, produz mudanças relevantes não apenas na identidade das pessoas
envolvidas e nas responsabilidades assumidas, com alterações significativas na organização
quotidiana da existência, mas também na sociedade. A rede de relações familiares assim
constituída cria espaços de gratuidade e de solidariedade entre os sexos e entre as gerações. E no
tecido fino destas relações são transmitidos e consolidados valores, critérios de juízo, crenças,
ideais, atitudes, que tornam a vida em sociedade mais ou menos civilizada.
Referências
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[1] É interessante notar que o Iluminismo exalta a “Luz” e o “Logos”, que são palavras do
evangelho de São João, mas os significados, evidentemente não coincidem.
[2] No relato da Paixão segundo São Lucas, Jesus diz: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”.
(Cfr. Lc 23, 46).
http://www.hottopos.com/videtur25/petrini.htm. Em 17/02/07.
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