)Língua,
Literatura e Cultura em Diálogo. São Paulo: Ed. Mackenzie, 2003.
enquanto a fala, situada no nível da concretude, não. O que está por trás dessa
postura é uma opção por uma teoria lingüística fundada numa visão organicista
da língua determinada por um enraizamento ideológico próprio ao cartesianismo
vigente.
Nesse modelo, a atividade “criadora” do sujeito individual, livre, é
colocada como anterior à da linguagem e modificar o sistema equilibrado e
estável da língua é inconcebível; excluindo-se, assim, os conceitos de fala e
diacronia, exclui-se do âmbito da linguagem o conceito de linguagem enquanto
trabalho produzido por sujeitos falantes.
Os estudos lingüísticos foram, dessa forma, durante bom tempo balizados
pela problemática colocada pela oposição língua/fala que impôs uma lingüística
da língua. Logo se reconheceu, entretanto, que uma lingüística imanente que se
limitava ao estudo interno da língua não dava conta do seu objeto. O
reconhecimento de uma dualidade constitutiva da linguagem, isto é, do seu
caráter ao mesmo tempo formal e atravessado por entradas subjetivas, sociais e
históricas provoca um deslocamento nos estudos lingüísticos. Estudiosos passam
a buscar uma compreensão do fenômeno da linguagem não mais centrada apenas
na língua, sistema ideologicamente neutro, mas num nível também situado fora
do estritamente lingüístico
1. O modelo harrisiano
O ano de 1952 é considerado importante para a história da análise do
discurso, pois é publicada a obra de Harris sob o título Análise do Discurso. A
análise dos enunciados, sob a forma harrisiana, se apresenta como uma tentativa
para elaborar um procedimento formal de análise dos segmentos superiores à
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gesto inaugural, emerge a cada vez que fala/escreve como fonte única do seu
dizer. Segundo essa perspectiva, o conceito de subjetividade se desloca para um
sujeito que se cinde porque átomo, partícula de um corpo histórico-social no qual
interage com outros discursos de que se apossa ou diante dos quais se posiciona
(ou é posicionado) para construir sua fala.
Articulada ao princípio dialógico e a essa noção de sujeito, temos uma
outra noção fundamental na teoria bakhtiniana de linguagem: a noção de
polifonia; determinado social e historicamente, todo texto trabalha a linguagem
de forma a criar maior ou menor efeito polifônico. É nesse sentido que se tem
disseminada a metáfora de que o texto se transforma em uma arena de lutas em
que vozes, situadas em diferentes posições, emergem, polifonicamente, numa
relação de aliança, de oposição ou de polêmica.
Numa outra relação interdisciplinar, a Análise do discurso tem,
atualmente, se valido de conceitos desenvolvidos pela linguista J. Authier-
Revuz. Influenciada pela concepção polifônica da linguagem de Bakhtin e pela
psicanálise, J. Authier (1982), tem feito seus estudos a partir da noção de que a
linguagem é constitutivamente heterogênea, isto é, faz parte da própria
natureza da linguagem o ser heterogênea. O discurso produzido por um sujeito
cindido pelas várias perspectivas que assume dentro de um mesmo texto é
também marcado por essa cisão, pela plurivalência e pela pluripresença da
palavra. Podemos ver a manifestação dessa heterogeneidade na própria superfície
discursiva através da materialidade lingüística do texto em que formas marcadas
acusam a presença do outro, tais como: as formas do discurso relatado (discurso
direto, indireto); as formas pelas quais o locutor inscreve no seu discurso, sem
que haja interrupção do fio discursivo, as palavras do outro, indicando-as quer
através das aspas, do itálico, de uma entonação específica, quer através de um
comentário, de um ajustamento ou de uma remissão a um outro discurso; ao lado
dessas formas marcadas, encontram-se formas mais complexas em que a
presença do outro não é explicitada por marcas unívocas na frase. É o caso do
discurso indireto livre, da ironia, da alusão, da pressuposição, da imitação, da
reminiscência em que se joga com o outro discurso não mais no nível da
transparência, do explicitamente mostrado ou dito, mas no espaço do implícito,
do semidesvelado, do sugerido. Aqui não há uma fronteira lingüística nítida entre
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BIBLIOGRAFIA
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