1
Psicologia forense: uma breve introducio ‘
Anténio Castro Fonseca
A psicologia forense & frequentemente definida como uma disciplina
que pretende dar resposta as quest6es cientfficas e praticas que o sistema de
justiga coloca aos psicélogos que nele trabalham (Goldstein, 2003). Essas
solicitagdes sao cada vez mais frequentes e variadas, abrangendo actividades
de investigagiio, elaboragdo de estudos, consultadoria para os juizes e advo-
gados, testemunhos periciais ou pareceres relativos a problemas surgidos em
diversos momentos do processo em tribunal.
Embora a palavra ‘forense’ sugira uma relagio directa com o tribunal,
muito deste trabalho é levado a cabo numa grande variedade de contextos,
instituigdes ou locais. Por exemplo, em servigos especificos do sistema judi-
cial, centros de tratamento ou de reeducagiio para delinquentes, unidades de
pesquisa do ministério da justiga, servigos de apoio & crianga ou a vitima,
universidades, estabelecimentos de satide mental com valéncia forense ou
estabelecimentos prisionais. Além disso, na sua execug’o, 0 psicdlogo
forense apoia-se, muitas vezes, no contributo de diferentes disciplinas: psi-
cologia do desenvolvimento, psicologia experimental e cognitiva, psicologia
clinica, psicologia social, psicologia do comportamento delinquente, neuro-
psicologia, avaliagio psicolégica, psicometria, psiquiatria e mesmo no
direito.
Neste sentido, a psicologia forense situa-se na confluéncia de varias
areas do saber, tornando-se, por isso, dificil definir o seu estatuto cientifico
(cf. Blackburn, neste volume). Uma tal ambiguidade reflecte-se até nos titu-
los — nem sempre equivalentes — que na literatura da especialidade Ihe tm
* Trabalho realizado no ambito do Projecto POCTI/36532/PSI/2000 e do Cen-
tro de Psicopedagogia da Universidade de Coimbra (FEDER/POCTI-SFA-160-490).4 A.C. Fonseca
sido reservados: “psicologia forense”, “psicologia legal”, “psicologia jurt
dica”, “psicologia criminolégica” ologia da justica”, “psicologia judi-
cidria”, “criminologia psicolégica” ou, mais genericamente, “psicologia e
direito”. Do mesmo modo, embora os destinatérios da nova disciplina sejam,
antes de mais, os psicélogos que trabalham, directa ou indirectamente, em
contextos judiciérios (v. g., tribunal criminal, tribunal de familia e de meno-
|. a sua utilidade estende-se igualmente a outros profissionais nas areas do
direito, da psiquiatria, do servigo social, da educag&o ou da administracao, €
as suas fronteiras tém vindo a alargar-se a novos dominios de estudo e de
investigagao, designadamente, a criminalidade econdémica, a violéncia no
trabalho, ao abuso dos idosos, bem como aos comportamentos anti-sociais
da crianga ou & delinquéncia juvenil (Bailey & Dolan, 2004; Ribner, 2002).
Assim entendida num sentido lato, a psicologia forense surge como uma
disciplina que engloba uma grande variedade de domfnios do saber, onde &
possivel identificar ou definir sub-especialidades mais homogéneas. Por
exemplo, Bartol e Bartol (2004) identificam af diversas subdreas corres-
pondentes a outras tantas disciplinas, designadamente “psicologia policial”,
“psicologia correccional”, “psicologia criminal ou criminolégica”, “vitimo-
logia € servicos de apoio a vitima” e “psicologia legal”. Outros autores tém
apresentado categorias e classificagdes bastante diferentes (cf. Blackburn,
neste volume), de acordo com a maneira como conceptualizam a relagio
entre Psicologia ¢ Direito (cf. Ogloff & Finkelman, 1999)
Negligenciada durante muito tempo, a psicologia forense tem vindo a
conquistar uma visibilidade e uma expansio cada vez maiores nos tiltimos
30 anos, podendo mesmo considerar-se uma das disciplinas da psicologia
mais dindmicas e produtivas, tanto do ponto de vista da investigacio como
do ponto de vista da intervengio. Esse dinamismo tem-se reflectido no
aumento do ntimero de publicagdes (v. g., revistas especializadas, manuais
de psicologia forense, capitulos de livros sobre diferentes t6picos desta dis-
ciplina), na multiplicagao de disciplinas leccionadas a nivel de licenciatura
e de pés-graduagio em varias universidades ou, ainda, no ntimero de confe-
réncias e congressos internacionais sobre psicologia forense e temas afins.
Apesar disso, em muitos manuais de Introdugao A Psicologia néo se
encontram ainda capitulos especfficos sobre psicologia forense, contraria-
mente ao que se verifica em relagdo a outras disciplinas aplicadas da psico-
logia, tais como a psicologia clinica, a psicologia escolar ou a psicologia das
organizagées.
Embora a grande maioria desta produgdo cientifica tenha surgido sobre-
tudo em paises de lingua inglesa (i. e., nos EUA, no Canada, na Austrilia e
no Reino Unido), recentemente tem-se registado também na Europa conti-
nental um interesse por estas temas que se materializou na criagio da Asso-_ Psicologia foren
uma breve introdugao
ciagdo Europeia de Psicologia e Direito, bem como no ensino dessas maté-
rias nos cursos de psicologia de varias universidades em diferentes paises da
Unido Europeia (Arce, 2005).
Em Portugal, o interesse pela psicologia forense foi, durante muito
tempo, limitado ou quase inexistente. E se é certo que desde ha varias déce
das apareciam, esporadicamente, estudos sobre questées especificas desta
disciplina (Gongalves, 1992), tais trabalhos eram, em geral, pouco sistemé-
ticos, de escopo limitado e nem sempre reflectiam a riqueza e diversidade da
informagio que noutros paises se ia, a0 mesmo tempo, produzindo !.
Um tal atraso é facil de compreender se se tiver em conta que os cursos
universitérios de psicologia sao de criagio relativamente recente em
Portugal. Porém, a situagéio tem-se vindo a alterar nos Ultimos anos como se
pode ver pelo ntimero cada vez maior de trabalhos cientificos que neste
dominio tém vindo a aparecer (Goncalves & Machado, 2005) e de discipli-
nas leccionadas a nivel universitério. Esse aumento da investigagiio e da
formacio especializada tem sido acompanhado por uma crescente procura da
colaboracio dos psicélogos por parte de varios actores ou servigos do
sistema de justi¢a, bem como por uma maior visibilidade do seu trabalho nos
Srgios de comunicagio social. Em consequéncia, tem-se registado uma
progressiva autonomizacdo da psicologia forense em relacdo a psiquiatria
forense, a0 mesmo tempo que se abrem novas possibilidades de trabalho
neste dominio.
envolvimento, cada vez maior, dos psicdlogos nas dreas da justiga, &
semelhanga do que ja acontecia nos servicos de satide, no mundo do trabalho
e nas escolas, é facil de compreender se tivermos em conta que o Direito
procura regular e controlar 0 comportamento humano, e a Psicologia tem
como principal objectivo estudar, de maneira cientifica, esse mesmo com-
portamento nos mais diversos contextos, incluindo os que dizem respeito ao
sistema judicial (cf. Blackburn, neste volume). O préprio funcionamento dos
tribunais pode ser (e de facto tem sido) objecto de estudo por parte dos
psicdlogos (v. g., selecgdio de jurados, tomada de deciso no tribunal). Assim
nao surpreende que a psicologia forense se va afirmando, em muitos paises,
como uma das 4reas da psicologia em mais franca expansdo. Por exemplo,
dados de um estudo recente efectuado na América do Norte mostram que
(pelo menos nalguns Estados) é nos estabelecimentos prisionais e no sistema
1 Mesmo a psiquiatria forense s6 recentemente (depois de 1946!) comecou a
afirmar-se como subespecialidade da propria ciéncia psiquidtrica (Pereira & Costa,
2003, 2). E apesar da publicago esporddica de algumas obras sobre esse tema
(Polénio, 1974; Cordeiro, 2003), essa disciplina ndo parece ter suscitado grande
produtividade cientifica no nosso pais.6 A.C. Fonseca
judiciério que, a seguir As instituigdes de satide mental, hé mais possibili-
dades de emprego para psicélogos (Bartol & Bartol, 2004, 14). E provavel
que a situagdo nao seja muito diferente no nosso pafs, onde nos tiltimos anos
se tem registado uma maior procura do servigo destes profissionais por parte
de organismos dos ministérios da justiga e da seguranga social. Faltam,
todavia, dados estatfsticos fidveis a esse respeito.
A conquista deste novo espago de trabalho nao tem sido tarefa facil.
Pelo contrario, tradicionalmente tem-se registado uma grande resisténcia do
direito (v. g., magistrados, advogados e outros profissionais ou mesmo
decisores politicos) & intervengao dos psicélogos no dominio da justiga,
resisténcia essa que j4 fora sentida ha muito por Munsterberg (1908) e que,
durante largos anos, tera contribufdo para o atraso da afirmagdo desta nova
disciplina. Na verdade, embora criada no inicio do século passado, a psi-
cologia forense s6 a partir dos anos sessenta é que verdadeiramente comecou
a definir 0 campo da sua investigagao e a tracar orientagdes claras para a
formagao e a pratica dos seus profissionais (Otto & Heilbrun, 2002; Packer
& Borum, 2003).
Em grande parte, a resisténcia do direito a psicologia resulta do facto de
estas duas areas de saber, embora ambas interessadas na compreensao e
controlo do comportamento humano, utilizarem abordagens muito dife-
rentes. Por isso, para se impor no sistema de justiga, a psicologia forense
deverd conhecer bem os métodos, os quadros tedricos de referéncia ou o
modo de proceder do direito, procurando responder, de maneira rigorosa e
itil, As questdes especfficas que af so colocadas. Por exemplo, 0 conceito de
responsabilidade utilizado pelo psicélogo no seu trabalho de laboratério ou
na sua pratica clinica pode nao ser 0 mesmo do juiz ou do tribunal e, conse-
quentemente, os instrumentos desenvolvidos pelo primeiro podem revelar-se
inadequados para 0 segundo. Do mesmo modo, 08 critérios adoptados pelo
psiclogo para definir a maturidade intelectual ou social da crianca ou do
adolescente podem nao corresponder aos critérios seguidos num determi-
nado sistema judicial. Significa isto que 0 psicélogo forense nao pode limi-
tar-se a transpor directamente para 0 dominio do direito os conceitos, méto-
dos e instrumentos que foram criados noutras ‘reas ou disciplinas da psico-
logia. Por exemplo, nao basta um diagndstico bem feito de esquizofrenia
segundo os critérios do DSM-IV ou da ICD-10 para se determinar a respon-
sabilidade criminal ou as competéncias psicolegais de um individuo (cf.
Roesch, neste volume). A realizagdo de uma tal tarefa requererd também que
se tenha em consideragao os elementos que num determinado sistema legal
ou numa determinada jurisdic integram esse mesmo conceito e, muitas
vezes, implicard que se desenvolvam também novos instrumentos espectfi-
cos para os avaliar. Além disso, os psicélogos forenses podem encontrar no