ARTIGO ARTICLE
“Quando o anúncio é bom, todo mundo compra.”
O Projeto MonitorAÇÃO
e a propaganda de medicamentos no Brasil
Abstract This paper presents an analysis on drug Resumo O presente artigo apresenta uma refle-
advertising in Brazil, based on the final report of xão sobre a propaganda de medicamentos no Bra-
the MonitorAÇÃO Project, by the group from the sil baseada no relatório final da equipe UFF do
Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Projeto MonitorAÇÃO. A partir de um convênio
Janeiro. Due to a partnership between the univer- com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária
sity and the National Agency for Health Surveil- (ANVISA), durante um ano foram monitoradas
lance (ANVISA), drug advertisements were mon- e analisadas peças publicitárias de medicamen-
itored and analyzed for one year, according to the tos, entre outros produtos sujeitos à vigilância
methodology defined by the Agency. The samples sanitária, de acordo com metodologia proposta
were collected in medical practices and hospitals, pela Agência. A monitoração incluiu coleta men-
drugstores, pharmacies and in scientific magazi- sal de peças em consultórios e clínicas, em farmá-
nes. TV and radio programs were monitored, in cias e drogarias, revistas especializadas, além de
the case of OTC drugs. 159 advertisements refer- programas de rádio e TV, no caso dos medica-
ring to pharmaceuticals were sent to ANVISA, from mentos isentos de prescrição. Para as análises, fo-
a total of 263 irregular ads analyzed between Oc- ram elaborados pareceres técnico-científico, de
tober 2004 and August 2005. The main problems risco sanitário, publicitário e o parecer legal con-
found were the poor quality of drug information clusivo. Foram enviadas 159 peças publicitárias
to health professionals, as well as misleading drug referentes a todos os medicamentos, de um total
use to lay population. Based on the results of this de 263 peças irregulares analisadas de outubro de
project and on other studies, the banning of drug 2004 a agosto de 2005. Foram constatados a má
advertising in Brazil is proposed. qualidade das informações prestadas aos profissio-
Key words Drug advertising, Health surveillan- nais de saúde e o estímulo ao uso indiscriminado
ce, Health legislation dos produtos, no caso das peças publicitárias de
medicamentos de venda livre. Com base nos re-
1
Departamento de Saúde sultados obtidos neste e em outros estudos sobre o
e Sociedade, Instituto de
Saúde da Comunidade,
tema, propõe-se a proibição da propaganda de
Universidade Federal medicamentos no país.
Fluminense. Rua Marquês Palavras-chave Propaganda de medicamentos,
do Paraná 303/3º andar
(anexo ao HUAP), Centro.
Vigilância sanitária, Legislação sanitária
24030-210 Niterói RJ.
jucalmon@vm.uff.br
642
Soares, J. C. R. S.
e no cenário atual, é cada vez mais urgente que ao 43. Exigir que o Governo Federal, por inter-
menos a propaganda de medicamentos seja proi- médio de dispositivo legal adequado, garanta a proi-
bida em nosso país. Até porque todos sabemos bição da propaganda de medicamentos, bebidas
que a eficácia da publicidade e da propaganda alcoólicas e cigarros em todos os meios de comuni-
passa por provocar o interesse do consumidor, cação. No caso dos medicamentos, proibir a pro-
estimular o desejo de compra e transformar o paganda em qualquer veículo de comunicação de
desejo em ação. Por isto é que “quando o anúncio massa, visando a diminuir a automedicação, e re-
é bom, todo mundo compra”, subtítulo que es- vogando imediatamente a Resolução da ANVISA
colhemos para sintetizar nossa avaliação da nº 133, de 12/07/01, que regulamenta e permite a
monitoração da propaganda de produtos sob propaganda de medicamentos sob prescrição mé-
vigilância sanitária. Consideramos que medica- dica nos meios de comunicação de massa, conside-
mentos não podem ser tratados como uma mer- rando que tais disposições contribuem para o au-
cadoria qualquer; trata-se de produtos com es- mento do risco de automedicação no País.
pecificidades que não permitem sua sujeição às 44. Cobrar da indústria farmacêutica aprimo-
regras da publicidade, ao “quando o anúncio é ramento das informações aos usuários, principal-
bom, todo mundo compra”. mente no que tange à eficácia do medicamento e às
Assim, encaminhamos as seguintes reflexões reações adversas provocadas por seus produtos.
e propostas, para que fossem também incluídas Anos antes, no Seminário Nacional sobre Po-
entre as críticas e sugestões relativas à proposta lítica de Medicamentos23 realizado como discus-
de Regulamento Técnico sobre propagandas, são prévia à 10ª CNS, também foi aprovada a
mensagens publicitárias e promocionais e outras seguinte proposta: A propaganda que a indústria
práticas cujo objeto seja a divulgação, promoção farmacêutica promove junto ao comércio é absolu-
ou comercialização de medicamentos de produ- tamente irresponsável e antiética, induzindo à me-
ção nacional ou importados quaisquer que se- dicalização. Devem ser promovidas o mais rápido
jam as formas e meios de sua veiculação incluin- possível as medidas necessárias à sua proibição.
do as transmitidas no decorrer da programação Além disso, como discutido acima, no item
normal das emissoras de rádio e televisão, recen- sobre a monitoração de revistas especializadas,
temente em Consulta Pública na ANVISA: vale lembrar que a ausência de publicidade é um
· A proibição da propaganda de medicamen- indicador da qualidade de publicações acadêmi-
tos no Brasil. Por induzirem o uso irracional e cas e científicas.
acrítico dos medicamentos, as peças publicitári- Nascimento é mais um pesquisador do cam-
as vão de encontro à Política Nacional de Medi- po de regulação da propaganda no Brasil que
camentos (Portaria nº 3.916/98) em vigor no país, defende a sua proibição24. O autor afirma que: A
que propõe a promoção do uso racional de me- propaganda de medicamentos realizada hoje no
dicamentos e o acesso da população àqueles con- Brasil entra em clara contradição com a atual Po-
siderados essenciais. lítica Nacional de Medicamentos (Portaria do
· A garantia, pelos fabricantes dos produtos e Ministério da Saúde no 3.916 de 30 de outubro de
também pelo Estado, através de diversas insti- 1998), segundo a qual o uso de produtos farmacêu-
tuições como a ANVISA, universidades e outras, ticos deve se dar de forma racional, ética e correta,
de ampla produção e divulgação de informações preconizando explicitamente um maior “controle
aos profissionais de saúde, com base em estudos da propaganda dos medicamentos de venda livre.
técnico-científicos idôneos, de fontes confiáveis e Sendo assim, faz-se necessária uma revisão pro-
qualificadas, que subsidiem a prescrição, dispen- funda dos atuais mecanismos regulatórios do setor,
sação e administração consciente e responsável no caminho de superação das enormes fragilidades
dos medicamentos. apontadas neste estudo, que demonstra que a pro-
· À população leiga deve ser garantido tam- paganda de medicamentos realizada no universo
bém o acesso a informações adequadas e orienta- analisado tenta “seduzir” o consumidor psicologi-
ções para o uso consciente e responsável desses camente, utilizando-se de mensagens que se situ-
produtos. am no campo da vulnerabilidade humana e na-
Lembramos que recomendações semelhan- queles de maior importância na sua vida, incluin-
tes constam do relatório final da I Conferência do aí o papel social que cada indivíduo desempe-
Nacional de Vigilância Sanitária22. Transcrevemos nha no seu meio.
as proposições a seguir, que se encontram à pá- O relatório final do MonitorAÇÃO incluiu
gina 63 do referido documento: também um parecer com o embasamento jurí-
647
mos o medicamento um produto sujeito à di- de que anda tão escassa em nosso país. Ao contrário
vulgação através dos recursos utilizados pelas do povo, a indústria que gasta mais com a promo-
estratégias de marketing e publicidade. ção farmacêutica do que com P&D de seus produ-
Constatamos também inúmeros casos de tos, não pára de auferir lucros cada vez mais exor-
infração ao Art. 36 do mesmo código: “A publi- bitantes ao custo de nossa saúde, bem este, único e
cidade deve ser veiculada de tal forma que o con- primordial do homem10.
sumidor, fácil e imediatamente, a identifique
como tal”. A indústria, sabedora da problemáti-
ca do marketing farmacêutico, usa de artifícios À guisa de conclusão
como o anúncio “travestido” de apelo informa-
cional ou educacional sobre determinada doen- Consideramos fundamental o aprofundamento
ça, mas que, no fim, trata apenas da divulgação do debate e a mobilização da população e dos
do seu produto para resolução daquele mal re- profissionais envolvidos, no sentido da proibi-
ferido. Ou seja, constatamos, assim, mais viola- ção da propaganda de medicamentos em nosso
ções à legislação, pois o público muitas vezes não país. Apenas os interesses econômicos dos fabri-
consegue identificar a publicidade como tal. cantes de medicamentos justificam a veiculação
Vimos acima, na discussão sobre a RBM, de tais campanhas publicitárias.
que tal artifício é também utilizado nas campa- Embora seja esta a posição aqui adotada e
nhas dirigidas aos profissionais de saúde. defendida, foram enviadas também à ANVISA
O parágrafo único do citado artigo traz, por propostas para um período de transição ou como
último, a questão da necessidade de comprova- alternativa à proibição, tais como a recomenda-
ção das afirmações utilizadas pelo anunciante: ção de autorização prévia para as campanhas
“O fornecedor, na publicidade de seus produtos publicitárias de medicamentos, políticas mais res-
ou serviços, manterá, em seu poder, para infor- tritivas em relação à presença de propagandistas
mação dos legítimos interessados, os dados fáti- nas unidades do SUS, maior controle em relação
cos, técnicos e científicos que dão sustentação”. à distribuição de amostras grátis, tendo em vista
No mesmo sentido, segue o Art. 15 da RDC seu impacto nos hábitos de prescrição, entre ou-
ANVISA nº 102/00, in verbis: As citações, tabelas tras, apresentadas durante o Seminário Interna-
ou outras ilustrações extraídas de publicações cien- cional de Propaganda de Medicamentos, realiza-
tíficas utilizadas em qualquer propaganda, publici- do em Brasília, em 200526.
dade ou promoção, devem ser fielmente reproduzi- Com a palavra, a ANVISA...
das e especificar a referência bibliográfica completa.
Em resumo, como podemos observar, temos
inúmeras infrações à legislação brasileira, sendo
estes artigos citados, reforçados pelos direitos Agradecimentos
básicos do consumidor, Art. 6°, III e IV. Em nos-
so entendimento, não há motivo suficientemen- A todos os acadêmicos da Universidade Federal
te justificável para continuarmos a permitir a Fluminense que participaram do projeto como
livre publicidade de medicamentos, haja vista a voluntários e/ou bolsistas, em especial: Bernardo
quantidade de fatos relatados que indicam a Portugal Lasmar e Felipe Malafaia Rezende de
constante disparidade da prática referida com o Figueiredo, acadêmicos de medicina e coordena-
respeito aos direitos constitucionais, do consu- dores bolsistas do projeto; Cinthya Pires Oliveira
midor e dos órgãos reguladores. Assim como a (publicidade), Felipe Rodrigues (farmácia), Flá-
propaganda de cigarros foi drasticamente redu- vio Sueth Nunes (direito), Igor Rodrigo L. da Sil-
zida em nosso país mediante construção de uma va (medicina), Isabela B. Dutra (nutrição), Mar-
política de saúde atenta aos inúmeros riscos para celo de L. Soares (enfermagem) e Taís de S. Lopes
a saúde da população causados por esses pro- (nutrição).
dutos, é possível, necessária e urgente uma ação À ANVISA, pelos recursos financeiros para
neste sentido para o caso dos medicamentos. compra de materiais e equipamentos, assim como
Em suas conclusões, afirmou Sueth: [...] faz- para o pagamento de nove bolsas aos acadêmi-
se mister um aprofundamento nessa questão, pois, cos, ao longo do projeto.
como exposto ao longo do texto, a população bra- À Pró-Reitoria de Extensão (PROEX/UFF),
sileira tanto sofrida por inúmeras injustiças, não pelo apoio ao andamento do projeto, assim como
pode ficar à mercê de mais uma violação aos seus pelas duas bolsas de extensão durante 2005.
direitos básicos, principalmente em relação à saú-
649
1. Lexchin J. Uma fraude planejada: a publicidade far- 16. Pizzol FD, Silva T, Schenkel EP. Análise da adequa-
macêutica no terceiro mundo. In: Bonfim JRA, Mer- ção das propagandas de medicamentos dirigidas à
cucci VL, organizadores. A construção da política de categoria médica distribuídas no Sul do Brasil. Cad
medicamentos. São Paulo: Hucitec; 1997. p. 269-89. Saúde Pública 1998; 14(1):85-91.
2. Lexchin J. Canadian marketing codes: how well are 17. Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990. Dispõe
they controlling pharmaceutical promotion? Int J sobre a proteção do consumidor e dá outras provi-
Health Serv 1994; 24:91-104. dências. Diário Oficial da União 1990; 11 set.
3. Herxheimer A, Lundborg CS, Westerholm B. Ad- 18. Barros JAC, Joany S. Anúncios de medicamentos
vertisements for medicines in leading medical jour- em revistas médicas: ajudando a promover a boa
nals in 18 countries: a 12-month survey of informa- prescrição? Rev C S Col 2002; 7(4):891-898.
tion content and standards. Int J Health Serv 1993; 19. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº
23(1):161-172. 1.633/2002.
4. Silverman M. The epidemiology of drug promo- 20. Mastroianni PC, Galduróz JCF, Carlini EA. Influ-
tion. Int J Health Serv 1977; 7(2):157-166. ence of the legislation on the advertisement of psy-
5. Silverman M, Lee PR, Lydecker M. The drugging of choactive medications in Brazil. Rev Bras Psiquiatr
the third world. Int J Health Serv 1982; 12(4):585-596. 2003; 25(3):146-155.
6. Avorn J. Advertising and prescription drugs: pro- 21. Soares JCRS, Lasmar BP, Figueiredo FMR. Um olhar
motion, education and the public‘s health. Health sobre a propaganda de medicamentos no Brasil: o
Aff 2003; 22:104-108. Projeto MonitorAÇÃO. Pôster apresentado no III
7. Barros JAC. Estratégias mercadológicas da indús- Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Huma-
tria farmacêutica e o consumo de medicamentos. nas em Saúde. Florianópolis, UFSC, julho de 2005.
Rev. Saúde Pública 1983; 17:377-386. 22. Conferência Nacional de Vigilância Sanitária. I
8. Barros JAC. Propaganda de medicamentos: atentado à Conferência Nacional de Vigilância Sanitária: Rela-
saúde? São Paulo: Hucitec/ Sobravime; 1995. tório Final. Brasília: ANVISA; 2001.
9. Barros JAC. A (des)informação sobre medicamen- 23. Seminário Nacional sobre Política de Medicamen-
tos: o duplo padrão de conduta das empresas far- tos. Propostas Aprovadas. Folha do Farmacêutico 1996.
macêuticas. Cad Saúde Pública 2000; 16(2):421-427. 24. Nascimento A. “A persistirem os sintomas o médico
10. Soares JCRS. Relatório Final do Projeto MonitorA- deverá ser consultado”. Isto é regulação? [disserta-
ÇÃO. Niterói: UFF/ANVISA; 2005. ção]. Rio de Janeiro (RJ): Instituto de Medicina
11. Mello AL, Mussoi AS, Gomes C, Paz EP, Lima LFM, Social/UERJ; 2003.
Moura ML. Introdução: as relações de produção e 25. Nunes LAR. Comentários ao Código de Defesa do Con-
consumo. In: Mello AL, Mussoi AS, Gomes C, Paz sumidor: direito material. São Paulo: Saraiva; 2000.
EP, Lima LFM, Moura ML. Vigilância Sanitária de 26. Soares JCRS. O desafio da promoção do uso cons-
medicamentos e correlatos. Rio de Janeiro: Quality- ciente e responsável de medicamentos frente ao for-
mark; 1993. p. 5. te apelo de consumo presente nas mensagens publi-
12. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Projeto de citárias e na mídia. Seminário Internacional de Pro-
Monitoração da Propaganda de Produtos sob Vigilância paganda de Medicamentos. ANVISA/OPAS, Brasí-
Sanitária. I Etapa. Disponível em: www.anvisa. gov.br/ lia; abril 2005. Mesa Redonda sobre Uso Racional e
propaganda/apresenta_projeto_monitora. pdf Propaganda de Medicamentos. Disponível em:
13. Luchessi AD, Marçal BF, Araújo GF, Uliana LZ, www.anvisa.gov.br/divulga/eventos/propaganda
Rocha MRG, Pinto TJA. Monitoração de propa- _medicamentos/apresentacoes/jussara_reis_souza
ganda e publicidade de medicamentos: âmbito de _soares.ppt
São Paulo. Rev Bras Cienc Farm 2005; 41(3):346-349.
14. Soares JCRS. Política de medicamentos no Brasil e
miséria filosófica. Saúde em Debate 1989; 25:41-47.
15. Heineck I, Gallina SM, Silva T, Pizzol FD, Schenkel
EP. Análise da publicidade de medicamentos vei- Artigo apresentado em 12/04/2007
culada em emissoras de rádio do Rio Grande do Aprovado em 13/04/2007
Sul, Brasil. Cad Saúde Pública 1998; 14(1):193-198. Versão final apresentada em 07/05/2007