Há muito tempo atrás, fugindo da guerra, diversos povos
chegaram às planícies da desolação, uma terra abandonada, fria, localizada no centro de três grandes cordilheiras. Esses grupos fugiam das guerras de conquista dos reinos do sul, que há um século se degladiavam na tentativa de estabelecer um único império forte e centralizado. O difícil acesso, e a improdutividade da maioria das terras ao norte, mantinha esses reinos rivais distantes das planícies da desolação, e isso impulsionou numerosos povos do sul a buscar a paz nessa região hostil.
Por alguns anos esses grupos se estabeleceram em pequenas
vilas, onde viveram o breve sonho de uma vida pacífica. Foi em 37 depois da chegada às planícies que o grande dragão apareceu pela primeira vez. Estima-se que mais da metade da população pereceu nos dois anos que se seguiram. O dragão parecia insaciável: queimava plantações, destruía vilas inteiras, devorava rebanhos. O sonho de uma vida pacífica se foi da maneira mais trágica possível.
Em 39, um jovem nobre chamado Gerhul percorreu as planícies
reunindo um grupo de guerreiros corajosos o suficiente para enfrentar o maior desafio já imposto aos homens de seu tempo, o de caçar o dragão, e assim conquistar definitivamente a paz tão sonhada. O carisma do jovem entusiasta cativou os corações de muitos, e assim, com um numeroso exército, marchou em busca do grande dragão. Muitos morreram, mas após semanas de batalhas, Gerhul em pessoa deu o golpe final e ali derrubou o temível grande dragão. Nesse momento os povos do sul que viviam nas planícies da desolação ficaram conhecidos como Hanúdios, que na língua local quer dizer Hanu = que caçam, Dios = dragão/dragões. Sob essa nova identidade, os Hanúdios se agruparam em um reino único, com seu primeiro rei Gerhul, o Salvador.
Sobre Thrûg-Igh-Maght-A-Dûl, o Impiedoso
Durante um século os Hanúdios prosperaram. Vilas foram
fundadas, fortalezas erguidas, e sua população dobrou. Porém, em uma noite de inverno do ano de 126, um viajante que se dirigia à Vila de Verhalm ficou impressionado ao encontrá-la em chamas. Ninguém havia sobrevivido. A notícia correu rapidamente e milhares ficaram desesperados com a possibilidade de que o dragão tivesse voltado. Uma semana depois o dragão atacou Farhili e o pânico se instalou definitivamente no Reino dos Hanúdios. O rei, Vazhili II, apesar de sua idade avançada, marchou com sua guarda em busca do dragão. No terceiro dia de sua partida o rei e sua guarda desapareceram. Gerhul III, filho de Vazhili, assumiu o trono e se declarou o novo salvador do reino. Dois anos depois a desolação continuava. Em ataques rápidos e fulminantes, o dragão se mostrou muito mais perigoso que seu antecessor. Gerhul III havia morrido pouco tempo depois de assumir o trono e a rainha agora era sua irmã, Lazínia. O terror era constante e acreditava-se que em pouco tempo o reino de desmantelaria, deixando para trás apenas pó e ruínas.
Sobre o primeiro sacerdote
Era o ano de 130 quando chegou à Corte de Lazínia, Guirzên, um
sobrevivente da Guarda Real que com Vazhili II, seu pai, tentou caçar o dragão. O homem dizia ter vivido próximo ao dragão durante os três anos que se passaram, e que conhecia seu real objetivo: ser o soberano daquela região. Guirzên dizia que Thrûg-Igh-Maght-A-Dûl, o dragão, também chamado de O Impiedoso, vivia nas montanhas do norte há mais de mil anos, e que os Hanúdios haviam o provocado ao matarem seu filho. Guirzên propôs à rainha a submissão ao Impiedoso, e garantiu que ele não expulsaria os Hanúdios de suas terras caso recebesse riquezas e sacrifícios. Lazínia, desesperada por seu povo, acreditou nas palavras de Guirzên e ofereceu sua vida como forma de pedir perdão ao Impiedoso.
Durante sete séculos os Hanúdios viveram em paz.
Guirzên fundou o Culto de Maght, um grupo de sacerdotes que se
responsabilizaria por intermediar os tributos dados ao Impiedoso, e cuidar da frágil existência do Reino dos Hanúdios, sob a constante ameaça de Thrûg-Igh-Maght-A-Dûl. Esses sacerdotes se aprofundaram nos registros antigos e se tornaram especialistas da origem dos homens e dos deuses, cujo último reflexo no plano terreno era visto apenas nos raros dragões que existiam no mundo. A cada estação, esses sacerdotes de Maght escolhiam, através de cálculos elaborados com base nos registros antigos, aqueles que deveriam ser dados como sacrifício ao Impiedoso, junto de suas riquezas. Não tardou para que o Culto ofuscasse completamente a família real, que vivenciava sua mais completa decadência, tornando-se apenas um poder representativo e simbólico dentro de uma sociedade receosa com seu futuro.
Sobre Arhaelm V
Arhaelm V assumiu o trono com 29 anos, no ano de 857.
Logo no início de seu reinado teve que cuidar da guerra com os
Adrenúvios, um povo sulista que cruzou o rio em busca de novas terras. A guerra durou três anos, e graças à grande liderança de Arhaelm, afetou muito pouco a estabilidade do Reino dos Hanúdios. Com isso o jovem rei começou a ganhar um apreço que há muito tempo os homens de sua linhagem não experimentavam. Muitos foram os feitos de Arhaelm para seu povo, mas entre eles, o que se destaca foi a declarada oposição aos sacerdotes do Culto de Maght.
Desde sua criação, o Culto cresceu tanto em número de adeptos
como em poder político. A grande maioria dos reis dos Hanúdios eram meros fantoches. Todos sabiam que quem reinava na verdade era o Conselho dos Sacerdotes, que moderava todas as decisões em função da permanência da paz e da estabilidade do reino. O Conselho era composto de sete sacerdotes, indicados através de teoremas matemáticos originários dos estudos dos registros antigos.
Com o espólio constante das riquezas do reino, apesar da
estabilidade e da paz, muitos passavam fome e morriam devido ao clima hostil das planícies. Os tributos recolhidos em função da manutenção da paz eram altíssimos, mas a grande maioria estava de acordo que o Culto agia visando a preservação do reino, e que todos deveriam aceitar seu destino para que a paz fosse mantida.
Em suma, o Reino dos Hanúdios experimentava sua deterioração
material e espiritual, já que se tributavam não apenas seus bens, mas também sua esperança, através da constante ameaça do Impiedoso.
Arhaelm foi o primeiro a desafiar os sacerdotes.
Acusou-os publicamente de estarem roubando o povo em
benefício próprio.
Acusou-os de serem responsáveis pela fome e pela deterioração
do reino.
E se recusou a dar o tributo anual do tesouro real.
Apesar da convicção de Arhaelm, que inclusive não acreditava na
existência de dragões, a grande maioria apoiava o Culto. E graças a isso Arhaelm não foi visto como uma grande ameaça para os sacerdotes, que o atacavam da mesma forma, acusando-o de ambicioso e egoísta, que pretendia reunir riquezas apenas para o benefício de sua família, e nada mais. Por onze anos os dois poderes se enfrentaram, sem nunca passar das acusações, até que, em 871, agora apoiado por boa parte da nobreza, Arhaelm discursou a milhares de pessoas em Eckhelm1, denunciando o atraso que o Conselho dos Sacerdotes havia provocado, jogando os Hanúdios em um período de medo e sombras.
As constantes acusações de Arhaelm começaram a fazer efeito. A
cada discurso crescia o número daqueles que o apoiavam no seu declarado objetivo final: fechar o Conselho dos Sacerdotes.
Os Hanúdios estavam divididos.
1 Capital do Reino dos Hanúdios. Até que, no início do inverno daquele ano, o Conselho anunciou os escolhidos para o sacrifício daquela estação: entre os nomes estava o da rainha.
Arhaelm, furioso, não só recusou entregar sua esposa como
invadiu o Conselho e matou três dos sacerdotes. Nesse momento se iniciou a guerra civil que assolou Eckhelm.
Durante três semanas os realistas se defrontaram abertamente
com os sacerdotes, até que, em certa manhã, em meio ao caos, os homens de Eckhelm avistaram ao norte a figura alada que por tanto tempo assombrou o reino: