ARTIGO
RESUMO
Neste artigo é abordada a questão da saúde mental dos profissionais de saúde, considerando o exercício
profissional da Medicina como modelo ilustrativo das outras áreas. Embora cada profissão conserve suas
próprias características, vários aspectos da atividade profissional em saúde são compartilhados por médicos,
enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos. Lado
a lado com as semelhanças com a profissão médica, caminham as diferenças, as especificidades profissionais,
tais como a predominância de população feminina em algumas delas, acrescentando ao desgaste
estritamente profissional o desgaste originado pela dupla jornada de trabalho e pela desvalorização,
infelizmente ainda existente, do trabalho feminino.
Some-se, a esses fatores, a questão da hegemonia do discurso médico com relação aos demais profissionais
de saúde e, conseqüentemente, as dificuldades nas relações estabelecidas nas equipes interdisciplinares e
teremos um panorama psicodinâmico bastante complexo sobre os profissionais de saúde.
A abordagem da saúde do médico e, mais detalhadamente, sua saúde mental são antecedidas pela descrição
dos aspectos sociológicos das profissões de saúde no Brasil e de um perfil do médico brasileiro e do
exercício atual da medicina.
São tratadas as características psicológicas da tarefa médica e sua adaptação ao estresse, a vulnerabilidade
psicológica do médico e as propostas de medidas preventivas.
Palavras-chave: Saúde Ocupacional; Medicina do Trabalho; Profissões de Saúde; Saúde Mental dos
Médicos; Trabalho Médico.
Fonte: Artmed Editora, Porto Alegre, Prática psiquiátrica no hospital geral, Neury Botega, capítulo Saúde mental dos profis-
sionais de saúde.
1. Professor Adjunto do Departamento de Psiquiatria e Coordenador do NAPREME (Núcleo de Assistência e Pesquisa em
Residência Médica) da Universidade Federal de São Paulo / Escola Paulista de Medicina. E-mail: nogmart@dialdata.com.br
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os clientes ou o hospital onde não se discrimina tual predisposição ou vulnerabilidade de alguns pro-
quem precisa mais de quem impede o profissio- fissionais ao estresse da tarefa médica.
nal de desfrutar outros aspectos da vida não médica.
A negação ou minimização dos problemas ineren- A vulnerabilidade psicológica do médico
tes à profissão, ou seja, das dificuldades, incertezas,
limitações e complexidades da tarefa médica é ou- Uma alta prevalência de suicídio, depressão, uso de
tro mecanismo que se destaca. A evitação de se drogas, distúrbios conjugais e disfunções profissionais
aproximar e refletir sobre as limitações do exercício em médicos assim como altos índices de estresse e de-
profissional, leva o médico a alimentar expectativas pressão em residentes tem sido apontados na literatura.
irrealísticas que complementam os anseios dos pa- Muitas das características psicodinâmicas que con-
cientes e da sociedade, numa verdadeira conspira- duzem as pessoas para a carreira médica também as
ção contra os fatos da vida. O comportamento de predispõem para desordens emocionais, alcoolismo,
negação das limitações torna-se cada vez mais rígi- abuso de drogas e doença mental. Estas características
do e estereotipado, com o desenvolvimento de ati- incluem compulsividade, rigidez, controle sobre as
tudes arrogantes e aparentemente insensíveis. emoções, retardo de gratificações e formação de fan-
A ironia e o humor negro que os médicos desenvol- tasias irrealistas sobre o futuro.
vem, em especial durante os anos de treinamento, Johnson23, em uma revisão sobre a predisposição
é outra expressão de uma inadequada adaptação dos estudantes e médicos para os distúrbios emocio-
aos rigores da profissão. O desenvolvimento cres- nais e psiquiátricos, destaca o importante papel das
cente de um humor negro através de uma lingua- experiências de vida na determinação da vulnerabili-
gem irônica, amarga e do uso de um jargão onde dade ao estresse ocupacional. Um aspecto relevante
predominam rótulos depreciativos revela, em reali- neste tema é a questão da escolha profissional. Estu-
dade, uma incapacidade de lidar com as frustra-
dos a respeito das motivações dos estudantes para a
ções, tristezas e vicissitudes da tarefa profissional.
carreira médica sugerem que, para uma parcela dos
Traduz, basicamente, a ausência de um repertório
estudantes, um dos componentes de sua opção pro-
de recursos mais amadurecido para lidar com os
fissional é uma tentativa de reparação de experiências
sentimentos de vulnerabilidade e impotência dian-
emocionais infantis vinculadas a situações de impo-
te da vida.
tência e/ou de abandono emocional. Segundo John-
Uma outra característica que revela desadaptação son, os dois mecanismos básicos envolvidos nas moti-
pode ser observada na atitude do profissional frente vações de alguns estudantes para a escolha da carreira
aos cuidados com a própria saúde²². Esta deforma- médica seriam:
ção adaptativa profissional se expressa pela tendên-
cia do médico a se autodiagnosticar e se auto-medi- dar aos outros aquilo que gostariam de ter dado
car. A busca de ajuda profissional de outro colega, (reparação da impotência);
na condição de paciente, representa um caminho dar aos outros aquilo que gostariam de ter recebido
muito difícil; o médico reluta em percorrê-lo. (reparação do abandono emocional).
Uma variante do mesmo tema pode ser encontra- A escolha da Medicina nesses casos seria uma res-
da no profissional que, além de médico de si mes- posta adaptativa a uma vivência de fragilidade e de
mo, se transforma em médico da própria família, baixa auto-estima, que pode levar ao desenvolvimen-
dos amigos e conhecidos. Atrás e ao lado deste per- to de algumas disfunções profissionais, tais como:
sonagem bondoso e solícito, encontra-se também relação simbiótica com os pacientes;
uma outra face: a de um médico arrogante e com- aparente frieza ou afastamento emocional dos pa-
petitivo, que parece viver uma espécie de estado cientes;
messiânico. É por todos conhecido aquele médico
ou médica que, além de se medicar, trata dos fi- negação das vulnerabilidades pessoais.
lhos, da mãe, dos sobrinhos, da tia, do vizinho, do Uma das bases da escolha profissional é a vivência
primo do vizinho e assim por diante. Nossa experi- da angústia e impotência frente à morte; assim, uma
ência mostra que profissionais que desenvolvem tais série de comportamentos dos médicos seriam a expres-
comportamentos, ao contrário do que possa pare- são de mecanismos de defesa ligados a angústias muito
cer, estão profundamente desconfortáveis e neces- primitivas, inerentes ao ser humano, como o medo da
sitando de ajuda para se desvencilhar de uma ver- própria destrutibilidade, fragilidade e desamparo24.
dadeira teia na qual se aprisionaram. O tema das motivações para a escolha profissional
A questão que se impõe, ao analisarmos estes pa- suscita diversas questões. Como era, do ponto de vista
drões de comportamento dos médicos desajustados e psicológico, o estudante antes de ingressar na faculda-
emocionalmente incapacitados, diz respeito à even- de de Medicina? É possível predizer quais estudantes
podem vir a ter maiores dificuldades durante o curso crônica e doença física. Os autores, contudo, referem
de Medicina? E após tornar-se médico? Quais os me- que, ao elaborarem uma história anterior à dependên-
canismos adaptativos que os médicos utilizam para li- cia, encontraram nos relatos dos médicos sentimentos
dar com os conflitos e dificuldades na vida adulta? de muita revolta em relação aos pais. Mais de 50%
Em um estudo prospectivo que se tornou clássico dos pais eram referidos como alcoólatras ou consumi-
na literatura, Vaillant e colaboradores25 investigaram dores excessivos de álcool e as mães eram descritas
essas questões. A infância de 47 médicos (homens) foi como extremamente nervosas, dominadoras, depres-
comparada à infância de 79 profissionais não-médi- sivas, hipocondríacas e cruéis. Simultaneamente, ha-
cos (homens), socioeconomicamente pareados. Para- via a presença de intensos sentimentos de dependên-
lelamente, ao longo de 30 anos da vida adulta, o uso cia com relação às mães.
de drogas, a estabilidade no casamento, a busca de Outros dados dessa pesquisa indicavam que os mé-
psicoterapia e os mecanismos utilizados pelos médi- dicos haviam tido diversas doenças na infância, como
cos para lidar com crises e conflitos foram compara- cólicas intestinais, enurese, asma, obesidade, infecções
dos com o grupo controle (não-médicos). Os resulta- respiratórias recorrentes e febre reumática. A vida con-
dos revelaram que os médicos, especialmente aque- jugal destes médicos era uniformemente caracteriza-
les que tinham prática clínica, apresentavam casamen- da por discórdia e infelicidade, e 75% tinham sérias
tos mais instáveis, usavam drogas e álcool de forma dificuldades sexuais com as esposas.
abusiva e buscavam psicoterapia em proporção maior Em resumo, há na literatura evidências sugestivas
do que os controles. de que uma parcela da população médica 8% a
Ao discutir esses resultados, os autores assinalam 10% seja um grupo de risco em relação a distúrbios
que embora estas dificuldades sejam, com freqüên- emocionais. Este grupo apresenta, portanto, uma mai-
cia, atribuídas às vicissitudes do exercício da Medici- or vulnerabilidade psicológica. Esta vulnerabilidade psi-
na, a sua presença ou ausência estava fortemente as- cológica intervém na escolha profissional e precisa ser
sociada à adaptação na vida anterior à escola médica. considerada no âmbito do planejamento das ativida-
Somente os médicos com adaptações instáveis na in- des médicas na graduação, na pós-graduação e na vida
fância e adolescência revelaram vulnerabilidade às profissional. Esse planejamento deve considerar que a
solicitações da profissão. tarefa médica apresenta um caráter altamente ansio-
Quanto aos mecanismos utilizados para lidar com gênico; essa ansiedade precisa ser metabolizada, caso
as crises e conflitos da vida adulta, o estudo detectou contrário, pode gerar adaptações patológicas.
que os médicos utilizavam, em uma proporção duas A insalubridade psicológica inerente à tarefa mé-
vezes superior à dos controles, os mecanismos de rea- dica pode ser um importante fator desencadeante de
ções hipocondríacas, auto-agressão e formação reati- distúrbios emocionais em estudantes, residentes e
va; alguns médicos pareciam ter uma espécie de fobia
médicos predispostos ou mais vulneráveis27.
a procurar ajuda; o altruismo como um tipo de forma-
ção reativa também apareceu em uma proporção duas
vezes superior à dos controles. Na discussão de seus Medidas preventivas
achados, os autores destacam os seguintes pontos:
Diversos recursos têm sido propostos para prevenir
os médicos apresentaram características de perso- as conseqüências da insalubridade psicológica do tra-
nalidade que são habitualmente relacionadas com balho médico. Devo enfatizar que a implantação de
aquelas encontradas em dependentes de drogas: medidas profiláticas deve, compulsoriamente, começar
dependência, pessimismo, passividade, inseguran- por uma medida básica: a inclusão da dimensão psico-
ça e sentimentos de inferioridade; lógica na formação do estudante de Medicina.
a superproteção materna e/ou paterna é um dado O trabalho de sensibilização do jovem aluno em
estatisticamente significante entre os médicos; relação aos seus aspectos psicológicos motivações
as características de passividade e auto-agressão po- para a profissão, idealização do papel de médico, etc.
dem até ser benéficas para a clientela, porém, con- e as suas reações vivenciais durante o curso de Me-
duzem a uma pobre qualidade de vida do médico; dicina é uma medida de atenção primária, que pode
a insatisfação conjugal não era devida à carga de ser concretizada mediante modificações curriculares
trabalho do médico mas, ao contrário, alguns mé- que incluam, nas escolas médicas, o ensino de Psico-
dicos trabalhavam muito como uma resposta a ca- logia Médica, centrado nas vicissitudes do curso mé-
samentos infelizes. dico e do exercício da Medicina.
Em um antigo estudo com médicos dependentes A tarefa central, prática, de uma disciplina de Psi-
de narcóticos26, as razões dadas pelos mesmos para o cologia Médica, é propiciar ao estudante um espaço
uso de drogas eram: sobrecarga de trabalho, fadiga para entrar em contato com seus sentimentos e emo-
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ções, diante dos seres humanos que está começando os residentes possam expor suas dificuldades, angústi-
a atender. Um espaço que priorize a reflexão e a troca as e temores ligados ao exercício profissional, tem se
de experiências. Sob diferentes estratégias, trata-se de revelado um eficiente instrumento psicopedagógico de
utilizar a vivência como instrumento de aprendizado natureza preventiva.
e de semiologia28. As medidas preventivas no âmbito da Residência
O ensino médico que não reflete sobre o ser hu- podem ser divididas em duas áreas:
mano que há no médico participa de modo altamente redução do estresse do treinamento:
prejudicial das deformações adaptativas do futuro pro-
extinção do regime de 36 horas contínuas de
fissional. Nas escolas médicas, o discurso enfatiza os
trabalho
deveres e responsabilidades e mantém um eloqüente
silêncio sobre os direitos, prerrogativas e limitações do instituição da folga pós-plantão
médico. Certos valores heróicos, veiculados pelo cor- supervisão diuturna principalmente para os R1
po docente e que estimulam fantasias irrealísticas nos adequação do número de residentes à carga
estudantes de Medicina, merecem ser reavaliados. assistencial
Ainda ao nível da formação, é fundamental a cria- suporte de corpo auxiliar (enfermagem, labo-
ção de serviços de orientação psicopedagógica para ratório, etc.)
os estudantes, assim como deve ser estimulada a orga-
conscientização dos docentes e residentes so-
nização de serviços de assistência psicológica e psi-
bre o estresse do treinamento
quiátrica aos alunos e profissionais da saúde. A preo-
cupação com a saúde mental dos estudantes universi- promoção do crescimento profissional e pessoal:
tários em geral e com os estudantes de medicina em grupos de discussão e reflexão
particular data do início do século29. No Brasil já dis- atendimento individual para dificuldades pro-
pomos de razoável massa crítica nessa área24; a expe- fissionais e pessoais
riência dos nossos serviços tem sido discutida em di-
identificação das dificuldades emocionais e dos
versos encontros reunindo profissionais da área de saú-
grupos de risco
de mental que prestam assistência aos estudantes. Em
outubro de 1997, foi realizado o I Encontro Paulista treinamento e assessoria para os coordenado-
dos Serviços de Assistência Psicológica ao Estudante res, preceptores e supervisores.
Universitário30, com a participação de 12 Serviços, Pesquisas sobre as condições de trabalho dos mé-
representando oito instituições de ensino superior. dicos, nas diferentes especialidades médicas, devem
Desde então encontros anuais foram realizados em ser desenvolvidas visando à detecção precoce dos gru-
Campinas (1998), promovido pela Universidade Esta- pos de risco. Na medida em que a Medicina, gradati-
dual de Campinas (UNICAMP), em Bragança Paulista vamente, deixa de ser uma profissão masculina, pes-
(1999), promovido pela Universidade São Francisco e quisas sobre as mulheres médicas se tornam cada vez
em Marília (2000), promovido pela Faculdade de Me- mais necessárias. Essas pesquisas devem contribuir para
dicina de Marília (FAMEMA). a implantação de programas de qualidade nas institui-
Um exemplo de serviço organizado para o atendi- ções de saúde.
mento de médicos e enfermeiras residentes de um hos- A criação de serviços de consultoria psiquiátrica e
pital é o Núcleo de Assistência e Pesquisa em Resi- psicológica (Interconsulta) nos hospitais gerais é medi-
dência Médica (NAPREME) da Universidade Federal da prioritária32. Um conjunto de situações clínicas
de São Paulo. O NAPREME tem como objetivos: con- estados confusionais agudos associados a diversas pato-
tribuir para a redução do estresse do treinamento, pro- logias orgânicas e ao uso de medicamentos, estados
mover o crescimento profissional e pessoal dos resi- depressivos, pacientes com alto potencial autodestru-
dentes, prevenir disfunções profissionais e distúrbios tivo, atos suicidas, dilemas éticos representa impor-
emocionais, oferecer atendimento psicológico, asses- tantes fontes de estresse para os médicos encarrega-
sorar os preceptores dos Programas de Residência dos da assistência em hospitais gerais. Um serviço de
Médica e desenvolver projetos de pesquisa que iden- Interconsulta pode auxiliar o médico consultante no
tifiquem as dificuldades emocionais que ocorrem du- diagnóstico e no tratamento de pacientes com proble-
rante o treinamento. O objetivo final é aperfeiçoar o mas psicológicos, psiquiátricos e psicossociais bem
sistema de capacitação profissional na Residência como no diagnóstico e tratamento de disfunções e
Médica, aprimorando a assistência prestada aos paci- distúrbios interpessoais e institucionais, envolvendo o
entes e a qualidade de vida dos profissionais encarre- paciente, a família e a equipe de saúde.
gados dessa assistência31. A criação de equipes interdisciplinares e multipro-
A implantação de grupos de discussão e reflexão fissionais nos serviços de saúde, possibilitando a troca
sobre a tarefa assistencial na Residência Médica , onde de experiências e permitindo compartilhar as difíceis
situações que se apresentam nas instituições médicas pacientes funcionais inscritos em suas listas, Balint pas-
é uma outra tarefa prioritária. sou a coordenar seminários semanais de discussão a
As associações de classe e de especialidades, bem respeito dos problemas psicológicos da prática médi-
como os órgãos reguladores do exercício profissional, ca33. Habitualmente participavam dos seminários 14
têm um importante papel a desempenhar, informan- médicos generalistas e uma taquigrafista que registra-
do e estimulando o debate sobre os fatores de risco va o conteúdo das apresentações dos casos clínicos
para a saúde mental do profissional e propondo o de- que eram atendidos pelos médicos. Segundo Balint
senvolvimento de modelos de intervenção nos níveis a maneira de falar do médico a respeito de seu
institucional, grupal e individual. Neste sentido, me- paciente, com todas as falhas e inexatidões de
rece ser saudada e destacada recente resolução do seu relato, as omissões, os pensamentos secun-
Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo dários, as adições tardias e as correções, inclu-
Resolução nº 090/2000 que normatiza preceitos indo a seqüência na qual isso foi revelado, con-
que contribuam para a melhoria das condições de saú- tam uma história semelhante ao conteúdo de
de ocupacional dos médicos. Assim, por exemplo, a um sonho - familiar e facilmente inteligível para
questão referente à sobrecarga horária de trabalho é nós, analistas. Esta história é aquela, evidente-
contemplada pela Resolução nº 090/2000, em seu mente, da implicação afetiva do médico, de sua
artigo 8º, ao estabelecer que: Ficam proibidos plan- contratransferência 34.
tões superiores a vinte e quatro (24) horas ininterrup- As principais contribuições de Balint à Psicologia
tas, exceto em caso de plantões à distância. Em seu Médica encontram-se em O Médico, seu paciente e
anexo único, a Resolução nº 090/2000 descreve os a doença, publicado originalmente em 1957 e em
riscos biológicos, físicos, químicos, psicossociais, ergo- Técnicas psicoterapêuticas em medicina, publicação
nômicos a que estão sujeitos os médicos e as medidas de 1961. A técnica dos grupos Balint desenvolveu-se
de proteção que devem ser adotadas pelas institui- em diversos países, tendo sido criadas em todo o mun-
ções e serviços de saúde.
do várias associações de profissionais interessados no
Uma valiosa medida profilática é, sem dúvida, o estudo e divulgação desta técnica. Balint é também
debate aberto e franco sobre as nossas vulnerabilida- muito conhecido pela criação de uma máxima a res-
des, limitações e patologias, com o mesmo empenho peito da prática médica, abaixo reproduzida :
e dedicação com que o fazemos em relação às susce-
tibilidades e patologias dos nossos pacientes. O remédio mais usado em Medicina é o pró-
prio médico, o qual, como os demais medica-
Convém, finalmente, salientar que toda e qualquer mentos, precisa ser conhecido em sua posolo-
medida profilática envolve um processo de conscien-
gia, reações colaterais e toxicidade 34.
tização com tentativa de modificação de atitudes. Este
processo costuma ser demorado e doloroso. As resis- Balint35, em sua obra, deu ênfase à aliança terapêu-
tências não são pequenas e com freqüência crescem tica que deve existir no vínculo profissional-paciente,
ao longo desse processo. como propulsora de um bom atendimento. Conforme
esse autor, a técnica, por mais aprimorada que seja, ten-
derá a ser ou inócua ou alienante, se não for veiculada
Grupo de reflexão sobre a tarefa assistencial por uma boa relação profissional-paciente. Para que haja
grupos balint essa boa relação, é necessário que se dê atenção aos
Dentre as medidas preventivas que podem ser apli- elementos que a compõem que são, ao mesmo tempo,
cadas tanto no âmbito da formação como do exercí- racionais e irracionais, realísticos e irrealísticos, maduros
cio profissional, o Grupo de Reflexão sobre a Tarefa e infantis, conscientes e inconscientes.
Assistencial merece destaque. Esse tipo de atividade é O objetivo dos Grupos Balint é que os médicos,
inspirado nos Grupos Balint. com o auxílio de um coordenador da área de Saúde
Michael Balint, psicanalista de origem húngara, de- Mental, possam ter uma compreensão nova a respeito
senvolveu os seus trabalhos sobre a capacitação psico- de seus pacientes e ampliar suas possibilidades tera-
lógica dos médicos na Clínica Tavistock em Londres a pêuticas. O trabalho se realiza em grupo, a partir de
partir de 1945. Balint iniciou seus trabalhos a partir de casos clínicos relatados pelos médicos36. O coordena-
pesquisas com grupos de assistentes sociais que aten- dor oferece aos médicos uma possibilidade de sub-
diam famílias. Esta atividade foi posteriormente esten- meterem seus casos problemáticos a seus pares, anali-
dida para médicos clínicos visando compreender e sando as situações, propiciando discussões e mostran-
administrar dificuldades que os profissionais encon- do interesse e sensibilidade pela realidade profissional
travam em seu trabalho clínico. do médico e por seu desenvolvimento profissional.
Na época em que muitos médicos generalistas bri- Cassorla37 concebe os Grupos Balint como um re-
tânicos tinham que atender solicitações reiteradas de curso pelo qual o médico e o estudante de Medicina
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passem a se interessar pelo mundo emocional do seu a escolha do caso e/ou situação a ser discutida era
paciente e pelas repercussões que seu modo de vivê-lo prerrogativa dos alunos. Estimulava-se que eles dis-
acarretam para o processo saúde-doença; como con- cutissem previamente esta escolha com os colegas,
seqüência, o médico passaria a interessar-se também com os residentes e com o preceptor. Enfatizava-se
por sua própria vida emocional e pela relação humana que poderia ser trazida à reunião qualquer situação
(em particular, pela relação médico-paciente). que os estivesse mobilizando e não-necessariamente
O Grupo de Reflexão38, é uma técnica muito utili- casos de interesse psiquiátrico;
zada no ensino de Psicologia Médica, que pressupõe a apresentação seria feita através de dados da paci-
que as possibilidades de mudanças nas atitudes estão ente (idade, procedência, profissão, religião) e um
diretamente ligadas à intensidade das experiências breve resumo clínico (motivo da internação, hipó-
emocionais vividas no decorrer do processo de ensino teses diagnósticas, conduta , prognóstico);
ou de trabalho. As experiências emocionais ligadas ao solicitava-se que os alunos pudessem trazer a paci-
exercício profissional compartilhadas em um ambien- ente por meio da sua biografia, das características
te afetivo e acolhedor permitem um reasseguramento de vida nas quais havia se desenvolvido a doença
da identidade profissional através da detecção e en-
atual, das fantasias e concepções que tinha sobre a
frentamento dos conflitos. Com este modelo, se pro-
doença e da forma como estava se relacionando com
põe a criação de uma instância reflexiva sobre o coti-
a equipe médica e com as outras pacientes;
diano da prática assistencial, com possibilidade de
detecção de entraves e pautas estereotipadas de con- por fim, que o aluno e/ou grupo explicitasse os mo-
duta no exercício profissional. O manejo técnico utili- tivos que haviam justificado a escolha do caso e/ou
zado neste tipo de grupo consiste em que seu coorde- situação.
nador centralize a discussão no tema que, como um
denominador comum, emerge da livre discussão que Um exemplo de grupo de reflexão sobre a tarefa
se estabelece a partir dos relatos das vivências clínicas. assistencial:
O coordenador, através de breves estímulos, coloca-
ções e indagações, mercê de uma capacidade de dis- A transfusão sangüínea. O sagrado do médico x o
criminação e síntese, ajuda o grupo a sentir, indagar e sagrado da paciente.
incorporar um conjunto de valores que convergem para
as atitudes médicas. O termo re-flexão indica que a Em uma das primeiras reuniões, foi apresentada
finalidade precípua do grupo é a de levar o indivíduo uma extensa e bem elaborada observação clínica. A
a flectir-se sobre si próprio através do pensar e do sen- aluna havia feito uma anamnese detalhada e a obser-
tir, e assim levá-lo a aprender a aprender. vação mostrava que o caso estava bem estudado e a
Tanto os Grupos Balint como os Grupos de Refle- propedêutica caminhava no sentido de um esclareci-
xão se caracterizam pela apresentação e discussão de mento diagnóstico. Tratava-se de uma paciente que
casos clínicos de pacientes que estão sendo atendidos fora internada em função de um acentuado emagreci-
por um ou mais profissionais em diferentes âmbitos mento, tendo sido detectada importante anemia. Os
assistenciais (consultório privado, ambulatórios, enfer- exames estavam em andamento e a hipótese diagnós-
marias, etc.). tica principal era a de um linfoma. A apresentação
A seguir, é descrito resumidamente um exemplo transcorria tranqüila quando o coordenador, não ati-
ilustrativo de uma experiência de Grupos de Reflexão nando com as razões que teriam levado à escolha do
realizados durante o ano de 1981 (vale lembrar que a caso, indagou a respeito. Foi informado então que a
situação discutida no Grupo se passa antes da promul- paciente, dada a sua anemia, necessitava de uma trans-
gação de vários códigos de proteção e defesa dos di- fusão sangüínea e que, por motivos de ordem religio-
reitos dos usuários de serviços de saúde, atualmente sa, esta se recusava a receber sangue. Esta situação
em vigor) com os membros de uma equipe de saúde estava deixando a aluna intranqüila, vendo-se diante
de uma enfermaria (pacientes do sexo feminino) de de um impasse: por um lado achava que deveria fazer
Clínica Médica de um hospital-escola. A equipe (cer- a transfusão, em especial porque talvez se tornasse
ca de 13 pessoas) era constituída por alunos do sexto necessária uma exploração cirúrgica e ela temia pela
ano médico, residentes de segundo ano de Clínica vida da paciente no ato cirúrgico; por outro lado gos-
Médica, preceptores dos alunos e a enfermeira da taria de respeitar as crenças religiosas da paciente, de
unidade. As reuniões eram semanais com duração de tal sorte que se sentia intensamente conflituada. Já
90 minutos e coordenadas por um psiquiatra com ex- havia discutido o assunto com a paciente e esta mos-
periência em Interconsulta Psiquiátrica39. trava-se irredutível. Em conversa com os colegas e pro-
No início de cada nova turma (rodízio de seis se- fessores, havia contado seu drama, sem qualquer
manas), os alunos recebiam orientação quanto às ca- solução. Enfatizava que não gostaria de tomar qual-
racterísticas básicas da tarefa: quer medida agressiva mas que a situação a estava
deixando intolerante no seu relacionamento com a va em jogo, com uma crescente e perigosa radicaliza-
paciente. ção, eram princípios, dogmas, e que a situação concre-
Vários alunos manifestaram-se. Algumas sugestões ta e particular daquela paciente não exigia uma corrida
foram veiculadas: contra o tempo. Sugeriu que a aluna retomasse a dis-
cussão com a paciente, visto que ela (paciente) devia
Sedamos a paciente e administramos o sangue.
estar, também, muito conflituada com a situação.
Quando ela acordar, nada saberá
Na reunião seguinte, o clima estava menos tenso.
Pegamos um frasco de sangue, cobrimos com es-
A aluna fez um relato da evolução dos acontecimen-
paradrapo e dizemos que é soro
tos. Segundo a aluna, a paciente, certo dia, chamou-a
Outras manifestações foram mais agressivas: e disse-lhe que gostaria que ela (aluna) conversasse
O que ela quer? Por que eles (religiosos) não cons- com seu (da paciente) marido. A paciente contou que
tróem um hospital para os seus crentes? recebia visitas de muitos amigos da sua igreja e de que,
Isto é um absurdo! Estamos na Idade Média! comentando com eles a respeito da transfusão, havia
sido convencida por uma amiga de que a decisão final
A que ponto chegamos! Nos Estados Unidos, es-
deveria ser do marido, pois se a religião proibia o re-
tão gastando milhões de dólares na pesquisa de
cebimento de sangue, também dizia que a esposa é
um sangue artificial! Tudo por causa deles!
uma serva do marido e a ele deve obediência.
Após estas manifestações, alguns alunos fizeram
A aluna assim procedeu e, como o marido não per-
referência a folhetos que a paciente tinha em seu po-
tencia à mesma religião da paciente, sem hesitar, aqui-
der e que oferecia aos médicos para lerem. Os folhetos
esceu com a transfusão. Esta decisão trouxe grande
tinham como título indagações da seguinte natureza:
alívio à aluna e, sem dúvida, também à paciente, que
O paciente que se recusa a receber sangue é um conseguiu uma plástica acomodação de suas necessi-
suicida? dades.
O médico que não faz uma transfusão, mesmo É interessante registrar que a transfusão acabou não
com risco de vida, está cometendo um crime? sendo realizada, visto que em sucessivas reavaliações
Poucos alunos haviam lido os impressos e aqueles verificou-se que o grau de anemia não era suficiente-
que o fizeram relataram, com algum constrangimen- mente grave a ponto de tornar a transfusão uma me-
to, que havia uma certa coerência nos textos e que a dida imperiosa, assim como não se confirmou a ne-
argumentação chegava a ser convincente. cessidade de exploração cirúrgica.
O coordenador, após certificar-se com a equipe de O presente relato pretende ilustrar o processo de
que não havia uma situação de urgência quanto à trans- construção de uma aliança terapêutica mesmo em si-
fusão, propôs que se continuasse a discussão na reu- tuações tão difíceis e complexas como a retratada aci-
nião seguinte, alertando para o fato de que o que esta- ma (dilema ético).
SUMMARY
Mental Health of Health Care Workers
This article analyses the question of the mental health of the health professionals, considering the practice of
Medicine as an illustrative model of the other health areas. Although each profession sustains its own char-
acteristics, several aspects of the professional activities in health are shared by doctors, nurses, social assis-
tants, occupational assistants, psychologists, physiotherapists, among others. The differences, and the pro-
fessional specialties such as the predominance of feminine population in some areas, which adds to the
professional stress the stress originated by the overtime work and the depreciation of the feminine work that
sadly still exists in our society, walk side by side with the similarities with the medical profession.
In addition to these factors, the question of the hegemony of the medical speech in relation to the other
health professionals, and, consequently, the difficulties established in the inter-disciplinary teams make a
sufficiently complex psychodynamic panorama of the health professionals situation.
The analyses of the health of the doctors, and at greater length, their mental health, is preceded by the
description of the sociological aspects of the health professions in Brazil, as well as a profile of the Brazilian
doctors and the current practice of the Medicine.
The psychological characteristics of the medical tasks are dealt with, along with the adaptation of the doctors
to stress, their psychological vulnerability, and the preventive proposals for this situation.
Key words: Occupational Health; Occupational Medicine; Health Professions; Mental Health of Physicians;
Medical Work.
Rev. Bras. Med. Trab., Belo Horizonte Vol. 1 No 1 p. 56-68 Jul-Set 2003 $'
LUIZ ANTONIO NOGUEIRA-MARTINS
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