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Trabalho apresentado ao curso de Filosofia, para a disciplina Ética, ao professor Dr. Genildo Ferreira da Silva.
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Esta reorganização só pode se efetivar como veremos adiante por um meio, a saber, o conhecimento cientifico
experimental.
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“Se alguém se ofende com as sutilezas especulativas, o que dizer então dos escolásticos que, com tanta
indulgência, se entregaram às sutilezas? Tais sutilezas se consumiam nas palavras ou, pelo menos, em noções
vulgares (o que dá no mesmo), não penetravam nas coisas ou na natureza. Não ofereciam utilidade não só em
suas origens, como também em suas conseqüências. E não eram, enfim, de tal forma que, como as de que nos
ocupamos, não tendo utilidade no presente, oferecem-na infinita em suas conseqüências. Tenham os homens por
certo que toda sutileza nas disputas ou nos esforços da mente, se aplicada depois da descoberta dos axiomas, será
extemporânea e que o momento próprio, pelo menos precípuo do uso de sutilezas, é aquele em que se examina a
experiência, para a partir dela se constituírem os axiomas. Com efeito, aquele outro gênero de sutileza persegue e
procura captar a natureza, mas nunca a alcança e submete. É muito certo, se transposto para a natureza, o que se
diz da ocasião e da fortuna, ‘que tem fartos cabelos vista de frente e é calva vista de trás’”. BACON, Francis.
Novum Organum. Trad. José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997. (Coleção Os
Pensadores), p. 80.
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O termo “organon” foi usado pela tradição para designar o conjunto de obras de Aristóteles que tem como foco
a lógica tida como meio pelo qual se constrói a ciência. Tais obras são: Categorias, Da interpretação, Primeiros
e Segundos Analíticos, Tópicos e Elementos Sofísticos.
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Vide: ARISTÓTELES. Segundos Analíticos II, 5, 91b 35. Clássicos da Filosofia: Caderno de Tradução n. 4,
Tradução de Lucas Angioni, 1. ed. Campinas: UNICAMP, Novembro 2002.
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Ou: todo homem é mortal, Sócrates é homem, então Sócrates é mortal.
1
Para Aristóteles o uso do silogismo para construir a ciência se dá em oposição ao
discurso comum que se baseia na doxa (opinião).7 E isso se justifica porque a doxa se
fundamenta tão somente na percepção sensível daquilo que é particular.8 Ora,
quantitativamente é possível dizer que existem infinitos particulares. No âmbito da aquisição
do conhecimento, infinito é sinônimo de desordem, pois sempre é possível acrescentar a
percepção anterior uma nova percepção, e assim ilimitadas vezes.9 Nessa medida, cabe a
razão ordenar aquilo que para ela é uma desordem. Por conseguinte, conhecer é ordenar.
Ao ordenar algo a ciência deve demonstrar em que consiste este algo. Para Aristóteles a
demonstração se fundamenta em pressupostos que ela mesma não sustenta. Nessa medida, o
conhecimento demonstrativo passa a pressupor um conhecimento não demonstrativo, capaz
de atingir, de modo não discursivo, mas imediato ou intuitivo, verdades que constituem os
princípios da ciência. Tais verdades são indemonstráveis, pois se fossem demonstráveis,
poderia se perguntar em que se fundamenta esta demonstração e assim infinitamente (ou
desordenadamente). Logo, para que não haja um processo ao infinito a razão estabelece as
verdades indemonstráveis ou princípios primeiros a partir dos quais se fundamenta a
demonstração. A este modo de proceder se denomina: modo axiomático de dedução.10
Bacon critica estas formulações aristotélicas, afirmando que as mesmas não servem para
o aprimoramento das ciências. Ele escreve:
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Vide: ARISTÓTELES. Metafísica Z, 15, 1039b27, 1-15. Clássicos de Filosofia: Caderno de Tradução n.11,
Tradução de Lucas Angioni, 1. ed. Campinas: UNICAMP, Setembro 2005.
8
Por exemplo, a percepção sensível que se pode ter por meio da visão de um, gato, ou de um pássaro.
9
Pode se dizer “existem infinitos gatos”, uma vez que durante o período de existência de um homem, este pode
acrescenta a percepção anterior de um gato branco outras percepções, seja de um gato branco maior do que o
anterior, seja de um gato cinza, e assim sucessivamente.
10
Vide: ARISTÓTELES. Segundos Analíticos II, 19, 100a3, 1-7
11
BACON, Francis. Novum Organum, p. 15.
2
Bacon conclui a passagem citada afirmando que a única esperança, no que diz respeito à
construção da ciência, repousa na indução.12 Pois, pela indução, tal como concebida por ele, o
intelecto humano parte de fatos particulares, depois estabelece os axiomas aplicáveis a todos
os casos, e em seguida volta-se aos fatos particulares 13 para a partir daí “inventar novas obras”
cujo intuito é auxiliar o estado atual do homem.
A invenção destas novas obras para Bacon ocorre por meio do estabelecimento de um
método que possa devolver ao homem o poder que ele tinha sobre a natureza 14 e que foi
perdido pelo pecado:
Ora, dominar as criaturas ou ter poder sobre a natureza para Bacon significa possuir um
conhecimento de tal sorte que o homem possa de fato ser “intérprete”16 da natureza, condição
necessária para que ela possa depois ser “ministro”17 da mesma, ou seja, fazer novas obras,
tais como: a bússola e a pólvora.18
Todavia, tais conquistas só são possíveis pela união entre método e arte cuja
conseqüência é o experimento.19 No que se refere ao método para Bacon este compreende três
12
É importante perceber que a concepção de Bacon do que seja a indução se dá pela “luta” contra os ídolos que
bloqueiam a mente humana de alcançar os verdadeiros resultados que a ciência deve chegar, tais ídolos são:
Ídolos da tribo, da caverna; dos foros e do teatro. Vide: BACON, Francis. Novum Organum, p. 21-22.
13
“De modo algum se pode admitir que os axiomas constituídos pela argumentação valham para a descoberta
de novas verdades, pois a profundidade da natureza supera de muito o alcance do argumento. Mas os axiomas
reta e ordenadamente abstraídos dos fatos particulares, estes sim, facilmente indicam e designam novos fatos
particulares e, por essa via, tornam ativas as ciências”. Idem, p. 17.
14
“Natureza para Bacon, tem o sentido amplo de aparência exterior e perceptível dos objetos, qualidades
secundarias das coisas”. Nota do Tradutor, p. 57, nota. 59.
15
Idem, p. 230-231.
16
“O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos
ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais”. Idem, p. 13.
17
Ibidem.
18
Idem, p. 70-71.
19
“A melhor demonstração é de longe, a experiência, desde que se atenha rigorosamente ao experimento. Se
procuramos aplicá-la a outros fatos tidos por semelhantes, a não ser que se proceda de forma correta e metódica,
é falaciosa. Mas o modo de realizar experimentos hoje em uso é cego e estúpido. Começam os homens a vagar
sem rumo fixo, deixando-se guiar pelas circunstâncias; vêem-se rodeados de uma multidão de fatos, mas sem
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momentos: a) primeiro deve haver a partir da observação uma coleta de dados, b)
subseqüentemente é preciso uma cuidadosa interpretação de tais dados, por fim faz-se a
realização de experiência cujo objetivo é justamente conhecer os segredos da natureza 20 por
meio de observações sistemáticas de suas leis ou formas.21
No que diz respeito à arte esta é um auxílio que o intelecto humano deve se servir na
investigação cientifica:
qualquer proveito; ora se entusiasmam, ora se distraem; presumem sempre haver algo mais a ser descoberto.
Dessa forma, ocorre que os homens realizam os experimentos levianamente, como em um jogo, variando pouco
os experimentos já conhecidos e, se não alcançam resultados, aborrecem-se e põem de lado os seus desígnios. E
mesmo os que se dedicam aos experimentos com mais seriedade, tenacidade e esforço acabam restringindo o seu
trabalho a apenas um experimento particular. Assim fez Gilbert com o magneto, e os alquimistas com o ouro.
Um tal modo de proceder é tão inexperto quanto superficial, pois ninguém investiga com resultado a natureza de
uma coisa apenas naquela própria coisa: é necessário ampliar a investigação até as coisas mais gerais”. Idem, p.
38.
20
“Desse modo, é de se esperar que há ainda recônditas, no seio da natureza, muitas coisas de grande utilidade,
que não guardam qualquer espécie de relação ou paralelismo com as já conhecidas, mas que estão fora das rotas
da imaginação. Até agora não foram descobertas”. Idem, p. 71.
21
“Deve-se considerar ainda um outro signo (se se deve colocar entre os signos um fato que é mais uma prova e
entre as provas, ainda, a mais certa), seja, a confissão daqueles autores que ora estão em grande voga. De fato,
mesmo aqueles que com tanta confiança pronunciam o seu juízo sobre a realidade, mesmo eles, quando mais
conscienciosos, põem-se a lamentar a respeito da obscuridade das coisas, da sutileza da natureza, da fraqueza do
intelecto humano. Ora, se se limitassem a isso, certamente os mais tímidos seriam dissuadidos de ulteriores
investigações, mas os que têm o engenho mais álacre e confiante receberiam mais incitamento e sugestão para
progredirem ulteriormente. Mas, não contentes de falarem deles próprios, põem fora dos limites do possível tudo
o que tenha permanecido ignorado e inatingível para si e para os seus mestres, e declaram-no incognoscível e
irrealizável, quase sob a autoridade da própria arte. Com suma presunção e malignidade fazem de sua fraqueza
razão de calúnia para com a natureza e desespero para com todos os demais. Assim, a Nova Academia professou
a acatalepsia e condenou os homens à perpétua ignorância. Daí surge a opinião de que as formas, que são as
verdadeiras diferenças das coisas, isto é, as leis efetivas do ato puro, são impossíveis de serem descobertas,
porque colocadas além de qualquer alcance humano. Daí surgem as opiniões, acolhidas na parte ativa e operativa
da ciência, de que o calor do sol e o do fogo são diferentes por natureza; que tendem a tolher na humanidade a
esperança de poder extrair ou construir, por meio do fogo, qualquer coisa de semelhante ao que acontece na
natureza.[38] E ainda mais, que a composição é obra do homem, enquanto que a mistura é obra apenas da
natureza: o que equivale a tolher toda esperança de poder realizar, com meios artificiais, os processos de geração
e de transformação dos corpos naturais. Por este signo não deverá ser difícil persuadir os homens a não
misturarem as suas sortes e fados com dogmas não apenas desesperados, mas destinados à desesperação”. Idem,
p. 43-44. Grifo nosso.
22
Idem, p. 13. Noutra passagem Bacon reafirma: “como dissemos a principio e sustentamos sempre, os sentidos
e o intelecto humano, pela sua fraqueza, não hão de ser desmerecidos em sua autoridade, mas, ao contrário,
devem ser providos de auxílios” Idem, p. 37.
4
diferentemente da concepção antiga, e particularmente de Aristóteles, não tem como fim a
contemplação: “Ainda há outra causa grande e poderosa do pequeno progresso das ciências. E
ei-la aqui: não é possível cumprir-se bem uma corrida quando não foi estabelecida e prefixada
a meta a ser atingida. A verdadeira e legítima meta das ciências é a de dotar a vida humana de
novos inventos e recursos”.23
A critica de Bacon aos antigos (e medievais) está centrada justamente nesta “falta de
interesse” em melhorar a condição humana. Ou seja, dado que o homem e a sociedade
padecem numa estrutura não favorável à vida tal como aparece na Nova Atlântida como
veremos a seguir, é preciso que o filósofo se interesse em reverter esta situação:
É visando o lado prático (“útil”) do conhecimento que Bacon escreve a Nova Atlântida,
que para o autor ilustra o que seriam os resultados concretos da aplicação do método
experimental indutivo. Na Nova Atlântida, Bacon expõe utopicamente um Estado imaginário,
onde reina a felicidade. O título da Obra é contraposto a Atlântida (antigo continente
afundado no oceano) de Platão, assim como o Novum Organum se contrapõe ao Organon de
Aristóteles. Mas para compreender a utópica Nova Atlântida é importante se distanciar do
senso comum onde a utopia é caracterizada como um afastamento da realidade. Em Bacon,
pelo contrário, a utopia surge como conseqüência lógica de sua obra filosófica/cientifica.
Aqui o filósofo expõe de maneira clara, as conseqüências práticas e o papel da ciência na
23
Idem, p. 48-49.
24
Idem, p. 42. Grifo nosso.
5
dominação da natureza pelo homem. Deste modo, a utopia de Bacon não deve ser vista como
algo meramente imaginário, mas sim como possibilidades reais de serem postas em ação.
Assim, a Nova Atlântida, apesar de obviamente “idealista”, antecipa em séculos uma série de
inventos e descobertas que mesmo em nosso tempo nos assombram, soando até como
antecipação mesmo, deste modo como exemplo temos:
25
Vide: BACON, Francis. Nova Atlantida. In: BACON. Trad. Jose Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Editora
Nova Cultural, 1997. (Coleção: Os Pensadores) (pp.223-254)
26
Aqui buscamos destacar o principal ponto do filósofo na obra, mas é claro que como homem de seu tempo,
intelectual, membro importante da sociedade inglesa de sua época, Bacon não só se interessava, mas como
atuava diretamente nas decisões de cunho político e social, sendo inclusive lord-chanceler em dado momento de
sua vida.
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direitos e deveres, mas tudo isso graças ao desenvolvimento de uma ciência capaz de subjugar
a natureza as necessidades do homem.
Com um olhar contemporâneo sobre a obra Nova Atlântida percebe-se que Bacon ao
restringir seu foco no desenvolvimento das ciências contribui de maneira decisiva na forma
como o homem encara o mundo. Com Bacon, homem deixa de ser mero partícipe da natureza
e passa a condição de dominador da mesma. Neste sentido fica clara a ruptura com o
pensamento medieval e a configuração de uma nova maneira de ver a realidade. A partir daí,
o homem como senhor absoluto de suas ações empreende um distanciamento de mundo
surgindo de maneira clara à dicotomia sujeito x objeto, evidenciada ainda mais com
Descartes.
O momento atual reflete o que seria tal dominação da natureza pelo homem, com a
efetivação dos inventos e descobertas propostos por Bacon. Porém, concomitantemente a tais
avanços positivos da ciência, o homem também foi capaz de utilizar da ciência não só como
instrumento de melhoria da condição humana, mas também contra si própria ao acirrar
disputas bélicas, ao aumentar a dominação seja por via militar ou por via econômica. A
ciência da atualidade vive um paradigma ético, já que parte do progresso cientifico humano
tomou a direção oposta ao pensado por Bacon. Ao contrario do sumo Bem, a ciência vem
sendo utilizada como instrumento de extermínio do próprio homem. Nesta medida, faz-se
necessário repensar seu papel no desenvolvimento humano no mundo contemporâneo,
levando em consideração a ética. Somente de maneira ética a própria ciência poderá fazer o
caminho proposto pelo filósofo. Caminho este em direção ao Bem, atuando em prol do
homem, jamais contra o mesmo.
Neste momento, as perguntas ao tempo de Bacon soam atuais: como será a ciência do
futuro? De que modo ela poderá contribuir para o bem estar da comunidade? Como o homem
poderá interagir (e não dominar) com a natureza? As respostas, diferentemente que ao tempo
do filosofo, devem ser dadas no caminho ético-aristolelico (em certa medida uma
reconciliação, em parte, com os antigos) da harmonia e em direção ao bem, do contrário tal
dominação poderá levar a sociedade atual a ruína, assim como a Atlântida de Platão.
7
Fonte Primária
• BACON, Francis. Novum Organum. In: BACON. Trad. José Aluysio Reis de
Andrade. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997. (Coleção: Os Pensadores).
• BACON, Francis. Nova Atlantida. In: BACON. Trad. Jose Aluysio Reis de Andrade.
São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997. (Coleção: Os Pensadores).
Fonte secundária