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SOBRE A RETÓRICA E OS SOFISTAS*

Eduardo Amaral

discurso, de como compor um discurso conveniente

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às circunstâncias e convincente para o público. E
isto, ensinavam a quem quisesse e, sobretudo, pu-
A retórica é a arte de convencer os outros desse pagá-los. Quando a palavra toma lugar central
pelo discurso, convencer de que sou eu no modo pelo qual a sociedade se organiza, a retóri-
quem carrega a melhor opinião, de que ca torna-se um instrumento importante para quem
minha opinião é a mais justa. Não por acaso, é na pretenda êxito nos debates da Assembleia, influenci-
Grécia Antiga que a retórica conhece seu primeiro ar nas decisões a serem tomadas, conquistar a ade-
desenvolvimento, em meio à democracia que nascia. são do público à sua opinião.
Basta a referência às Assembleias e aos tribunais
Os sofistas silenciados — Contudo e antes de mais
para verificarmos como a palavra passa a ocupar um
nada, é necessário mencionarmos aqui a má fama
lugar central na vida em sociedade, tal como os gre-
que envolve os sofistas. A visão que a tradição da
gos a praticaram.
história da Filosofia nos legou dos sofistas é a ima-
Contexto histórico — A democracia grega criou gem de um charlatão, manipulador, de alguém que
uma nova forma de relação entre os homens, em que usa da ignorância alheia em prol de si mesmo, fazen-
pouco importava a classe social do cidadão, se era do prevalecer uma aparente verdade em detrimento
membro da aristocracia guerreira, que antes detinha da própria verdade. Sofisma tornou-se sinônimo de
todo o poder de mando sobre a pólis, ou se era um burla, de enganação: “argumento ou raciocínio con-
simples artesão, comerciante ou agricultor: eles são cebido com o objetivo de produzir a ilusão da verda-
todos iguais, igualmente cidadãos, e todos os cida- de, que, embora simule um acordo com as regras da
dãos têm o mesmo direito de tomar a palavra na lógica, apresenta, na realidade, uma estrutura inter-
Assembleia onde discutem os destinos da cidade. É na inconsistente, incorreta e deliberadamente enga-
importante lembrarmos entretanto que apenas eram nosa”; e sofista, “aquele que utiliza a habilidade retó-
considerados “cidadãos”, com direito a voz e voto, os rica no intuito de defender argumentos especiosos
homens adultos nascidos na cidade (pólis) – que em ou logicamente inconsistentes” (Dicionário Houaiss).
Atenas, o berço da democracia, correspondia a um
Tal imagem negativa se deve em grande parte ao
décimo da população. Os outros 90% estavam exclu-
combate às ideias dos sofistas feita por Platão e,
ídos dos direitos de cidadania: obviamente os escra-
depois dele, Aristóteles. É deles aquele julgamento
vos, os metecos (estrangeiros, nascidos em outra
que prevaleceu na história da Filosofia. Além disso,
cidade), as mulheres e as crianças.
os textos produzidos pelos sofistas se perderam e a
Seja como for, é neste chão democrático que a “arte maior parte das referências que dispomos sobre o
da palavra” que se desenvolve. Todos podem expres- que eles pensaram e produziram nos chegou sempre
sar suas opiniões sobre o mundo e sobre os rumos por vias indiretas, na obra de seus acusadores. Di-
da cidade. A questão é conseguir, a partir do próprio gamos então que no tribunal da história, venceram
discurso, convencer os demais cidadãos da sua jus- os filósofos e foram vencidos os sofistas, condenados
teza, de sua verdade. Ser convincente. Mas se cada assim ao silêncio.
um tem uma opinião diferente, cada um argumenta
São bastante recentes, desde um renovado interesse
como pode, em favor de sua própria opinião e contra
pela retórica clássica no século XIX, as tentativas de
as opiniões alheias. E o mesmo ocorre nos tribunais,
recuperar o ideário sofístico, depurando-o das críti-
quando uma parte acusa e outra se defende, em um
cas que lhe foram feitas. O que parece hoje incontes-
combate de discursos que querem convencer os
tável é que, como nenhuma outra obra elaborada no
jurados sobre uma ou outra versão dos fatos.
período clássico, é nos sofistas que encontraremos a
É neste contexto que devemos entender o surgimen- formação de um ideário deliberadamente compro-
to dos sofistas: eram mestres da retórica, da arte do missado com uma visão-de-mundo a um só tempo
humanística e democrática, enraizada no contexto
histórico que o engendrou.
* Registro das aulas no primeiro semestre de 2010 para as turmas de
2º e 3º anos do ensino médio e publicado no blog CRÔNICAS DE ESCOLA:
http://edu74.wordpress.com
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Os sábios sofistas — Mais do que apenas ensinar
retórica, eram considerados “sábios” — e por isso
Relativismo como visão-de-mundo
eram chamados de sofistas. A palavra grega para
designá-los, sophistés, deriva etimologicamente A retórica, já dissemos, é a arte de produzir
de sophos (sábio) e sophia (sabedoria); é que a sabe- o convencimento através do discurso; trata-
doria que os sofistas detinham era distinta daquela se de saber como convencer os outros de que sua
do sophos. Expliquemo-nos melhor. Sophos se refere opinião é a mais justa e verdadeira. É por isto que,
primeiramente àquele que detém um saber prático, para os sofistas, a verdade é sempre “relativa”, ou
um “saber-fazer”; a “sabedoria”, neste caso, se refere seja, ela sempre dependerá do êxito no exercício de
antes ao domínio de uma técnica. Neste sentido, o convencimento; uma vez que os outros se conven-
artesão é sábio (sophos) por saber-fazer com destre- çam de que a verdade é isto e não aquilo, isto é ver-
za a sua arte, seja ela qual for. dadeiro e aquilo é falso.

Assim, por exemplo, um tecelão é sábio e sua sabe- O quadrinho abaixo nos apresenta uma situação
doria é fazer tecido: sabe com destreza trançar os assim. Em um primeiro momento, há uma multidão
fios, amarrá-los, ou mesmo operar o tear. O sofista é que segue o um que fala: estão convencidos de que
sábio também pelo domínio de uma arte, ele sabe- ele é portador de uma verdade. Contudo, o outro que
fazer discursos. Contudo,sophistés é também “espe- fala consegue com seu discurso “engolir” o discurso
cialista no saber, possuidor de muitos saberes”. É do primeiro, e assim vai conquistando adeptos ao
que, na arte de compor discursos, os sofistas acumu- seu discurso, à sua opinião – vale dizer, à sua verda-
lavam toda a sabedoria da época e eram capazes de de – até que aquele seja vencido no debate.
discorrer sobre todas as artes e técnicas com a mes-
ma eloquência. Dito de outro modo e voltando ao
nosso exemplo: diferentemente do tecelão que sabe-
fazer tecido, o sofista sabe falar de tecidos, sobre o
processo de sua fabricação, sua história desde a
origem da técnica de traçar os fios de algodão, dos
diferentes usos e costumes das vestimentas em dife-
rentes culturas — tudo isso ele fala com mais elo-
quência do que o mais hábil dos tecelões, que não
saberá falar com a mesma desenvoltura sobre aquilo
que ele mesmo faz.
O mesmo vale para as outras técnicas, inclusive a-
quelas consideradas e mais estimadas na vida públi-
ca, na política. A arte da guerra, a estratégia militar,
as variadas legislações das diferentes cidades, a en-
genharia e arquitetura — sobre todos os assuntos, os
sofistas buscavam conhecer, detendo deste modo um
vasto saber. Mais do que ensinar retórica, pela retó-
rica ensinavam também sobre os assuntos de inte-
resse comum. Os sofistas eram cultos, eruditos, ver-
sados em vários assuntos, de “cultura geral”, da arte
e da literatura, dos mitos e histórias, das técnicas,
(C) QUINO
das leis e tudo o mais. Eram, ao seu tempo, enciclo-
pedistas e — sobretudo — educadores. Este o maior Para os sofistas, não há verdade fora do discurso.
projeto da sofística: tornar acessível a todos os cida- Não há uma “verdade do mundo”, a não ser por aqui-
dãos a sabedoria que os homens acumularam ao lo que é dito sobre o mundo, o que julgaremos ser
longo de sua história. verdadeiro ou falso. O discurso é verdadeiro, se con-
forme minha percepção dos fatos, ou ele é falso, se
contraria meu modo de ver o mundo. A palavra hu-
mana é a única portadora da verdade – e não há
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verdade que exista para além dos discurso, e por Então, o homem, cada homem particular, como dizi-
isso ela é “relativa” à compreensão da multidão so- a Protágoras, é “a medida de todas as coisas”, que
bre a adequação do discurso a sua própria percepção ele crê serem verdadeiras ou falsas. A verdade não
do mundo. se fixa: está em permanente transformação, a de-
pender de das circunstâncias e de quem fala, se con-
Assim, não existe apenas uma, mas várias verdades
vence ou não. A verdade torna-se mundana, do ta-
contraditórias e concorrentes entre si, tal como são
manho dos homens, com a qual os homens fazem sua
contraditórios os discursos de dois opositores con-
própria história, tão contraditória quanto cheia de
correntes numa assembleia. Não há critério suficien-
equívocos, mas a história dos homens, a qual só eles
te para estabelecer de modo indiscutível entre os
podem ser responsabilizados.

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dois quem é o verdadeiro portador da verdade, pois
tampouco existe essa verdade para além dos discur-
sos. Antes, tudo é discutível: o que existe é o conflito,
Acerca de Protágoras
a disputa entre discursos para saber qual deles irá
convencer mais ouvintes e convencê-los melhor. Por Feita uma brevíssima expo-
isto se diz que a verdade é uma “convenção”, porque sição sobre os sofistas, exa-
somos convencidos dela. minemos um caso exemplar, daquele
que foi talvez um dos mais afamados
Como chegam os homens a serem convencidos de
representantes da sofísti-
que algo que é dito é verdadeiro? Essa é a questão
ca, Protágoras de Abdera. Contudo,
central da retórica, compreender que a partir do
não vamos nos deter aqui a aspectos da biografia do
discurso, se ele é corretamente composto, os homens
personagem, mas apenas interpretar um pequeno
são levados a acreditar nisto ou naquilo. Portanto, a
fragmento seu, também conhecidíssimo da tradição,
retórica apoia-se não em uma “verdade absoluta”,
do “homem-medida”, como uma síntese possível de
mas apenas na crença, naquilo que é considerado
uma certa visão-de-mundo defendida pelos sofistas.
verdadeiro, aquilo que parece ser verdadeiro, aquilo
Então, tenha em mente o que já discutimos sobre os
em que os homens creem.
sofistas, retome a leitura dos dois textos anteriores
Em que creem os homens? Em primeiro lugar, cre- para prosseguir.
mos que aquilo que percebemos, pelo simples fato
O fragmento ao qual nos referimos é o seguinte:
de assim o percebermos, é verdadeiro: nossas sensa-
ções, o que captamos ou podemos captar do mundo O homem é a medida de todas as coisas; das
pela nossa sensibilidade. Por isso, de um modo geral, coisas que são, enquanto são, e das que não são,
consideram os sofistas que o discurso, se quer con- enquanto não são.
vencer, não pode contrariar a percepção comum dos Protágoras de Abdera
homens. Afinal, julgamos algo – algo que é enuncia- “Homem” aqui se refere ao “homem particular”, o
do, que é dito por alguém – por verdadeiro quando “indivíduo”. Cada um de nós, tomado isoladamente, é
isto que é dito parece estar de acordo com aquilo nós senhor daquilo que julga ser verdadeiro ou falso.
mesmos percebemos, ou aquilo que qualquer um Cada um de nós, portanto, é “a medida de todas as
pode perceber. coisas”: cada um percebe o mundo como
Para os sofistas, é justo afirmar que o ser é ser perce- quer ou como pode, segundo suas convicções e suas
bido. Por outro lado, nem por isso as percepções são crenças, bem como sua formação – e cada um possui
verdadeiramente verdadeiras, pois cada um pode assim uma verdade, absolutamente pessoal, particu-
perceber as coisas de um modo diferente. É que a lar. É neste sentido que poderemos afirmar que cada
opinião baseia-se naquilo que percebemos – na nos- um possui uma “verdade”, que nem sempre corres-
sa percepção, portanto. É como percebemos algo, um ponde a “verdade” do outro.
fato, uma coisa qualquer, o mundo. É porque perce- Cada um é que define “o que uma coisa é”: determina
bemos de um determinado modo que temos a opini- então para si mesmo o que considera ser “verdadei-
ão que temos. É mais justo dizer então que a opinião ro”, e assim para todas as coisas que existem, das
que temos é um ponto de vista sobre um fato, uma coisas que “são enquanto são” (e vale dizer, elas são
coisa, o “mundo”. assim para mim, se assim as percebo). O mesmo vale
também para as coisas que “não são”, isto é, as coisas
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que julgo serem falsas ou as coisas que jamais tenha O homem é o “ser-que-fala” e o seu mundo é o
visto, ou nem isso: trata-se também das coisas que discurso — Com efeito, cada qual reconstrói o mun-
não possuem existência para mim pelo simples fato do para si mesmo pelo seu discurso a fim de comuni-
de que sequer ouvi falar delas. Essas coisas “não são” cá-lo aos outros homens. O mundo é o discurso hu-
enquanto eu não estabelecer algum contato com mano, tudo aquilo que podemos expressar, e por isso
elas, seja através da percepção, seja por “ouvir falar”. é que não há verdade para fora do discurso. O que
Até então, não poderei formar qualquer juízo sobre é indizível não participa do mundo, não ganha exis-
elas, nem para dizer que sejam verdadeiras, nem tência para o conjunto dos homens; a única existên-
falsas. cia que o homem pode conceber e partilhar entre os
outros homens se dá através da fala. O indizível não é
Cada um possui uma verdade? Sim, é isso. Esta “ver-
partilhável; e o que não é dito, então, não se torna
dade”, então, corresponde à opinião que cada um
comum aos homens, porque tampouco se comuni-
forma sobre as coisas do mundo. Verdade e opinião
ca. Sabe aquilo do qual você nunca ouviu falar? Não?
aqui se equivalem. Se cada um tem sua opinião sobre
Pois é: porque um discurso que não pode ser ouvido,
o mundo, muito bem!, cada um é cada um. Cada um
quando ninguém nem terá conhecimento dele e,
possui uma “verdade”, absolutamente pessoal. Mas
portanto, por não ser partilhado, tampouco poderá
como estabelecer entre nós algum acordo sobre as
ser julgado pelos outros em sua verdade, o que no
coisas? Um acordo é necessário, caso contrário não
caso equivale a não existir. As coisas que “não são,
seria possível sequer a convivência: viveríamos cada
enquanto não são”, como dizia Protágoras.
um em seu próprio mundo particular, sem janelas
nem portas para os outros, sem nenhuma comunica- Ao definirmos o homem como “ser-que-fala” leva-
ção possível. É através do discurso que nossas opini- mos em conta o que diferencia os homens de qual-
ões, nossas percepções, aquilo que julgamos ou quer outro ser da natureza, isto é, a capacidade hu-
mesmo sentimos – enfim, “nossas verdades” podem mana de produzir um discurso. Isto não nos distancia
ser comunicadas para os outros, a fim de partilhar da definição do homem como ser racional: é que na
de um mundo comum a nós. língua grega, a palavra lógos a um só tempo quer
dizer discurso e razão. Para os sofistas, seria ade-
Ora, uma verdade que valha apenas para mim tem
quado dizer que encontramos a razão das coisas no
pouco efeito sobre o todo; mas se uma verdade vale
discurso.
a uma multidão, pelo contrário, ela determina a lei,

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se a lei é definida em assembleia, tal como ocorria na À guisa de conclusão:
democracia grega. Retomando nossa discussão ante-
O homem em relação à natureza
rior, podemos avaliar a importância que os sofistas
davam à educação: com efeito, trata-se de partilhar Nas últimas aulas chegamos a definir o ho-
um mundo que nos seja comum, para que seja possí- mem como o único caso na natureza de um “ser-que-
vel também um acordo. Daí a importância do discur- fala”, isto é, é o único animal capaz de “produzir um
so e da retórica, que para os sofistas ocupa um lugar discurso” – e, segundo penso, tal definição tem van-
central. tagens em relação àquela que aprendemos na escola
e herdamos da tradição da filosofia ocidental, que
O discurso que diz a “verdade” — isto é, o discurso
define o homem como “ser racional”, dotado de ra-
que convence mais gente sobre sua verdade e passa
zão. Não se trata, todavia, de negar que o homem
a ser a opinião comum — é um discurso forte e tem
seja o único ser racional, mas de ampliar o escopo da
poder de mover os homens, orientá-los em sua con-
definição.
duta, sobre o que fazer ou deixar de fazer. O discurso
que apenas para mim é verdadeiro é um discurso Ocorre que a expressão “ser racional” talvez não seja
fraco. Se ele é “forte”, isto é, se o discurso é capaz de uma ideia tão simples para ser facilmente apreendi-
alcançar os homens para que eles acreditem no que da. Afinal de contas, quando perguntamos o que é a
é dito, então é estabelecido entre os homens um razão, não encontraremos uma resposta inequívoca,
acordo, uma “convenção”, porque são convencidos tampouco indiscutível. Com efeito, as ideias de ra-
da existência e da verdade acerca do discurso. Caso zão, racionalidade ou raciocínio, elas também foram
contrário, pouco valerá ter um discurso ao qual nin- produzidas ao longo da história; trocando em miú-
guém dá crédito. dos, a ideia de razão de um grego da antiguidade é
diferente daquela que temos hoje e que foi elaborada
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a partir da modernidade. Por outro lado, se a expres- delas serem o que são. Expliquemo-nos melhor. Na
são “razão” tem um sentido profundo para o filósofo, palavra biologia, por exemplo, este “-logia” deriva-se
ela é de uso raso e ao rés do chão para qualquer da mesma palavra grega que discutíamos, lógos.
outro que a fale. — Mas estas são outras discussões, Vocês dirão que biologia é ‘a ciência que estuda dos
das quais não nos ocuparemos agora. seres vivos’. Mas o nome, para sermos fiéis à etimo-
logia, dá outro sentido, mais preciso: trata-se do
Seja como for, discutíamos Protágoras e os sofistas
discurso (‘-logia’) sobre os seres vivos (biós). Ora,
— e portanto, a nossa referência é à Grécia Antiga.
não se trata apenas de ‘estudar’, verificar e investi-
Apenas para explicitar, voltemos ao ponto. Na língua
gar os seres vivos, mas sim de produzir um discurso
grega, discurso se diz lógos, a mesma palavra da qual
sobre o que foi verificado e investigado. É no discur-
deriva a palavra lógica. É que lógos quer dizer, a um
so da biologia que encontramos o lógos dos seres
mesmo tempo, três coisas que em português dize-
vivos; é na produção deste discurso que determina-
mos por palavras diferentes. Lógos é ‘palavra, dis-
mos a razão das coisas serem o que são, ou, voltando
curso, argumento’ e, porque é pelo discurso que
a Protágoras, são os homens que, ao falar, dão a me-
enunciamos aquilo que pensamos, lógos é também
dida do que os seres vivos são. É assim, pelo discur-
‘consideração, avaliação, reflexão e juízo (discerni-
so, que os homens produzem o seu próprio mundo,
mento)’, ou seja, a nossa capacidade de pensar ra-
aquilo que reconhecem como “verdade”.
cionalmente. Lógos também pode ser traduzido por
razão — e assim, em nada perdemos para a defini- Daí aquela ideia: o mundo humano é mediado pelo
ção que aprendemos na escola. Mas para um grego, discurso. Tudo o que cada um vivencia, sente, pensa,
estas duas coisas são inseparáveis: o discurso para só ganha existência para além de si mesmo, ou seja,
ser produzido depende da razão tanto quanto a ra- para o mundo dos homens quando transformados
zão só se desenvolve no discurso. em discurso. Por isso, o homem é o ser-que-fala.
Imaginemos então o que seria dos homens se fossem
Há um discurso que não depende da razão: o mito,
impedidos de falar, se não pudessem mais produzir
um discurso que tem mais a ver com fabula-
discursos, se não mais pudessem compartilhar suas
ção ou imaginação. O mito (em grego, mythos) não
experiências, sentimentos e pensamentos. Se o ho-
tem nada a ver com lógos: este é discurso racional,
mem é por definição o ser-que-fala, então é negada a
argumentação, explicitação de razões; aquele é “nar-
sua condição humana se ele é calado. A liberdade de
ração”, mais ou menos fabulosa ou imaginada. Con-
expressão – liberdade de falar, enfim – é o direito
tudo, em nada a lembrança desta modalidade de
humano mais fundamental, sem o qual o homem vira
discurso afasta-nos da definição do homem enquan-
bicho, sem poder participar do mundo dos homens e
to “ser-que-fala”; antes, a confirma. Com efeito, o
partilhar com os outros aquilo que ele vivencia, sen-
homem é o ser-que-fala, capaz de discurso: pelo
te e pensa.
discurso, o homem cria o seu mundo, e tanto faz se
este discurso corresponde ou não a um “outro mun- O reino da natureza e o reino dos homens — A
do externo ao discurso”. O mundo criado pelo dis- natureza não fala; os animais, tampouco; entre estes,
curso pode ser uma ficção – e não haveremos uma até há algum tipo de comunicação, mas que não se
única espécie a não ser a dos homens que seja capaz faz através da produção de discurso, coisa que é ape-
dessa fabulação, que só é possível pelo discurso. Só nas dos homens. Sem a fala, o homem se reduz à
ao homem é dada a capacidade de mentir – inventar mesma condição dos outros animais do reino da
pelo discurso um “outro mundo”, semelhante a este natureza.
(caso contrário, ele não seria capaz de convencer
ninguém de que a mentira fosse verdadeira), mas
cuja ordem é modificada, ampliada, reduzida ou Indicações bibliográficas
omitida. Giovanni REALE. Sofistas, Sócrates e Socráticos Meno-
res (História da Filosofia Grega e Romana, vol. II).
Mas ainda há um terceiro sentido para a palavra
São Paulo: Edições Loyola, 9ª ed., 2009.
lógos, assim como para a palavra razão: ‘medida,
cálculo, relação, ordem’ e, por extensão, ‘fundamen-
to, razão-de-ser de algo’. Não se trata apenas das
capacidades de pensar e de falar. Existe razão nas
coisas, quando apresentamos o porque e as causas

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