CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Portugal: Celta Editora, 1999.
Capítulo 2 – Cerimônias Comemorativas
1 [...] Nenhum festival estava dotado de uma força de culto mais poderosa do que aquele que comemorava o Putsch, o "batismo de sangue" de 1923. O seu tema era o sacrifício, a luta e a vitória final dos "antigos combatentes" do nacional-socialismo. Os sobreviventes do putsch, condecorados com a Ordem do Sangue, encontravam-se para a reunião tradicional na Burgerbraukeller de Munique, no dia 8 de Novembro, para ali ouvirem a alocução comemorativa de Hitler dedicada aos "dezesseis mártires do movimento nacional-socialista". No dia seguinte, os "antigos combatentes" marchavam do Burgerbraukeller para o Feldherrnhale, repetindo ritualmente a marcha de 1923, ao longo de um caminho assinalado por archotes a arder, acompanhados de uma música fúnebre, do dobre dos sinos e da recitação lenta dos nomes de todos os que haviam sido mortos, desde 1919, ao serviço do partido. Estas cerimônias atingiram o aparato máximo em 1935. Nesse ano, os cadáveres exumados das dezesseis "testemunhas de sangue" foram colocados no Felherrnhalle, na véspera do dia das comemorações, e transferidos, a 9 de Novembro, em procissão solene, para o recém-construído Ehrentempel, na Konigplatz. O caminho era assinalado por duzentas e quarenta colunas, cada uma delas com o nome de um dos "caídos pelo movimento". À medida que a cabeça da procissão passava por cada coluna, o nome de um dos mortos era proclamado. Quando a procissão chegou ao Feldherrnhalle soaram dezesseis tiros de canhão, um por cada um dos dezesseis caídos de 1923. Enquanto os caixões eram colocados em carruagens para serem transportados para o Ehrentempel, Hitler depôs uma coroa de flores no monumento aos mortos. No Ehrentempel, os nomes das dezesseis "testemunhas de sangue" foram evocados, um por um, e o coro da Juventude Hitleriana respondeu à chamada de cada nome com o grito "presente!". Após cada grito soaram três tiros em saudação. Esta comemoração era uma representação paga da Paixão, apresentada num vocabulário pedido de empréstimo à religião. A narrativa relata acontecimentos históricos — mas acontecimentos históricos transfigurados pela mitificação que os transformou em substâncias inalteráveis e imutáveis. O conteúdo dos mitos é representado como não estando sujeito a qualquer espécie de mudança e o mito ensina que a história não é um jogo de forças contingentes — as constantes fundamentais são a luta, o sacrifício e a vitória. As virtudes cardeais do nacional-socialismo consubstanciadas, por assim dizer, mas dezesseis "testemunhas de sangue", são a obediência incondicional, a confiança absoluta e a preparação para o sacrifício até à morte. O fiasco político de 1923 não é, deste modo, reinterpretado e representado nem como uma derrota, nem como fútil e sem sentido. O destino mortal daqueles que nele tombaram deve ser interpretado não como uma morte sem sentido, mas como uma morte sacrificial. Deve ser entendido como um acontecimento sagrado, que aponta em frente, para um outro acontecimento sagrado, o de 30 de Janeiro de 1933, pois a tomada do poder não é interpretada como um mero êxito político, tal como o putsch de 1923 não o é como um mero fracasso político. Nenhum deles pertence à esfera das coisas mundanas. O acontecimento "sagrado" do putsch prefigurava a vitória, enquanto o acontecimento "sagrado" da tomada do poder dava, por fim, forma real ao conteúdo da revelação, o "Reich". Entre os dois acontecimentos estabeleceu-se uma concordância mítica e a data crucial recorrente desta narrativa mítica é o 9 de Novembro. Esta narrativa era mais do que o contar de uma história, era um culto encenado, era um rito estabelecido e representado. A sua história não era inequivocamente contada no pretérito, mas no tempo de um presente metafísico. Subestimaríamos o poder comemorativo do rito, minimizaríamos o seu poder mnemónico, se disséssemos que ele recordava acontecimentos míticos aos participantes. Deveríamos antes dizer que o acontecimento sagrado de 1923 era reapresentado; os que participavam no rito davam- lhe uma forma cerimoniaImente corporizada. A realidade transfigurada do mito era reapresentada uma e outra vez, quando aqueles que tomavam parte no culto se tornavam, por assim dizer, contemporâneos do acontecimento mítico. Todos os anos, a marcha histórica de 1923 repetia-se; todos os anos, soavam os dezesseis tiros, repetindo os dezesseis disparos mortais de 1923; todos os anos, as bandeiras eram agitadas não como símbolos que se reportassem a um acontecimento acabado, mas como relíquias consubstanciais desse mesmo acontecimento. Acima de tudo, era através de atos representados num lugar sagrado que a ilusão do tempo mundano era suspensa. No Feldherrnhalle dava-se, todos os anos, uma forma presente à estrutura mítica. Neste local a diferença temporal era negada e a existência da mesma realidade, "verdadeira" e "autêntica", anualmente desvendada. O regime nacional-socialista era recente e as suas cerimônias recém inventadas, apesar de adotarem deliberadamente alguns componentes cristãos — de calendário e de carater intrínseco — da mesma maneira que as cerimônias cristãs primitivas adotaram alguns elementos pagãos. Assim, o nazi estava para o cristão como o cristão estava para o pagão. Há uma traditio germânica muito antiga — assim identificada — e esta tem sido em parte mantida em funcionamento. 2 Acontecimentos da natureza dos que foram atrás referenciados fazem parte, claramente, de um fenômeno mais vasto, o da ação ritual. Existe um desacordo substancial quanto à forma como a palavra ritual deveria ser utilizada, mas considero que uma das definições mais sucintas e funcionais à nossa disposição é aquela que Lukes propõe, sugerindo que empreguemos o termo ritual para designar "a atividade orientada por normas, com carater simbólico, que chama a atenção dos seus participantes para objetos de pensamento e de sentimento que estes pensam ter um significado especial". As premissas contidas nesta definição podem ser reveladas através de três proposições interligadas, cada uma das quais se pode enunciar mais facilmente sob uma forma negativa. Os ritos não são meramente expressivos. É verdade que são atos com mais de expressivo do que de instrumental no sentido em que ou não são dirigidos para um fim específico, ou, se o são, como no caso dos ritos de fertilidade, não conseguem alcançar o seu objetivo estratégico. Mas os ritos só são atos expressivos em virtude da sua regularidade notória, são atos formalizados e tendem a ser estilizados, estereotipados e repetitivos. Dado serem deliberadamente estilizados, não estão sujeitos à variação espontânea, ou, pelo menos, só são suscetíveis de variação dentro de estritos limites. Não se realizam sob uma compulsão interior momentânea, mas são deliberadamente celebrados para simbolizar sentimentos. Libertam, na verdade, sentimentos expressivos, mas este não é o seu objetivo central. Os ritos não são meramente algo de formal. Exprimimos vulgarmente a nossa percepção do seu formalismo falando de tais atos como "meramente" rituais, ou como formas "vazias", e pomo-los freqüentemente em contraste com atos e declarações às quais nos referimos como "sinceras" ou "autênticas". Mas isto é enganador, pois aqueles que celebram os ritos sentem que estes são obrigatórios, mesmo que não incondicionalmente, sendo a interferência com atos dotados de valor ritual sempre sentida como uma injúria intolerável infligida por uma pessoa, ou grupo, a outro. Podemos achar que as crenças que outra pessoa qualquer considera sagradas são puramente fantásticas, mas nunca pode pedir-se de ânimo leve que a sua expressão efetiva seja violada. E, inversamente, as pessoas resistem à obrigação de fazer louvores a um conjunto de ritos alheios, incompatíveis com a sua própria visão da "verdade", porque encenar um rito é sempre, num certo sentido, estar de acordo com o seu significado. Obrigar os patriotas a insultarem a sua bandeira, ou forçar os pagãos a receber o batismo, é violentá-los. O efeito dos ritos não está limitado à cerimônia ritual. E verdade que os rituais tendem a realizar-se em lugares especiais, em datas estabelecidas. E é um fato que muitos ritos assinalam momentos de início e termo tanto em cerimônias nas alturas críticas da vida dos indivíduos — por exemplo, o nascimento, a puberdade, o casamento e a morte —, como também nas cerimônias recorrentes do calendário, mas o que quer que os ritos demonstrem, impregna também o comportamento e a mentalidade não rituais. Embora delimitados no tempo e no espaço, os ritos são também, por assim dizer, porosos. Considera-se que fazem sentido, porque têm significado relativamente a um conjunto de outras ações não rituais, para toda a vida de uma comunidade. Os ritos têm a capacidade de conferir valor e sentido à 'vida daqueles que os executam. Todos os ritos são repetitivos e a repetição subentende automaticamente, a continuidade com o passado, mas existe uma classe distintiva de ritos que têm um carater calendarizado explicitamente virado para o passado. Os festivais nacional-socialistas pertencem a este tipo e é fácil pensar em mais exemplos. Assim, em muitas culturas, os festivais são realizados como a comemoração de mitos que lhes estão associados e como a recordação de um acontecimento que se pensa ter ocorrido numa data histórica determinada, ou num qualquer passado mítico; existem cerimôniais recorrentes no calendário, como o Dia de Ano Novo e os aniversários; as festas dos santos cristãos comemoram-se em certos dias do ano; no cenotáfio, celebram-se cerimônias de recordação; as bandeiras são colocadas a meia-haste; põem-se flores nas sepulturas; e existem atualmente mais de uma centena de embaixadas, em todas as capitais mundiais mais importantes, cada uma com, pelo menos, uma celebração nacional para a qual os funcionários devem ser convidados, todos os anos. Algumas destas comemorações são celebradas de bom grado, outras são um fardo e outras não provocam mais do que um bocejo moderadamente emocionado. Contudo, a característica que todas têm em comum, e que as afasta da categoria mais geral dos ritos, é que não implicam apenas a continuidade com o passado, mas reivindicam explicitamente essa mesma continuidade. E muitas delas, nas quais desejo agora fixar a atenção, fazem-no através da reencenação ritual de uma narrativa de acontecimentos que se julga terem decorrido num tempo passado, de modo suficientemente elaborado para incluírem a performance de seqüências mais ou menos invariáveis de atos e declarações formais. Em nenhum outro domínio é esta pretensão, de comemorar uma série anterior de acontecimentos fundadores sob a forma de um rito, mais amplamente expressa do que nas grandes religiões mundiais. Uma tal pretensão está nelas constantemente presente. 3 [...] A primeira linha de argumentação, a que chamarei a posição psicanalítica, consiste na perspectiva de que o comportamento ritual se compreende melhor como uma forma de representação simbólica. Afirma-se que os ritos são o enunciado sistematicamente indireto, codificado no simbolismo do rito, de conflitos que esse rito disfarça e, nessa medida, nega. O processo primário, que se considera explicar o processo secundário da representação simbólica, está localizado na história de vida do indivíduo, embora as interpretações psicanalíticas particulares do ritual possam variar, conforme a fase edipiana ou pré-edipiana da infância, ou outro qualquer processo conflitual, seja, ou não, tomada como a gênese de tais representações. Aquilo que todas essas interpretações têm em comum é descodificarem o texto ritual como tendo uma carga de conflito e estando, por isso, de certo modo, carregado de estratégias de negação. É possível interpretar os rituais psicanaliticamente como representações simbólicas, explicando essas representações em termos da história de vida do indivíduo. Assim, o entendimento que Freud tem do ritual é baseado na suposta analogia entre a ontogenese e a filogénese, sendo o terreno da alegada analogia proporcionado pelo seu ponto de vista de que a luta edipiana entre filhos e pais, no contexto da autoridade patriarcal, é o processo primário. Nesta base, Freud é levado a especular que na história de vida da espécie humana terá existido outrora uma horda primitiva constituída por um pai poderoso, os seus filhos e um grupo de fêmeas às quais o pai tinha acesso exclusivo; que os filhos, ressentindo-se da sua dominação, o mataram; que, depois, reconheceram que o amavam, para além de o odiarem, ficando dominados pelo remorso; e que, como reparação, restauraram a imagem do pai sob a forma substitutiva do animal totémico. Segundo esta interpretação, a refeição totémica que repetiam todos os anos devia então ser vista como a repetição solene não do ato de parricídio em si, mas da forma de encarar esse ato,. que aqueles que o haviam cometido vieram posteriormente a adotar. Era um regresso da memória reprimida, no qual representavam e superavam o ato originário. Representavam a sua ambivalência para com o pai venerando e, devorando simultaneamente o animal totêmico superavam essa ambivalência identificando-se com o animal que comiam. A refeição totémica deve ser entendida como um ato de representação simbólica no sentido em que se tratava de uma repetição e de uma comemoração deste feito criminoso e memorável. Sem nos exigir que aceitemos a ontologia freudiana na globalidade, ou que aceitemos a sua projeção na história de vida da humanidade, Richard Wollheim propõe uma explicação psicanalítica alternativa do ritual como representação codificada. Começando por observar que muitos ritos exigem uma morte, geralmente a de um animal, embora por vezes também a morte real ou simulada de um ser humano, sugere que tais atos são invariavelmente "exercícios de negação" e como tal pertencem à "patologia do ritual". O ritual nega, e aqueles que o executam negam, a realidade da agressão como impulso humano, a denegação é feita colocando "entre parêntesis" o seu sentido. O fim para o qual a agressão como impulso se dirige inerentemente, a destruição de uma vida, é isolado. Uma vez isolado, este fim é recomendado como algo que deveria ser repetido uma e outra vez, mas sempre, em cada repetição, o motivo pelo qual a vida deve ser tirada deve estar o mais afastado possível da agressão — deve ser em nome da piedade, da decência, ou da reverência pela autoridade. Aquilo que esses ritos se destinam a alcançar, sugere, é "a minimização ou a depreciação do sadismo", e este fim apenas se pode concretizar, tal como os ritos no cenário alternativo de Freud, pela representação quase textual codificada. Uma segunda linha de argumentação, a que chamarei a posição sociológica, consiste na opinião de que o comportamento ritual se compreende melhor como uma forma de representação quase textual. Este tipo de leitura desenvolve-se enfatizando as formas como o ritual funciona para comunicar valores partilhados no interior de um grupo e para reduzir a dissensão interna. Segundo este ponto de vista, aquilo que os rituais nos dizem é como são constituídos a estabilidade e o equilíbrio sociais. Mostram-nos como o ethos de uma cultura e a sensibilidade moldada por esse ethos, quando soletrados para o exterior, são articulados no simbolismo de algo parecido com um texto coletivo único. Podem encontrar-se muitas variantes influentes desta linha de interpretação. Segundo Durkheim, o ritual "representa" a realidade social tornando-a inteligível, mesmo que o conteúdo cognitivo do rito esteja codificado sob uma forma metafórica e simbólica. Neste sentido, podemos considerar os rituais religiosos, por exemplo, como sistemas de idéias nos quais "os indivíduos representam para si próprios a sociedade de que são membros e as relações obscuras mas íntimas que têm com esta". Esta idéia — que resulta do realce da componente fortemente cognitiva da explicação de Durkheim — de que os ritos podem ser interpretados como representações simbólicas e, neste sentido, como possuindo conteúdo cognitivo, pode ser simultaneamente alargada e modificada. Pode ser alargada se considerarmos que o simbolismo dos rituais políticos representa conceitos particulares daquilo que é uma sociedade e de como ela funciona, e pode ser modificada se considerarmos que esses rituais políticos operam no âmbito de contextos 'políticos em que o poder é distribuído de modo sistematicamente desigual, o que nos permite interpretar os rituais como algo que possibilita um controlo cognitivo na medida em que proporciona uma versão oficial da estrutura política através de representações simbólicas, por exemplo, do "império", da "constituição", da "república", ou da "nação". Esses rituais podem ler-se como uma espécie de texto coletivo simbólico, mas a possibilidade de interpretar os ritos como formas de representação simbólica pode ser levada ainda mais longe se, com Bakhtin, interpretarmos o Carnaval e, mais particularmente, as festividades populares que floresceram durante o Renascimento como representações antecipatórias. Segundo esta explicação, as inversões da ordem hierárquica características do Carnaval não devem continuar a ser interpretadas como uma forma encoberta de reafirmar a hierarquia, mas, pelo contrário, como um mecanismo de libertação social, no qual o expediente da representação simbólica é utilizado como alavanca. O Carnaval é assim visto como um ato em que "os indivíduos" se organizam “à sua maneira", como uma coletividade onde os membros individuais se tornam parte inseparável da massa humana, de tal forma que "as pessoas" se apercebem da sua unidade corporal sensual-material. Pode então dizer-se que as formas populares-festivas, ao permitirem a aglutinação de um tal corpo coletivo, oferecem às pessoas uma representação simbólica não das categorias presentes, mas da utopia, a imagem de um estado futuro no qual se concretiza a "vitória da abundância material de todo o povo, a liberdade, a igualdade e a fraternidade". Os ritos do Carnaval representam e prefiguram os direitos do povo. Como forma de interpretar os ritos, esta argumentação oferece-nos uma espécie diferente de codificação simbólica, em que aquilo que de outro modo seria calado e indizível é expresso e a dimensão do tempo futuro implicitamente revelada. Como interpretação da ação ritual, pertence, todavia, ao mesmo gênero que o seu correspondente durkheimiano, o da representação simbólica numa espécie de texto coletivo. Uma terceira linha de argumentação, à qual chamarei a posição histórica, consiste no parecer de que os ritos não se podem compreender de forma satisfatória apenas em termos da sua estrutura interna, pois todos os rituais, não importa quão venerável seja a ancestralidade que lhes é atribuída, têm de ser inventados em alguma altura e, durante o período histórico em que permanecem vivos, o seu significado é suscetível de mudança. Esta explicação levou à tentativa de redescobrir o significado dos cerimoniais, reenquadrando-os no seu contexto histórico. Segundo este ponto de vista, situar um rito no seu contexto não constitui um mero passo auxiliar, mas um ingrediente essencial ao ato da sua interpretação. Investigar o contexto de um rito não é estudar apenas informação adicional a seu respeito, mas sim colocarmo-nos em posição de obter maior compreensão do seu significado do que aquela que seria acessível a "alguém que o interpretasse como um texto simbólico independente". Seguindo esta linha de pensamento, muitos historiadores têm demonstrado que, se quisermos redescobrir o significado dos rituais da realeza no início do período moderno, temos de relacioná-los inteligivelmente com as circunstâncias em que foram realizados. Outros historiadores, especializados num período posterior, mostraram que sempre que as instituições sociais, para as quais as "velhas" tradições foram concebidas, começam a ruir sob o impacte de uma rápida evolução social, ocorre uma invenção imediata e muito difundida de novos rituais, a qual invenção do ritual acaba por ser simultaneamente um problema geral e um fenômeno de interesse particular nas sociedades pós-tradicionais. Deste modo, é agora muito claro que, no período moderno, as elites nacionais inventaram rituais que reclamam a continuidade com um passado histórico adequado, organizando cerimônias, paradas e reuniões de massas e construindo novos espaços rituais. Isto é verdade tanto para a Europa como para o Médio Oriente. Tanto a Terceira República como a Alemanha de Guilherme investiram capital simbólico em tradições inventadas. Em França, o Dia da Bastilha tornou-se uma data histórica em 1880 e, na Alemanha, a Guerra Franco-Prussiana tornou-se um acontecimento histórico no seu vigésimo quinto aniversário, quando se instituiu uma cerimônia comemorativa, em 1896. Ambas comemoravam os atos fundadores do novo regime, diferindo apenas na maneira como o mito da fundação era interpretado. Nos dois casos, o contexto dos ritos demonstra a sua função ideológica. Em França, a burguesia republicana moderada inventou um rito como parte da sua estratégia para afastar a ameaça de inimigos políticos à esquerda. Conseguiram-no através de uma reafirmação anual da França como a nação de 1789, na qual os símbolos da bandeira tricolor e de A Marselhesa e a referência à liberdade, à igualdade e à fraternidade, lembrassem aos cidadãos da Terceira República o fato alegadamente unificador da pertença à nação francesa. Na Alemanha, o regime de Guilherme II inventou cerimônias como parte da sua estratégia para garantir a um povo, o qual não possuía qualquer definição política anterior a 1871, que auferia, na verdade, de uma identidade nacional. Conseguiram-no através da celebração da unificação bismarckiana da Alemanha, como a única experiência histórica nacional partilhada por todos os cidadãos do novo império. Em épocas mais recentes, duas celebrações reinventaram ritualmente a história antiga, no Médio Oriente. Uma foi a comemoração da heróica defesa e queda de Masada, na revolta judaica contra os Romanos/no ano 66 da era cristã. A outra foi a celebração, inaugurada pelo xá do Irão, dos dois mil e quinhentos anos da fundação do estado e da monarquia persas por Ciro, o Grande. Ambos os cultos, o de Masada e o de Ciro, reportam-se a temas há muito esquecidos e, na verdade, desconhecidos entre os povos respectivos, não dizendo a tradição rabínica coisa alguma sobre Masada e não tendo os Persas preservado qualquer registro de Ciro. Em ambos os casos, a memória foi recuperada a partir de fontes exteriores, recebeu patrocínio político e foi transformada no foco das festividades nacionais. Em Israel, os ossos encontrados nas ruínas de Masada foram de novo solenemente inumados, com uma cerimônia militar. No Irão, organizaram-se cerimônias junto à sepultura de Ciro. O culto de Masada destinava- se a restaurar a dimensão político-militar oculta da identidade judaica. O culto de Ciro tinha como fim dramatizar a transformação dos Persas, de uma comunidade religiosa com uma identidade centrada no islão, numa nação secular com uma identidade centrada no Irão. Ambos os conjuntos de ritos inventados celebravam o heroísmo nacional. Os tipos de explicação que acabei de passar em revista e aos quais, por uma questão de clareza, chamei explicação psicológica, sociológica e histórica da ação ritual, procuram, todos eles, penetrar além do propósito e significado ostensivos dos ritos, com o objetivo de atingirem o propósito e significado "reais" que se diz jazerem sob a superfície. E isto dá origem à questão de saber se poderemos ter um bom motivo para pensar que os rituais, que são representados como sendo explicitamente comemorativos, têm na verdade a importância, como meios de transmissão da memória social, que os seus participantes reivindicam para eles. Essa questão pode abordar-se melhor, segundo penso, em duas etapas: considerando, em primeiro lugar, as características da forma ritual que as cerimônias comemorativas têm em comum com outros atos rituais de tipo duradouro e considerando, depois, as características que definem as cerimônias comemorativas como rituais de uma espécie diferente. Pretendo demonstrar que, ao procurarmos compreender as características que as cerimônias comemorativas têm em comum com outros rituais elaborados, estamos sujeitos a ser embaraçados por uma tendência característica da maioria das interpretações modernas do ritual, que nos induz a focalizar a atenção no conteúdo e não na forma do ritual. E pretendo assim provar que, ao procurarmos compreender as características que distinguem as cerimônias comemorativas como rituais de um tipo particular, podemos ser estorvados por uma tendência, característica de muita da moderna auto- -interpretação, para desvalorizar ou ignorar a universalidade e a importância, em muitas culturas, de ações que se realizam explicitamente como reativação de outras ações que são consideradas prototípicas. A nossa compreensão das cerimônias comemorativas encontra, assim, obstáculos em dois campos. 4 Consideremos agora a primeira dificuldade: a tendência para focalizar a atenção sobre o conteúdo e não sobre a forma do ritual. Os três métodos de interpretação do ritual que acabei de descrever partilham um pressuposto comum. Todos explicam o ritual como uma forma de representação simbólica, todos procuram compreender a "questão" oculta que está "por detrás" ldo simbolismo ritual, através de um ato de tradução pelo qual o texto codificado do ritual é descodificado para outra linguagem. Quando nos centramos no conteúdo simbólico oculto do ritual orientamos a atenção para as características que este partilha com algumas outras maneiras de articular o significado de uma forma estruturada, particularmente os mitos e os sonhos. Todavia, esta ênfase nas características comuns, presente nas três posições referenciadas, embora seja muitas vezes esclarecedora, nada nos diz, por definição, sobre as características que identificam o ritual. Voltarei, mais tarde, a este tópico. Vejamos primeiramente a analogia evidente com o mito e, depois, em que aspectos o mito e o ritual divergem. Tanto o ritual como o mito podem ser vistos, de forma bastante apropriada, como textos simbólicos coletivos. E, nesta base, podemos sugerir que as ações rituais deveriam considerar-se exemplificativas do tipo de valores culturais que são também expressos muitas vezes nos enunciados elaborados a que chamamos mitos — que exemplificam estes valores por um outro meio. Lévi-Strauss, por exemplo, demonstrou como um conjunto de mitos índios sul-americanos se refere constantemente ao contraste entre a carne crua e a carne cozinhada, por um lado, e ao contraste entre os vegetais frescos e os vegetais podres, por outro. Carne crua, carne cozinhada, vegetais frescos e vegetais podres são coisas concretas; porém, quando agrupadas de forma a definir um padrão, como acontece em muitos mitos índios da América do Sul, aquele número limitado de categorias permite sustentar a idéia abstrata de um contraste entre um modo cultural de transformação e um modo natural de transformação. Trabalhando com base nesta idéia, Edmund Leach observa que essa padronização em redor da oposição entre um processo cultural e um processo natural pode ser expressa por diferentes meios, pois pode exprimir-se tanto por palavras — cru, cozinhado, fresco, podre — e ser exposta sob a forma de uma narrativa mítica, como expressar-se por coisas, e revelar-se através da combinação ritual dos objetos apropriados. A padronização de um ritual ou de um mito pode servir igualmente como armazém complexo de informação. O problema surge quando esta questão é excessivamente generalizada. O exemplo que acabei de citar parece conduzir naturalmente à sugestão de que se deveria considerar que as ações rituais exemplificam os valores culturais, freqüentemente expressos também nos enunciados míticos, que os exemplificam por outro meio. Mas muita coisa depende da expressão "por outro meio". Interpretar o ritual como um meio simbólico alternativo para exprimir aquilo que pode ser expresso por outros meios e, em particular, sob a forma de mito, é ignorar aquilo que o ritual tem, em si próprio, de diferente. Todavia, uma vezt que comecemos a considerar a forma do ritual como distinta da forma do mito, somos levados a ver que o ritual não é apenas uma maneira alternativa de exprimir certas crenças, mas que certas coisas só podem ser expressas através do ritual. Ver-se-á então que o ritual e o mito diferem estruturalmente, pelo menos num aspecto fundamental. Um mito pode ser narrado por um cantor a uma audiência, como forma de divertimento, por um pai aos filhos, como lição, ou por um estruturalista a leitores implícitos, como um conjunto de opostos. Recitar um mito não é necessariamente aceitá-lo. Aquilo que a recitação de um mito não faz, e que a execução de um ritual faz essencialmente, é especificar a relação que prevalece entre os atores do ritual e aquilo que estes estão a executar, daqui resultando a existência de um elemento de invariância codificado na estrutura do ritual que não se encontra presente no mito. Esta diferença estrutural é evidente na forma como alguns dos mitos primitivos da cultura ocidental têm sido remodelados e reinterpretados. As adaptações do mito na forma dramática, e os possíveis limites colocados a uma tal tarefa, foram objeto de um debate animado nas últimas décadas do século XIX. Nessa época expressava-se muitas vezes a opinião de que o material que proporcionava o tema de grandes obras dramáticas óu trágicas seria tratado de várias maneiras até que um grande dramaturgo encontrasse, finalmente, a forma completa e definitiva para esse material mítico, que ficaria então esgotado. Defendia-se, deste modo, que tinham sido feitas muitas readaptações dramáticas do mito de Don Juan até este ter recebido a materialização perfeita na ópera de Mozart. O mesmo julgamento foi aplicado às versões dramáticas mais antigas do mito de Fausto até este ter recebido a forma definitiva no Fausto de Goethe. Por isso, prosseguia esta argumentação, não valia a pena querer ainda produzir um outro Don Juan, depois de Mozart, ou um outro Fausto, depois de Goethe. O objetivo destes argumentos era demonstrar que a reestruturação criativa do material mítico era um processo finito. Porém, este objetivo apenas era alcançado reconhecendo, em cada caso, que aquele processo constituía, na verdade, uma história de reinterpretações, um processo de readaptações substanciais e variadas até ser dada uma forma definitiva ao material mítico. É possível conceber uma variância criativa acrescida, que não se enquadre mais num esquema do tipo acima referido: uma pré-história das interpretações que é finalmente suplantada por uma interpretação definitiva. Tanto no caso do mito de Don Juan como no do mito de Fausto, pode ser apropriado falar-se de soluções para o trabalho de readaptação do material mítico que eram imperfeitas e preliminares, e de uma solução mais tardia e definitiva. Mas o mito de Orestes-Electra não pode ser ajustado a um tal padrão. Neste caso, o mesmo material mítico e a mesma situação trágica básica são reestruturados dramaticamente pelos três grandes autores da tragédia grega e, mais tarde, novamente sob uma forma moderna, pelo maior de todos os dramaturgos modernos, em Hamlet. Deparamos com várias representações dramáticas do mesmo material mítico, bastante diferentes umas das outras. Mesmo se deixarmos de lado a versão de Eurípides, dado o estatuto de autoria desta ter sido posta em causa por vários críticos, incluindo Aristóteles, ficam ainda três peças que se contam entre as maiores de todas as tragédias, mas entre as quais é impossível escolher uma única e proclamar que essa representa, em comparação com as outras, a adaptação definitiva do material mítico. [...] Estas reconfigurações do material mítico revelam, de forma extrema, uma característica intrínseca ao mito como tal. O conteúdo simbólico do mito grego não fica esgotado em nenhuma combinação formal única. O material simbólico desses mitos não tem a invariância e a inércia de algo já preestabelecido e formalizado. Constitui, pelo contrário, algo mais semelhante a um reservatório de significados que está disponível para voltar a ser possivelmente usado noutras estruturas. O material mítico contém uma variedade de significados potenciais que excede significativamente o seu uso e função em qualquer combinação particular, em qualquer estrutura dramática singular. Tal como acontece também com muito do material do Antigo Testamento, por exemplo, embora ali mais sob a forma de repetição narrativa e comentário, uma rede de acontecimentos míticos goza de uma significativa historicidade, de um longo processo interpretativo de renovação e de variação. A reutilização dos mitos gregos, tanto na cultura da antiga Grécia como em contextos culturais posteriores, depende daquilo a que podemos chamar um excedente de significado — um excedente que pode ser realizado em combinações interpretativas variáveis, quando o material mítico é reestruturado noutras formas dramáticas. Em comparação com os mitos, a estrutura dos rituais tem significativamente menos potencial de variação. É verdade que todos os rituais tiveram de ser inventados em algum momento, podendo os pormenores da sua articulação desenvolver-se ou variar em conteúdo e importância com a passagem do tempo. Todavia, continua a existir um potencial de invariância incorporado nos ritos, mas não nos mitos, em virtude do fato, intrínseco à natureza dos rituais — mas não dos mitos — de estes especificarem a relação que prevalece entre a execução do ritual e aquilo que os participantes estão a executar. Daí resulta que, se se quiser tomar precauções consideráveis para proteger a identidade do material simbólico de uma cultura, é aconselhável orientarem-se essas precauções para a proteção da identidade do seu ritual. E, na verdade, muitas sociedades tradicionais, nas quais o simbolismo parece ser imutável, agem como se tivessem visto o perigo de uma evolução excessivamente rápida: fazem tudo para impedir a mudança. Duas tradições, em particular, exemplificam, de forma impressionante e largamente documentada, este fato. A liturgia da missa persiste há quase dois milênios, durante os quais só mudou muito lentamente. Os credos recitados na missa existem há muito tempo, na sua forma presente. Mais uma vez, embora alguns aspectos das suas liturgias variem consideravelmente, respondendo talvez, neste aspecto, às diferenças de circunstância histórica, os rituais dos judeus asquenases do Norte da Europa, dos sefarditas do Mediterrâneo, dos falachas da Etiópia, dos benis da índia, dos caraítas da Crimeia conservam, numa posição fulcral, a profissão de fé a que chamam Shema. Esta tendência para a invariância resulta da forma particular como funciona a linguagem litúrgica. Podemos caracterizar este traço negativamente, dizendo que não emprega formas de comunicação que tenham força preposicional, que não consiste no relato de acontecimentos, na descrição de objetos, no enunciado de descobertas experimentais, ou na formulação de hipóteses. Podemos caracterizá-lo positivamente, dizendo que a linguagem litúrgica é uma certa forma de ação que põe algo em prática. Não se trata de um comentário verbal sobre uma ação exterior a si, pois, em si e por si própria, a linguagem litúrgica é uma ação. A natureza desta ação pode ser dividida em duas propriedades distintas, cuja existência e eficácia explicam simultaneamente porque é que a linguagem ritual funciona tão poderosamente como instrumento mnemónico. Em primeiro lugar, o ritual é uma linguagem performativa. Um enunciado performativo não fornece a descrição de uma determinada ação. O próprio enunciado da performance constitui uma ação de certo tipo, para além da ação obviamente necessária de produzir sons com sentido. E esta ação, uma promessa ou um voto, por exemplo, só pode ser executada pela enunciação de certas palavras prescritas. Uma liturgia é uma ordenação de atos discursivos que ocorre quando esses enunciados se concretizam, e só nessas alturas. Se não se realizarem, o ritual não existe. Em segundo lugar, o ritual é uma linguagem formalizada, os seus enunciados tendem a ser estilizados e estereotipados e a comporem-se de seqüências de atos discursivos mais ou menos invariáveis. Os enunciados não são produzidos pelos atores, mas encontram-se já codificados num cânone, podendo por isso ser repetidos com exatidão. Aquilo que é referido no enunciado canónico é referido em seqüências de palavras e de atos que, por definição, já foram realizados antes. A performatividade do ritual é, em parte, uma questão de enunciado: o enunciado recorrente de certos verbos e pronomes pessoais característicos. Entre os enunciados verbais que se encontram mais vulgarmente nos ritos estão as pragas, as bênçãos e os juramentos. Considera-se que, na verdade, muito, se não tudo, depende, em cada caso, da exatidão do próprio enunciado. Uma praga procura sujeitar o seu objeto à ascendência do seu poder. Uma vez pronunciada, uma praga continua a confiar o seu objeto ao destino que invocou e julga-se que continua em vigor até a sua potência se extinguir. Uma bênção não é um mero desejo piedoso, considera-se que ela confere dons da sorte através do emprego de palavras, e tal como a praga e a bênção, o juramento é uma expressão com poder, de efeito automático que, se a afirmação que o acompanha não puder ser confirmada, consagra aquele que presta juramento a este poder. O testemunho sob juramento é considerado determinante para se decidir sobre a culpa ou a inocência. As pragas, as bênçãos e os juramentos, bem como outras expressões verbais freqüentemente presentes na linguagem ritual, como, por exemplo, "pedir", "orar", ou "dar graças", pressupõem certas atitudes — de confiança e de veneração, de submissão, contrição e gratidão — que entram em vigor no momento em que, por meio da enunciação da frase, o ato correspondente ocorre. Ou melhor: esse ato realiza-se na e pela enunciação. Aquelas expressões verbais não descrevem nem indicam a existência de atitudes: elas trazem efetivamente essas atitudes à existência através do ato elocutivo. O mesmo resultado é conseguido, na linguagem ritual, por uma utilização característica dos pronomes pessoais. A linguagem litúrgica faz um uso especial do "nós" e do "eles". A forma plural de "nós" e "nos" indica que, embora existam vários oradores, estes estão a agir coletivamente, como se fossem um único, uma espécie de personalidade coletiva. Anteriormente a essa elocução pronominal, existe um estado de preparação indiferenciado expresso pela presença de todos os participantes no local onde a liturgia vai ser celebrada. Ao proferir-se o "nós" constitui-se, dá-se forma definitiva, a uma disposição básica entre os membros da comunidade litúrgica. A comunidade é iniciada quando os pronomes da solidariedade são repetidamente pronunciados. Ao pronunciarem o "nós", os participantes reúnem-se não só num espaço exteriormente definível, mas também numa espécie de espaço ideal determinado pelos seus atos discursivos. O seu discurso não descreve o aspecto possível de tal comunidade, nem exprime uma comunidade constituída antes e separadamente dele. Os enunciados performativos são, por assim dizer, o lugar onde a comunidade é constituída e recorda a si própria o fato da sua constituição. A performatividade está também codificada nas atitudes do corpo, nos gestos e movimentos. Os recursos desta codificação são elementares. Nos ritos, dá-se ao corpo a postura e os movimentos apropriados através das ações prescritas. O corpo, quando de pé, mantém-se rígido e vigilante. As mãos são unidas e postas como que em oração. As pessoas curvam-se e expressam a sua impotência ajoelhando-se, ou podem abandonar completamente a postura ereta na humilhação da prostração corporal. A relativa escassez destes repertórios é a origem da sua força. Os recursos da linguagem comum, a sua variedade semântica e flexibilidade de tom e de registro, a possibilidade de se produzirem enunciados que podem ser qualificados, ironizados e retratados, os modos condicional e conjuntivo dos verbos, a capacidade da linguagem para mentir, para ocultar e para dar expressão idealizada àquilo que não se encontra presente — todos estes recursos constituem, de um certo ponto de vista, uma deficiência de comunicação. A subtileza da linguagem vulgar é tal que pode sugerir ou indicar níveis finamente graduados de submissão, respeito, indiferença e desprezo. As interações sociais podem ser negociadas através de um elemento lingüístico de ambigüidade, imprecisão e incerteza, mas os recursos limitados da postura, do gesto e do movimento rituais despojam completamente a comunicação de muitos pttzzles hermenêuticos. Uma pessoa ajoelha, ou não ajoelha, faz o movimento necessário para executar a saudação nazi, ou não faz. Ajoelhar em submissão não é o mesmo que declarar submissão, nem serve apenas para comunicar uma mensagem de submissão, é antes exibi-la através da substância visível e presente do nosso corpo. Os que se ajoelham identificam a posição do seu corpo com a sua predisposição para se submeterem. Estes atos performativos são maneiras particularmente eficazes de "dizer" por serem inequívocas e materialmente substancializadas. E a elementaridade do repertório, do qual estes "dizeres" são retirados, torna simultaneamerte possíveis o seu poder performativo e a sua eficácia como sistemas mnemónicos. Oformalismo da linguagem ritual tem um efeito mnemónico ainda mais evidente. Podemos dizer que uma linguagem é formalizada quando é sistematicamente composta de forma a restringir o leque de escolhas lingüísticas disponíveis. Este é sobretudo o caso com os rituais em que muitas opções lingüísticas foram abandonadas para que a escolha das palavras, da sintaxe e do estilo seja vincadamente mais restrita do que na linguagem quotidiana. Claro que a economia da formalização não é exclusiva do ritual. O mecanismo do "paralelismo canônico", que figura largamente no discurso ritual, encontra-se também na poesia oral tradicional. Pode dizer-se que existe uma tradição do paralelismo canônico, segundo Jakobson, "quando certas semelhanças entre seqüências verbais sucessivas são compulsivas ou gozam de grande preferência" — daí a recorrência de um corpo estandardizado de "pares de palavras fixados convencionalmente".A proeminência de tal paralelismo lingüístico em todas as literaturas orais do mundo, e a sua importância como dispositivo mnemónico, foi demonstrada por inúmeras pesquisas. O caso clássico é o da poesia oral finlandesa, sendo os feitos épicos registrados na Kalevala o exemplo de poesia paralelística mais freqüentemente citado depois do Antigo Testamento. Bloomfield defendia que a "estrutura em cadeia" dos textos védicos é também "análoga ao chamado paralelismo na poesia hebraica".29 Têm sido ainda documentadas tradições de paralelismo entre os Chineses antigos e os Gregos primitivos, em numerosas tradições "populares" no Sul da índia e no Sudeste asiático e entre os idiomas dos índios americanos, principalmente na literatura maia e asteca antiga e nas formas elaboradas de ritmo e de repetição dos cânticos navajos. O paralelismo canônico é, assim, uma característica comum à poesia oral e ao ritual. Porém, no ritual este dispositivo é combinado com outros tipos de formalização onde o discurso, o canto, o gesto e a dança são combinados num todo compósito. De fato, um acontecimento que não contivesse todos estes elementos não seria provavelmente descrito pelos antropólogos como um ritual. São estas características que, em conjunto, constituem a marca distintiva do ritual. Comparado com o discurso quotidiano, o discurso ritual caracteriza-se não só pelo paralelismo canônico, mas também por um vocabulário restrito, pela exclusão de algumas formas sintáticas, por uma rigidez na seqüência dos atos discursivos, por padrões fixos no volume das elocuções e por uma flexibilidade limitada da entoação. Todas estas características impelem os atos de discurso ritual na mesma direção.30 Deste modo, uma qualquer elocução isolada, em vez de poder ser seguida por um grande número de elocuções potenciais, só é possível acompanhá-la por um conjunto limitado ou, na verdade, na maior parte dos casos, por uma elocução apenas. O fim de um ato discursivo é previsível desde o seu início porque, uma vez iniciado, existe uma única seqüência correta para uma pessoa prosseguir. Além disso, tal como as articulações num único ato discursivo estão formalmente predeterminadas, também as articulações entre os atos discursivos dos diferentes participantes estão fixadas de antemão. A partir do ato discursivo de um participante pode predizer-se o do seguinte. Mais uma vez, no discurso ritual a escolha da entoação ou do ritmo da enunciação é limitada. Sempre que ocorre uma passagem do discurso entoado para o canto, é introduzida uma restrição ainda maior na escolha da entoação e do ritmo e adaptados uma entoação e um ritmo ainda mais afastados dos padrões variados do discurso quotidiano. Finalmente, a postura, o gesto e o movimento atualizados, em vez de se combinarem de forma flexível para conferirem variedade e ambigüidade de informação, como naquilo que descrevemos convencionalmente como situações do quotidiano, têm um padrão restritivo e são, por isso, facilmente previsíveis e repetíveis de um ato para o seguinte e de uma ocasião ritual para a seguinte.