INTRODUÇÃO DESINFECÇÃO
A desinfecção da água tem sido praticada por Os processos de desinfecção têm como objeti-
milênios, embora os princípios envolvidos no vo a destruição ou inativação de organismos
processo não fossem conhecidos. Existem patogênicos, capazes de produzir doenças, ou de
indícios de que o uso de água fervida já era outros organismos indesejáveis. Esses organis-
recomendado em 500 a.C., mas alguns historia- mos podem sobreviver na água por várias
dores julgam que esta prática era adotada desde semanas, em temperaturas próximas a 21ºC e,
o começo da civilização (Iabusch, 1971). Até em alguns casos, por vários meses, em baixas
que a teoria dos microorganismos fosse es- temperaturas (Cubillos, 1981). A sobrevivência
tabelecia (Louis Pasteur, 1880), havia a crença desses organismos na água depende, não só da
de que as doenças eram transmitidas através de temperatura, mas também de outros fatores
odores. A desinfecção da água e dos esgotos ecológicos, fisiológicos e morfológicos, tais
surgiu como uma tentativa de se controlar a como: pH, turbidez, oxigênio, nutrientes, com-
propagação das doenças através dos odores. petição com outros organismos, resistência a
substâncias tóxicas, habilidade na formação de
esporos (Rossin, 1987). A desinfecção não
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Secretaria do Meio ambiente Ciência e Tecnologia do implica, necessariamente, a destruição completa
Distrito Federal. Instituto de Ecologia e Meio Ambiente.
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de todas as formas vivas (esterilização), embora
Chateaubriand, 6º andar, Brasília, DF, 70340-906, muitas vezes o processo de desinfecção seja
Brasil. levado até o ponto de esterilização.
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sódio (NaOCl), obtido pela decomposição geral, são necessárias algumas horas para que a
eletrolítica do sal. maioria das reações do cloro com compostos
Inicialmente, o cloro era empregado na desin- orgânicos se complete.
fecção de águas somente em casos de epide- Quando o cloro é adicionado a uma água
mias. A partir de 1902, a cloração foi adotada quimicamente pura ocorre a seguinte reação
de maneira contínua na Bélgica. Em 1909, (Degrémont, 1979):
passou a ser utilizado o cloro guardado em
cilindros revestidos com chumbo.
De acordo com Rossin (1987), os processos
de cloração evoluíram com o tempo, podendo Na temperatura ambiente, o tempo de reação
esta evolução ser caracterizada em diferentes é de décimos de segundo (Van Bremem, 1984).
décadas: Em solução diluída e pH acima de 4, o equilí-
brio da reação é deslocado para a direita, fican-
• 1908 a 1918 – início da cloração das águas; do pouco Cl2 em solução. Em valores de pH
aplicação de uma pequena quantidade de mais baixos, a reação predominante é no sen-
cloro; tido de formação do cloro.
• 1918 a 1928 – acentuada expansão no uso de O ácido hipocloroso (HOCl), formado pela
cloro líquido; adição de cloro à água, se dissocia rapidamente
• 1928 a 1938 – uso de cloraminas, adição (Degrémont, 1979):
conjunta de amônia e cloro, de modo a se
obter um teor residual de cloraminas. Ainda
não eram empregados testes específicos para
se determinar os residuais de cloro; A ação desinfetante e oxidante do cloro é
• 1948 a 1958 – refinamento da cloração; deter- controlada pelo ácido hipocloroso, um ácido
minação das formas de cloro combinado e fraco. Em solução aquosa e valores de pH
livre; e cloração baseada em controles bacte- inferiores a 6, a dissociação do ácido hipocloro-
riológicos. so é fraca, sendo predominante a forma não-
dissociada (HOCl).
Em soluções de pH menor que 2, a forma
PRINCÍPIOS DA CLORAÇÃO DA ÁGUA predominante é o Cl 2; para valores de pH
próximo a 5, a predominância é do HOCl,
O uso de cloro no tratamento da água pode tendo o Cl2 desaparecido. A forma ClO predo-
ter como objetivos a desinfecção (destruição mina em pH 10 (Bazzoli, 1993; Degrémont,
dos microorganismos patogênicos), a oxidação 1979).
(alteração das características da água pela As águas de abastecimento, em geral, apre-
oxidação dos compostos nela existentes) ou sentam valores de pH entre 5 e 10, quando as
ambas as ações ao mesmo tempo. A desin- formas presentes são o ácido hipocloroso
fecção é o objetivo principal e mais comum da (HOCl) e o íon hipoclorito (OCl).
cloração, o que acarreta, muitas vezes, o uso O cloro existente na água sob as formas de
das palavras “desinfecção” e “cloração” como ácido hipocloroso e de íon hipoclorito é
sinônimos (Bazzoli, 1993). definido como cloro residual livre (Opas,
O cloro e seus compostos são fortes agentes 1987; Rossin, 1987).
oxidantes. Em geral, a reatividade do cloro O cloro também pode ser aplicado sob as
diminui com o aumento do pH, e sua velocida- formas de hipoclorito de cálcio e hipoclorito de
de de reação aumenta com a elevação da tem- sódio, os quais, em contato com a água, se
peratura. ionizam conforme as reações:
As reações do cloro com compostos inorgâni-
cos redutores, como sulfitos, sulfetos, íon
ferroso e nitrito, são geralmente muito rápidas.
Alguns compostos orgânicos dissolvidos tam-
bém reagem rapidamente com o cloro, mas, em
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bactérias levou Green & Stumpf (apud Lau- A superioridade da eficiência de desinfecção
busch, 1971) à formulação da hipótese de que do ácido hipocloroso em relação a outras formas
a morte da célula bacteriana era resultado da de cloro é atualmente creditada não somente à
reação química do ácido hipocloroso com uma sua forte capacidade de oxidação, mas também
enzima, triosefosfato dihidrogenase, essencial na ao pequeno tamanho de sua molécula e sua
oxidação da glicose e, portanto, na atividade do neutralidade elétrica, que permitem uma rápida
metabolismo celular (funções respiratórias). penetração nas células. A reduzida ação bacteri-
Essas interações também ocorrem com outras cida dos íons hiploclorito é relacionada à sua
enzimas. Entretanto, esta enzima, quando isola- carga negativa, que provavelmente impede sua
da, era oxidada por outros agentes que não o penetração na célula (Fair et al. apud Laubusch,
cloro, o que não ocorria com a enzima de 1971).
células intatas. Esta observação indicou que a
facilidade de penetração do desinfetante na
célula é um fator importante. Em relação aos FORMAÇÃO DE TRIHALOMETANOS
esporos, provavelmente sua inativação ocorre
por métodos distintos daqueles das células A reação do cloro com alguns compostos
vegetativas, conforme observações de que a sua orgânicos leva à formação de trihalometanos
sobrevivência não é dependente da capacidade (THM). A água bruta contém ácidos fúlvicos e
do cloro de oxidar a glicose. A sobrevivência húmicos (fórmulas ainda não completamente
dos esporos é determinada por sua capacidade conhecidas), resultantes da decomposição de
de formar células vegetativas e, mesmo após o folhas da vegetação (Opas, 1987). A maioria
contato com o cloro, é possível que os esporos desses ácidos contém radicais cetona, que
continuem capazes de produzir a enzima, o que podem causar a formação de halofórmios
não acontece com as formas vegetativas, que após a reação com o cloro (Van Bremem,
perdem esta capacidade de regenerar a enzima. 1984).
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Entre os compostos relacionados, os que têm A reação de formação dos THM se inicia
concentração mais significativa em água potável quando há o contato entre os reagentes (cloro e
são os quatro primeiros: triclorometano, bromo- precursores) e pode continuar ocorrendo por
diclorometano, dibromoclorometano e tribromo- muito tempo, enquanto houver reagente disponí-
metano (Santos, 1987). Portanto, quando se faz vel (principalmente o cloro livre).
referência aos THM (trihalometanos), na reali- Segundo Perry (1983), o equilíbrio na clora-
dade estão sendo mencionados os quatro com- ção entre as reações de substituição envolvendo,
postos citados. inicialmente, a formação de ligações carbo-
O THM mais facilmente detectável é o cloro- no-cloro, ou nitrogênio-cloro, e reações gerais
fórmio. de oxidação é importante na formação dos
Os ácidos húmicos e fúlvicos são chamados THM. Reações adicionais não têm muita impor-
“precursores” dos trihalometanos. tância, porque são, em geral, bem mais lentas.
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A reação do halofórmio envolve uma série de sob a qual o cloro se apresenta também é
reações básicas catalíticas de substituição de um importante; o cloro livre tem maior poder de
grupo a-carbonil, seguida, eventualmente, pela formação de THM do que o cloro combinado.
hidrólise para produzir o trihalometano. Para os
compostos simples que contêm acetil, o patamar
de determinação de baixa velocidade é a desa- IMPORTÂNCIA DOS TRIHALOMETANOS
gregação do próton, que é independente da
concentração de halogênios, mas altamente A relação entre o uso de cloro nas estações
dependente do pH. de tratamento de água, suas reações com os
As variáveis que influenciam a reação de compostos orgânicos presentes e a formação de
formação dos THM são (Khordagui & Mancy, compostos que o poderiam ter efeitos negativos
1983; Santos, 1987; Van Bremer, 1984): sobre a saúde humana foi estudada pela primei-
ra vez por R. H. Harris, na década de 70 (San-
1. Tempo tos, 1987). A partir de suas indicações pioneiras
Em relação ao tempo, a formação de trihalo- sobre a possibilidade de existir uma correlação
metanos em condições naturais não é instantâ- entre águas de abastecimento e câncer, outros
nea. Em princípio, quanto maior o tempo de pesquisadores passaram a estudar o assunto,
contato entre o cloro e os precursores, maior como Rook, na Holanda, e Bellar, Litchtemberg
será a probabilidade de formação dos THM. & Krones, nos Estados Unidos.
O aumento da preocupação com os níveis
2. Temperatura desses compostos presentes na água tem levado
O aumento da temperatura significa um au- a amplas discussões sobre a legislação em
mento na probabilidade de formação dos THM. inúmeros países (Perry, 1983).
A Agência de Proteção Ambiental dos Esta-
3. pH dos Unidos (USEPA), em um estudo no qual
A formação dos THM aumenta com a ele- foram analisadas amostras de água provenientes
vação do pH, pela sua ação catalítica sobre o de 113 estações de tratamento, detectou a
halofórmio. presença de 27 compostos orgânicos com
probabilidade de serem causadores de doenças
4. Concentração de brometo e iodeto. (op. cit). Nessa relação de compostos, os quatro
Os brometos e iodetos, na presença de cloro trihalometanos foram considerados muito im-
aquoso, são oxidados a espécies capazes de portantes, porque surgiram com freqüência
participar da reação de substituição orgânica, muito grande em todas as pesquisas realizadas
resultando na formação de THM puro ou mistu- nas águas de abastecimento cloradas. Como
rado (um ou mais de um dos compostos). O conseqüência deste estudo, a EPA propôs, em
bromo tem vantagens sobre o cloro nas reações 1978, o limite máximo permissível de 100 µg/l
de substituição com os compostos orgânicos, THM para águas de abastecimento. Embora não
mesmo que o cloro esteja presente em excesso existissem provas cabais de que esses compos-
quando comparado com o bromo inicial. tos pudessem ser nocivos à saúde, o limite foi
proposto com objetivos preventivos. Em 1979,
5. Características e concentrações o critério adotado de 100 µg/L (média de
5. dos precursores concentração anual) foi regulamentado, apesar
Quanto maior a concentração de ácidos húmicos das evidências de carcinogenicidade do cloro-
e fúlvicos, maior será a formação de THM. As fórmio terem sido obtidas apenas em estudos
características da água e dos precursores com animais (Khordagui & Mancy, 1983).
presentes também irão influenciar a formação Posteriormente, alguns estudos realizados no
de THM. Canadá considerando a cloração de água bruta
(Wigle apud Santos, 1989) indicaram uma asso-
6. Concentração de cloro ciação entre a dosagem de cloro e o câncer de
Quanto maior a dosagem de cloro, maior será estômago, e entre a quantidade de carbono
a probabilidade de formação de THM. A forma orgânico (COT, indicador de THM) e o câncer
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