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ARTIGO ORIGINAL / RESEARCH REPORT / ARTÍCULO

Mulheres HIV/AIDS: silenciamento,


dor moral e saúde coletiva
Women and hiv/aids: silencing, moral pain and collective health
Hiv/sida y las mujeres: silenciamiento, dolor moral y salud colectiva
Lucilda Selli*
Petronila Libana Chechin**

RESUMO: O objetivo deste estudo foi conhecer os motivos que levam as mulheres infectadas pelo HIV/AIDS ao silenciamento da doença, além
de identificar até que ponto estabelecem relações de significado entre o silêncio e a saúde da coletividade.Para tanto, o método utilizado foi um
estudo exploratório, descritivo, de natureza qualitativa. Focalizou-se mulheres que buscaram o serviço de atendimento especializado para
diagnóstico e tratamento do HIV/AIDS da Secretaria de Saúde do Município de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. A amostra foi intencional
e atingiu o total de dezoito mulheres entre 20 e 40 anos, portadoras da infecção pelo HIV ou com AIDS. Os dados foram obtidos por meio de
entrevista semi-estruturada e foram agrupados em temas para posterior análise. A investigação considerou como resultados que a contamina-
ção se deu quase exclusivamente por meio da relação heterossexual. A crença na “fidelidade” do parceiro e o desvelamento da “infidelidade”
influenciam sobremaneira a atitude silenciosa das mulheres. O medo, e seus diferentes significados, reforça, nas mulheres, a atitude silenciosa.
A força para se sobrepor ao medo, enfrentar os preconceitos, qualificar a vida e dar evasão a ela, para além da “dor moral” vivenciada no silêncio,
provém dos filhos, principalmente nos casos de transmissão vertical.Concluiu-se que para as mulheres é difícil enfrentar a doença e, ao mesmo
tempo, o problema de serem portadoras do HIV/AIDS. A epidemia precisa ser encarada como um fenômeno social, com seus mitos e estereótipos
para garantir maior adesão das ações e o alcance das metas propostas pelo Ministério da Saúde e pelos profissionais da saúde.
DESCRITORES: Síndrome de imuno deficiência adquirida – aspectos sociais, Saúde coletiva, Mulher
ABSTRACT: The aim of this study was identifying the reasons that make women infected by HIV/AIDS to avoid talking about the illness and to
verify in what degree this establishes relations of meaning between the silence and the health of the collective. For doing this, the used Method
was an exploratory Study, a descriptive qualitative one. One focused women who had asked help the service of assistance specialized for
diagnosis and treatment of the HIV/AIDS of Secretaria de Saúde [the county Health agency] of the City of São Leopoldo, RS — Brazil. The sample
was intentional and reached the total of 18 women between 20 and 40 years, e infection by the HIV or affected by AIDS. Data were collected
by means of half-structured interviews and were grouped in subjects for posterior analysis. This inquiry considered as results that infections
occurred exclusively in heterosexual intercourses. The belief in the “fidelity” of the partner and the unearthing of “infidelity” excessively
influence the self-silencing attitude of the women. Fear and its different meanings increase in the women the self-silencing attitude. The
strength for conquering fear, to face prejudices, to qualifying life and to let it go, beyond “moral pain”, lived deeply in silence, stems from the
children, mainly in cases of vertical transmission. It was concluded that for the women it is difficult to face the illness and, at the same time, the
problem of their being HIV/AIDS carriers. This epidemic has to be faced as a social phenomenon, with its myths and stereotypes to guarantee a
greater adhesion to the actions and the reach of the goals proposed by the Ministry of Health and the health professionals.
KEYWORDS: Syndrome of acquired immunodeficiency — social aspects, Colletive health, Woman
RESUMEN: El objetivo de este estudio es saber las razones del silenciamiento de la enfermedad mujeres infectadas por el HIV/SIDA al e identificar
hasta que punto establecen relaciones de significado entre el silencio y la salud colectiva. El Método usado para alcanzar esa meta fue un Estudio
exploratorio, descripción de naturaleza cualitativa. Fueron sujetos mujeres que habían acorrido al servicio de atención especializada para la diagno-
sis y el tratamiento del HlV/ SIDA de la Secretaria de Saúde do Município de São Leopoldo — Rio Grande do Sul. La muestra fue intencional y alcanzó
el total de 18 mujeres con edades entre 20 y 40 años, portadoras de la infección por el HIV o la SIDA. Los datos han sido colectados por intermedio
de entrevistas medio-estructuradas y han sido agrupados en temas para el análisis posterior. Esta investigación considera como resultados el facto
de que la contaminación si dio casi por medio de la relación heterosexual. La creencia en la “fidelidad” del marido y la revelación de la “infidelidad”
influencia intensamente la actitud reservada de las mujeres. El miedo y sus diversos significados consolidan en las mujeres la actitud de silenciami-
ento. La fuerza para superponerse al miedo, para hacer frente a las preconcepciones, para caracterizar la vida y hacerla transcurrir, para más allá del
“dolor moral”, vivido profundamente en silencio, provén de los niños, principalmente en los casos de transmisión vertical. La conclusión es que a las
mujeres les resulta difícil hacer frente al enfermedad y, al mismo tiempo, al problema de ser portadoras del HIV/SIDA. La epidemia carece de ser
considerada como fenómeno social, con sus mitos y estereotipos para garantizar la mayor adhesión a las acciones y el mayor alcance de las metas
establecidas por el Ministerio de la Salud y los profesionales de la salud.
PALABRAS-LLAVE: Síndrome de inmunodeficiencia adquirido — aspectos sociales, Salud colectiva, Mujer

* Doutora em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília. Mestre em Assistência de Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista em
Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora da disciplina – Ética Profissional do Curso de Graduação em Enfermagem e
Professora da disciplina de Ética e Bioética para vários Cursos de graduação. Professora e pesquisadora do Curso de Pós-Graduação – Mestrado em Saúde Coletiva.
** Mestre em Assistência de Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista em Saúde da Mulher pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Coordenadora do Curso de Graduação em Enfermagem e Coordenadora do Curso de Especialização em Enfermagem Obstétrica.
Professora da disciplina teórico-prática da Saúde da mulher. Pesquisadora

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Introdução feminização (Brasil, 2003a; Bastos, o silêncio em prol da saúde indivi-


Szwarcwald, 2000). A feminização dual e coletiva.
A Síndrome de Imunodeficiência da epidemia do HIV/AIDS está relacio-
Adquirida [AIDS] está cada vez mais nada à vulnerabilidade da mulher,
se constituindo em um sério proble-
Método
pelas suas características biológicas,
ma no contexto da Saúde Pública em sociais e culturais favoráveis para sua A pesquisa foi realizada na Uni-
todo o mundo (Bastos, Malta, 2002). contaminação (Bastos, Szwarcwald, dade Sanitária do Município de São
Os primeiros casos da epidemia fo- 2000). Isso tem como conseqüên- Leopoldo, que presta atendimento
ram notificados na década de 1980, cia o número significativo de crian- à população HIV/AIDS do referido
e passados 25 anos, já entrados no ças contaminadas pela transmissão município e arredores. Os dados fo-
século XXI, continua sendo um gran- vertical (Brasil, 2003a). ram coletados ao longo dos meses
de desafio para a comunidade cien- A epidemia precisa ser encarada de outubro de 2002 a fevereiro de
tífica, profissionais da saúde e po- como um fenômeno social, com in- 2003. Trata-se de pesquisa com abor-
pulação em geral (Mann, Tarantola, formação e esclarecimento sobre dagem qualitativa (Minayo, 2000).
Netter, 1993; Bastos, Barcello, 1995; seus mitos e estereótipos, a fim de O problema investigado focalizou
Bastos, Szwarcwald, 2000). A sín- garantir maior adesão às ações e ao mulheres com HIV/AIDS que busca-
drome desafia a comunidade cien- alcance das propostas para seu en-
ram a Unidade Sanitária para diag-
tífica, os profissionais da saúde e a frentamento feitas pelo Ministério da
nóstico e tratamento.
sociedade em geral a reverem os Saúde e pelos profissionais da saúde.
Teve como objetivos conhecer
conceitos de saúde e buscarem es- Essa premissa auxilia a quebra do
fatores que levam as mulheres HIV/
tratégias para o controle das taxas silêncio e o dos medos que assolam
AIDS ao silenciamento sobre a doen-
de incidência, melhoria da qualida- as mulheres, atualmente mais vul-
ça, e identificar até que ponto esta-
de de vida dos portadores do vírus neráveis ao vírus HIV/AIDS do que
belecem relações entre o silencia-
HIV e doentes de AIDS, seja indivi- os outros segmentos populacionais.
mento e a saúde coletiva.
dualmente, seja coletivamente. O problema do HIV/AIDS e dos
conflitos vivenciados por pessoas A seleção das mulheres seguiu
Os dados epidemiológicos mun- os seguintes critérios: apresentarem
diais mostram que ocorre a infecção que se sabem portadoras do vírus de-
ve constituir uma das preocupações idade entre vinte a quarenta anos,
diária de 14 mil pessoas, sua grande terem confirmação da infecção pelo
maioria em países em desenvolvi- centrais dos profissionais da saúde.
A pesquisa buscou conhecer as ra- HIV, estarem em acompanhamento
mento ou subdesenvolvidos, com ambulatorial e aceitarem participar
zões alegadas pelas mulheres HIV/
50% dos casos sendo de mulheres da pesquisa. As mulheres que se en-
AIDS para o silêncio diante da doen-
e crianças (Lamptey et al, 2002). quadraram nos critérios estabeleci-
ça, embora tal silêncio implique em
Conforme dados do Boletim Epide- dos foram esclarecidas sobre a temá-
repercussões negativas não só para
miológico AIDS Brasil foram diag- tica do estudo, seus objetivos e justi-
a sua saúde como para a da coletivi-
nosticados e notificados, no Brasil, ficativas, depois do que procederam
dade. O interesse pelo estudo foi
310.310 casos, no período de 1980 suscitado a partir dos resultados de à leitura e assinatura do Termo de
a dezembro 2003. A epidemia atin- uma pesquisa realizada anterior- Consentimento Livre e Esclarecido,
ge principalmente pessoas na fase mente por Cechin com mulheres documentando sua participação li-
reprodutiva, com baixa escolarida- gestantes, residentes no município vre na pesquisa, conforme preconiza
de, e um número crescente de mu- de São Leopoldo, Rio Grande do Sul, a Resolução 196/96 do Ministério da
lheres heterossexuais, e tem como com risco de HIV positivo. Os resul- Saúde do Brasil (Brasil, 1996). Fo-
principal forma de transmissão a ex- tados da pesquisa mostraram que o ram entrevistadas dezoito mulheres,
posição sexual ou o uso de drogas fator medo influenciou as mulheres número determinado ao longo da
injetáveis. Esse aspecto está direta- a retardarem a confirmação do diag- pesquisa pelo ponto de saturação.
mente relacionado ao diagnóstico nóstico e a esconderem a doença. O A técnica para a coleta de dados
e notificação dos 8.843 casos peri- interesse de realizar a pesquisa e des- foi a entrevista semi-estruturada.
natais (Brasil, 2003a). Estima-se cobrir os motivos do silêncio das Foi feito o registro dos dados por es-
que existam 17 mil gestantes HIV mulheres soropositivas sobre suas vi- crito. Para o roteiro da entrevista,
positivo ao ano no Brasil. Cerca de vências nasceu do diálogo entre as foram utilizadas questões norteado-
30%, ou seja, 6 mil gestantes HIV pesquisadoras sobre a importância ras (fatores que influenciam o silên-
positivo recebem tratamento ao ano. de conhecê-los e, dessa forma, elabo- cio e a relação com a saúde indivi-
No Brasil, a AIDS tem-se carac- rar uma estratégia de ação e inter- dual e coletiva). A interação pesqui-
terizado pela interiorização, a hete- venção que auxilie as mulheres a en- sador/pesquisada serviu também
rossexualização, a pauperização e a frentarem seus medos e quebrarem como referência para a coleta dos

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dados. O local da Unidade Sanitária suas conseqüências, tanto individuais A assimilação feita pelas mulhe-
onde foram coletados os dados pre- quanto coletivas: “... tem que calar res sobre a AIDS como sendo a “doen-
viu a privacidade das mulheres en- pra si, tem que agüentar firme, sabe, ça da imoralidade” ofusca suas no-
trevistadas, permitindo-lhes um porque tem muito preconceito”. ções de conhecimento e responsabi-
ambiente favorável à interlocução. Desde os primeiros sintomas ao lidade sobre a doença, bem como
Na interpretação e análise dos diagnóstico, se interpõe uma questão quanto às implicações acerca do não-
dados utilizou-se a abordagem quali- crucial para as mulheres HIV/AIDS. tratamento para a sua saúde e a saú-
tativa com base em Minayo (2000), Esta interposição é cunhada pela de da coletividade. A apropriação da
observando-se as etapas de ordena- construção do signo HIV/AIDS, para saúde e da doença, a partir de cons-
mento do material, unitarização e a qual o tratamento medicamentoso truções de sentido, implica um pro-
análise dos dados. não dá conta da totalidade de seus cesso de subjetivação. Essa constru-
significados e da necessidade de faze- ção tem a ver com as representações
Resultados e discussão rem frente ao problema: “... o que culturais presentes no contexto so-
vão pensar de mim, eu sempre fui cial. Os seres humanos interpretam
Por que as mulheres calam se o muito certinha, sei que não tive culpa suas experiências pelas referências
silêncio dói tanto? de pegar, é uma dor que dói lá den- simbólicas presentes nos significados
Da análise preliminar dos depoi- tro, não sei o que vai ser de mim...” socialmente aceitos (Minayo, 2000).
mentos das participantes do estudo, O diagnóstico e o tratamento com- Daí a importância de conjugar mu-
emergiram quatro categorias, no- preendem uma parcela do processo, lher HIV/AIDS e sociedade no pro-
meadas conforme suas próprias falas: porém, a “dor moral” suscitada pela cesso saúde/doença/enfrentamento.
“Eu não queria desconfiar dele...” doença do HIV/AIDS, com suas múl-
“Ele não é ‘pulador de cerca’, tiplas faces e significados, forçados e “Eu não queria desconfiar dele,
mas no dia que pulou pegou”. reforçados pelo “estigma da imorali- ele não é ‘pulador de cerca’,
“Ninguém sabe e nem vai saber”. dade”, pertence ao campo existen- mas no dia que pulou pegou”
“Olho para meus filhos e dá von- cial, imbuído, também, de significa- É evidente a necessidade de “des-
tade de viver, de vencer de novo”. dos individuais e coletivos (Belino, pertar” nas mulheres uma postura
1997), ou seja, atingindo a mulher menos ingênua com relação a seus
Uma leitura interpretativa das fa- em sua integralidade, e não apenas parceiros e suas promessas de fideli-
las das mulheres pesquisadas mostra como a doente portadora do HIV/ dade. Aceitar silenciosamente a con-
que os motivos de silêncio produzem AIDS. O tratamento da imunodefi- taminação significa aceitar valores e
grande sofrimento, principalmente ciência adquirida implica avançar no padrões morais e culturais que per-
até um determinado momento do cuidado, tendo presentes às questões
petuam as desigualdades sociais nas
diagnóstico. Esse silêncio está rela- suscitadas na subjetividade, influen-
mais diferentes esferas das experiên-
cionado aos significados de “imora- ciada pelas representações, valores e
cias cotidianas (Guilhem, 2001). A
lidade”, atribuídos ao HIV/AIDS pela desvalores, e pelas crenças construí-
sociedade desde o surgimento da aquisição de poder e de enfrenta-
das e reconstruídas sobre o problema
doença. O silêncio das mulheres é mento das mulheres deriva de sua
assimilados pelas pessoas e pela so-
forçado e reforçado pelos estereó- capacidade de duvidar e de mani-
ciedade (Moscovici, 2003).
tipos construídos em torno da AIDS, O silêncio solitário, em torno da festar sua indignação. Esse processo
tida, ainda nos dias de hoje, como AIDS, auto e hetero imposto, subjuga lento e dinâmico, que deve ser assu-
uma “doença imoral”, que, por sua as mulheres: “Sinto vontade de fi- mido pelas mulheres, possibilita a
vez, produz a “dor moral”, com- car quieta, calar, porque são todos construção de si mesmas como sujei-
preendida na presente pesquisa, pe- muito de julgar as pessoas, tá con- tos autônomos capazes de enfrentar
los relatos das mulheres, como um taminado, tem que morrer para os os “medos”, com todos os “significa-
sentimento que qualifica o sofrimen- outros”. A dor silenciada exerce so- dos”, implicados nas construções, des-
to subjetivo de caráter existencial e bre as mulheres uma “força maior”, contruções e reconstruções (Mosco-
que as afeta em suas diferentes di- que transcende, por vezes, sua von- vici, 2003), que permeiam o pro-
mensões pessoais, como se pode evi- tade de enfrentamento, de cora- cesso de subjetivação ao se saberem
denciar na frase: “... aquilo foi uma gem, de fala e defesa de si mesmas enganadas e infectadas.
facada por dentro”. A “doença imo- com suas próprias razões: “Fiquei O problema do contágio/trans-
ral” é sigilosa e, portanto, na medida sabendo quando fizeram os exa- missão enganoso aponta a necessi-
do possível, mantida escondida pelas mes, eu imaginava [...] tinha muito dade de uma reflexão radical sobre
mulheres, para além da “dor moral”, medo que fosse ter uma doença [...] o respeito ao direito do outro de ter
com seus múltiplos significados e fui levando [...] sabe como é, né!”. sua saúde preservada e a importân-

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cia de desenvolver nas pessoas o mitificado pelo véu da imoralidade. têm as suas razões para resistir a de-
senso de responsabilidade pela pre- A ironia é que o vírus da morte se terminados tipos de informação que
servação e manutenção da saúde da transmite, também, por um ato de possam interferir no espaço mais ín-
coletividade. As orientações, ações vida e amor, o que pode resultar na timo de suas vidas, tornando essa re-
e intervenções profissionais impli- transformação da vivência amorosa sistência sua medida de força (Gui-
cam tal abrangência: “Peguei na re- em uma desoladora experiência da marães, 1998). Motivos como o
lação com meu ex-marido, ele me existência humana: “Minha maior medo do “abandono” a sua própria
enganou, não me deixou escolher. dor foi confiar no meu companhei- sorte, o medo do “outro”, o medo
Se eu soubesse poderia decidir se eu ro, eu sempre só tive ele”. Estudos da “própria imagem”, levam a es-
queria pegar a doença ou não. Seria qualitativos têm demonstrado que conder, a silenciar sobre a doença.
uma escolha minha e ele não dei- mulheres monogâmicas com HIV/ As falas revelam uma realidade bem
xou isto acontecer”. Pensar é uma AIDS contraíram o vírus de seus par- diferente da tematizada por Gui-
atitude da individualidade humana ceiros (Guimarães, 1998; Martin, marães (1998), para quem a mulher
em que ela, a pessoa, recua da vida 1995). O medo do desvelamento da “família”, de comportamento sexual
social e política para refletir, no cer- doença transmitida pelo parceiro e social exemplar, correria menos ris-
ne de sua solidão, aquém da cogni- exerce influência nas mulheres, co de ser contaminada pelo vírus do
ção intelectual ou racional (Belli- mantendo-as no silêncio sobre suas HIV. O aparecimento dos primeiros
no, 1997). Esse núcleo confronta- dúvidas, aprisionadas em sua dor casos relacionados às mulheres “do-
tivo mobiliza o interior do humano moral e desinformadas sobre a possi- nas de casa”, parceiras fiéis, esposas
para além de uma sucessão de racio- bilidade de tornarem-se multiplica- de maridos trabalhadores, influen-
nalizações morais e científicas e doras do problema pela transmissão ciou no desmascaramento da pers-
avança para uma ética do sujeito a outras pessoas: “Eu soube só agora pectiva de grupos de risco, e fez vis-
responsabilizado com o indivíduo na minha última gravidez, não que- lumbrar a vulnerabilidade do femi-
e a coletividade saudável. ria acreditar que ele pulava cerca”. nino. As desvantagens sociais que
A atual realidade sanitária, divul- Prevalece, entre as mulheres, a ilu- contribuem para a vulnerabilida-
gada pelo Ministério da Saúde, que são da “certeza” sobre o compromis- de feminina estão relacionadas à
evidencia a progressiva diminuição so de fidelidade conjugal estabeleci- dependência econômica das mu-
da razão de novos casos masculinos do entre ela e seu parceiro. lheres em relação aos parceiros,
e femininos, hoje em torno de 2:1 Diferente de outras doenças que além da dependência social e emo-
em todo o País, e de 1:1, em algu- acometeram a humanidade, a AIDS cional que se reflete na sua falta
mas regiões requer a realização de apresenta-se como uma epidemia de poder para demandar proteção
pesquisas e ações de intervenção diretamente relacionada a compor- e estabelecer limites e parâmetros
que trateam dos vários aspectos re- tamentos individuais e coletivos, na relação com o parceiro (Heise,
lacionados à feminização do HIV/ dando-lhe características de ter ex- Elias, 1995).
AIDS. O rápido crescimento da in- trema mobilidade, de ser sem fron-
cidência do HIV/AIDS no segmento teiras geográficas e sociais, dissemi- “Ninguém sabe e nem ninguém
feminino, a partir dos anos 1990, nando-se e levando consigo a falsa vai saber”
tem desencadeado novas questões idéia de ser restrita a determinados A construção social da “imorali-
no complexo cenário dessa epide- grupos de pessoas, caracterizadas co- dade” do HIV/AIDS tem significados
mia, exigindo outras abordagens mo grupos de risco (Mann, Taran- para as suas vítimas, e repercussões
que incluam, como categorias de tola, Netter, 1993; Parker et al, 1994). tanto individuais quanto coletivas:
análise, as relações de gênero e a O silêncio diante da suspeita da doen- “Eles perguntam para mim se eu te-
sexualidade. A disseminação da in- ça e a demora na busca da investiga- nho e eu digo que não tenho. [...]
fecção entre as mulheres acontece ção dos sintomas, em parte, são in- Tenho preconceito contra mim, me
basicamente pela via sexual, por seus fluenciados pelo medo, pelo proces- discrimino. [...] Só me sinto mal de
parceiros, usuários, ou não de dro- so de negação, da possibilidade de não poder falar dos meus medos”.
gas: “Eu sei que não tive culpa de se ter um “parceiro infiel”, e pela ne- Em torno da AIDS, continua ganhan-
pegar, foi meu marido que me pas- cessidade da “coragem reativa” im- do terreno a síndrome do medo de si
sou”. A despeito das campanhas in- posta à mulher ao se tornar sabedora mesmo e do outro. O medo, quando
formativas e dos programas de edu- de seu diagnóstico: “Não posso crer, reconhecido, obriga a defrontar-se
cação e métodos de prevenção dis- eu tentei apostar em um casamento com os porquês, processo que mobi-
ponibilizados, além da significativa que não dava [...] eu estava em casa liza o desmascaramento de certos es-
expressão de liberdade sexual da so- e ele me trouxe a doença [...] abala tereótipos. Para Czeresnia (1995),
ciedade atual, o HIV/AIDS continua toda a estrutura”. Essas mulheres romper com o silêncio e quebrar o

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MULHERES HIV/AIDS
SILENCIAMENTO, DOR MORAL E SAÚDE COLETIVA

medo significa explicitar as desigual- em suas vidas, e, ao mesmo tempo, mobilizou reflexões éticas e propi-
dades estruturais entre homens e pela preocupação com a quebra do ciou releituras sobre crenças, valores
mulheres que são, na verdade, res- silêncio e desvelamento de si mes- e comportamentos individuais e rela-
ponsáveis pela vulnerabilidade femi- mas para seus filhos contaminados: cionais. Pela análise dos dados, obser-
nina à contaminação pelo vírus HIV. “Como vou explicar a doença para va-se que o silenciamento das mu-
Um dilema relativo ao medo diz res- ele? [...] O que dizer sobre como foi lheres diante do diagnóstico do HIV/
peito aos conflitos que surgem entre a contaminação? [...] Como cuidar AIDS é forçado e reforçado pelo medo
saúde pública versus direitos e liber- para evitar complicações?”. Para es- gerado com as idéias disseminadas
dades individuais e democráticas. O tas perguntas não há uma resposta sobre a doença desde o seu início, e
conflito entre saúde pública e liber- única e simples. O melhor é dar in- que perduram nos dias de hoje.
dades pessoais põe em discussão o formações honestas, que a crian- O ponto chave evidenciado pela
direito à autonomia individual em ça entenda, em vez de negativas pesquisa, nesse sentido, está rela-
relação à saúde da coletividade (Fer- e meias-verdades que podem ser cionado aos estereótipos construí-
nandéz, 2000). Nesse sentido, há desmentidas mais adiante (Berer, dos em relação à doença, que ain-
uma série de questionamentos éticos Ray, 1997). A dúvida de como falar da exercem muita influência sobre
relativos à saúde da sociedade, que quando há a transmissão vertical é as pessoas contaminadas e sobre a
se encontra ameaçada, versus direi- acompanhada por uma força moti- sociedade. São muitos os medos
tos e liberdades individuais: “Nunca vacional alegada como justificativa referidos, todos eles com suas faces,
contei pra ninguém, não! Só cabe a para o enfrentamento da doença: seus significados e seu poder sobre
mim e a ninguém mais. [...] Tem que “Tenho que me cuidar. [...] Meu fi- as mulheres. O medo do “outro”, o
agüentar firme. [...] Achar alguém lho precisa de mim, ele tem o pro- medo da “própria imagem”, o medo
para contar e confiar é difícil. [...] blema e não tem culpa”. O medo do “abandono” à sua própria sorte
As pessoas não se sentem bem ao que as pessoas têm faz com que seja levam a esconder, a silenciar sobre
teu lado”. O enfrentamento do pro- ainda mais difícil para as mulheres a doença, e, portanto, a disseminá-
blema supõe permear as escolhas com HIV dizer que são soropositivas la conscientemente, em especial na
pessoais pela ética da responsabili- e que seus filhos também podem ser. transmissão vertical.
dade pessoal e social e, no dizer de Muitas guardam essa informação Desvela-se nos relatos a questão
Pessini e Barchifontaine (1991), de consigo, apesar de saberem da situa- relativa aos filhos contaminados pe-
uma pedagogia de luta por um mun- ção de seus filhos e do que está ocor- las mães soropositivas, no sentido de
do mais sadio. rendo (Berer, Ray, 1997). Continuar “como falar”, “como explicar”, “o
existindo, para essas mulheres, tem que dizer”, “como dizer” para eles
“Olho para meus filhos e dá vontade um duplo sentido: viver a própria sobre a doença. As vivências relata-
de viver, de vencer de novo” vida e, vivendo-a, exercer a função das sobre o problema dos filhos HIV/
O medo que influencia o silêncio materna na vida dos filhos, assumin- AIDS refletem sentimentos de cul-
das mulheres, para além da dor mo- do o compromisso de mãe, princi- pabilidade, responsabilização pela
ral, constitui o principal fator de dis- palmente quando a AIDS resulta da transmissão e desejo de enfrenta-
seminação consciente da doença pa- transmissão vertical. mento pessoal para poder marcar
ra os filhos, quando em situação de presença na vida dos filhos. A força
gravidez. No entanto, a confirmação Considerações finais da mãe, para afrontar a situação vi-
da transmissão vertical agiliza a que- venciada de seu filho ser soropositi-
bra do silêncio. Falar da AIDS é falar vo, está centrada, sobretudo, no de-
de uma dor que transcende os “sin- “Penso em não desistir, não deixar sejo de continuidade da vida própria,
tomas” da “dor moral” das mulheres mais ninguém pisar em mim por em função do papel materno na vida
e, portanto, dos resultados que o si- que tenho este problema. Agora dos filhos e seu papel de suporte para
lêncio pode vir a produzir: “Eu fi- chega, já fui muito humilhada”. eles, na continuidade e enfrenta-
quei sabendo pela menina (exames), Em um curto período de tempo, mento da problemática adveniente
que tinha um ano e estava apenas foram realizados muitos estudos, da AIDS. As falas veladas, e desvela-
com cinco quilos, e aí não deu mais, simpósios, congressos nacionais e das, das mulheres permitiram uma
desmoronei mesmo”. A transmissão internacionais, perpassados pelo de- aproximação de suas subjetividades
vertical constitui fator de conflito pa- bate na busca de explicações cientí- em torno do problema pesquisado
ra as mulheres pesquisadas. Este da- ficas e tratamentos adequados para bem como de suas inquietações e an-
do ficou evidente nas suas falas car- o enfrentamento da doença. A AIDS gústias implícitas ou explícitas.
regadas de sofrimento, trazido pela não só significou uma revolução As mulheres, além de senti-
AIDS, tida como uma ferida sangrante no campo da saúde, mas também rem-se amedrontadas pelo olhar

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MULHERES HIV/AIDS
SILENCIAMENTO, DOR MORAL E SAÚDE COLETIVA

do outro — família, companheiro, para auxiliar as mulheres no en- mente construídas nas relações de
amigos, sociedade —, carregam frentamento das dores existenciais gênero.
uma outra “dor”, que vem do “olhar silenciadas por uma miríade de Com o avanço da epidemia na
de si para si”. A atuação dos profis- razões estigmatizantes que forçam população feminina, urge encontrar
sionais da saúde junto às mulheres, ou reforçam a clandestinidade pa- respostas que, do ponto de vista
desde o diagnóstico ao tratamento ra além do sofrimento que a doen- pragmático, possam viabilizar a pre-
do HIV/AIDS, implica estar atentos ça impõe. venção entre mulheres com maior
ao não verbalizado, que remete à A infidelidade masculina, visivel- vulnerabilidade. A prevenção do HIV
subjetividade da mulher soroposi- mente mascarada pelas mulheres, nos programas de saúde para mu-
tiva. O profissional da saúde pode está presente nas suas falas, consti- lheres constitui um aspecto funda-
não ter medicamento ou terapêu- tuindo uma das principais causas do mental tanto para ampliar o acesso
tica para curar o HIV/AIDS, mas silêncio. Admitir que o parceiro é e proteção das mesmas, quanto para
dispõe, além da tecnologia e me- infiel implica fazer frente à situação a maior responsabilidade masculina
dicações, de habilidades pessoais e assumir as desvantagens social- em relação à sua sexualidade.

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Recebido em 11 de maio de 2005


Aprovado em 14 de junho de 2005

358 O MUNDO DA SAÚDE — São Paulo, ano 29 v. 29 n. 3 jul./set. 2005

Mulheres_HIV.p65 358 25/11/2005, 15:55

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