simbólicas
Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Antonia Terra de Calazans Fernandes
Rua João Miguel Jarra, 135 - ap. 15
05417-040 - São Paulo - SP
e-mail: antoniaterra@uol.com.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 531-545, set./dez. 2004 531
Schoolbooks in their material and symbolic
dimensions
Abstract
Keywords
Contact:
Antonia Terra de Calazans Fernandes
Rua João Miguel Jarra, 135 – ap. 15
05417-040 - São Paulo - SP
e-mail: antoniaterra@uol.com.br
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Dada a sua importância, o livro didáti- Quais têm sido os valores atribuídos
co é um amplo campo de pesquisa. Para en- aos livros didáticos em diferentes épocas? O
tendê-lo, na sua função educacional, sua his- que os usuários lembram desses materiais esco-
tória e sua presença entrelaçada na vida social lares? Quais imagens desses livros têm sido
brasileira, é necessário considerar diferentes preservadas? Quais conteúdos? Quais identida-
campos de estudo e privilegiar uma diversida- des sociais eles têm contribuído para consoli-
de de fontes. Entre as produções existentes, a dar? Quais disciplinas estão a eles associadas?
maioria tem como base a análise do próprio Quais vivências e experiências foram guardadas
livro e de seus conteúdos. Os estudos analisam, envolvendo seu uso na escola ou fora dela? O
fundamentalmente, seus discursos textuais e que os usuários lembram de como os livros
iconográficos, e de que forma difundem conhe- eram utilizados? Os livros didáticos têm sido
cimentos científicos atualizados ou ultrapassa- preservados por seus usuários? Por quê? Há
dos. Produções recentes, porém, têm diversifi- padrões nacionais de livros, autores ou de uso
cado temas e documentos, dando conta desde desses materiais que a análise das memórias
sua concepção, produção, difusão e uso, quan- permite identificar?
to de suas relações com as políticas públicas, Para responder a essas e outras per-
os currículos escolares e a indústria editorial. guntas temos entrevistado alunos e professo-
Nessa linha, pesquisas a partir de fontes orais res, a partir de fundamentos teóricos da histó-
começam a contribuir também para ampliar a ria oral, que interagiram com esses materiais no
compreensão do papel histórico e social dos espaço escolar entre os anos 1940 e 1970.
manuais escolares. Assim, inicialmente, estão sendo entrevistadas
O trabalho com depoimentos orais abre pessoas que viveram sua escolaridade ou le-
a perspectiva para aproximações com diferentes cionaram em diferentes épocas, com o objeti-
sujeitos históricos, de várias classes e vivências vo de fazer um levantamento que possibilite,
sociais, valorizando a diversidade e a subjetivi- por exemplo, entrever indícios de fatores que
dade (Ferreira; Amado, 2002); e, ao mesmo tem- interferem, em parte, na quantidade ou quali-
po, na análise comparativa, indica pistas para dade das memórias, ou seja, se a idade, se a
padrões sociais e culturais comuns entre gera- geração, se o grau de escolaridade ou se o
ções, ao longo do tempo e por localidade. É por contexto da escolaridade interferem ou não nos
essas razões que para pesquisar a memória dos depoimentos e nas lembranças sobre os livros.
manuais escolares optamos por um trabalho Inicialmente, a baliza de tempo da pes-
com história oral, como orientam historiadores quisa abarcava as décadas de 1930 e 1960. Mas,
como Paul Thompson (1992) e Alessandro à medida que as entrevistas foram sendo feitas,
Portelli (1993). Se a pesquisa se detivesse nos o recorte temporal foi sendo ampliado porque
materiais impressos, as memórias em estudo fi- constatamos que uma das pessoas entrevistadas,
cariam restritas às dos literatos e memorialistas, nascida na década de 1930, tinha poucas lem-
já analisados no caso do Brasil, por exemplo, por branças do livro didático. Passamos a entrevis-
Circe Bittencourt (1993). tar, então, pessoas nascidas também nas déca-
O que se constata é que socialmente, das de 1950 e 1960 (com escolaridade poste-
do ponto de vista do usuário (alunos e profes- rior) com a intenção de avaliar, por exemplo, a
sores), depois que deixa de ser utilizado como interferência da idade nas lembranças.
material na sala de aula, o livro didático, só em Até o momento, na medida em que
casos específicos, foi guardado, revisitado ou privilegiamos a diversidade de idade, o que
reencontrado com o passar do tempo. E, nes- constatamos é que o que menos interfere na
sas situações, também cabe questionar sua memória do livro didático é o fator idade. A
mudança de valor com o tempo. análise das entrevistas tem indicado, até o
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momento, que quanto maior a escolaridade Senac – Técnico de vendas, 1955; Faculdade
maior o número de lembranças sobre o tema, de Administração de Empresa, Colégio Brasil,
mesmo sendo o depoente mais velho. A pessoa de 1960 a 1964 (o colégio já foi fechado).
entrevistada com menor escolaridade e, ao Trabalhou desde a década de 1950, como
mesmo tempo, a de menor idade, é a que re- faxineiro, vendedor, gerente de loja, vendedor
cordou menos dos livros, contou menos deta- farmacêutico. Hoje, aposentado, é síndico.
lhes, levantou menos dados. c) Entrevistado 3: nascida em São José do Rio
Além da baliza de tempo, outra variá- Preto, em 1944. Estudou lá até os vinte anos,
vel na seleção dos entrevistados tem sido o até ir completar seu curso de pedagogia em
local onde o depoente estudou ou lecionou, São Paulo. Hoje é professora universitária.
com o objetivo de identificar a presença de d) Entrevistado 4: nascida em 1955, em
diferentes materiais e culturas escolares de Osasco, São Paulo, onde mora até hoje. Estu-
acordo com a região do Brasil: se há padrões dou no primário em uma escola estadual, no
nacionais e se há produções e estudos especi- Jardim das Flores, Escola La Torre (1965). No
ficamente locais. Ginásio, estudou na escola estadual Prof.
Entre as entrevistas, para este artigo, João Larizatte, entre 1971 e 1973. Saiu da
salientamos depoimentos coletados com as escola para casar, em 1974. Voltou a estudar
seguintes pessoas e seus contextos escolares, depois dos filhos crescidos. Fez supletivo,
sem contudo identificá-las nominalmente: depois a faculdade de Artes e agora está ter-
minando a faculdade de História. Ela deu seu
a) Entrevistado 1: ex-seminarista, nasceu em depoimento depois de ter encontrado seus
1929, no sertão do Rio Grande do Norte, e antigos livros didáticos. Recorreu, então, aos
mora hoje em São Paulo. Freqüentou durante livros para lembrar quando estudou e para
dois anos o Grupo Escolar José Marcelino, na contar outras histórias.
Vila de Vitória, que hoje é a cidade de e) Entrevistado 5: nasceu em 1957, em Porto
Marcelino Vieira, no interior do Rio Grande do Alegre. Mudou-se para São Paulo em 1969.
Norte. Freqüentou, na seqüência, como interno, De 1964 a 1966, freqüentou, no primeiro
o Seminário Santa Terezinha, de padres alemães ano, uma escola estadual, no primário. Quan-
e italianos, na cidade de Mossoró, entre os anos do foi morar com a tia, no bairro de Santana,
de 1939 e 1948. No seminário, viveu um ano em Porto Alegre, em 1967, passou a estudar
de adaptação e fez dois anos de curso prelimi- no colégio estadual Ildefonso Gomes, e aí fez
nar; cinco anos que corresponderiam ao ginásio o 1º e o 2º ano de uma só vez. Foi para São
e colégio, e dois anos de filosofia. Paulo em 1969. Estudou no Colégio Estadual
b) Entrevistado 2: nascido em 1930, em São D. Pedro II, na Barra Funda. Em 1970, estu-
Sebastião do Paraíso, Minas Gerais, mas que dou no Ginásio Manoel Bandeira. Fez o cole-
morou quando criança em Ribeirão Preto, São gial – 1973 e 1974 – na Escola Estadual
Paulo, e quando adolescente em Barretos, Maximiliano, na Vila Madalena. De 1975 a
nesse mesmo estado, e em 1956 mudou-se 1977, estudou no Colégio Pinheiros (particu-
para a capital. Em São Sebastião do Paraíso, lar). E fez cursinho no Equipe, em 1978. Em
na Escola Municipal Coronel Cândido (Grupo 1979, estudou Ciências Contábeis e depois
Escolar – primário); em Ribeirão Preto, fre- Economia na PUC, até 1981.
qüentou dois anos do ginásio na escola par- f) Entrevistado 6: nascida em 1963, em
ticular Lacerda Franco, e um ano no Colégio Itambé, interior da Bahia. Residente hoje em
Estadual – artigo 91, e mais um ano de Madu- São Paulo. Estudou em escolas de fazendas,
reza do ginásio, em 1952; depois, em 1953, até a 5ª série (Escola Municipal de Itambé).
colégio estadual; três anos na escola do Depois mudou para Vitória da Conquista/ BA.
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mundo mesmo da literatura, da produção, ria (...) e eu não vi. Eu não... não sabia dessa
porque não tinha essa facilidade, que nem dedicatória. Aí folheando o livro [L.G. Motta
hoje você vai dar um presente e escolhe Carvalho, Ensino moderno de História do Bra-
um livro de poesia, vai escolher um roman- sil. Editora do Brasil S. A., 2º. volume] em casa,
ce bom, não tinha, não era assim. Era uma eu achei. Aí mostrei pra ele. E falou: não acre-
coisa bem mais restrita.” (Entrevistado 3) dito, você não viu isso? Falei: não vi! Fiquei
emocionada, até chorei de verdade. Falando
E hoje? E para outros grupos sociais? sinceramente... sinceramente agora para você.
Cabe perguntar se atualmente e para quais gru- Falei ‘nossa bem...’ a gente se trata por bem,
pos o livro didático tem tido semelhante valor? né... moda antiga ainda... Ele falou: ‘pois é, fui
Será que as políticas públicas interferem no eu que fiz, na sala de sua casa e se você qui-
valor dado ao livro, já que nem sempre ele ser eu faço a mesma dedicatória na outra pági-
permanece com seus usuários além do período na’. Eu fiquei mais feliz ainda.... E isso me in-
do ano letivo, considerando a prática de ado- comodou bastante porque... pra mim o livro
tar livros não-consumíveis? passou a ser valioso duas vezes: uma porque
A história oral é um caminho potencial passou a ser um livro que eu estava precisan-
para suscitar e alimentar a memória do livro do... tem coisa nele que eu precisava... três
didático, indicando representações construídas vezes até...; outra, lembrou bastante minha
pelos usuários no contexto de suas vivências; adolescência; e a terceira, mais importante, a
e fornecendo pistas de quais eram esses mate- dedicatória do meu marido, que eu fiquei bas-
riais, quais seus usos na escola e qual seu va- tante feliz com isso.” (Entrevistado 4 )
lor para indivíduos nas suas trajetórias sociais
e para alunos e professores nas suas vivências O fato de ter recentemente recuperado
educacionais. seus livros didáticos contribuiu para valorizar
No caso do trabalho de coleta de de- esses objetos em seu depoimento e para des-
poimentos referente à pesquisa em curso, uma cobrir um outro sentido, agora emocional, para
outra entrevista exemplifica o processo de preservá-los. Além disso, ter em mãos os livros
construção do valor atribuído ao livro. A depo- mudou também o tipo de lembranças descritas.
ente foi entrevistada na seguinte situação: o A depoente recordou com segurança os títulos,
livro didático estava sendo estudado em sua fa- os autores, formatos, conteúdos e como era
culdade e por isso ela foi solicitada a procurar utilizado para estudo.
seus antigos manuais para analisá-los em sala
de aula. Por essa razão, vasculhou sótãos e “No primário também, no primário você vendo
encontrou livros do tempo em que freqüentou o livro Alvorada [Antonio D´Ávila, Companhia
o antigo primário e o ginásio. Com os livros na Editora Nacional, 1965], você vê os conteúdos
mão, passou a lê-los e a recordar as vivências do livro. Lógico que tinha umas bobagenzinhas
da escola. Passou, então, a avaliar a sua esco- assim tipo da abelha, do macaco, a historinha
laridade e a recordar sua trajetória. Simulta- meio que infantil. Mas tem um belo conteúdo,
neamente, descobriu em um livro do ginásio ensinando bastante coisa de português, coleti-
uma dedicatória do atual marido, que até en- vo... Estava vendo o livro, relendo o livro, e per-
tão não tinha notado: guntava pro meu marido: você lembra do cole-
tivo de...? Eu lembro, naquela época ficou bem
“(...) trouxe para casa, folheando ele, achei a marcado, a gente aprendeu muito bem. Os pro-
dedicatória que meu marido havia feito para fessores faziam questão da gente aprender e
mim em 1973. Que eu tinha terminado o giná- bem. Tanto é que nas férias não tinha folga
sio e ele vendo meus livros fez essa dedicató- não.” (Entrevistado 4 )
Um outro exemplo dessa reconstrução “ Eles são um símbolo assim. Eu espero que
da memória está nas lembranças de uma outra você receba com muito carinho os que eu
depoente. Para uma professora, que teve sua te dei, porque eu não consegui me desfa-
vida profissional organizada em função da es- zer deles. E eu sempre fui muito mais ge-
cola, suas vivências como aluna, no tempo em nerosa pra emprestar livro. Perdi mais de
que freqüentou o primário e o ginásio, ganha- duzentos volumes só emprestando tudo.
ram aos poucos outros significados. Os mesmos Mas aqueles que foram meus, lá do come-
livros da infância permaneceram em sua vida ço, já não têm serventia, ninguém dá valor
quando começou a lecionar, só que com outro pra eles e eu nunca quis pôr num sebo,
uso, inseridos em outros contextos, avaliados a nunca quis me desfazer deles assim... e...
partir de outras perspectivas e narrados pela então é simbólico pra mim aquilo. Eu acho
memória com sentidos e valores incorporados que foram um símbolo pra mim da escola
a eles com o tempo: que pra mim era tão importante, e o pri-
meiro contato mesmo com as coisas escritas
“Quando eu já estava na 3 a ou 4 a série, eu assim. E até hoje eu acho livro uma coisa,
me lembro que algumas professoras da es- uma coisa muito importante mesmo, muito
cola o utilizavam. Uma professora minha só, importante, porque é você jogar semente
que acho que foi da 4 a série, utilizou esse no vento, porque não sabe onde que ele
livro. Ele tinha lições e exercícios de todas vai parar. ” (Entrevistado 3)
as matérias. (...) Era um brochurão assim e
tinha todas as matérias em seqüência e ti- Sem ter o objeto (livro) como suporte
nha o texto da questão, pergunta, e espaço para recordar ou sem tê-lo reencontrado ou
para você responder. E depois eu fui reen- relembrado em outros momentos da vida, foram
contrar como professora isso. (...) eu pro- mais raras as lembranças dos depoentes em rela-
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ção a autores e títulos das obras didáticas. Alguns princípios para uma escola ideal (já que se
entrevistados lembraram apenas de fragmentos: estava falando de um objeto escolar), e como
ela estava atrelada a uma política educacional.
“ Eu me lembro muito bem. O livro didático Discorreu, assim, sobre outro assunto, fugindo
que eu lembro era Violeta. Era o nome do do tema central que lhe foi solicitado lembrar,
livro. Era de Português. Tinha mais sobre sem contudo deixar de apresentar um quadro
textos. De Língua Portuguesa, histórias. mais amplo de valores onde pode ser identifi-
Agora, depois, geralmente o grupo escolar cado também o papel do livro didático no con-
já oferecia apostilas. Não tinha nome as- junto da vivência educacional.
sim. Eles editavam naquela época.
Era isso, eu me lembro de um livrozinho, “Uma coisa que eu lembro também da esco-
pequenino, que era sobre frações . ” (Entre- la, posso falar também do dentista? Que ti-
vistado 2) nha dentista? Então, essa escola Ildefonso, a
gente... tinha dentista, só que em vez de fi-
O que se evidencia, como também apon- car nessa escola, ficava em outra escola, Rui
tam outros estudos, é o fato de as recordações Barbosa, que era uma escola de material...
não poderem ser confundidas com fatos do pas- porque a escola Ildefonso eram galpões
sado. São representações ressignificadas no trans- imensos compridos, cheios de salas, de ma-
correr do diálogo presente/passado, a partir de deira, que é do tempo do Brizola. Eram to-
um conjunto de lembranças selecionadas ao lon- das as escolas assim, compridas, as escolas
go do tempo, que se tornaram significativas em primárias eram todas compridas, de galpões.
um contexto mais amplo da vida do depoente. E as escolas antigas, que tinham primário,
São, principalmente, memórias recortadas e reor- ginásio e científico, eram de material, tipo
ganizadas para o interlocutor. Assim, por suas Júlio de Castilho, Rui Barbosa. Então, o den-
especificidades, as fontes orais precisam ser tista ficava na escola Rui Barbosa. Era per-
problematizadas a partir de valores e significações tinho, umas duzentas... uns duzentos metros
que estruturam as narrativas, os temas debatidos dessa escola. Então ficava aqui, Ildefonso
e as histórias de vida: no meio, que era uma escola nova do
Brizola da década de 1960, que era só os
o realmente importante é não ser a memória galpões de madeira. Do lado dessa escola
apenas um depositário passivo de fatos, mas primária ficava o Júlio de Castilho, que era
também um processo ativo de criação de uma escola grande, imensa, que só tinha
significações. Assim, a utilidade específica ginásio e científico. E a duzentos metros
das fontes orais para o historiador repousa dessa escola ficava o Rui Barbosa, que tam-
não tanto em suas habilidades de preservar bém era uma escola grande que tinha giná-
o passado quanto nas mudanças forjadas sio, científico e primário. E aí a gente ia, os
pela memória. Estas modificações revelam o alunos dessa escola, do Ildefonso, eram.. o
esforço dos narradores em buscar sentido dentista, médico, ia direto. Se estava com
no passado e dar forma às suas vidas, e co- dor de dente ia no dentista... (...) Tinha mé-
letar a entrevista e a narração em seu con- dico o dia inteiro, plantão. Não precisava ir ao
texto histórico. (Portelli, 1997, p. 33.) posto de saúde. A própria escola tinha tudo. Ela
dava merenda, médio, dentista, uniforme, se você
Por exemplo, um dos depoentes, com a fosse pobre. Quando eu fui morar com minha
seleção de acontecimentos, lugares e persona- tia, já não era pobre.” (Entrevistado 5)
gens, ampliando o tema de sua fala para abar- No contexto de um depoimento como
car o cotidiano da escola, tenta explicar seus esse, vale questionar como a construção da nar-
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professores e alunos. Além disso, nas recordações
há relatos que identificam o que tem marcado o “Era isso, eu me lembro de um livrozinho,
imaginário dos indivíduos sobre o tema, quais pequenino, que era sobre frações. Hoje a
livros ficaram na memória de gerações, a relação molecada na boca, na memória não faz.
entre livros e currículos (o que era estudado), a Somar, multiplicar, dividir. Só sobre fra-
disciplina imposta no ato de ler, a presença de ções. A vantagem que tinha na época é
livros com história regional e local, os formatos e que esse livrinho era usado três anos. Ma-
modelos de livros didáticos (capa dura, peque- temática, não era matemática. Era aritmé-
nos, com gravuras...), seus aspectos físicos (cor, tica.” (Entrevistado 2)
grossura, capa...), ilustrações, mapas, quadros e
atividades marcantes, etc. Alguns entrevistados lembram de livros
Apesar de mais raras, algumas lembran- adotados que permaneciam ao longo das séries
ças incluem a recordação dos autores por dis- e outros que continham, numa só publicação,
ciplinas, indicando, por exemplo, um mesmo muitas disciplinas. As duas lembranças coletadas
autor – Aroldo de Azevedo – presente em es- referem-se ao ensino primário.
colas, locais e tempos diferentes. No caso, os
depoimentos referem-se ao sertão do Rio Gran- “Esse livro tinha tudo. Era um livro para
de do Norte na década de 1940; e ao interior tudo. Dentro desse livro tinha geografia do
de São Paulo, na década de 1950: Rio Grande do Sul, história do Rio Grande
do Sul, e português. Matemática não tinha,
“Eram três ou quatro livros básicos. O livro era separado. Na 4a série, eu tinha um livro
de Geografia era Aroldo de Azevedo; Histó- de religião. Isso eu lembro, eu tinha um li-
ria era Rocha Pombo; Aritmética era de um vro só de aula de religião, que era no sába-
professor de Mossoró, Sollon; o resto era do.” (Entrevistado 5)
editora Vozes, de Petrópolis. Latim era um
livro de gramática. Basicamente era gramá- “Ele tinha lições e exercícios de todas as
tica. A língua era o mais fácil de aprender matérias. Ele era quadradão assim, horizon-
no seminário. Aprendia Latim e aí falava tal, tinha tamanho de um caderno universi-
Francês e Italiano.” (Entrevistado 1) tário, mas na horizontal. Era como os ca-
dernos de desenho de cartografia que ti-
“Os meus livros de Matemática eram do Os- nha aquele formato. Era um brochurão as-
valdo Sangiorgi. (...) Aroldo de Azevedo, de sim e tinha todas as matérias em seqüência
Geografia, Joaquim Silva, de História; de e tinha o texto da questão, pergunta, e es-
Português eu acho que não tinha livro, ti- paço para você responder.” (Entrevistado 3)
nha gramática e a gente fazia redação toda
semana, isso me lembro muito bem. Mas Há também referências aos modos de
isso foi um só professor, não tive um profes- aquisição dos livros, que variavam em função
sor só de português. Livro de Português? É da condição social do aluno, do contexto da
acho que não tive livro de Português. Acho época e das políticas educacionais:
que tive gramática.” (Entrevistado 3)
“O livro durava três ou quatro séries. Livro nem
Através da solicitação de recordações comprei, ganhei. Minha tia pegou emprestado
sobre os livros, têm sido identificados, nas memó- de quem já tinha cursado.” (Entrevistado 5)
rias dos alunos, os nomes das disciplinas e as “O livro não pertencia a gente. O que eu tirava
mudanças que elas sofreram com o tempo. É o para estudar, tinha que tomar conta dele. Um
caso da matemática que aparece como aritméti- livro durava dois, três anos. Livro era uma coisa
ca. O livro estudado era o livro de Aritmética. rara, não era fácil não.” (Entrevistado 1)
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muito exercício de assinar o nome, ferrar o vam, usavam também o... Não trabalhavam
nome. (...) o livro... com a gente na classe nunca tra-
No final da aula, a classe inteira ficava de pé balhavam. Eu não me lembro de nenhum
diante da professora. Ela ficava lá no lugar que trabalhasse com a gente, por exemplo,
dela, como se fosse um maestro, segurando lendo, discutindo um texto, nunca. As au-
na mão direita um instrumento para reger o las eles expunham, punham coisas na lousa,
grupo. Normalmente, era uma palmatória. Aí, a gente anotava, e eles marcavam capítulos
a classe inteira, quando ela dava o sinal, do livro pra gente estudar, responder ques-
cantava: B e um A, BA; B e um E, BE... As tionários e... ou para estudar pra prova.
mães ouviam da rua e sabiam que a aula Então você utilizava o livro sempre fora da
estava acabando.” (Entrevistado 1) escola, não é. Utilizava o livro mais em
casa mesmo, pra fazer as tarefas, que eram
“Tinha a professora de português... não, essa muitas, a gente tinha muita tarefa, de todas
era a área geral. Quando faltava as outras, as matérias.” (Entrevistado 3)
ela substituía. Maria Luíza Fernandes. Era
muito dedicada, muito educada. Ela tinha Entre os livros que emergem da memória
um carisma diferente para cativar os alunos. dos depoentes há livros de literatura, lidos, segundo
Era diferente também porque ela fazia eles, por solicitação da escola. A partir dessas in-
grupinhos para estudar, entende. Separava dicações é possível investigar se alguns dos auto-
em grupinho para estudar. Ela ensinava res e títulos foram consagrados como literatura es-
mesmo. E depois tomava as lições. Ensinava colar entre gerações, presentes em diferentes regi-
tudo. Era geral. Era substituta. Quando fal- ões do país, ou apenas em certas escolas. Além
tava qualquer professora, de qualquer ma- disso, como as lembranças misturam as épocas, há
téria, ela dava.... A gente captava melhor o sempre a possibilidade de essa literatura ter sido
ensino dela do que das outras. Como o lida, mas não para trabalhos escolares:
método de ensino, né, cada uma tem dife-
rente uma das outras. O método das outras, “Isso aí, eu li um livro chamado..., gostei
era rápido e rasteiro, como dizia antes. Rá- muito, só não sei quem escreveu, eu lembro
pido.... E após... ela largava o estudo e de- que era Pérolas esparsas, só não sei quem es-
pois tomava a lição em separado. Se o alu- creveu. Era dessa grossura.” (Entrevistado 2)
no tivesse algum problema, então ela vol-
tava ensinava outra vez, voltava até ensi- “Foi no seminário onde eu li mais livro de
nar... É só o que eu sei.” (Entrevistado 2) aventura. Um escritor alemão, Karl May, ti-
nha livros de aventuras no Oriente e entre
Uma entrevistada distingue em suas os índios na América. Era leitura recomen-
memórias, por exemplo, o primário e o ginásio, dada, que se ajustava ao contexto de estu-
através do método de estudo proposto pelo do da gente.” (Entrevistado 1)
professor e do uso do livro ao longo das séries:
Até algumas décadas atrás havia o que
“Ah!, sim, cada professor de uma matéria, se chamava de livros de leitura. Eram livros de
que era a grande diferença. Você tinha um histórias, de moral ou de literatura, lidos em
professor só pra tudo e de repente... e aca- voz alta, que tinham depois seu texto explora-
bava dando tudo com o mesmo jeitão... e do pelo professor. Na memória de uma das
aí de repente você ia pro ginásio e tinha depoentes, o livro de leitura é recordado como
cada professor com seu jeito, suas manias, sendo material que solicitava – e, ao mesmo
suas exigências e também com seu material tempo, disciplinava – uma postura física correta
didático diferenciado. E então eles passa- do corpo para se ler:
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do Rio Grande do Sul, que era a revolução porque você trabalha com artigos que apro-
Farroupilha, só essas coisas. Aí tinha língua fundam coisas, que é difícil um autor, por
portuguesa, que trabalhava com aqueles textos exemplo, dominar com a mesma profundida-
lá. E matemática não tinha. Lembro que a pro- de tudo. E então eu gostava de indicar pros
fessora de matemática de primário, ela dava alunos coletâneas ou então trabalhar tam-
matemática sem o livro.” (Entrevistado 5) bém assim diversos livros e a gente provi-
denciar que uma turma comprasse um, ou-
Há recordações antigas, referentes à tra turma comprasse outro, depois rodava,
década de 1950, de situações em que o livro que nem história da educação eu fiz um
era substituído por apostilas, provavelmente pouco isso. Eu fazia também alguns resu-
criadas ou organizadas pelo professor. E fica- mos pra eles, pra reproduzir alguns trechos,
ram marcadas as situações em que professores, ia quebrando o galho. E também isso foi
na década de 1970, não utilizavam livros didá- década de 1960, e como eu fui efetivada
ticos e nem apostilas. Preferiam propor para os em 1970, começo de 1970 que eu trabalhei
alunos perguntas que deveriam ser pesquisadas: na escola normal, também não tinha tanta
facilidade pra livro também. Acho que de
“Ela fazia um questionário de cem perguntas e 1980 pra cá é que melhorou bastante o pre-
mandava todo mundo copiar. Ai você copiava ço e a variedade dos livros.” (Entrevistado 3)
aquele questionário de cem perguntas. E aí
você tinha que responder aquele questionário. Nas últimas décadas, como apontam al-
Aí ela indicava onde estavam os livros e como guns autores como Marisa Bonazzi e Umberto
achar, tal, e você tinha que pesquisar e respon- Eco (1980), Kazumi Munakata (1998) e Eduardo
der as cem perguntas.” (Entrevistado 5) Portela (2003), os livros didáticos têm sido mui-
to criticados por educadores. E isso pode, de al-
Mudando de perspectiva, uma depoen- gum modo, interferir nos depoimentos, indepen-
te relembrou o uso do livro como professora. dentemente do uso que dele tem sido feito em
Seu depoimento aponta, por exemplo, a impor- outras épocas. O presente acomoda o passado e
tância de investigar como, ao longo do tempo, o transforma. Assim, esperamos avaliar até que
e, dependendo das concepções pedagógicas, ponto os relatos de professores podem nos apro-
esse uso torna-se variável, com justificativas e ximar do cotidiano escolar de tempos atrás e re-
sentidos de trabalhos pedagógicos distintos. Ou, fletir sobre como os valores atuais podem remode-
ainda, se há permanências ao longo do tempo: lar a memória. Como analisa Maurice Halbwachs,
há um exercício de análise importante para dis-
“ Eu sempre tive dificuldade de usar um só, cernir as camadas das lembranças, sobrepostas
usar um só. Mas eu sempre achei muito im- pelas vivências sociais e pelo tempo.
portante recorrer a livro didático. Geralmente
utilizava pra uma coisa, introduzia outras. A imagem que fiz de meu pai, desde que eu
No primário, por exemplo, minha experiên- o conheci, não parou de evoluir, não so-
cia foi mais de pegar o que o MEC mandava mente porque, durante sua vida, as lem-
pra escola, porque as crianças não podiam branças se juntaram às lembranças: mas eu
comprar. E de lá eu selecionava, o que eu mesmo mudei, isto é, meu ponto de vista
queria usar de um, do outro, e completava se deslocou, porque eu ocupava dentro de
com coisas que eu pegava de outros livros e minha família um lugar diferente e sobretu-
reproduzia.... Agora, na escola normal, eu... do porque fazia parte de outros meios.
gostava de adotar coletânea, justamente (Halbawachs, 1990, p. 74)
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Recebido em 05.10.04
Aprovado em 18.11.04
Antonia Terra de Calazans Fernandes é doutora em História Social pela FFLCH da USP, professora do Departamento de
História do UNIFIEO, de Osasco, e professora eventual do Departamento de História da PUC-SP.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 531-545, set./dez. 2004 545