EM UNIDADE DE CONSERVAÇÃO:
a “naturalização” do social
Cristina Teixeira
A adoção das determinações do SNUC ocor- como já argumentaram alguns setores do movi-
re sob a dinâmica de gestão de unidades de con- mento ambiental (Castells, 2000), que esse tipo de
servação já existentes no país. Algumas delas se- desenvolvimento se oponha à “lógica” do mode-
quer elaboraram seus zoneamentos e planos de lo de crescimento econômico capitalista, uma vez
gestão; outras, em menor número, além de já se que ele não vai contra as causas estruturais da in-
utilizarem desses instrumentos, contam também com sustentabilidade, tornando-se, pois, funcional ao
projetos de ação de desenvolvimento e de conser- sistema (Becker, 1999; Leff, 2000; Leis, 1999; Lelé,
vação em andamento. Este é o caso da APA de 1991; Foladori, 1999; Middleton e O’Keefe, 2001).
Guaraqueçaba, administrada pelo órgão governa- Antes mesmo da Rio-92, Lelé (1991) afirmava
mental ambiental federal, responsável pela criação que os “desenvolvimentistas” e o movimento am-
e gestão de unidades de conservação, do Instituto bientalista deixaram de lado suas diferenças no
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Natu- sentido de convergirem ambos para uma propos-
rais Renováveis (Ibama) em parceria com uma ta de desenvolvimento sustentável. Assim, passa-
ONG ambientalista paranaense, à qual se atribui ram a enfrentar juntos os problemas relativos aos
uma influência significativa sobre sua gestão. limites ambientais do crescimento econômico e as
A partir de 2000, a referida gestão incorporou questões sociais, basicamente pobreza e desigual-
a noção de desenvolvimento sustentável, não só dade. Uniram-se sob o imperativo de uma possibi-
por determinação do SNUC, mas outras condições lidade, qual seja, a realização da sustentabilidade
objetivas exigiram a adoção de projetos de desen- ambiental, mantendo a continuidade do sistema
volvimento sustentável para a pequena agricultura. produtivo e das relações sociais que o sustentam.
Antes de analisar o caso da APA de Guara- Segundo Leis (1999, p. 159), o conceito de
queçaba, algumas observações sobre a noção desenvolvimento sustentável faria parte de um
de desenvolvimento sustentável serão discutidas processo de “adoção oportunista e instrumental
de maneira breve para que se reflita tanto sobre [...]”, por parte dos estados e das empresas, de no-
as possibilidades de realização, como sobre a pró- vos valores trazidos pelo ambientalismo, com o
pria noção de desenvolvimento sustentável. objetivo de garantir a continuidade do sistema
produtivo. Assim, a racionalidade econômica do-
minante diluiu o potencial transformador das ori-
gens do movimento ambiental, confundindo e
Os problemas advindos da noção de dispersando suas ações (Leff, 2000).
desenvolvimento sustentável O “capitalismo verde” tem como tese a fun-
cionalidade desse tipo de desenvolvimento, pois
A noção de desenvolvimento sustentável utili- apesar da sustentabilidade “seriam preservados
zada para subsidiar ações conservacionistas origi- não apenas os recursos naturais, mas também e
nou-se de uma discussão mais geral relacionada ao acima de tudo, infelizmente, as relações de pro-
confronto entre a necessidade de crescimento eco- dução existentes” (Vargas, 1999, p. 230). Para Fo-
nômico e a necessidade de conservação dos recur- ladori (1999), tais relações estabelecem os limites
sos naturais. Ademais, foi legitimada por estabelecer do desenvolvimento sustentável.
um pretenso consenso entre essas duas dimensões, As causas sociais da insustentabilidade pas-
originalmente consideradas opostas (Castells, 2000; saram a ser abordadas, e a sustentabilidade social
Foladori e Tommasino, 2000; Nobre, 2002). Tal con- foi incluída como parte imprescindível do desen-
senso tem como princípio geral atender às necessi- volvimento sustentável (Lelé, 1991). Porém, isso
dades do presente, sem comprometer as possibilida- não significou o reconhecimento das relações so-
des de as gerações futuras sanarem suas próprias ciais como responsáveis pela insustentabilidade
necessidades. ecológica. Segundo Foladori e Tommasino (2000),
Um primeiro grupo de críticas ao desenvol- a pobreza foi considerada uma de suas causas, o
vimento sustentável concentra suas discussões em que acarretaria a necessidade de se agir sobre
torno de quais seriam a funcionalidade e os limi- a pobreza, ou seja, encontrar a sustentabilidade
tes desse desenvolvimento. Não se pode afirmar, social para promover a sustentabilidade ecológi-
O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL EM UNIDADE DE CONSERVAÇÃO 55
ca. A solução para o desenvolvimento sustentá- tritas à esfera local só poderão resolver problemas
vel, nessa perspectiva, estava centrada no conhe- circunscritos a uma determinada área, mas as cau-
cimento científico e no desenvolvimento de técni- sas da insustentabilidade estão localizadas na esca-
cas de produção adequadas à conservação dos la da macroeconomia e da macropolítica.
recursos naturais. Os métodos de produção deve- À localidade alia-se a participação social. Se-
riam ser menos agressivos ao meio natural e po- gundo Lelé (1991), ao legitimar o conceito de de-
deriam levar à melhoria da qualidade de vida, ou senvolvimento sustentável, questões como justiça
ao desenvolvimento, minimizando os impactos e eqüidade sociais, que estavam presentes no con-
antrópicos sobre o meio ambiente. Esta perspec- ceito de ecodesenvolvimento, foram abandonadas
tiva foi chamada de sustentabilidade limitada: e substituídas pela participação social, mais espe-
cificamente pela participação local. Partindo da
[...] restringindo seu papel de ponte para a análi- sustentabilidade como referencial indiscutível, e
se da sustentabilidade ecológica [...] o que interes- da solução técnica como saída para a recuperação
sa são as relações técnicas entre os pobres e o uso e a utilização dos recursos naturais (Foladori e
dos recursos naturais. As relações sociais, que se Tommasino, 2001), observa-se que a participação
referem a como determinadas relações entre os local ficaria restrita a decidir sobre rol de possibi-
seres humanos geram pobreza, desemprego, fome lidades técnicas possíveis para promover a susten-
etc., não estão em discussão, senão somente suas tabilidade ecológica. O saber local, por exemplo,
conseqüências técnicas na contaminação e depre- é visto como possibilidade de obtenção de mais
dação do meio (Idem, pp. 46-47). informações sobre como lidar com os recursos na-
turais, contribuindo para a elaboração de soluções
Nesse primeiro grupo de críticas encontram-se, técnicas no uso dos recursos naturais.
ainda, análises que se referem à operacionalização do O segundo grupo de críticas concentra-se na
desenvolvimento sustentável. Para isso, a escala da apropriação do conceito de sustentabilidade ecoló-
“localidade” foi a saída encontrada, uma vez que as gica para adjetivar o desenvolvimento socioeconô-
escalas de “humanidade”, “planeta terra” e “econo- mico, ou ainda, para se referir à sustentabilidade
mia global” são aparentemente inoperantes, ou ope- social ou econômica. A noção de sustentabilidade
rantes somente no nível Estados Nacionais. Becker originada na ecologia para analisar os sistemas na-
considera que a sustentabilidade configura uma turais (sustentabilidade ecológica), deve ser deslo-
nova racionalidade do sistema capitalista e reconfi- cada para a análise das organizações sociais (sus-
gura o desenvolvimento a partir da localidade ou da tentabilidade social). Deve-se estabelecer uma
região. Ela seria, segundo este autor, um dos contraposição à tendência encontrada nas noções
de sustentabilidade que utilizam como referência
[...] instrumentos pós-modernos que, ao mesmo “equilíbrio” e “estabilidade”:
tempo em que viabilizam a dominação em esca-
la mundial, abrem a possibilidade, embora dentro A noção de sustentabilidade ou de durabilidade
de limites muito objetivos e concretos, e muito se origina de teorizações e práticas ecológicas
mais por necessidade do próprio sistema capita- que tentam analisar a evolução temporal de re-
lista, para as histórias locais, as tradições do lugar, cursos naturais, tomando por base a sua persis-
enfim, para os desejos, necessidades e fantasias tência, manutenção ou capacidade de retorno a
fragmentadas (1999, p. 64). um presumido estado de equilíbrio, após algum
tipo de perturbação. A noção de equilíbrio é tema
polêmico e controverso, mesmo no domínio eco-
Ao analisarem a ação de ONGs em projetos
lógico, já que os sistemas naturais, incluídos ne-
“locais” na Europa, Middleton e O’Keefe (2001) afir- les os chamados recursos renováveis, estão sujei-
maram que há dois equívocos na atuação baseada tos a elevada variabilidade, expressa em distintas
na localidade. O primeiro refere-se aos limites do escalas temporais e espaciais (Raynaut, Lana e
“empoderamento” (empowerment) local, já que os Zanoni, 2000, p. 74).
mecanismos de opressão estão nas relações sociais,
cujas causas não são alcançadas. O segundo diz Segundo Raynaut (1997, p. 370), a utilização
respeito aos limites da atuação, isto é, as ações res- dessa noção pode levar à interpretação de uma
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ção de unidades de conservação e com a chega- responsável pela criação dessas unidades, possuía
da de órgãos governamentais para execução das uma atuação bastante reduzida na região. O con-
ações de controle de uso dos recursos naturais. As trole de uso dos recursos naturais (licenciamento
características ambientais da região aliadas ao de- e fiscalização) ficou basicamente a cargo do órgão
senvolvimento do movimento ambiental no Brasil estadual do Paraná com atribuições ambientais.
e no mundo atraíram a atenção de organismos in- Este órgão atuou no sentido de aplicar a legislação
ternacionais, dos governos estadual e federal e de já existente, como o Código Florestal e a Lei de
ONGs ambientalistas. O meio natural, considera- Uso do Solo estadual.
do um ambiente conservado, encontrava-se em vias Nesse momento, não havia ainda uma arti-
de degradação, por causa da exploração da ma- culação entre ações para a conservação e ações
deira, do palmito e da pesca (Teixeira, 2004). de desenvolvimento para a sociedade local; trata-
A responsabilidade desse quadro foi atribuída va-se de ações paralelas. As poucas iniciativas de
à dinâmica social que ora se desencadeava na re- desenvolvimento que lá chegaram estavam rela-
gião, decorrente da nova ocupação iniciada nas cionadas aos projetos estaduais para desenvolvi-
décadas anteriores. Segundo Miguel (1997), no mento da agricultura familiar e da pesca e obtive-
continente, os neolatifundiários – grupos de em- ram resultados restritos e ineficientes (Miguel,
presas madeireiras e grupos industriais e comer- 1997; Rodrigues, 2002).
ciais – instalaram grandes propriedades destinadas A referida instituição estadual, que possuía
à exploração dos recursos naturais ou à especula- também a atribuição de órgão de terras, centrava
ção, em geral realizada mediante a grilagem de ter- seus esforços no impedimento tanto da ocupação
ras, a partir da década de 1960. Além da intensifi- de Guaraqueçaba pelos neolatifundiários, como de
cação da exploração de recursos naturais (madeira ações que beneficiassem a exploração dos recur-
e palmito), agricultores e pescadores foram expro- sos naturais (construção de estrada, desmatamen-
priados, o que acentuou a pobreza da população to e loteamentos). Estes foram considerados os
local. Paralelamente, a superexploração dos recur- principais responsáveis pela degradação ambien-
sos pesqueiros por meio da pesca predatória e ile- tal em Guaraqueçaba, não somente por suas ati-
gal realizada no estuário acarretou a redução dos vidades produtivas diretas (madeira, palmito, bú-
recursos que abasteciam as comunidades de pesca- falo), como também pelos efeitos da grilagem
dores (Fundação SOS pró-Mata Atlântica, 1986). (Teixeira, 2004). Ao expropriar os pequenos agri-
A proteção ambiental em Guaraqueçaba ins- cultores, a ocupação provocava o êxodo rural e o
tituiu a conservação do meio natural em um espa- deslocamento da pequena agricultura para terras
ço caracterizado por sérios problemas econômi- menos férteis e mais “frágeis”, agravando os pro-
cos e sociais5 e insatisfatoriamente atingido por blemas ambientais e sociais da região (Miguel,
políticas e programas de desenvolvimento esta- 1997). A pequena agricultura não era considerada
duais e federais (Miguel, 1997). Ela se tornou mais responsável direta pela degradação, ainda que a
um obstáculo para a maior parte da sociedade lo- legislação fosse, sobre ela, aplicada. Refletindo
cal, na medida em que restringiu o uso dos recur- a postura do governo do estado (1982-1985) de
sos naturais necessários à produção e à comple- defesa da pequena agricultura familiar e envol-
mentação das atividades produtivas da população vendo-se com a questão fundiária local, os técni-
(Miguel, 1997; Miguel e Zanoni, 1998). cos do órgão ambiental atuantes em Guaraqueça-
A história desse processo teve períodos dis- ba conseguiram articular as causas social e
tintos, nos quais se apresentaram diferentes agen- ambiental (Teixeira, 2004).
tes e concepções sobre a proteção ambiental e Nos anos de 1990, o órgão ambiental federal
sobre o desenvolvimento da sociedade local (Tei- (Ibama), em parceria com ONGs, intensificou
xeira, 2004). suas ações em Guaraqueçaba, procurando efeti-
No período que corresponde à década de var a implantação da APA (novo zoneamento, pla-
1980, a proteção caracterizou-se por ações no sen- no de gestão, organização dos grupos de trabalho
tido de implantar unidades de conservação na re- etc.). Ao mesmo tempo, o órgão ambiental esta-
gião (construção da sede, zoneamento, entre ou- dual afastava-se da gestão da APA, desligando-se
tros). O órgão ambiental federal (Sema, Ibama), em 2000.
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ção. Nesse sentido, as ações junto à população implantação de tecnologias visando à conserva-
deveriam desenvolver a racionalização do uso ção, na articulação institucional para planejamen-
dos recursos naturais, e a população deveria “re- to e execução das ações, além de desenvolver
ceber preparação adequada para esse convívio ações comunitárias e de educação ambiental
em novas bases com a natureza” (Idem, p. 12), o (SPVS, 1995a e b). Tais projetos atendiam, tam-
que justificou o empenho no desenvolvimento da bém, aos objetivos estabelecidos nos Planos Ope-
educação ambiental. racionais Anuais (POA) do Ibama (educação am-
É importante observar que a SPVS é uma biental, diagnóstico cultural, desenvolvimento
ONG voltada à conservação ambiental7 que se de- comunitário e conservação do estuário).
parou com a necessidade de considerar a socie- Outros projetos ainda foram realizados, en-
dade local como parte deste processo. Os finan- volvendo parcerias e recursos de programas na-
ciadores de seus projetos e seus parceiros exigiam cionais, como o PROBIO, ou internacionais (TNC,
a avaliação dos múltiplos aspectos envolvidos na Philipp Moris, WWF), em que se previam a orga-
gestão da conservação, particularmente dos as- nização comunitária para a execução de soluções
pectos socioeconômicos e culturais da população técnicas, a ostreicultura, a recuperação florestal, a
local. O Diagnóstico e o Plano de Gestão assim o proteção de espécies em extinção, a sistematiza-
fizeram. Eles abrangeram em sua pesquisa a his- ção de informação, entre outras ações.
tória da ocupação de Guaraqueçaba, a pobreza Vale dizer que a ação voltada à população
local, a legislação ambiental inadequada e a falta mais significativa e aceita pela SPVS era a educa-
de regularização fundiária, mas, ao trazer a popu- ção ambiental. Elaborado por biólogos (SPVS,
lação para o processo de proteção na APA, os as- 1995b), o projeto educacional refletia os objetivos
pectos sociais foram diluídos dentro do contexto definidos desde o início, ou seja, a preparação da
prioritário da conservação do meio natural. O de- população para aceitar as bases de constituição da
senvolvimento socioeconômico, a melhoria da APA. Em contrapartida, a auto-organização das co-
qualidade de vida e a regularização fundiária são munidades era vista com reservas, uma vez que a
mudanças que deveriam ocorrer para o sucesso elaboração da solução técnica, a partir do conheci-
da conservação, de acordo com as observações mento científico, não requeria participação da po-
relativas à sustentabilidade limitada. No entanto, pulação, que, assim deveria se adequar às soluções
deixou-se de dar atenção à pobreza e/ou à exclu- propostas (Teixeira, 2004). No entanto, por exigên-
são social em si, essas questões passaram a ser re- cias contratuais, foram executados projetos relati-
feridas em função da conservação ambiental. As vos a estudos e organização de populações tradi-
soluções restringiram-se, dessa forma, à apropria- cionais localizadas nas ilhas, mas os resultados e as
ção de técnicas de uso dos recursos naturais. discussões sobre o papel da população local na
Na medida em que as características que de- proteção ambiental se realizaram de maneira não
finem a especificidade da sociedade não foram articulada às principais ações de conservação. Em
consideradas devidamente, submeteu-se o que era virtude da própria constituição e dos objetivos da
singular ao rol de soluções técnicas para a conser- ONG em questão, havia dificuldade em aceitar a
vação ambiental. Não houve uma concepção sociedade (cultura, interesses de grupos sociais)
construída sobre a inter-relação que se estabelece como agente, e não somente como subordinada,
entre sociedade e natureza, na perspectiva da in- da conservação. Essa visão estendia-se ao trabalho
terdependência e da autonomia desses sistemas. de cientistas sociais, e suas propostas no quadro
Ou seja, ao não ser considerada em sua especifi- técnico não eram muito aceitas (Idem).
cidade, a sociedade tornou-se “naturalizada”. Considerando em particular a pequena agri-
A partir do Plano Integrado, a SPVS elabo- cultura, as ações propostas pelo Plano Integrado
rou o Programa Guaraqueçaba, o qual fez parte envolviam desde a revisão da legislação, especial-
do convênio estabelecido entre o Ibama e a SPVS mente o Decreto Mata Atlântica, até pesquisas so-
em 1994, para a co-gestão da APA de Guaraque- bre os sistemas de produção. O único projeto vol-
çaba (Convênio 14/94).8 Ele foi constituído por tado exclusivamente à pequena agricultura foi o
projetos distintos que atuavam na pesquisa e na projeto “Viabilidade Agropecuária”, que, posteriro-
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mente, recebeu uma outra denominação: “Difusão vação foi considerada, pela primeira vez, mais um
de tecnologias na região de Guaraqueçaba”. Em obstáculo ao desenvolvimento local: “Foi imposta
relação às práticas agrícolas tradicionais, a posição à população e empresários locais [receberam] ao
do Plano Integrado foi taxativa: “o desmatamento longo dos últimos 10 anos o estigma das precárias
e a intensificação do solo, como elementos predo- condições socioeconômicas às quais a população
minantes dos modelos tradicionais de desenvolvi- local [estava] submetida” (Paraná, Sema, 1995, p.
mento são absolutamente rejeitados como formas 50).
de atividade econômica” (SPVS, 1992, p. 12). A Observa-se, contudo, que esse documento
saída proposta, realizada em convênio com outras não representou um consenso em torno da con-
ONGs, foi a difusão de alternativas tecnológicas servação em Guaraqueçaba, mas uma sobreposi-
para a produção orgânica e agroflorestal, com o ção de interesses das instituições envolvidas. O
objetivo de melhorar a produtividade da banana e “objetivo superior” do Plano de Gestão era “con-
a renda monetária dos agricultores. O projeto foi servar a diversidade de ambientes, de espécies,
desenvolvido junto aos agricultores da Associação de processos naturais e do patrimônio cultural, vi-
dos Moradores e Pequenos Produtores Rurais de sando o desenvolvimento econômico ambiental-
Batuva, que possuíam melhores condições de pro- mente sustentado das comunidades humanas lo-
dução e comercialização de produtos agrícolas cais e a melhoria da qualidade de vida” (Idem, p.
(SPVS, 1995b), além de uma organização comuni- 59). O “objetivo da gestão” retoma sutilmente o
tária mais estruturada. O principal resultado foi a sentimento de justiça social dos anos de 1980: a
certificação da banana orgânica. “gestão ambiental integrada” deveria estimular
Estabelecidos os referenciais para pensar “atividades econômicas ambientalmente sustentá-
ações de conservação para Guaraqueçaba, defini- veis e socialmente justas” (Idem, ibidem). Para
dos pela SPVS em parceria com o Ibama, o pró- isso, propôs um Programa de Desenvolvimento
ximo passo do Ibama foi a elaboração de um Pla- Sustentável, seguindo as diretrizes internacionais
no de Gestão9 para a APA, em conjunto com a e nacionais sobre o tema.
Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) do Esta foi a primeira vez que um programa
Paraná, em 1994. Com a participação de 26 insti- para Guaraqueçaba utilizou a noção de desenvol-
tuições governamentais e não-governamentais, vimento sustentável que não se restringia ao uso
realizou-se uma Oficina de Planejamento de Pro- sustentável, mas incluía dimensões como a susten-
jetos, na qual se procurou articular o desenvolvi- tabilidade econômica e social e a participação so-
mento socioeconômico à conservação através do cial, como consta na Agenda 21 Global.
uso sustentável dos recursos naturais. O Programa de Desenvolvimento Sustentável
No Plano de Gestão foi dada maior atenção previa regularização fundiária, modificações e
às questões sociais do que àquelas presentes no complementações na legislação, estímulo aos ni-
Plano Integrado, o que se justifica pela participa- chos de mercado (selo, atestado verde, indústria
ção de órgãos estaduais de desenvolvimento e do caseira), práticas de manejo agrícola integradas,
órgão estadual ambiental. Vale lembrar que o de- linha de crédito para os pequenos produtores e
bate em torno da relação entre desenvolvimento incentivo à pesquisa para o desenvolvimento de
e conservação estava fortalecido tanto na esfera tecnologias compatíveis com a proteção. De certa
nacional como internacional, e na Rio-92 a noção forma, a pequena agricultura não foi tratada como
de desenvolvimento sustentável foi oficializada, uma prática incompatível, mas como uma ativida-
refletindo-se nas diretrizes para a implantação de de produtiva que requeria condições estruturais
unidades de conservação sob a perspectiva de para o seu desenvolvimento, ainda que subordi-
uso sustentável dos recursos naturais. nado à conservação.
A idéia de que a pobreza da população lo- O sentido de desenvolvimento pode ser ob-
cal era anterior à proteção ambiental, por ausência servado também na proposição do ecoturismo e
de programas de desenvolvimento e pelo isola- nas demais propostas para a viabilização de alter-
mento da região de Guaraqueçaba, foi enfatica- nativas de trabalho, a manutenção da população
mente introduzida no Plano de Gestão. A conser- tradicional, a qualificação de serviços sociais e in-
O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL EM UNIDADE DE CONSERVAÇÃO 61
fra-estrutura, para as quais se poderiam usar os pectiva que não a da “naturalização” da socieda-
recursos advindos do ICMS ecológico. de; as condições para a sua superação residiriam
Contudo, o Plano de Gestão, incluindo o para além da idéia de uso sustentável dos recur-
Programa de Desenvolvimento Sustentável, não sos naturais.
foi executado por falta de recursos humanos e fi- Restritas aos agentes da conservação, as
nanceiros das instituições que deveriam arcar com ações que foram desenvolvidas junto à pequena
a sua execução, inclusive dos órgãos estaduais agricultura se mantiveram na esfera das soluções
voltados ao desenvolvimento. Assim, as ações de técnicas para a produção, ainda que fizessem re-
desenvolvimento permanecem até hoje restritas ferência ao aumento da renda e da qualidade de
ao Ibama/SPVS. vida dos agricultores envolvidos. Não houve uma
A única ação prevista e realizada pelo Plano articulação efetiva com análises antropológicas ou
de Gestão foi o Zoneamento da APA de Guara- sociológicas sobre sociedade local, o que levou a
queçaba, a cargo do Instituto de Pesquisa e De- um segundo plano a preocupação com os efeitos
senvolvimento do Paraná (Ipardes), no período (ambientais e sociais) perversos da conservação,
de 1994 a 1997, com recursos do Ibama. Demons- os quais variam de práticas clandestinas de uso
trando maior atenção à sociedade local, o zonea- dos recursos naturais ao aumento da situação de
mento possui um capítulo sobre a população tra- pobreza de alguns agricultores. Como exemplo, a
dicional local elaborado a partir de dois estudos pesquisa realizada por Francisco (2002) descreve
anteriormente realizados para o projeto de co- as conseqüências da introdução da produção de
gestão Ibama/SPVS. Seu resultado foi considerado banana orgânica para nichos de mercado sobre
por essas instituições, muito amplo e pouco dire- uma comunidade de Guaraqueçaba. Romperam-
tivo, uma vez que não definia os usos possíveis se laços e práticas de sociabilidade que garantiam
das diferentes “zonas” da APA (Teixeira, 2004). a sobrevivência daqueles agricultores, cujas con-
Publicado em 2001, o zoneamento não foi ainda dições de produção foram consideradas insufi-
normatizado. cientes para a inclusão na produção orgânica.
Para substituir o Plano de Gestão de 1995, A partir de 2000, novos elementos foram in-
em 1999 o governo do Paraná e o Ibama, em par- troduzidos na condução da gestão da APA de Gua-
ceria com a SPVS, elaboraram o programa Guara- raqueçaba e, definitivamente, o desenvolvimento
queçaba pra frente, Guaraqueçaba sempre: pro- sustentável passou a ser considerado a solução
grama de desenvolvimento sustentável para a para a ocupação humana nessa unidade de con-
Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba. servação. Reiterando, isso ocorreu sob a perspec-
Retirando as referências à justiça social, este pro- tiva da “naturalização” da sociedade.
grama redefiniu os papéis das instituições atuan- No mesmo ano, independentemente do Iba-
tes, cabendo ao Ibama/SPVS o controle da gestão ma, a SPVS adquiriu propriedades em Guaraque-
e das pesquisas e a produção de técnicas adaptadas çaba, formando uma reserva particular para o de-
aos objetivos da conservação (Paraná/Sema/IAP, senvolvimento do projeto de seqüestro de carbono.
1999). Este programa também não foi ainda Ao lado das ações de controle, o plano de ação
executado. elaborado pelas ONGs TNC e SPVS exigia que
Dado o fracasso dessas duas propostas de esta última se responsabilizasse por programas de
ação conjunta (órgãos ambientais e de desenvolvi- desenvolvimento sustentável visando à integração
mento), não houve distribuição de funções entre das comunidades do entorno das reservas ao pro-
os órgãos ambientais e demais instituições volta- jeto de seqüestro de carbono, além da eliminação
das ao desenvolvimento socioeconômico da re- das atividades produtivas e extrativas incompa-
gião. Paralelamente, as raras iniciativas de desen- tíveis com os objetivos do projeto (TNC/SPVS,
volvimento da pequena agricultura por parte do 2000).
governo do estado que chegaram a Guaraqueçaba A SPVS não desenvolveu projeto próprio de
obtiveram resultados pífios (Rodrigues, 2002). desenvolvimento sustentável, mas incrementou as
A distribuição de funções e as ações articu- ações do Pólo de Agroecologia do Litoral do Para-
ladas não garantiriam, por si só, uma outra pers- ná, desenvolvido pela Emater e pela Secretaria de
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Estado de Agricultura e Abastecimento, em parce- A partir das novas propostas e dos progra-
ria com ONGs e outros segmentos da sociedade, a mas implantados em Guaraqueçaba nos últimos
partir de 2000. Seus principais objetivos são: “via- anos, e a partir das experiências realizadas ante-
bilizar a agricultura familiar através do desenvolvi- riormente com a pequena agricultura, a noção de
mento de tecnologias adaptadas para a região, desenvolvimento sustentável foi definitivamente
buscando a integração das atividades agrícolas, apropriada pelos agentes responsáveis pela gestão
conservação do meio ambiente e desenvolvimen- da APA. O desenvolvimento sustentável aqui em-
to social” (Emater, 2003). Observa-se que nesse pregado é o mesmo legitimado na Rio-92, e se en-
projeto a agricultura familiar, e portanto a socieda- quadra na perspectiva da sustentabilidade limitada
de, aparece em primeiro plano se comparada às ou sustentabilidade ponte (Foladori e Tommasino,
idéias de conservação ambiental. 2000), ponte para a conservação ambiental e pon-
Considera-se que a SPVS impulsionou as te para assegurar o sucesso do projeto de seqües-
ações do Pólo, com recursos captados por ela tro de carbono. Tanto este projeto como o próprio
mesma (Bona, 2003 apud Chang, 2004) e introdu- SNUC, ao incorporarem o desenvolvimento sus-
ziu a técnica do Diagnóstico Rural Participativo tentável, extrapolando a idéia de uso sustentável,
(DRP), cujo objetivo é “saber como essas pessoas proporcionaram uma nova situação à gestão da
se relacionam com a floresta e somar ao nosso co- APA (Teixeira, 2004), ainda que não problemati-
nhecimento técnico-científico, já que é mais fácil zassem a noção de desenvolvimento sustentável.
os agricultores adotarem técnicas que estejam Na APA de Guaraqueçaba, os novos rumos
próximas à sua realidade” (O Estado de S. Paulo, podem modificar a relação entre a conservação e
2002). Em uma comunidade agrícola, a SPVS pro- a sociedade local, situando a população como um
pôs associar a banana ao manejo comunitário do elemento não só a ser controlado, mas também a
ser reconhecido e considerado em sua especifici-
palmito, como já havia sido sugerido por estudos
dade e na sua inter-relação com o ambiente, além
não vinculados ao Ibama/SPVS no início dos anos
de ter garantidos seus direitos de decisão sobre o
de 1990 (Miguel e Zanoni, 1998). Segundo Chang
futuro. Contudo, essa mudança ainda está subju-
(2004), a SPVS estaria redefinindo a sua identida-
gada à “vocação” de Guaraqueçaba, para a qual a
de institucional ao incluir tais dimensões em suas
população deve ser preparada. O que surgirá com
ações conservacionistas. Esta redefinição pode ser
a participação da sociedade local neste processo,
explicada a partir da necessidade de adequação
está em construção.
das ações às exigências de seus parceiros e à so-
ciedade local (Teixeira, 2004). Sob o ângulo da
“naturalização” da sociedade evidenciou-se, por Considerações finais
exemplo, que o sucesso do “desenvolvimento lo-
cal” e da conservação depende de condições ma- Para alcançar a conservação ambiental na
teriais e organizacionais de produção, o que a APA de Guaraqueçaba, além do controle da fisca-
maior parte da pequena agricultura em Guaraque- lização e do licenciamento, a solução encontrada
çaba não possui, como mostram os estudos de para a pequena agricultura local, por suas instân-
Miguel (1997) e Rodrigues (2002). cias co-gestoras, partiu da perspectiva da “natura-
Em 2002, as determinações do SNUC come- lização” da sociedade e se restringiu à implanta-
çaram a ser implementadas na APA de Guaraque- ção de técnicas produtivas adequadas aos objetivos
çaba, dentre elas, aquelas cuja orientação era a da conservação. Assim, os problemas decorren-
promoção do desenvolvimento sustentável. A tes das práticas de uso dos recursos naturais da
grande transformação ficou por conta da criação população local sobre a conservação foram re-
do Conselho Deliberativo que vem sendo realiza- duzidos aos efeitos negativos das primeiras so-
do pelo Ibama/SPVS. Esse conselho inclui os re- bre a segunda.
presentantes das comunidades por bacias hidro- Diante de diretrizes internacionais no con-
gráficas, as instituições presentes na APA, assim texto do debate sobre a sustentabilidade e seguin-
como ONGs e universidades (Idem). do princípios conservacionistas e exigências im-
O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL EM UNIDADE DE CONSERVAÇÃO 63
5 Atualmente, mesmo os ganhos elevados de arreca- DIEGUES, A. C. (1998), O mito da natureza into-
dação graças ao recebimento do ICMS ecológico, o cada. 2 ed. São Paulo, Hucitec.
município possui um dos dez piores IDH – Índice _________. (2000), “Etnoconservação da natureza:
de Desenvolvimento Humano do estado do Para- enfoques alternativos”, in _________
ná. (org.), Etnoconservação: novos rumos
6 Ano em que terminou o levantamento de dados para a proteção da natureza nos trópi-
que subsidiou a elaboração deste artigo. cos. São Paulo/Hucitec/NUPAUB-USP.
8 Além dos recursos do PNMA e da FNMA – Fundo FRANCISCO, E. C. (2003), Agricultura familiar
Nacional do Meio Ambiente, esses projetos consta- em área de proteção ambiental: estraté-
ram com um pool de financiadores: O Boticário, gias de reprodução de um modo de
Unibanco, MacArthur Foundation, e USDA Forest vida. Dissertação de mestrado. Curitiba,
Service. Universidade Federal do Paraná.
9 Elaborar um plano de gestão com a participação FOLADORI, G. (1999), Los límites del desarrollo
das demais instituições envolvidas na unidade de sustentable. Montevidéu, Ediciones de
conservação (prefeitura, secretarias de estado etc.) la Banda Oriental – Revista Trabajo e
é uma exigência a ser cumprida para implantação Capital.
da APA. FOLADORI, G. & TOMMASINO, H. (2000), “El
concepto de desarollo sustentable trein-
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O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL EM UNIDADE DE CONSERVAÇÃO 65
MIGUEL, L. & ZANONI, M. (1998), “Práticas agro- RODRIGUES, A. (2002), A sustentabilidade da agri-
florestais – políticas públicas e meio cultura em Guaraqueçaba: o caso da
ambiente: o caso do litoral do estado do produção vegetal. Tese de doutorado em
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(orgs.), Desenvolvimento sustentável: a çaba, Curitiba, out.
66 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 20 Nº. 59
A noção de desenvolvimento sus- The notion of sustainable devel- La notion de développement dura-
tentável é utilizada por órgãos opment is employed by govern- ble est utilisée par des organismes
governamentais e organizações mental and Non-Governmental gouvernementaux et des organisa-
não-governamentais (ONGs) para Organizations (NGOs) to solve tions non gouvernementales pour
solucionar problemas relativos à problems related to human occu- résoudre des problèmes liés à l’oc-
ocupação humana em unidades pation in conservation units. In cupation humaine dans les zones
de conservação. Nesses espaços, these areas there are problems protégées. Dans ces espaces, les
os problemas relativos à articula- between development and conser- problèmes relatifs à l’articulation en-
ção entre desenvolvimento e vation. It arouses debates around tre le développement et la conser-
conservação podem ser obser- the notion of sustainable devel- vation peuvent être observés par
vados, levando à reflexão sobre opment. This paper analyses the l’examen de la pertinence de la
a pertinência da própria noção development proposals – which notion de développement durable.
de desenvolvimento sustentável. includes conservation – to the Cet article analyse les propositions
Este artigo analisa as propostas Environmental Protection Area of de développement alliées à la con-
de desenvolvimento – aliadas à Guaraqueçaba, located in the servation dans le cadre de l’Aire de
conservação – para a Área de north of the state of Paraná, work- Protection Environnementale (APA)
Proteção Ambiental de Guaraque- ing on some elements that concern de Guaraqueçaba, située sur la côte
çaba, localizada no litoral norte do social scientists. Among these ele- Nord de l’État de Paraná (Brésil). Il
Paraná, identificando alguns ele- ments, we take notice that in the identifie quelques éléments qui in-
mentos que interessam particular- proposals to solve environmental téressent particulièrement les spé-
mente ao cientista social. Entre problems caused by local agri- cialistes en sciences sociales, parmi
eles, a “naturalização” da sociedade culture, there is a process of nat- lesquels la «naturalisation» de la so-
presente na proposição de solu- uralization of the society. ciété, présente dans la proposition
ções para os “impactos” ambien- de solutions pour les impacts envi-
tais causados pela pequena agri- ronnementaux causés par l’agricul-
cultura local. ture locale.