1. Introdução e metodologia
Este artigo reúne algumas das reflexões que venho desenvolvendo a partir de minha
pesquisa de doutoramento sobre a tradição cultural do reisado na comunidade rural Cipó de
Baixo, no município de Pedro II. Procuro discutir sobre o significado dessa prática cultural
para os moradores daquela comunidade e como, através dela, homens e mulheres da zona
rural se relacionam com o projeto da modernidade. A tradição do reisado passa por
mudanças que, de alguma maneira, respondem às pressões do projeto de modernidade.
Nesse percurso, tenho feito estudos teóricos sobre a categoria cultura. A partir de
revisão bibliográfica sobre estudiosos da cultura e das teorias mais recentes propostas pelos
estudos culturais, revejo os principais aportes conceituais de cultura e procuro discutir
novas possibilidades de compreensão das práticas culturais. Este artigo reúne, portanto, as
conclusões desse estudo bibliográfico.
2. Resultados obtidos
Nosso ponto de partida são aqueles teóricos que reescrevem as pesquisas sobre
cultura, que buscam “considerar a cultura em sentido amplo, antropológico, de passar de
uma reflexão centrada sobre o vínculo cultura-nação para uma abordagem da cultura dos
grupos sociais” (Mattelart, 2004, p. 13 e 14). Os Estudos Culturais, nome como se
consagrou essa corrente de novos pensamentos sobre a cultura, propuseram primeiramente
a crítica da cultura-nação. Anteriormente, havia uma vinculação imediata e inquestionável
entre nação e cultura, como se as formas culturais se prendessem a essa determinação do
Estado-nação. Inúmeras pesquisas brasileiras, por exemplo, reportam-se à cultura nacional
brasileira. Assim, temos Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, entre outros.
2
Os estudos culturais vêm recordar que a dinâmica cultural das nações e grupos
percorrem processos de troca e mestiçagem cultural. Contrariam qualquer ideal de uma
cultura pura ou substancial. Entendem, pelo contrário, que as culturas não possuem
substância (como a substância brasileira ou uma possível substância piauiense). Pelo
contrário, as culturas são relacionais, conflituosas e dinâmicas. Se há alguma natureza
cultural é a própria ausência de um princípio ordenador geral das culturas: elas são
plásticas e flexíveis. O “futebol” é de origem inglesa, mas consagrou-se no Brasil como
principal prática esportiva. E mais, se nos grandes centros econômicos, se consagra em
grandes clubes como negócio milionário, nas ruas, campinhos de areia e nas quadras
esburacadas consagram-se como formas espontâneas de lazer, criatividade e identidades
para crianças e jovens. O “carnaval” é brasileiro mas tem tantas combinações e sabores
locais que poderíamos denominá-lo como carnavais. “Deus é brasileiro”? Não sei, mas
certamente Ele está logo cedo numa igreja, visita um antigo supermercado para espantar
demônios e outros espíritos maledicentes, reúne-se mais tarde com espíritos e homens
numa mesa de orações e termina o dia, madrugada a dentro, brincando e dançando sob o
ritmo forte de tambores, orixás e tantas outras manifestações religiosas.
Logo, as criações humanas se comunicam, misturam-se de modos singulares
conforme os grupos e as pressões externas. Assim, as culturas não obedecem a fronteiras
espaciais ou temporais. Não estão sujeitas às limitações de nação ou de raça. Tampouco
reproduzem valores essenciais de antigas tradições como um princípio trans-histórico. As
culturas são abertas continuamente ao diálogo e às trocas. A dinâmica das identidades e
formações culturais é totalmente descentrada – não segue um centro duro e auto-referencial
que orienta toda trajetória cultural. Veja o que vem acontecendo com a música brasileira
ou com a tradição sempre reinventada das festas juninas. As práticas culturais trocam,
intercambiam-se, conflituam-se, metamorfoseiam-se permanentemente.
Mas, certamente que há um movimento que construiu e continua elaborando a
“cultura nacional”. Pois cultura nacional, com o advento dos Estados modernos,
transformou-se numa questão de hegemonia política. É a modernidade capitalista e
democrática que cria a necessidade de auto-representar-se culturalmente. A nação
democrática seria aquela resguardada pela unidade: unidade econômica, política e cultural.
A unidade cultural garantiria o espírito nacional. Assim, cada Estado possuiria uma cultura
nacional. As sociedades modernas se voltam para a institucionalização de valores, atitudes,
rituais e símbolos nacionais.
3
chuva e frio, sem certeza do quanto ganharão e como serão recebidos, outros aproveitam
esse período para ir a festas, bares ou simplesmente brincar e namorar: aquela prática
identitária entra em choque com interesses econômicos e expectativas consagradas de que
para divertir-se um indivíduo deve consumir as inúmeras mercadorias de lazer e diversão
que o mundo moderno oferece.
Estamos, desse modo, no campo da política cultural. Em oposição à cultura massiva
hegemônica, os pequenos grupos e comunidades que recriam suas tradições colocam-se
num campo de tensões e conflitos de identidades. Referenciais diferentes daqueles
hegemônicos são propostos como outros padrões possíveis de vida social: valores, atitudes,
expectativas, trocas sociais diferentes são experimentados legitimamente por grupos e
comunidades. Certamente que, por não fazerem parte da cultura da modernidade, sofrem
censuras, suspeitas e exclusões.
Contudo, é oportuno destacar que não se trata aqui de uma oposição mecânica entre
identidade popular e cultura de massa. Aspectos da cultura de massa se fazem presentes
nas mais diferentes identidades sociais e vice-versa. Por essa razão, o campo da política
cultural vivido nesse universo se revela bastante particular e complexo: não são simples
oposições estanques tampouco implica na mecânica sobreposição da cultura de massa
sobre as subordinadas identidades sociais. Ao se problematizar práticas culturais
identitárias tradicionais ou as novas culturas identitárias estamos colocando em discussão
também as inúmeras mediações entre os outros culturais e o modelo hegemônico de cultura
moderna.
Outro elemento a se destacar é o fato de que viver uma identidade compreende
construí-la também. A identidade de um determinado grupo cultural não está naturalmente
dada; ela é construída por meio de escolhas e confrontos. As tradições são reinventadas,
novos valores e representações sobre o mundo instituídas. A modernidade circunda esses
grupos de identidade permanentemente por meio das novas gerações mais susceptíveis, dos
meios tecnológicos e informacionais, pelas políticas de Estado, etc. Desse modo,
identidade e processo de identificação se confundem num contínuo processo de idas e
vindas, de oposições e sínteses, de mediações e resistências. Não há uma identidade
essencial: há identidade em construção.
Quando um certo indivíduo se reconhece como um “careta” do reisado, ele assume
certos compromissos sociais, transforma seu status social dentro da comunidade, reafirma
certos valores e convicções sociais, enfim, passa a interagir com o mundo de um modo
8
3. Conclusão
4. Referências bibliográficas
ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional II: danças, recreação e música. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.
AYALA, Marcos & AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil. São Paulo:
Ática, 2006.
11
BARROS, Aidil de Jesus Paes de & LEHFELD, Neide Aparecida de Souza. Projeto de
pesquisa: propostas metodológicas. Petrópolis: Vozes, 1990.
BOSI, Ecléa. Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias. Petrópolis: Vozes,
2008.
BOSI, Alfredo. “Cultura como tradição” in: BORNHEIM, Gerd e BOSI, Alfredo. Cultura
brasileira: tradição/contradição. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
CHAVES, Joaquim R. F. Obras completas. Teresina: Ed. Fund. Cult. Mons. Chaves, 1991.
DA MATTA, Roberto. “Para uma antropologia da tradição brasileira (ou: a virtude está no
meio)” in: Conta de mentiroso: sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de Janeiro:
Rocco, 1993.
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História oral – memória, tempo, identidades. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
___________. “Quem precisa da identidade?” In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Identidade
e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2007.
MATTELART, Armand e NEVEU, Érik. Introdução aos estudos culturais. São Paulo:
Parábola Editorial, 2004.
14
MENDES, José Manuel Oliveira. “O desafio das identidades” IN: SANTOS, Boaventura
de Sousa (org.). A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002.
NUNES, Maria Cecília Silva de Almeida. “Revisitando a cultura popular no Piauí: marcas
do passado nas manifestações do presente” In: SANTANA, Raimundo Nonato Monteiro
de. Apontamentos para a história cultural do Piauí. Teresina: Fundapi, 2003.
ORTIZ, Renato. Um outro território: ensaios sobre a mundialização. São Paulo: Ed. Olho
d’Água, 2005.
PENNA, Maura. O que faz ser nordestino: identidades sociais, interesses e o “escândalo”
Erundina. São Paulo: Cortez, 1992.
SOUSA FILHO, Alípio de. Medos, mitos e castigos: notas sobre a pena de morte. São
Paulo: Cortez, 1995.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória coletiva e teoria social. São Paulo:
Annablume, 2003.
15
SOARES, Valmir do Nascimento. Garrote coração: tradição, arte e cidadania. Pedro II:
Departamento de Geografia, 2006. 67 p. (mimeo)
SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.
Petrópolis: Vozes, 2007.