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CULTURA E IDENTIDADES

Luciano de Melo Sousa


Orientador: Luiz Assunção
Professor Assistente da Uespi
(doutorando em Ciências Sociais – UFRN)

1. Introdução e metodologia

Este artigo reúne algumas das reflexões que venho desenvolvendo a partir de minha
pesquisa de doutoramento sobre a tradição cultural do reisado na comunidade rural Cipó de
Baixo, no município de Pedro II. Procuro discutir sobre o significado dessa prática cultural
para os moradores daquela comunidade e como, através dela, homens e mulheres da zona
rural se relacionam com o projeto da modernidade. A tradição do reisado passa por
mudanças que, de alguma maneira, respondem às pressões do projeto de modernidade.
Nesse percurso, tenho feito estudos teóricos sobre a categoria cultura. A partir de
revisão bibliográfica sobre estudiosos da cultura e das teorias mais recentes propostas pelos
estudos culturais, revejo os principais aportes conceituais de cultura e procuro discutir
novas possibilidades de compreensão das práticas culturais. Este artigo reúne, portanto, as
conclusões desse estudo bibliográfico.

2. Resultados obtidos

Nosso ponto de partida são aqueles teóricos que reescrevem as pesquisas sobre
cultura, que buscam “considerar a cultura em sentido amplo, antropológico, de passar de
uma reflexão centrada sobre o vínculo cultura-nação para uma abordagem da cultura dos
grupos sociais” (Mattelart, 2004, p. 13 e 14). Os Estudos Culturais, nome como se
consagrou essa corrente de novos pensamentos sobre a cultura, propuseram primeiramente
a crítica da cultura-nação. Anteriormente, havia uma vinculação imediata e inquestionável
entre nação e cultura, como se as formas culturais se prendessem a essa determinação do
Estado-nação. Inúmeras pesquisas brasileiras, por exemplo, reportam-se à cultura nacional
brasileira. Assim, temos Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, entre outros.
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Os estudos culturais vêm recordar que a dinâmica cultural das nações e grupos
percorrem processos de troca e mestiçagem cultural. Contrariam qualquer ideal de uma
cultura pura ou substancial. Entendem, pelo contrário, que as culturas não possuem
substância (como a substância brasileira ou uma possível substância piauiense). Pelo
contrário, as culturas são relacionais, conflituosas e dinâmicas. Se há alguma natureza
cultural é a própria ausência de um princípio ordenador geral das culturas: elas são
plásticas e flexíveis. O “futebol” é de origem inglesa, mas consagrou-se no Brasil como
principal prática esportiva. E mais, se nos grandes centros econômicos, se consagra em
grandes clubes como negócio milionário, nas ruas, campinhos de areia e nas quadras
esburacadas consagram-se como formas espontâneas de lazer, criatividade e identidades
para crianças e jovens. O “carnaval” é brasileiro mas tem tantas combinações e sabores
locais que poderíamos denominá-lo como carnavais. “Deus é brasileiro”? Não sei, mas
certamente Ele está logo cedo numa igreja, visita um antigo supermercado para espantar
demônios e outros espíritos maledicentes, reúne-se mais tarde com espíritos e homens
numa mesa de orações e termina o dia, madrugada a dentro, brincando e dançando sob o
ritmo forte de tambores, orixás e tantas outras manifestações religiosas.
Logo, as criações humanas se comunicam, misturam-se de modos singulares
conforme os grupos e as pressões externas. Assim, as culturas não obedecem a fronteiras
espaciais ou temporais. Não estão sujeitas às limitações de nação ou de raça. Tampouco
reproduzem valores essenciais de antigas tradições como um princípio trans-histórico. As
culturas são abertas continuamente ao diálogo e às trocas. A dinâmica das identidades e
formações culturais é totalmente descentrada – não segue um centro duro e auto-referencial
que orienta toda trajetória cultural. Veja o que vem acontecendo com a música brasileira
ou com a tradição sempre reinventada das festas juninas. As práticas culturais trocam,
intercambiam-se, conflituam-se, metamorfoseiam-se permanentemente.
Mas, certamente que há um movimento que construiu e continua elaborando a
“cultura nacional”. Pois cultura nacional, com o advento dos Estados modernos,
transformou-se numa questão de hegemonia política. É a modernidade capitalista e
democrática que cria a necessidade de auto-representar-se culturalmente. A nação
democrática seria aquela resguardada pela unidade: unidade econômica, política e cultural.
A unidade cultural garantiria o espírito nacional. Assim, cada Estado possuiria uma cultura
nacional. As sociedades modernas se voltam para a institucionalização de valores, atitudes,
rituais e símbolos nacionais.
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Um interessante trabalho que bem ilustra esse interesse do Estado moderno em


estimular um ideal de nacionalidade ou “nação” é o trabalho da pesquisadora Maria Cecília
Fonseca, “Patrimônio em processo” (2005). Sua tese de doutoramento apresenta, entre
outras idéias, a de que o Estado burguês se consolida ideologicamente à medida que erige
uma política de patrimônio: “A questão do patrimônio se situa numa encruzilhada que
envolve tanto o papel da memória e da tradição na construção de identidades coletivas,
quanto os recursos a que têm recorrido os Estados modernos na objetivação e legitimação
da idéia de nação” (Fonseca, 2005, p. 51). Não só na sua formação mas até
contemporaneamente, os Estados burgueses procuram estimular a preservação patrimonial
em favor de uma simbólica da nacionalidade ou do povo nacional.
Outros trabalhos instigantes que discutem as relações entre cultura e nação são os
de Marilena Chauí, “Conformismo e resistência”, e de Renato Ortiz, “Cultura brasileira &
Identidade Nacional”. Chauí discute, entre outros temas, como a ideologia “verde e
amarelo” reclama um princípio de unidade à nação brasileira e, nos anos de Copa do
Mundo, a ideologia “verde e amarelo” reinventa-se e fortalece-se. Ortiz estuda como no
século XX o Estado brasileiro interfere na produção de uma cultura nacional. Ambos
reconhecem a força do Estado na reprodução de discursos e práticas identitárias nacionais.
Sob o peso ou não desse processo histórico de formação e consolidação do Estado
moderno, as ciências humanas enveredaram pelo estudo das culturas na defesa de um
princípio de uma unidade integradora ou de um princípio de uma totalidade. Cultura é um
sistema articulado de valores, crenças, idéias, ritos, atitudes, juízos, etc., que,
necessariamente, fazem parte de uma totalidade – e a “nação” personificaria bem essa idéia
de totalidade. O que, de algum modo, garante a sistematicidade ou o “caráter” de cultura,
seria a totalidade social: sociedade Nuer, sociedade brasileira ou qualquer outra. Cada
sociedade apresentaria uma cultura.
Paul Gilroy define esses estudos como “concepções superintegradas de cultura” ou
de “nacionalismo cultural” (2001, p. 35). Nelas está pressuposto um essencialismo cultural
que marca toda cultura. Mas como pensar a participação do povo negro numa modernidade
marcada por culturas essencializadas, problematiza o pesquisador? Como pensar as trocas
culturais entre norte-americanos e negros africanos? Como pensar a crioulização das
culturas durante a formação das nações modernas? Haveria tão somente a oposição radical
entre formações culturais distintas: a branca e a negra? Ou, de outro modo, não há somente
radicalizações e oposições “raciais”, há mediações, ora conflituosas, ora de mestiçagem?
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Gilroy é partidário da tese da “crioulização”. Contudo, como é possível cogitar uma


cultura crioulizada? Não haveria aí um contrasenso? Se perseverar o paradigma do
“nacionalismo cultural” não é possível tal cogitação. Como explicar os múltiplos processos
de interação entre o branco europeu e o negro africano? Opta-se pela visão totalizadora de
cultura que a toma como unidade e indiferenciada ou a implode em múltiplos arranjos
culturais?
Assim, os estudos culturais desconstroem o princípio de uma unidade espacial para
as culturas – o mito da cultura nacional – bem como o mito da essencialidade cultural – a
cultura negra, a cultura branca, ou, em formas ainda piores de essencialismo, a raça negra,
a raça branca, a raça indígena. O tempo demonstra que essas unidades espaciais
determinantes ou que esses essencialismos culturais como a raça negra ou a cultura do
homem ou cultura da mulher não passam de visões precárias da complexidade cultural. E
como essa outra categoria – o tempo – é reinventada pelos estudos culturais para construir
uma contracultura da cultura moderna?
O tempo não é algo progressivo e linear. Não há um sentido inevitável para a
história como apregoavam os arautos da modernidade que seria o “desenvolvimento
capitalista”. A história se reinventa, cria trajetórias singulares, está repleta de trocas,
contradições sociais e relações de poder. Quem pode definir aqui o futuro das inúmeras
tradições culturais piauienses? É tão somente a sua destruição? Assim estaríamos pensando
de acordo com essa idéia de uma temporalidade linear que nos levaria necessariamente ao
desenvolvimento da modernidade capitalista onde tradições como o boi, o reisado, a
umbanda, o congo, a festa do divino, as novenas e tantas outras não teriam espaço.
Gilroy reclama a urgência de rever noções fundamentais para pensar cultura que
são “espaço” e “tempo”. O espaço não é mais aquele nacional tampouco o tempo é aquele
progressivo e cronológico aprisionado ao estudo das origens ou da evolução das
instituições. As criações humanas não se enclausuram dentro dessas barreiras. Pelo
contrário, e particularmente na “diáspora” negra, tempo e espaço são rompidos no sentido
da projeção de novas criações culturais. Essas novas criações culturais ele as denomina em
seus estudos sobre as combinações culturais dos africanos com o mundo moderno como
“Atlântico Negro”.
Importante destacar que seu projeto é compreender não mais a cultura como uma
unidade espaço-temporal. Pelo contrário, a cultura é fragmentada, dispersa. Desde a
memória da escravidão e a oralidade, a música negra e a literatura negra, o trabalho
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escravo e o trabalho precarizado, os negros vivem experiências culturais diversas em


tempos e espaços. Experiências culturais essas não mais orientadas por uma pseudo-pureza
racial africana. Quando os africanos vieram escravizados para a América e passaram a
interagir com esse novo espaço e esse novo tempo não somente se modificaram como
modificaram o mundo a sua volta. Ele cita o exemplo da música negra norte-americana:
quantas misturas se observam naquilo que seria A música negra. Não se trata mais de
música negra ou música branca, mas processos culturais que influenciam e são
influenciados, resistem e são contaminados pelos outros. Pureza cultural é mais um mito
cultural do que um fato real.
Por essa razão, seria defensável a subversão do conceito “cultura” por “formas
culturais”, ou práticas culturais. Desse modo, ao estudar “o atlântico negro” (apesar da
expressão estar no singular e ser antecedida pelo artigo definido), Gilroy almeja estudar
formas várias da materialização cultural negra, particularmente no atlântico negro
setentrional (Estados Unidos e Inglaterra).
Paul Gilroy traça a história negra na modernidade a partir da ressignificação de
experiências históricas e culturais onde negros e brancos, apesar das polarizações dadas
pelo projeto moderno (escravismo, proletarização e discriminação étnica), são estudados e
interpretados pelas relações contraditórias entre os mesmos e não pela simples polaridade.
Não há uma coisificação do negro e do branco como categorias culturais totais e unitárias;
pelo contrário, são construções sociais em constante processo de interação e recriação.
Refere-se a “... uma história de hibridação e mesclagem que inevitavelmente desaponta o
desejo de pureza cultural e, portanto, de pureza racial, qualquer que seja sua origem”
(ibidem, p. 372 – negritos nossos).
O sentido de história é revisto pela idéia de mesclagem e trocas culturais. Nessa
concepção não existem culturas puras (seria um contra-senso). Há incorporações,
reinterpretações, invenções e trocas. Defende uma “contra-história” (ibidem, p. 15) capaz
de apropriar-se da “trans-cultura negra” (ibidem, p. 15): uma cultura que não é africana
tampouco moderna. Uma cultura viva nas lutas políticas dos movimentos políticos negros,
na black music, nas memórias orais, nas tradições várias, na participação do mercado
mundial, etc. Não há um espaço próprio nem protagonistas preferenciais – o mito
essencialista da “raça” negra. Gilroy é radicalmente contrário a essencialismos como o de
“raça”. A história é trans-cultural e relacional.
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Reforça a tese da “lógica cultural da combinação” (ibidem, p. 21) onde


sobrevivências intactas de traços culturais pretéritos ou a manipulação de uma possível
pureza racial são indefensáveis. Ainda mais que a partir da modernidade a celeridade e
intensidade das trocas econômicas, sociais e culturais acirraram-se. A lógica da
combinação “... frisa uma reconceitualização da cultura a partir do sentimento de sua
desterritorialização” (ibidem, p. 22). Não há culturas centradas, mas “culturas viajantes”
(ibidem, p. 22). Negros e brancos, tradicionais e modernos, popular e nacional, todas essas
formas culturais existem como formas viajantes (ambíguas, trocadas, relacionais). Não há
substancialismos, mas culturas em processos e em trocas permanentes.
Nesse sentido, é fácil entender que os movimentos de identidade cultural superaram
as referências nacionais ou raciais, os seus essencialismos em favor de culturas locais,
culturas de grupos, culturas de gênero, culturas de movimentos e tantas outras culturas.
Movimentos de negros, mulheres, homossexuais, ambientalistas, jovens, artistas,
trabalhadores os mais diversos, religiões várias, grupos e partidos políticos colocaram em
cena novas formas de auto-representação cultural. Não se trata mais de uma cultura
nacional ou regional, mas de como segmentos diferentes da sociedade se percebem como
sujeitos de uma certa história, como sujeitos de uma certa cultura.
Os discursos de identidade estabelecem referenciais sociais que afirmam o que
certas mulheres, o que certos negros, o que certos homossexuais, o que certos
ambientalistas, o que certos jovens, o que certos artistas são e o que não são. À medida que
eles passam a reproduzir aqueles referenciais passam a existir no mundo como
determinados sujeitos sociais, ou seja, sujeitos de uma identidade determinada. Se possuo
uma identidade, diferencio-me de tantas outras: se sou “gay”, tenho um sistema de crenças,
relações sociais e expectativas sociais diferentes daqueles que não o são; se sou jovem do
movimento ou apaixonado pelo hip-hop adquiro um novo conjunto de atitudes e
expectativas sociais.
Assim, processos de identidade e diferença são mutuamente dependentes. Grupos
específicos ao se posicionarem socialmente como sujeitos de uma dada tradição cultural
(antiga, reinventada ou nova) assumem uma identidade por sua diferenciação em relação
aos demais. Sou assim porque não sou como os outros. E, ao se instaurar o binômio
identidade-diferença, relações de poder e conflito são estabelecidas. Quando um grupo
opta por eleger certos referenciais próprios de identificação entra em choque com aqueles
já estabelecidos. Por exemplo, enquanto os brincantes do reisado saem pelas casas, sob
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chuva e frio, sem certeza do quanto ganharão e como serão recebidos, outros aproveitam
esse período para ir a festas, bares ou simplesmente brincar e namorar: aquela prática
identitária entra em choque com interesses econômicos e expectativas consagradas de que
para divertir-se um indivíduo deve consumir as inúmeras mercadorias de lazer e diversão
que o mundo moderno oferece.
Estamos, desse modo, no campo da política cultural. Em oposição à cultura massiva
hegemônica, os pequenos grupos e comunidades que recriam suas tradições colocam-se
num campo de tensões e conflitos de identidades. Referenciais diferentes daqueles
hegemônicos são propostos como outros padrões possíveis de vida social: valores, atitudes,
expectativas, trocas sociais diferentes são experimentados legitimamente por grupos e
comunidades. Certamente que, por não fazerem parte da cultura da modernidade, sofrem
censuras, suspeitas e exclusões.
Contudo, é oportuno destacar que não se trata aqui de uma oposição mecânica entre
identidade popular e cultura de massa. Aspectos da cultura de massa se fazem presentes
nas mais diferentes identidades sociais e vice-versa. Por essa razão, o campo da política
cultural vivido nesse universo se revela bastante particular e complexo: não são simples
oposições estanques tampouco implica na mecânica sobreposição da cultura de massa
sobre as subordinadas identidades sociais. Ao se problematizar práticas culturais
identitárias tradicionais ou as novas culturas identitárias estamos colocando em discussão
também as inúmeras mediações entre os outros culturais e o modelo hegemônico de cultura
moderna.
Outro elemento a se destacar é o fato de que viver uma identidade compreende
construí-la também. A identidade de um determinado grupo cultural não está naturalmente
dada; ela é construída por meio de escolhas e confrontos. As tradições são reinventadas,
novos valores e representações sobre o mundo instituídas. A modernidade circunda esses
grupos de identidade permanentemente por meio das novas gerações mais susceptíveis, dos
meios tecnológicos e informacionais, pelas políticas de Estado, etc. Desse modo,
identidade e processo de identificação se confundem num contínuo processo de idas e
vindas, de oposições e sínteses, de mediações e resistências. Não há uma identidade
essencial: há identidade em construção.
Quando um certo indivíduo se reconhece como um “careta” do reisado, ele assume
certos compromissos sociais, transforma seu status social dentro da comunidade, reafirma
certos valores e convicções sociais, enfim, passa a interagir com o mundo de um modo
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bastante particular. Tanto a sua existência social como individual transformam-se


radicalmente.
Contudo, ao fazer parte de um determinado processo de “identificação social”,
outras redes de identidade social não são eliminadas. Os brincantes do reisado continuam
sendo “brasileiros”, “agricultores”, “homens” e “mulheres”, “consumidores” etc. Ao
escolher um sistema de representações e práticas sociais como componentes de uma
identidade social, os brincantes do reisado (por exemplo) optam por valorizar certas
dimensões de sua vida: a sua inserção no vasto mundo da sociedade passa,
necessariamente, por essa forma de pertencimento social e cultural. Esta não é
negligenciada pois transforma-se numa forma de estar no mundo. Mas os outros padrões de
identidade permanecem atuando e, certamente, mantendo relações conflituosas quando
questionadas pelo padrão de identidade do brincante do reisado.
Feitas essas provocações sobre cultura e identidade, quero levá-las a um outro
ambiente. Quero reportar-me a minha pesquisa de doutoramento que investiga a tradição
do reisado da comunidade rural Cipó de Baixo, no município de Pedro II. Uma tradição
viva, contraditória e em processo de continuada reinvenção frente ao padrão cultural
hegemônico da modernidade.
A brincadeira do reisado da comunidade Cipó vive mudando: seus atores vêm
assumindo novos papéis, os percursos de encenação da brincadeira se estreitam,
“contratantes” e platéia transformam as expectativas frente à brincadeira. O que se verifica
é uma dinâmica inquietante e aparentemente incompreensível. A alusão corrente ao
passado da brincadeira pelos mais velhos, as opiniões divergentes sobre a organização da
brincadeira entre o dono do reisado – Raimundo Milú – e seus filhos, o envolvimento
diferenciado dos “contratantes” da brincadeira (os “capitães”), modificações na encenação
da brincadeira, tudo isso sinaliza uma recriação na brincadeira do reisado, uma recriação
naquele sistema de referências culturais daquelas pessoas.
A brincadeira do reisado da comunidade Cipó de Baixo não é, está sendo. Menos
que uma “coisa” cultural delimitada e claramente caracterizada, encontramos um processo
de reprodução e recriação. Ela acompanha os movimentos históricos vividos pelos
habitantes daquela comunidade: não se trata, portanto, de um fato delimitado e fechado que
se dá ao entendimento de quem busca conhecê-la. Esta, certamente, foi a maior dificuldade
enfrentada na pesquisa: a brincadeira do reisado não é um objeto de estudo que se coloca
claramente como fato social. O próprio artigo “a” (referente à brincadeira do reisado) se
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mostra inapropriado, pois nos referimos a um objeto-processo, a uma prática cultural-


histórica.
Errávamos quando interpretávamos a prática cultural “brincadeira do reisado”
como coisa da tradição daquela comunidade que constituiria um sistema de identidade
cultural. Desejávamos aprisionar uma certa movimentação cultural na forma da “tradição
identitária”. Uma ansiedade por verificar as reproduções conceituais da realidade descritas
nos livros. Quanto mais pressionava o exercício de interpretação do real para refletir as
teorias com as quais procurava conhecer, menos compreendia o que se dava na brincadeira
do reisado. À primeira vista, pode soar como ingenuidade do pesquisador. Contudo, era
algo muito mais consequente: o que observava na comunidade do Cipó de Baixo com a
família de seu Raimundo Milú (dono do reisado) e as outras famílias que contribuíam com
a brincadeira era uma experiência de mudança cultural, era uma experiência de construção
de identidade cultural. Não encontrava o reisado, mas vivências diferenciadas de uma
brincadeira; não lidava com uma compreensão uniforme do reisado, mas com visões tensas
sobre uma prática cultural.
Por outro lado, o pesquisador resistia a contemplar essa realidade pois se
encontrava aprisionado ainda a uma espécie de purismo tradicional ou essencialismo
identitário. Minha mentalidade resistia à possibilidade de encarar as coisas do universo
cultural como sistemas dinâmicos. As práticas culturais não seguem modelos prévios de
desenvolvimento histórico. Especialmente, em tempos de interação globalizada, os
processos simbólicos da humanidade diversificam-se e seguem lógicas surpreendentes.
Estudar movimento, dinâmica cultural, mudança, conflito, distensões culturais mostrou-se
um desafio paradoxal para um estudioso da “cultura”. Ou seja, durante esse processo de
construção da pesquisa observei os limites da visão de cultura para estudar o dinamismo
das identidades culturais.
É neste sentido que me vi levado a rever antigas e consagradas concepções sobre
cultura. Os dramas culturais vividos por aqueles brincantes do reisado bem como por
aqueles que se colocam como platéia e “contratantes” da brincadeira levam a crer que as
formas de existência cultural são densas, tensas e dinâmicas. Aquilo que se imaginava
como uma vivência cultural uniforme, integradora e territorialmente delimitada não é mais
defensável. As identidades culturais, como sistemas contraditórios, históricos e múltiplos
de referências sociais, vêm paulatinamente se impondo no debate acadêmico como
alternativa às concepções essencialistas e unitárias de cultura (Gilroy, 2001; Hall, 2006;
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Ortiz, 2005; Canclini, 2007). O universo múltiplo, desterritorializado, aberto e


contraditório que os estudos sobre identidade cultural vem desbravando sugere uma
revisão das teorias consagradas de cultura (Ortiz, 2006, p. 73).

3. Conclusão

Pensar os fenômenos da cultura se revela cada vez mais complexo. Entender a


criação de significados, os mecanismos de sua sustentação, as suas relações com as demais
dimensões da vida social se mostra uma tarefa que exige dos pesquisadores uma
sustentação teórica e sensibilidade heurística cada vez mais fina.
Contudo, a desessencialização do fenômeno cultural é um passo fundamental para o
progresso dos estudos sobre práticas culturais. Dessubstacializar as experiências culturais é
reconhecer que as representações simbólicas da vida social seguem lógicas complexas e
intercambiáveis. A descoisificação das categorias tempo e espaço tem contribuído bastante
para uma visão aberta da cultura. Além disso, os estudos sobre processos de identidade
cultural enriquecem as reflexões à medida que ressaltam os múltiplos fios das teias
culturais.

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