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José Nilson Viana Rabêlo

JESUS

E A DESSACRALIZAÇÃO DO
TEMPLO, SACERDÓCIO E
SACRIFÍCIO
“também vós mesmos, como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual para
serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais agradáveis a Deus
por intermédio de Jesus Cristo” (IPe 2.5)

Alagoinhas, BA
2

2010

Prefácio

O propósito deste livro é provocar mais um olhar sobre a jornada da igreja


em busca de um cristianismo destituído de todo acréscimo, além daquilo que o Novo
Testamento propõe. A proposta não é nova, nem original, é apenas mais uma leitura dos
textos neotestamentários, sobre aquilo que já havia sido escrito pelos autores dos textos
sacros. O que realmente importa ao cristianismo? Qual é a sua essência? Que
espiritualidade expressa verdadeiramente sua autenticidade? No decorrer do seu
desenvolvimento na história, muitas foram as respostas a essas perguntas, e todos
concordam que para respondê-las seria necessário um modus vivendi conforme a “igreja
primitiva”. Contudo, na história, apesar de muitos movimentos terem feito apelos ao
retorno de um cristianismo simples, lograram em fracasso. A dificuldade básica e
fundamental está nas hermenêuticas que foram aplicadas ao Novo Testamento, as quais
produziram diversos sistemas. E aqui, há outro problema, tão crucial quanto o primeiro:
Há nos textos neotestamentários um consenso, onde se pode aferir uma espiritualidade
unívoca, autêntica e essencial, além do que tudo seja acréscimo? Muitas perspectivas
foram abordadas, uns tentaram eliminar qualquer elemento judaico do cristianismo,
outros apelaram à liberdade do evangelho, outros ao sacerdócio de todos os santos, uns
procuraram destituir a influencia da filosofia grega na elaboração teológica da igreja,
outros quiseram exorcizar até mesmo a “teologia” da igreja, apelando para um viver
mais prático, fenomenológico, existencial do que as tentativas de elucubrações de
ordem teológico-filosófico-científica. De modo que podemos falar de muitos
cristianismos como uma “colcha de retalhos”, onde, de acordo com cada hermenêutica
abordada, erigiu-se uma estrutura espiritual e eclesiástica distinta.

A hermenêutica que se propõe percorre todo o Novo Testamento, mas está,


especificamente embasada 1) no texto de IPe 2.5, onde ali é citado que –os fundamentos
de qualquer religião - templo, sacerdócio e oferta encarnam-se no cristão, e 2) na
epistola aos Hebreus cujos argumentos nucleares edificam-se sobre o Salmo 110 e no
encontro de Abraão com Melquisedeque, bem como 3) o conceito de Nova Aliança,
cuja estrutura não é mais a da espiritualidade levítica, mas de uma outra ordem de
sacerdócio, que é a de Melquisedeque. Por fim, tentaremos discernir o que é esse
3

sacerdócio segundo este “rei de salém” e de como a igreja deve viver uma
espiritualidade que não tenha como modelo o culto levítico da Velha Aliança.

A busca pelas origens na história da igreja

A problemática da volta ao cristianismo das origens, ou seja, a busca da vida


evangélica1 segundo a maneira de como a igreja primitiva a vivia não é nova, ela
perpassa a história da igreja. Foi sempre uma luta contra a rígida e inflexível
institucionalização da fé. Todas as vezes que a igreja se tornava burocrática, comercial e
mundana demais, ali surgia um movimento reformista, como uma indignação e um
inconformismo ao estado de coisas que tinham mais princípios e tradições humanas que
evangélicas.

Podemos dizer que o primeiro a se incomodar com a tentativa de purificar o


cristianismo, deixando-o somente com aquilo que, segundo ele, era genuinamente o
espírito de Cristo, foi Marcião (cerca de110-160d.C). Rico comerciante portuário,
também era um erudito da Bíblia, sendo considerado por alguns o primeiro crítico
bíblico ao rejeitar o Velho Testamento e dizer que apenas o evangelho de Lucas e as
cartas de Paulo estavam livres de acréscimos, interpolações e distorções da igreja. Nas
suas Antíteses, afirmava que o Deus do Velho Testamento, colérico e vingativo segundo
ele, não tinha nada a ver com Jesus, tolerante e amoroso. É claro que ele foi expulso
como herege, contudo, ao estabelecer seu próprio cânon, forçou a Igreja a elaborar o seu
Cânon do Novo Testamento, tal como o conhecemos hoje. Mas a despeito de suas
“heresias”, Marcião percebeu com muita clareza a distinção entre Nova e Antiga
Aliança e esta foi a sua inquietude por toda a sua vida. Ele discerniu muito bem que o
cristianismo não era mais uma vertente do judaísmo, e sim, algo totalmente inovador e
superior a este. Por isso, elegeu-se o arauto da pureza da mensagem do evangelho.

Depois de Marcião, a igreja da idade média, já hierarquizada e com poder,


armou-se de mecanismo legais2 para extirpar e controlar heresias durante séculos.
Porém, isto não quer dizer que durante este tempo não tenha surgido grupos de
insurgentes, protestando contra a extrema complexidade do Império Eclesiástico.
1
Aqui, utilizo o termo “evangélico”, não com a conotação moderna, onde qualquer igreja constituída nos
moldes que não sejam o do catolicismo é Evangélica. “evangélico” como o utilizo refere-se à mensagem
de Jesus nos evangelho e no Novo Testamento.
2
BARROS, José D’Assunção. Heresias na Idade Média: considerações sobre as fontes e discussão
historiográfica. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano II, n. 6, Fev. 2010 – ISNN
1983-2850.
4

Podemos citar os Albigenses ou Cátaros e os Valdenses em Lyon, no sul da França,


entre os anos de 1208 1229, que pregavam a volta do cristianismo às origens,
defendendo a necessidade de a Igreja abandonar suas riquezas. Eles liam a Bíblia na sua
própria língua e se reuniam em casas ou em grutas devido à perseguição. No mesmo
espírito, a Ordem Franciscana na Itália, embora esta tenha sido incorporada à igreja
como mais uma ordem, no panteão católico, também pregava um cristianismo simples e
destituído de riquezas. Temos também o wyclifismo na Inglaterra e o hussismo na
Boémia, no séc XV.

A Reforma Protestante foi o movimento mais significativo nessa tentativa


de simplificar a religiosidade. Sua pretensão pode ser observada nas suas cinco
máximas: “somente a fé”, “somente a Escritura”, “somente Cristo”, “somente a Graça”
e “glória somente a Deus”. Além disso, Lutero pregava a liberdade do indivíduo, o
sacerdócio universal de todos os santos, a leitura da Bíblia pelos leigos e a livre
interpretação desta. O ponto alto do movimento foi perpetrado pelo seu seguidor
dissidente Thomas Munzer, o qual propunha a iconoclastia 3 e uma sociedade sem
diferenças entre ricos e pobres e sem propriedade privada; tal resistência deu origem à
Guerra dos Camponeses (1524-1525), com Lutero apoiando sua repressão. No entanto,
a reforma protestante já nasceu institucionalizada. As igrejas não se desligaram do
ambiente político e continuaram sendo um braço paralelo do poder secular. Cada país
reformado tinha sua Igreja Oficial, com seu corpo de governo, suas Dietas e suas
Confissões de fé. Não demorou muito para que a reforma tivesse grupos que queriam
reformá-la. Tal movimento ficou conhecido como a Reforma Radical. Destes, podemos
citar os anabatistas, ressurgidos na suíça em 1525; o congregacionalismo e o
puritanismo na Inglaterra; o pietismo na Alemanha. Temos também os Despertamentos
anglo-americanos do séc XIX, com Jonathan Edwards(1703-1758), Charles Finney
(1792-1875), John Wesley (1703-1791) e Charles H. Spurgeon (1834-1892).

Do ponto de vista científico e literário, a Alemanha da época do iluminismo


produziu profundas pesquisas bíblicas, tendo a academia como mentora destas. A
exegese dos textos, juntamente com a pesquisa do contexto histórico cultural semítico,
gerou teologias até hoje estudadas. Nesta época o Novo Testamento foi cuidadosamente
examinado pelos eruditos, e suas teses foram sementes que germinaram na teologia
3
Literalmente “quebrar ícones”. Munzer era radical ao ponto de devastar igrejas, destruindo suas imagens
e gravuras, coisa que Lutero discordava.
5

protestante liberal. F.C.Baur (1792-1860), fundara a Escola de Tubingen, a qual tinha


como fundamental importância o uso da filologia no estudo dos clássicos antigos e o
aprimoramento das técnicas de crítica textual aplicadas aos textos sagrados. Ele utilizou
a dialética hegeliana no cristianismo, em que Mateus e Pedro – o cristianismo
judaizante - formavam a tese, e em tensão a esta, Paulo e os demais autores – o
cristianismo helenista - formavam a antítese. O resultado foi a síntese que teve sua
expressão no evangelho de Lucas. A principal contribuição desta escola foi a
metodologia de que a literatura cristã só pode ser investigada em relação com o contexto
histórico, social e cultural do cristianismo primitivo.

No movimento filosófico, temos Kant que escreveu A Religião nos limites


da simples Razão, onde relega a religião ao âmbito da moral. Para Kant “a religião
autêntica, inclusive o cristianismo válido, era simplesmente viver de acordo com os
deveres racionalmente discerníveis”4. Depois dele, temos o idealismo alemão que tentou
conciliar teologia e filosofia, pois seus principais representantes cursaram teologia antes
ou paralelo à filosofia. Seus principais nomes são Fitche (1762-1814), Schelling (1775-
1854) e Hegel (1770-1831). Após o idealismo alemão, temos um hegeliano de esquerda
chamado Ludwig Feuerbach (1804-1872) que escreveu A Essência do Cristianismo,
onde trabalha o conceito de alienação religiosa, no sentido de que a religião é uma
forma de alienação que projeta os conceitos do ideal humano em um ser supremo,
fazendo assim uma redução antropológica de Deus. Ao longo do texto a razão
iluminista mede forças com o cristianismo sempre procurando perguntar sobre sua
essência, podendo a teologia ser muito bem explicada pela antropologia:

A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo, o


conhecimento de Deus é o conhecimento que o homem tem de si mesmo.
Pelo seu deus conheces o homem e, vice-versa, pelo homem conheces o seu
Deus; ambos são a mesma coisa5

David Friedrich Strauss (1808-1874), ligado à Escola de Tubingen, foi um


teólogo e exegeta alemão, publicou Vida de Jesus, considerada o marco inicial da
chamada pesquisa em busca do Jesus Histórico. Strauss, racionalista como era,
afirmava que os evangelhos eram míticos e apenas os fatos concordes com a ciência e a
razão deveriam ser cridos. Hernest Henan (1823-1892), um filólogo e historiador
francês, rivalizando com Strauss na pesquisa sobre o Jesus da História, publica, dentre

4
História da Teologia Cristã: 2000 Mil anos de tradição e Reformas, pág. 556
5
FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1988. p. 55
6

muitos livros, A História do Povo de Israel, em cinco volumes, Vida de Jesus, História
das Origens do Cristianismo, e a Igreja Cristã. Sobre os evangelhos, nega qualquer
revelação ou intervenção sobrenatural, rejeitando qualquer menção de mistério ou
milagres. Sua obra se tornou uma referência obrigatória para agnósticos e ateus.
Schleiermacher (1768-1834) é considerado o pai da teologia protestante liberal e da
hermenêutica filosófica. Foi um gigante na exegese bíblica e chegou a pastorear, mas
negou a historicidade dos milagres. Tentou “salvar” a teologia das bases racionais
transportando-a para as bases do sentimento. Sua “essência do cristianismo” é a de que
a humanidade possui uma consciência de Deus e, por conseguinte, um sentimento de
total dependência dEle, sendo Jesus o maior exemplo disto, pois sua consciência de total
dependência de Deus era distinta do resto da humanidade. Adolf Von Harnack (1851-
1930), teólogo alemão e historiador do cristianismo. De acordo com OLSON(1999,
566)

sua obra erudita mais influente foi a A História do Dogma de vários


volumes, na qual procurou demonstrar a helenização do pensamento cristão
antigo e lançou o empreendimento de redescoberta do evangelho simples de
Jesus Cristo, removendo as supostas partes de filosofia especulativa grega
dos credos e das formulas de fé

Além de tentar purificar o cristianismo da influência da filosofia grega,


Harnack dizia que a essência do cristianismo era a justiça suprema de Cristo
centralizada no amor e não na observação legalista da Lei; a realidade do reino de Deus
no coração dos homens e a universalização da paternidade de Deus, a fraternidade entre
os homens, sem distinção de santos ou pecadores. Sua influencia chegou à América do
Norte e lá deu origem ao Evangelho Social, proclamado pelo pastor batista liberal
Walter Rauschenbusch, o qual afirmava que, mais importante do que milagres e
polêmicas sobrenaturais é a ética social de Jesus, tal como a temos nos evangelhos.

Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) foi um teólogo alemão acusado de


participar de uma conspiração que tramava o assassinato de Hitler. Enforcado pouco
tempo antes dos alemães se renderem na guerra, ele se tornou um símbolo de
engajamento social cristão, em favor dos perseguidos. Boa parte de seus intérpretes
afirmam que Bonhoeffer, após a dura experiência de ter fracassado em convencer a
Igreja alemã a protestar contra o nazismo, propunha um cristianismo sem religião, onde
contrapondo às especulações e teorias abstratas da religião, intimava a igreja a dar
testemunho de Deus na sua vida diária, com ações éticas que imitavam a vida de Cristo.
7

Estruturas religiosas sem significado e linguagem teológica abstrata não adiantavam


ante os clamores da guerra. Assim, Bonhoeffer morreu tentando encontrar o significado
da fé cristã que fosse relevante para o mundo.

O grupo Seminário de Jesus (Jesus Seminar)

Fundado em 1985, por um notável estudiosos do Novo Testamento chamado


Robert Funk e tendo como seu principal arauto John Dominic Crossan, um ex-padre
americano, especialista na crítica textual do Novo Testamento, o grupo – todos
acadêmicos e estudiosos da Bíblia - já publicou uma série de pesquisas sobre o “Jesus
Histórico”. Para eles, Jesus era uma espécie de “Sócrates” judeu, que utilizava a
filosofia cínica como um estilo de vida. Jesus, segundo o seminário, nunca desejou ser
divinizado e nem teve a intenção de fundar uma igreja institucionalizada. Os evangelhos
- na edição Os Cinco Evangelhos, do grupo, há o acréscimo do Evangelho de Tomé, por
sinal mais fidedigno historicamente do que os quatro - uma vez livre de todo
sobrenaturalismo feito pelos discípulos e pela igreja posteriormente, mostra que a tônica
de Jesus era sua iconoclastia e seu “evangelho social”; Deus é um pai amoroso universal
e os homens devem se confraternizar em todos os lugares; ao invés de anunciar o fim do
mundo, Jesus pregava uma reforma no indivíduo e conseqüentemente, da sociedade.

O seminário utiliza sua própria versão da Bíblia, traduzida por eles mesmos,
e alguns dos seus pressupostos para o estudo cristológico na verdade é uma síntese dos
principais postulados resultantes da pesquisa histórica sobre Jesus, desde o séc XVIII: A
distinção entre o Jesus histórico e o Cristo da Fé( Reimarus, Bultmann); os evangelhos
sinóticos como historicamente mais fidedignos(escola alemã); A prioridade de Marcos,
antes de Mateus e Lucas (História da Tradição); O documento Q (Crítica das Fontes);
rejeição da escatologia ou apocalíptica de fim de mundo para uma escatologia
“realizada”. Também, não é preciso muito pra inferir que o Seminário Jesus nega os
principais dogmas do Cristianismo: o nascimento virginal, a ressurreição e os milagres
dos evangelhos.

O interesse pelos textos apócrifos


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A arqueologia tem feito muitas descobertas de significativos textos da era


neotestamentária ou de um período do judaísmo antigo. Basta citar a Biblioteca Nag
Hammadi encontrada em 1945, contendo 52 textos do antigo gnosticismo, como o
Evangelho de Tomé, ou os Manuscritos do Mar Morto vindos à tona em 1947. Estes
manuscritos dão mais uma contribuição aos eruditos quando fornecem mais detalhes do
cotidiano e da mentalidade da época bem próxima a Jesus, por isso, eles afetam
consideravelmente as linhas de pesquisa sobre o Jesus Histórico, tornando-se leitura
obrigatória e objeto de escrutínio por parte dos especialistas devido aos testemunhos
literários. Proporcional à quantidade dos apócrifos iniciou-se uma enxurrada de
comentários e teses teológicas sobre tais textos. Os apócrifos suscitaram uma
bibliografia vasta, escrita por historiadores da religião, exegetas, filólogos, filósofos,
dramaturgos, espiritualistas, místicos e jornalistas. Multiplicam-se as edições desses
evangelhos e o crescente interesse pelo Jesus histórico permitem antever uma avalanche
de novos livros, filmes e peças teatrais baseados nos episódios da vida de Cristo.

Descritos como apócrifos estes textos entraram para o Index Librorium


Proibitorium da igreja. Hoje, na opinião dos seus defensores, são considerados
injustamente perseguidos e expurgados, alguns destruídos pela então Igreja Cristã
Oficial. Geralmente suas publicações ou qualquer obra artística referentes à eles
provocam muita polêmica e controvérsias. Basta lembrar do filme A Ultima Tentação
de Cristo baseado no Evangelhos de Maria Madalena e Judas, do Polêmico Diretor
Martin Scorsese ou do livro O Código da Vinci, de Dan Brow. Os entusiastas
divulgadores dos apócrifos gnósticos asseveram que Jesus jamais afirmou ser Deus e
que nunca quis fundar uma religião, antes, pregava uma espécie de panteísmo cósmico,
como bem descreve um, dos 114 supostos ditos(logia) de Jesus, no Evangelho de Tomé:
Jesus disse: “Eu sou a luz que está sobre todos eles. Eu sou o todo. De mim surgiu o
todo e de mim o todo se estendeu. Rachai um pedaço de madeira, e eu estou lá. Levantai
a pedra e me encontrareis lá” (setença 77).

O movimento de crescimento da igreja

Embora utilizem técnicas e muito da filosofia do marketing empresarial o


movimento de crescimento da igreja diz resgatar a forma primitiva dos primeiros
cristãos viverem, baseado no argumento de que a igreja do novo testamento tinha seu
élan vital nas células, grupos familiares, grupos pequenos, grupos de crescimento e
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reuniam-se nas casas. O movimento prima por um forte apelo evangelístico e enfatiza
bastante a questão relacional e comunitária proporcionada no ambiente das células.
Paradoxalmente, os líderes das igrejas que se utilizam do método de crescimento,
almejam serem governantes de “igrejas de multidões”.

Enfim, este foi um passeio sucinto pela história da igreja, a fim de que se
percebesse que o tema “cristianismo autêntico” ou “cristianismo primitivo”, foi
recorrente e ainda hoje o é. Tal problema foi alvo dos mais eminentes pensadores, desde
a igreja pós-apostólica, teólogos medievais, filósofos modernos e contemporâneos,
historiadores, críticos literários, pedagogos e lingüistas. Pode-se observar que a maioria
das dissidências da igreja utiliza como argumento o mote do “voltemos à igreja das
origens”. Entretanto, longe de querer ser original, espero contribuir para mais um olhar
nessa tentativa de perceber mais um aspecto do “cristianismo original”, enriquecendo
um novo jeito de ser igreja. É claro que não contemplei autores eruditos importantes
como Bruno Bauer (1809-1882), Albert Schweitzer (1875-1965), Rudolf Bultmann
(1884-1976), Paul Tillich (1886-1965), Karl Barth (1886-1968), Emill Brunner (1889-
1966) e outros, pois fugiria à proposta do livro.

I. Introdução

Templo, sacerdócio e sacrifício são elementos imprescindíveis de toda


religião. É muito difícil – quase impossível – encontrar alguma religião que não tenha
essas instituições como condição sine qua non para a pessoa se religar com o sagrado.
Os gregos vivenciavam uma religião sem texto sagrado, sacerdotes ou templo, como
bem descreve REALE(2003, 9)

Os gregos não tiveram livros sagrados ou considerados fruto de revelação


divina. Conseqüentemente, não tiveram uma dogmática (isto é, um núcleo
doutrinal) fixa e imutável... Além disso, (e esta é outra conseqüência da falta
de livros sagrados e de uma dogmática fixa), na Grécia também não pôde
subsistir uma casta sacerdotal guardiã do dogma (os sacerdotes tiveram
escassa relevância e escassíssimo poder, porque não tinham a prerrogativa de
conservar dogmas nem a exclusividade de receber oferendas religiosas e
oficiar sacrifícios)

Porém, tanto a religião grega, quer na dimensão da esfera pública ou privada


tinham seus sacrifícios para apaziguar ou agradar os deuses, como também oráculos
para conhecer a vontade divina. Vale ressaltar uma nota importante desta religião que é
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a liturgia dos sacrifícios. Ao longo da Ilíada (canto I) e da Odisséia (canto III),


sacrifícios seguidos de banquete são oferecidos aos deuses, e, aquilo que no judaísmo
era privilégio apenas dos sacerdotes, na religião grega a comunidade tomava parte. Na
cidade da época clássica, o grande sacrifício cívico chamado thysia consistia no abate
ritual de um animal (ou mais) de criação, que se degolava no altar, antes de separar a
parte dos deuses (os ossos das coxas envoltos em gordura), queimada no fogo aceso
sobre o altar, e a parte dos homens, dividida entre os presentes. Os deuses e o povo
participavam da mesma comida, diluindo a distinção entre o temporal e o espiritual,
entre divino e humano. É o que diz o historiador e helenista VERNANT (2006, 58)

A thysia é, simultaneamente, um cerimonial religioso em que uma piedosa


oferenda, com freqüência acompanhada de oração, é endereçada aos
deuses ... um ato de comunhão social que, pelo consumo das partes de uma
mesma vítima, reforça os vínculos que devem unir os cidadãos e torná-los
iguais entre si

No judaísmo, apenas o sacrifício da páscoa – que celebrava a libertação do


povo de Israel do Egito - é estendido às famílias, conforme sua instituição em Êxodo
12.1-28. Mas é importante lembrar que, assim como a promessa e o sacerdócio de
melquisedeque, a páscoa não é originária do culto levítico, posto que sua realização se
dá antes do tabernáculo do deserto e da consagração dos filhos de Levi por Moisés. E é
justamente o sacrifício da páscoa, que Paulo o identifica com o sacrifício de Cristo,
sendo este “a nossa páscoa” (ICo 5.7).

Outra religião(ou como pretende alguns, ciência), na modernidade, que


pretende ser a mais simples possível, sem templos, sacerdotes, sacrifícios ou qualquer
liturgia é o Espiritismo, fundado pelo pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard
Rivail(1804-1869), cujo pseudônimo era “Allan Kardec”. O kardecismo se pretende um
novo modelo de religião, inclusive, com uma nova leitura – de cunho mais crítico - do
Cristianismo, cuja hermenêutica do evangelho encontra-se explicitada nos dois dos
cinco livros que são obras básicas da doutrina: O Evangelho Segundo o Espiritismo e
Céu e Inferno. Em contra-ponto ao cristianismo histórico, o espiritismo tenta ser alheio
a dogmas, fórmulas, hierarquia sacerdotal, baseado eminentemente no aspecto ético-
moral do indivíduo, fundamentado na moral cristã.

Fora isto, até o Budismo, que não tem Deus, nem pecado, possui o seu
templo, os seus sacerdotes e os seus sacrifícios. O templo na concepção tradicional era a
morada de Deus, a classe sacerdotal era a mediadora da boa relação Deus/Homem, e os
11

holocaustos, sacrifícios e ofertas eram os que apaziguavam a ira de Deus, expiando os


pecados. Não foi diferente com o judaísmo. Havia o lugar sagrado, uma família sagrada
e coisas sagradas a oferecer para se efetivar a espiritualidade. Mas tudo isso sofre uma
reviravolta com o advento de Jesus, como veremos, pois é exatamente neste quesito que
há uma descontinuidade entre o judaísmo e a igreja, uma ruptura entre Velho e Novo
Testamento.

O óbvio que está ululando no Novo Testamento a cada página, e no próprio


espírito cristão que estava nascendo com o movimento de Jesus é a laicização do
sagrado, a democratização dos privilégios da espiritualidade, a humanização do divino;
ou seja, a coletivização dos símbolos mais caros da religião: templo, sacerdócio e oferta,
como nunca aconteceu antes na história das religiões. Contudo, tal verdade nunca foi
levada até as suas últimas conseqüências, ou seja, na história do cristianismo, neste
quesito, poucos se ateram à honestidade intelectual de se submeterem ao princípio
socrático, cuja ordem é "seguir ao argumento até onde ele nos levar" (FLEW apud
Platão, 2008, 40). Teoricamente, não há segredo, nem “revelação” nenhuma desta
questão na literatura especializada. Por exemplo, o Dicionário VINE(2006, 964), da
CPAD diz “ o Novo Testamento não reconhece de modo algum uma classe sacerdotal
em contraste com o laicato; todos os crentes são ordenados a oferecer os sacrifícios
mencionados em Rm 12.1; Fp 2.17; 4.18; Hb 13.15,16; IPe 2.5”. Sempre ouvimos
pregações e lemos sobre o sacerdócio de todos os que crêem: “somos nação santa,
sacerdócio real”; mas, talvez, depois de Jesus, os apóstolos e as primeiras comunidades
cristãs, ninguém mais levou a sério esse postulado com todas as suas implicações
lógicas. Durante a história, os cristãos continuaram indo ao “templo” como “casa de
Deus”, um lugar sagrado; tendo sacerdotes de cujo poder e autoridade de mediação
dependiam, e ainda dependem; e continuamente, ainda ofertam e sacrificam com o
intuito de agradar, apaziguar a divindade ou receber dela recompensas.

Depois da morte da primeira e segunda geração de líderes da igreja das


origens e com a institucionalização desta, as distinções substanciais e vitais entre
judaísmo e cristianismo se esvaíram; principalmente, no que concerne à teologia do
templo e sacerdócio; estas permaneceram com sutis adaptações, contudo, levíticas no
seu cerne, mesmo com todo esforço de Paulo em combater os judaizantes. A Igreja
Católica retomou tal estrutura novamente. CARSON (1997, 439), por exemplo, diz que
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Clemente de Roma se utilizou do arcabouço do Velho Testamento para amparar suas


argumentações, pois “ele prefere reforçar seus argumentos sobre a natureza do
ministério da igreja apelando às leis cerimoniais do Antigo Testamento – uma tomada
de posição totalmente divergente da argumentação de Hebreus”. Nesta sintonia, a Igreja
restabeleceu o templo de pedra como “casa” de Deus, implementou uma hierarquia
rígida com bispos, cardeais e papas; restabeleceu a mediação sacerdotal mediante a
confissão auricular e a eucaristia, privilegiou o poder com a teologia da sucessão
apostólica e a infalibilidade papal; incrementou inclusive vestimentas, rituais, incenso e
romarias tal qual no judaísmo antigo.

No medievo, o povo apenas comia das migalhas que caiam das mesas da
aristocracia espiritual, com a missa em latim e a leitura e interpretação da Bíblia
proibida para o leigo. No início da Idade Moderna, Lutero fez um esforço grandioso
para viver a liberdade cristã ao descobrir a justificação pela fé. Percebeu que era
sacerdote de si mesmo, que não era escravo de ninguém, embora servo de todos; que as
mediações haviam findado em Cristo, restando somente a graça; que a interpretação das
Escrituras deveria ser laicizada; porém, tudo isso não foi suficiente. Após a Reforma
Protestante, cada país que aderiu ao movimento instituiu sua Igreja Oficial, ligada ainda
ao Estado, influenciando nas decisões políticas. Continuou o sacerdócio, a aristocracia
eclesiástica e as bênçãos especiais. Mesmo após vários movimentos de renovação, quais
sejam, os reavivamentos, o pentecostalismo, etc., com todos eles tendo como intento e
lema o “retorno ao cristianismo das origens”, nenhum deles, se libertou completamente
da tradição levítica, ou seja, continuaram atrelados ao templo, ao sacerdócio e às ofertas
como necessários para a comunhão com Deus. E, nos dias atuais, em especial no Brasil,
os neo-pentecostais levaram estes símbolos à mais alta sacralidade, tornando-os
necessários para que se busque o favor de Deus. Os mega-templos são verdadeiras obras
salomônicas, na verdade, torres de Babel, com a intenção de tornar “célebre o nosso
nome” (Gn 11.4); a classe sacerdotal, ou seja, os apóstolos e bispos, com uma
hierarquia forte e rígida estão divinizados no meio do povo, constituindo um grupo
altamente elitista; ofertas e sacrifícios são partes essenciais de uma teologia de
retribuição, onde Deus só abençoa se for recompensado financeiramente, se houver
sacrifícios; ritos, símbolos e superstições pululam em suas reuniões. Ou seja, o culto
levítico sempre esteve como modelo do modo de ser da igreja até os dias de hoje.
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II. Jesus como templo, sacerdote e oferta

Voltemos à tese da dessacralização. Comecemos com Jesus, que interiorizou


o templo em si mesmo. Ele mesmo dizia ser seu corpo o santuário. É o que lemos em
João 2.19-21 “Jesus lhes respondeu: Destruí este santuário, e em três dias o
reconstruirei, Replicaram os judeus: Em quarenta e seis anos foi edificado este
santuário, e tu, em três dias, o levantarás? Ele, porém, se referia ao santuário do seu
corpo”. (ver Mc 14.58). Segundo DODD (2003, 394-395) “a purificação do templo
– isto é, a expulsão dos animais de sacrifícios de seus pátios – significa a abolição e a
substituição do sistema do culto religioso, cujo centro era o templo: um novo “templo”
entra no lugar do antigo” isto é “a sentença em questão era desde o princípio associada
com a idéia de suplantação da antiga ordem da religião judaica”.

Além disso, no prólogo joanino (1.14), o autor escolheu intencionalmente a


palavra grega eskenosen, por causa da idéia do templo, cuja tradução poderia ser “ele
estabeleceu seu “tabernáculo” entre nós. Aqui, a idéia é que Cristo substitui o lugar de
culto, porque a shekinah, que para os judeus era sempre ligada ao templo, agora iria
estar sempre sobre ele

Não há dúvidas de que Jesus foi considerado além de profeta, sacerdote.


Mais, ele é o sacerdote da nova e última aliança entre Deus e os homens: “Porquanto
há um só Deus e um só mediador6 entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem” (ITm
2.5); o escritor da carta aos Hebreus faz uma grande apologia sobre o sacerdócio de
Cristo, o que é inútil citar todas as referências aqui. Apenas duas passagens dentre
muitas em que ele afirma: “como em outro lugar também diz: Tu és sacerdote para
sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” (Hb 5.6), e “agora, com efeito, obteve
Jesus ministério tanto mais excelente, quanto é ele também Mediador de superior
aliança instituída com base em superiores promessas”(Hb 8.6).

Ele também foi considerado o sacrifício de expiação dos pecados: “no dia
seguinte, viu João a Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o
pecado do mundo” (Jo 1.29). É óbvio aqui a alusão ao cordeiro pascal imolado no dia
da libertação do povo de Israel do Egito e que se tornou a tradição na festa do dia da

6
“O título µ ε σ ι τ ε ς , mediador - termo técnico de ordem jurídica, com o qual se designa o
árbitro ou o fiador – não é mais que uma variante do título de sumo sacerdote” (Cullmann, Cristologia do
Novo Testamento. 2002, pág 121)
14

expiação para os judeus. É assim que Paulo afirma nominalmente: “lançai fora o velho
fermento, para que sejais nova massa, como sois, de fato, sem fermento. Pois também
Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado” (ICo 5.7) e Pedro corrobora: “sabendo que
não foi mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do
vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como
de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo” (IPe 1.18,19). A morte de
Jesus também é chamada de oferta: “e andai em amor, como também Cristo
nos amou e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em aroma
suave” (Ef 5.2), ainda em Hebreus 10.10: “Nessa vontade é que temos sido
santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas”; ainda em
Hebreus: “Jesus, porém, tendo oferecido, para sempre, um único sacrifício pelos
pecados, assentou-se à destra de Deus ... Porque, com uma única oferta, aperfeiçoou
para sempre quantos estão sendo santificados (Hb 10.12,14)

III. O cristão como templo, sacerdote e oferta

Como demonstrado, Jesus tornou-se em si mesmo, simultaneamente,


templo, sacerdote e oferta. Reunindo em si os principais símbolos do judaísmo. Agora,
será que esta síntese pode ser aplicado também ao cristão?

O Novo Testamento afirma que o cristão é templo de Deus: “Se alguém


destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porque o santuário de Deus, que sois vós,
é sagrado” (ICo 3.17), “Que ligação há entre o santuário de Deus e os ídolos? Porque
nós somos santuário do Deus vivente, como ele próprio disse: Habitarei e andarei entre
eles; serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” (IICo 6.16); Não sabeis que sois
santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? (ICo 3.16); “Acaso, não
sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que está em vós, o qual tendes
da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos?” (ICo 6.19); “no qual todo o edifício,
bem ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor, no qual também vós
juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito” (Ef 2.21,22).
Essa idéia de que o cristão é tabernáculo foi tão assentida que os apóstolos referiam-se
aos próprios corpos como tal: “sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo
se desfizer, temos da parte de Deus um edifício, casa não feita por mãos, eterna, nos
céus” (IICo 5.1), ainda: “Pois, na verdade, os que estamos neste tabernáculo gememos
angustiados, não por querermos ser despidos, mas revestidos, para que o mortal seja
15

absorvido pela vida” (IICo 5.4), Pedro também: “considero justo, enquanto estou neste
tabernáculo, despertar-vos com essas lembranças, certo de que estou prestes a deixar o
meu tabernáculo, como efetivamente nosso Senhor Jesus Cristo me revelou” (2Pe
1.13,14).

O Novo testamento afirma que o cristão é sacerdote também: “e nos


constituiu reino, sacerdotes para o seu Deus e Pai, a ele a glória e o domínio pelos
séculos dos séculos. Amém!” (Apoc 1.6); Ainda em IPe 2.5: “também vós mesmos,
como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a
fim de oferecerdes sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus
Cristo” , Pedro ainda “ Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo
de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos
chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (IPe 2.9). Em Hebreus 10.19,20, a
exortação é que o cristão deve adentrar com ousadia, no lugar onde somente o Sumo
Sacerdote tinha direito a livre acesso: “tendo, pois, irmãos, intrepidez para entrar no
Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos
consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne”. Ora, escrevendo assim, o autor
estava ciente de que “o véu do santuário se rasgou em duas partes de alto a baixo”
(Mt 27.51), assim Paulo é ousado em dizer concernente aos judeus que não creram em
Jesus: “Mas os sentidos deles se embotaram. Pois até ao dia de hoje, quando fazem a
leitura da antiga aliança, o mesmo véu permanece, não lhes sendo revelado que, em
Cristo, é removido” (IICo 3.14).

O Novo Testamento afirma também que o corpo do cristão pode ser


considerado um sacrifício: “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que
apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso
culto racional” (Rm 12.1); o próprio ser do cristão pode ser ofertado a Deus, Paulo
considerava que sua morte seria uma oferenda complementar à fé dos Filipenses:
“entretanto, mesmo que seja eu oferecido por libação sobre o sacrifício e serviço da
vossa fé, alegro-me e, com todos vós, me congratulo” (Fp 2.17, ver IITm 4.6). Ele
disse que, antes da coleta da oferta para os cristãos pobres de Jerusalém, os macedônios,
primeiro, ofertaram-se a Deus, depois serviram os santos: “e não somente fizeram como
nós esperávamos, mas também deram-se a si mesmos primeiro ao Senhor, depois a nós,
pela vontade de Deus” (IICo 8.5).
16

Com relação à oferendas, pode ser dito que se, pois o cristão é um sacerdote,
ele também não precisa mais de mediador pra oferecer oferta e sacrifícios a Deus, posto
que neste quesito, ele é sacerdote de si mesmo, adquirindo assim, o direito de oferecer
sua própria oferta: “Por meio de Jesus, pois, ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de
louvor, que é o fruto de lábios que confessam o seu nome ... Não negligencieis,
igualmente, a prática do bem e a mútua cooperação; pois, com tais sacrifícios, Deus se
compraz” (Hb 13.15,16). Daí porque agora, ajudar alguém nas suas necessidades
substitui o incenso e o sacrifício levítico. Veja o que Paulo diz quando recebe a ajuda
dos Filipenses: “Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde que Epafrodito
me passou às mãos o que me veio de vossa parte como aroma suave, como sacrifício
aceitável e aprazível a Deus” (Fp 4.18).

A conclusão extraída destes vários textos é obvia. Todas estes símbolos,


fundantes de qualquer espiritualidade, foram encarnados, primeiro em Cristo, e em
seguida, na pessoa que se rende à cruz, de maneira que elas, sob a égide de Cristo foram
interiorizadas, tornando assim inútil seus símbolos exteriores.

Mas é no texto de IPe 2.5 onde encontramos tudo o que foi dito até aqui,
reunidos num único verso: “também vós mesmos, como pedras que vivem, sois
edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes
sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo” (grifo
meu). Está aqui, numa só frase, a reunião dos elementos fundamentais do religare.
Isto ao mesmo tempo, é escandaloso porque fere o orgulho da complexa religiosidade,
que sempre viu o religare como o trabalho mais árduo da humanidade: deísta(Deus está
muito distante), ascético(somente por meio de extrema purificação pode se atingir a
luz), moral (deve haver uma lista de proibições que nos santifique), gnóstico(Deus é
bom e a criação é má, daí a necessidade do esforço árduo ou da revelação secreta) e
maniqueísta(Há dois princípios, o Bem e o Mal que interferem e controlam a vida dos
humanos); e extraordinário porque, uma vez concebido, é de uma simplicidade
aterradora.

A concepção desta verdade deveria mudar radicalmente tudo o que se


entende por espiritualidade no sentido de uma dependência de um lugar sagrado, de
uma elite sagrada, bem como de coisas sagradas a oferecer. Ou seja, agora é o ser que,
existencialmente, carrega o sagrado igual ao tabernáculo móvel no deserto que não
17

estava ligado a um lugar, ou ainda, ele torna-se a própria sacralidade. Esta já não é mais
exterior, não está no mundo lá fora, mas em-si. É digno de nota que, na era patriarcal e
mesmo depois, durante a peregrinação no deserto a espiritualidade era nômade como o
povo o era. Deus acompanhava o grupo migrante para onde quer que ele fosse,
conforme está escrito: “estarei contigo para onde quer que fores”. Neste caso, não havia
necessidade de fazer peregrinações a um determinado local de culto ou santuário. O
Deus dos pais não se encontra em um santuário, mas é peregrino. Por isso, os patriarcas
constroem altares por onde passam. Os próprios patriarcas, são sacerdotes de si
mesmos, também realizam os ritos religiosos necessários, posto que o ofício sacerdotal
formal, elitizado, só viria mais tarde com a instituição da lei. De maneira que as
peregrinações e romarias à uma geografia sacra tornam-se inúteis, a busca da bênção de
um guru que detenha uma suposta autoridade para mediar não faz mais sentido, bem
como ofertar algo, algum objeto consagrado para agradar ou apaziguar a divindade é em
vão. Deus agora tem no ser-em-si tudo o que lhe agrada; uma morada, a auto-mediação
e a oferenda de si próprio. Deus torna-se nômade novamente em Cristo e, em seguida,
no cristão. De forma que, a fé, agora tal como no deserto, é um constante caminhar com
uma “logística” simples de levar Deus aonde quer que acampe. Assim, depois da Nova
Aliança, só há um lugar onde se reúne toda à sacralidade no mundo: o ser em Cristo.
Talvez seja isso o que Pedro pretenda dizer que Deus “nos deu tudo o que diz respeito à
vida e piedade”, e por isso somos “participantes da natureza divina” (2Pe 1.3,4)
Diante dessas evidências bíblicas, o que ocorre é uma dessacralização do
templo feita por Jesus, que já se evidencia com o encontro com a samaritana em João,
capítulo 4. Uma conseqüência séria destas premissas é a questão do lugar sagrado, o
lugar de adoração e da shekinah de Deus. Mas Jesus mesmo é quem desmitifica isso.
Segundo CULLMANN (2000, 37) “sua conversação lhe apresenta, por um lado, a
ocasião de falar do verdadeiro culto ‘em espírito e em verdade’ oposto, por sua vez ao
culto judaico oficial do templo de Jerusalém e ao culto samaritano de Gerazim”. É bom
lembrar o diálogo; a mulher de Samaria diz a Jesus:

Nossos pais adoravam neste monte; vós, entretanto, dizeis que em Jerusalém
é o lugar onde se deve adorar; ao que Jesus lhe respondeu: “mulher, podes
crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém
adorareis o Pai, Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o
Pai procura para seus adoradores, Deus é espírito; e importa que os seus
adoradores o adorem em espírito e em verdade (Jo 4.20-24).
18

Para a estupefação de qualquer judeu, Jesus diz que a presença divina não
está mais ligada a um lugar; que Jerusalém, cidade do grande Rei, donde procederá a lei,
onde o templo foi construído, onde as festas eram celebradas, onde o sacrifício era
executado, não é mais o centro de adoração e peregrinação para se encontrar Deus e seu
perdão; o adorador agora torna-se um templo vivo que carrega Deus em si. Tal
afirmação é um absurdo para o espírito religioso. Mas não o era, por exemplo, para
Estevão, o primeiro mártir cristão, que já tinha consciência da dessacralização do
templo quando afirma: “Entretanto, não habita o Altíssimo em casas feitas por mãos
humanas” (Atos 7.48), o que provocou o espírito de zelo pela religiosidade
do templo, ao ponto de apedrejá-lo. CULLMANN (2000, 36-38) analisa
o discurso de Estevão da seguinte forma

os detalhes e a intenção geral da exposição de Estevão, ... é a de mostrar que


os judeus sempre resistiram à lei divina ... que Estevão considera como o
ápice da resistência judaica ao Espírito: a construção do Templo. Por esta
recusa do templo, Estevão preconiza implicitamente... Um culto em espírito
onde o templo é a comunidade ... nós podemos encontrar naturalmente traços
de uma atitude crítica com relação a uma superestimação do templo e dos
sacrifícios nos profetas do Antigo Testamento. Os profetas já tendem a
espiritualizar o culto do templo. Estevão mesmo cita Is 66.1: ‘o céu é meu
trono, e a terra é estrado de meus pés: que templo podereis construir-me?

De posse da consciência de que Cristo – tomando de empréstimo um termo


nietzschiano - fez uma transvaloração dos símbolos da sacralidade exterior para algo
interiorizado no ser é que Paulo diz: “Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e
bebida, ou dia de festa, ou lua nova, ou sábados” (Cl 2.16), e se assusta quando sabe
que os Gálatas guardam ainda “dias, e meses, e tempos, e anos” (Gl 4.10); Tenta ainda
dissuadi-los de que tais coisas são “rudimentos fracos e pobres” (Gl 4.9), aos
Colossenses diz que são “tradição dos homens ... rudimentos do mundo” (Cl 2.8). Toda
essa religiosidade exterior é muito sedutora, autoritária e dominante, mas nem de longe
resolve o problema do pecado no homem, pois “tais coisas, com efeito, têm aparência
de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético;
todavia, não têm valor algum contra a sensualidade” (Cl 2.23). Será esta a liberdade
cristã que tanto Paulo apregoa? Estar livre de peregrinações, da supervalorização a um
único lugar sagrado, de uma mediação privilegiada de uma casta, de sacrifícios, ofertas
de objetos que, na verdade, não interessa à Deus? Das muitas normas, leis, ritos, mística
e superstições, fardos necessários para se exercer a religiosidade?
19

Segue-se que não precisando mais de um lugar para adorar, alguém para
mediar, ou algo para oferecer, o cristão tem o privilégio de carregar o sagrado para onde
ele for. Ora, se me torno um templo, um sacerdote e uma oferta andante, encarnado em
mim mesmo, não preciso de um templo geograficamente determinado; não preciso de
uma casta elitizada de sacerdotes especiais, os quais me conduziriam a Deus e não
preciso de sacrifícios fora de mim para agradar a Deus, pois eu mesmo sou “o bom
perfume de Cristo”(IICo 2.15) ou posso oferecer meu ser como “sacrifício vivo”(Rm
12.1).

IV. A dessacralização do templo, sacerdote e oferta: Uma revolução na


espiritualidade

Se esta tese estiver correta, ou seja, a de que Jesus reuniu no cristão os


símbolos mais importantes da espiritualidade, dando-lhe liberdade para exercer sua
própria fé autonomamente, então as implicações desta verdade opera uma desconstrução
na formatação da religião e do cristianismo em toda a sua história. Pode-se supor o que
aconteceria se o cristianismo perseverasse nesta verdade até os dias de hoje. Que
impacto teria? Pois, a bem da verdade, templo, sacerdócio e oferta são os instrumentos
utilizados cada vez mais para manipulação e alienação dos membros das igrejas. É com
base no argumento da valoração do templo como casa de Deus, que se erige “catedrais”
de alto custo, também com base no argumento do sacerdócio que se faz existe uma
classe com privilégios em meio à comunidade, e é com base no argumento das ofertas e
sacrifícios que muitos estão arrecadando grandes somas de dinheiro, chegando mesmo a
equiparar-se à multinacionais. Ou seja, todos que se alimentam deste tripé religioso a
muito tempo, terá aversão à verdade de que em Cristo, estes instrumentos tornam-se
inúteis. E é coerente pensar assim. Se o propósito de Deus em Cristo seria universalizar
a espiritualidade cristã, nada mais lógico do que desterritorializar e desmitificar a fé,
tornando-a menos burocrática, algo interior e mais simples, capaz de ser “carregada”
para qualquer lugar do mundo. E é isto que nós vemos quando da dispersão dos
discípulos em Atos dos Apóstolos, pois “entrementes, os que foram dispersos iam por
toda parte pregando a palavra” (Atos 8.4). Eles transportavam a mensagem sem
precisarem de nenhum apetrecho exterior, apenas o kerigma, a boa notícia de que Deus
“estava em Cristo reconciliando consigo mesmo o mundo, não imputando aos homens
as suas transgressões” (2Co 5.19)
20

Vejamos como seria uma possível comunidade com esta consciência:

1) Haveria reuniões, mas não templos ou lugares sagrados. Conforme


Jesus e a totalidade do Novo testamento, a “casa” de Deus seria a comunidade dos
discípulos, ou seja, a reunião dos indivíduos batizados misticamente em Cristo, esta,
verdadeiramente sagrada. Haveria lugar de reunião, mas nunca com a conotação de ser a
“casa” de Deus. Ato conseqüente, não se teria grandes somas de dinheiro elevando
imensa catedrais, verdadeiras torres de babel com o pretexto de serem palácios para
Deus. Talvez seja por isso que não há provas históricas de qualquer templo construído
nos três primeiros séculos da história da igreja. Somente no reinado de Alexandre
Severo, em 222 dC é que se tem uma indicação de um lugar para reunião da igreja.
Outros dizem que o primeiro templo cristão começou a ser construído por Constantino,
sob influência de sua mãe Helena, em 327 d.C. O certo é que passou-se pelo menos 200
anos para que se ouvisse falar de igreja como templo.

2) Não haveria uma classe sacerdotal aristocrata. Pelo menos, não da


forma da estrutura e teologia levítica vétero-testamentária. Os pastores e presbíteros
deveriam se moldar não mais à imagem do sacerdócio levítico e sim, no modelo de
pastoreio de Jesus. Uma vez que tal função foi coletivizada, uma família que detém os
privilégios e direitos de serem os mediadores entre Deus e os homens torna-se obsoleta.
Ora, em Cristo, todos se tornam sacerdotes de si mesmos. Tal função, pois, deixou de
ser especializada e se tornou comum a todos. Contudo o Novo testamento aponta líderes
na igreja como guias espirituais, administradores e àqueles que se desgastam no ensino
da Palavra. Há uma maturação na vida da fé que precisa ser acompanhada. Mas esse
processo deveria ser apenas monitorado, concluído quando houvesse uma autonomia de
fé na vida do indivíduo, quando ele não precisasse mais do aio. Além disso, tais guias
exerceriam liderança nunca com os privilégios da classe levítica vetero-testamentária
que se sobressaia acima dos demais alegando preciosismo, especialidade, poder e
autoridade, únicos detentores da mediação.

Seria essa a missão de Jesus? Apresentar à humanidade uma religião sem


caráter dogmático, sem casta sacerdotal, sem clero especializado, sem templos, sem
ritos, que suplanta a vasta construção simbólica, complexa e detalhista do Velho
Testamento? É bem sabido que os ritos são parte integrante das religiões que se
assentam nos mitos, posto que os ritos rememoram e atualizam a tradição como uma
21

forma pedagógica de transmissão do saber sagrado. De maneira que religião e mito sem
rito é estéril. Porém, se Cristo tornou obsoletos os ritos que acompanham o templo e sua
casta sacerdotal levítica, juntamente com suas ofertas, estamos diante da verdadeira
demitologização na história das religiões, tão poderosa quanto a que os filósofos gregos
fizeram com sua mitologia. Uma espiritualidade composta da mais pura subjetividade e
abstração, ou seja, um culto totalmente livre de qualquer interstício material, mediador,
palpável, “humano”. Mas, quem suportaria uma religiosidade sem templos, sacerdotes e
ritos? Jesus e os primeiros discípulos viveram-na?

3) Não haveria ofertas e sacrifícios especiais. Pelo mesmo motivo, a oferta


e o sacrifício agradável agora é o ser do crente e as boas obras que, mediante a fé, ele
executa. O que agrada a Deus na Nova Aliança são os sacrifícios da subjetividade, que
se manifestam a posteriori na espiritualidade concreta: amor fraternal, ações de graça,
reverencia, piedade, andar na verdade, boa consciência e os que, são conseqüências
destes, no agir cristão: prática do bem e mútua cooperação (Hb 12:8; 13:15-16); auxilio
aos pobres e viúvas, santidade(Gál 2:10; Tg 1.27). Isto pode até ser mesmo visto no
Salmo 50, quando Deus pede misericórdia e ações de graças mais do que holocaustos.
Ou quando Jesus diz “mas, se vós soubésseis o que significa: misericórdia quero e não
holocaustos, não teríeis condenado inocentes” (Mt 12.7).

4) No governo da igreja, não haveria hierarquia forte entre os cristãos.


Conforme Hb 13.17, o pastor seria um guia e não um “pai que exerce autoridade”. Ele
cumpriria uma função pedagógica, tal como a Lei serviu de aio para os judeus, ou seja,
o líder seria um fomentador do crescimento das pessoas, mas nunca exerceria domínio
sobre elas, embora, juntamente com a assembléia, teria autoridade para disciplinar
membros faltosos (Mt 18.15-17). Pedro é claro em orientar que os presbíteros devem ser
“modelos”(IPe 5.1-3) e não dominadores do rebanho; Porém, mesmo Cristo dizendo
que só há um mestre, pai e guia(Mt 23.8-10), não pudemos fugir da tradição do
paternalismo pastoral, da tutoria da fé. Alternativamente, viveríamos num sistema de
governo parecido com a democracia, mas bem melhor do que ela. Imagine um grupo de
pessoas onde cada um, caminhando conforme a sua consciência, ciente de quem é,
vendo-se livres, mas voluntariamente se submetendo ao líder eleito pelo grupo como
guia espiritual. É como algo parecido com que o livro de provérbios relata ao analisar o
trabalho das formigas: “vai ter com a formiga, ó preguiçoso, considera os seus caminhos
22

e sê sábio. Não tendo ela chefe, nem oficial, nem comandante, no estio, prepara o seu
pão, na sega, ajunta o seu mantimento”(Pv 6.6-7). Os insetos são seres maravilhosos.
Formigas, abelhas e cupins possuem um instinto societário impressionante e, com estes
minúsculos seres há uma inversão estonteante de uma famosa frase que diz que “o todo
é melhor que as partes”. Em certo aspecto isto é verdade, porque cada inseto trabalha
sinergicamente para o todo, mas não deixa de ser verdadeiro que, como cada um se doa
de maneira magistral no serviço, pode-se dizer muito bem que “cada parte é melhor que
o todo”. As formigas, abelhas e cupins não precisam de uma patrulha fiscal para
imporem à eles o que sabem que deve ser feito. Seu trabalho é voluntário, espontâneo,
disponível e estritamente responsável. Seria esta a consciência de cada numa
comunidade onde teria um líder eleito pelos seus. Este, um escolhido entre os iguais,
onde cada um sabe de suas responsabilidades e as executa sem precisar de estímulos,
propagandas subliminares, ameaças, ofensas, promessas de castigo, maldição ou
recompensas. O serviço cristão seria, assim, tal qual no reino dos insetos, instintivo, ou
melhor, intuitivo. Este modelo de relação líder-liderado parece por demais utópico,
ideal, na prática liderar uma igreja de carnais, criancinhas em Cristo dá muita dor de
cabeça, que o diga Paulo (ICo 3mas é o que está proposto no Novo Testamento

O monárquico nunca deveria ser a forma de governo da igreja, posto que


tolhe qualquer anseio de liberdade e participação polular; o congregacionalismo estaria
mais perto de um modelo neotestamentário, cujo princípio é de igualdade entre os
membros, “pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus, porque
todos quantos fostes batizados em Cristo de Cristo vos revestistes, destarte, não pode
haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque
todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3.26-28). Eis o que Jesus diz a respeito de
exercer a liderança na igreja: “mas Jesus lhes disse: Os reis dos povos dominam sobre
eles, e os que exercem autoridade são chamados benfeitores, mas vós não sois assim;
pelo contrário, o maior entre vós seja como o menor; e aquele que dirige seja como o
que serve” (Lc 22.25,26). De maneira que o Novo Testamento não sustenta qualquer
distinção entre clero e leigo, sacerdote e povo, nem com relação à qualidade ou posição.
Antes, sugere a instauração de um regime que alie autoridade e liberdade, sendo a
submissão voluntária. É digno de nota, nesse ínterim, o que Paulo escreve aos coríntios
sobre disciplina e submissão: “e estando prontos para punir toda desobediência, uma
vez completa a vossa submissão” (IICo 10.6). Parece que Paulo quer dizer que a
23

eficácia de sua autoridade, depende da consciência de submissão dos coríntios. Uma


atitude nada coercitiva ou impositiva, mas baseada na lei da liberdade das consciências.
No mesmo espírito, ele não vai ter com os romanos como o depositário especial e único
de todos os dons para os distribuir entre eles, mas como um que quer compartilhar, “isto
é, para que, em vossa companhia, reciprocamente nos confortemos por intermédio da fé
mútua, vossa e minha” (Rm 1.11). Qual líder moderno nivela-se dessa maneira com o
restante dos que crêem? Antes, o que é ensinado é que existe uma casta sacerdotal que
está sempre acima da congregação e que tem poder de vida e morte sobre os membros..

5) Na economia da igreja, a maior parte do dinheiro arrecadado seria


devolvido para a comunidade em forma de benefícios ou para os trabalhos
verdadeiramente missionários. As igrejas atuais estão isentas de todo tipo de imposto
que incide sobre o patrimônio, mas muito raramente, há algumas delas que devolvem
algum centavo para a comunidade. Na maioria das vezes, todo o dinheiro arrecadado é
para o investimento da visão empreendedora do líder, em ampliações, projetos
arquitetônicos, reformas, etc. Em oposição a esta “economia da estrutura de alvenaria”,
haveria uma releitura de Ml 3.10 à luz da verdade de que “a minha casa” são as pessoas,
ou seja, a comunidade dos discípulos e não a instituição jurídica, institucional, ainda
que esta precise de sustento e manutenção para funcionar, mas haveria uma prioridade
proporcional ao humano, mais do que às coisas. Isto faria com que houvesse um
redirecionamento do “mantimento da minha casa”, dos dízimos e ofertas do templo-
pedra para o templo-pessoa. Ou seja, o dinheiro arrecadado seria devolvido à
comunidade em forma de benefícios. Creio que a igreja em Atos 4.32-35 levou às
últimas conseqüências este entendimento, executou isso com maestria. “Tudo lhes era
comum” e “Nenhum necessitado havia entre eles”. Isto evitaria o mau uso dos recursos
onde muitos “sonhos pessoais” de grande empreendedorismo, travestidos de visão de
Deus estão desviando o fim para o qual serve o dinheiro na igreja.

6) As visões e revelações não seriam apenas para "ungidos" especiais.


Haveria distribuição de dons, mas, jamais segredos ocultos somente para os iniciados e
revelações privilegiadas. Isto é Gnosticismo e não cristianismo. O Espírito Santo que dá
as visões, revelações e unção foi “derramado” na igreja para todos. De maneira que, o
universo dos discípulos fora “mergulhado” (baptizo) no Espírito. De certo que deveria
se cumprir a profecia de Ezequiel, citada em Hebreus:
24

Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles
dias, diz o Senhor: na sua mente imprimirei as minhas leis, também sobre o
seu coração as inscreverei; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. E
não ensinará jamais cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão,
dizendo: Conhece ao Senhor; porque todos me conhecerão, desde o menor
deles até ao maior (Hb 8.10,11, ver Hb 5.12).

Eis o que aconteceria se a igreja levasse às últimas conseqüências, com


todas as suas implicações lógicas, o fato de que templo, sacerdote e oferta tornam-se
aqueles que crêem e que agora vivemos segundo a ordem de Melquisedeque, em Cristo.
A teologia, sociologia, antropologia, economia e até mesmo a música eclesiástica seria
revista e reformada, com a exclusão de qualquer elemento levítico, quer seja teológico,
litúrgico ou estrutural e assumiria o espírito de Jesus, conforme o Novo Testamento no
trato do governo e economia da igreja. Posto que o templo salomônico-levítico ruiu em
Cristo, segue-se que se torna em nulidade os sacerdotes que habitavam nele e suas
oferendas. Bem assim, são nulos os mecanismos de controle mascarados de "autoridade
espiritual", "paternidade espiritual", "filiação espiritual" e coisas do gênero que tem tão
somente o fim de alienar e escravizar (IICo 11.19,20).

V. A igreja neotestamentária

De tudo o que foi dito, a espiritualidade cristã, porém, não pressupõe um


culto de uma pessoa só, sem reuniões, sem líderes, enfim, sem uma estrutura básica.
Não há como negar o aspecto comunitário da fé cristã (At 2.42; 20.7; 1Co 10.16, Hb
10.25 ); a própria palavra “igreja”, escolhida pelos autores tanto da septuaginta como do
Novo Testamento significa “reunião”, “assembléia”, retirada do contexto político grego;
a igreja, como qualquer ajuntamento humano precisa de líderes, guias, conselheiros e
ensinadores (ITm 5.17); além disso, a igreja não pode, simbolicamente, viver sem um
mínimo de liturgia possível, posto que a história demonstra que tudo o que é humano se
institucionaliza. Mas é preciso primeiro saber duas coisas, quais símbolos são estes e
que importância possuem. Pois, o que acontece na igreja institucionalizada é a
desmedida de levar tais símbolos ao extremo da essencialidade, a colocá-los até mais
importantes que a pessoa, a ser complexamente burocrática e exageradamente ritualista.
A questão que nos é posta agora é: o que se pode dizer com propriedade a respeito da
estrutura de uma igreja conforme o Novo Testamento? Aqui, faço uso das considerações
de LADD (1997, 329), onde fez com propriedade, escrevendo a respeito da
institucionalização da igreja:
25

O culto, na igreja primitiva, é marcado por grande simplicidade. Além da


adoração no templo, há também reuniões nos lares cristãos (Atos 2.46; 5.42),
para o partir do pão e comunhão nas refeições. A expressão sugere a mesma
prática observada, mais tarde, nas igrejas paulinas: uma refeição comum ou
ágape, que é associada à Ceia do Senhor (ICo 11.20 e 34). Refeições em
comum tinham desempenhado um papel importante no ministério de Jesus
(Mt 9.10,11; 11.19; Lc 15.1,2; At 1.4) e continuaram a desempenhá-lo na
experiência religiosa da igreja primitiva. Lares particulares forneceram os
locais de reunião para os atos de adoração cristã distintos do judaísmo. No
Pentecostes, um grande número de judeus abraçou a fé cristã (2.41; ver
também 4.4; 5.14), e não há evidência de que um grupo tão grande pudesse
se congregar num único lugar. O padrão é antes o de muitas pequenas
“igrejas-lares”, congregações separadas, análogas às sinagogas judaicas. Este
também é o modelo das igrejas de Paulo, pois freqüentemente lemos a
respeito da igreja em casa de alguma pessoa

Além desse aspecto da igreja-lar, havia a 1) prática do batismo aos que


aceitassem a fé; 2) à parte dos apóstolos, uma liderança formal(diáconos) foi formada
quando um problema interno surgiu no seio da igreja, pois as viúvas gregas se acharam
preteridas pelas viúvas hebraicas quando da distribuição diária dos alimentos. Breve,
presbyteros ou “anciãos” ou “bispos” foram designados para supervisionar a igreja
(Atos 11.30; 15.2, 22; 16.4, Ef 20.17,28); 3) Havia o exercício das charismata, ou dons
espirituais (Rm 12.6-8; ICo 12.8-10; 29-30; Ef 4.11ss); 4) e havia a prática da missão,
que era o intento intenso de levar a mensagem a outros povos, línguas e nações, pois é o
que se depreende de Mt 28.19-29, Mc 16.15, Lc 24.49, Jo 20.21, Atos 1.8.

VI. Fé cristã, ritos, amuletos e superstições

Na história das religiões o ritual é imprescindível. Não há religião sem rito.


Eles ligam toda a estrutura de fé do fiel aos poderes espirituais. As religiões primitivas
eram míticas e ritualistas, A grega também, As orientais idem, Israel tinham sua
estrutura levítica carregada de simbolismos e ritos; a igreja católica, seus amuletos, e a
eucaristia seria a realização do rito na sua mais pura acepção, posto que “revive”
literalmente o verter do sangue de Cristo e a presença de seu corpo; as religiões afro e
indígena também tem seus ritos de iniciação, de fertilidade e de salvação.

O espiritismo kardecista, por ter uma postura teórico-metodológica própria,


empírica, não adota rituais, imagens ou amuletos, nem mesmo sacerdotes, posto que
para eles, todos estes atos seriam oriundos das velhas e primitivas concepções
religiosas.
26

O rito é um ato religioso simbólico e institucionalizado cuja eficácia é de


ordem sobrenatural, pelo menos parcialmente. Para realizar este ato utilizam-se, por
vezes, objetos. Do ponto de vista da antropologia, o rito visa a fazer reviver por uma
coletividade mitos religiosos ou sociais, ou, pelo menos, permitir-lhe representar
crenças mágicas. Em outras palavras, regras e cerimônias que se devem observar na
prática de uma religião. Os ritos e superstições promovem arcos narrativos de sentido às
crenças do fiel. São tentativas de controle dos poderes invisíveis e desconhecidos.

A superstição é a atribuição de poderes a objetos, circunstâncias, dias ou


ocorrências onde os mesmos se tornam portadores da capacidade de alterar a realidade,
mudar destinos, executar milagres e decidir sobre vida e morte do possuidor. Estipula-se
uma relação de causa e efeito entre a coisa e o evento, porém, sem nenhuma
comprovação. Tal ação é capaz de influenciar positiva ou negativamente o curso da
vida. Alguns atos supersticiosos mais populares: não passar por baixo de escadas, “fazer
figa”, gato preto, quebra de espelhos, etc.

Com o advento da filosofia, os gregos racionalizaram seus mitos. Da mesma


forma que os mitos utilizavam-se de histórias para explicar a origem das coisas e do
mundo, a filosofia iria em busca das origens não mais utilizando-se do universo
fantástico, mas dos argumentos extraídos da relação razão-natureza, do pensamento-
mundo. O cristianismo por sua vez, na sua elaboração teórica estritamente filosófica
demitologizou as religiões de mistério, profundamente supersticiosas e ritualistas.
Mesmo assim, a igreja praticava dois ritos que Jesus instituiu: o batismo e a ceia. Esta
com a declaração clara da natureza do rito no sentido de reviver e atualizar um evento
primordial, no passado: “fazei isto em memória de mim” (ICo 11.24). No entanto este
rito tem um diferencial dos demais, pois ele prenuncia um evento também, pois envolve
o futuro nele, coisa estranha à concepção tradicional do mito e, assim, torna-se
escatológico: “porque, todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice,
anunciais a morte do Senhor, até que ele venha” (ICo 11.26)

No entanto, alguns textos do Novo testamento sugerem ritos. Jesus cura,


abençoa e exorciza com a imposição de mãos. Em Nazaré:“Não pôde fazer ali nenhum
milagre, senão curar uns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos(Mc 6.5); a estranha
maneira dele curar o cego de Betsaida: “Jesus, tomando o cego pela mão, levou-o para
fora da aldeia e, aplicando-lhe saliva aos olhos e impondo-lhe as mãos, perguntou-lhe:
27

Vês alguma coisa? Este, recobrando a vista, respondeu: Vejo os homens, porque como
árvores os vejo, andando, então, novamente lhe pôs as mãos nos olhos, e ele, passando a
ver claramente, ficou restabelecido; e tudo distinguia de modo perfeito” (Mc 8.22-25);
abençoando as crianças: “então, tomando-as nos braços e impondo-lhes as mãos, as
abençoava” (Mc 10.16); curando muitos enfermos: “ao pôr-do-sol, todos os que tinham
enfermos de diferentes moléstias lhos traziam; e ele os curava, impondo as mãos sobre
cada um” (Lc 4.40); A mulher na Sinagoga: “e, impondo-lhe as mãos, ela
imediatamente se endireitou e dava glória a Deus” (Lc 13.13);

A imposição de mãos continua em Atos: Então, Ananias foi e, entrando na


casa, impôs sobre ele as mãos, dizendo: Saulo, irmão, o Senhor me enviou, a saber, o
próprio Jesus que te apareceu no caminho por onde vinhas, para que recuperes a vista e
fiques cheio do Espírito Santo (Atos 9.17); No envio dos missionários: Então, jejuando,
e orando, e impondo sobre eles as mãos, os despediram(Atos 13.13); Para a
manifestação do Espírito Santo: “vendo, porém, Simão que, pelo fato de imporem os
apóstolos as mãos, era concedido o Espírito {Santo} , ofereceu-lhes dinheiro”(Atos
8.18); Em Atos 19.6: “e, impondo-lhes Paulo as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo;
e tanto falavam em línguas como profetizavam”. Na cura do pai do hospitaleiro Públio:
“Aconteceu achar-se enfermo de disenteria, ardendo em febre, o pai de Públio. Paulo foi
visitá-lo, e, orando, impôs-lhe as mãos, e o curou”(Atos 28.8).

Além disso, Paulo lembra Timóteo de um dom concedido pelo presbitério:


“Não te faças negligente para com o dom que há em ti, o qual te foi concedido mediante
profecia, com a imposição das mãos do presbitério”(ITm 4.14); e: “Por esta razão, pois,
te admoesto que reavives o dom de Deus que há em ti pela imposição das minhas
mãos”(ITm 1.6). A imposição de mãos era uma doutrina fundamental nos primórdios da
igreja: “por isso, pondo de parte os princípios elementares da doutrina de Cristo,
deixemo-nos levar para o que é perfeito, não lançando, de novo, a base do
arrependimento de obras mortas e da fé em Deus, o ensino de batismos e da imposição
de mãos, da ressurreição dos mortos e do juízo eterno”(Hb 6.1,2)

Há um episódio em atos que se enquadra no conceito de superstição.


Encontramos a narrativa de que se levavam lenços de Paulo para executarem curas e
exorcismos: “a ponto de levarem aos enfermos lenços e aventais do seu uso pessoal,
diante dos quais as enfermidades fugiam das suas vítimas, e os espíritos malignos se
28

retiravam” (Atos 19.12); Ainda, na epístola de Tiago, encontramos a recomendação da


unção com óleo aos enfermos: “está alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da
igreja, e estes façam oração sobre ele, ungindo-o com óleo, em nome do Senhor, e a
oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados,
ser-lhe-ão perdoados” (Tg 5.14).

Será o cristianismo ritualista e supersticioso? Ele apóia tais práticas? Pode-


se dizer com segurança, que o cristianismo adota como ritos o batismo, a ceia, a
imposição de mãos e a unção com óleo como os únicos na sua prática litúrgica, pelo
menos no que se pode auferir textualmente. Estes, ou tem uma prática na vida de Jesus e
dos apóstolos (o caso da imposição de mãos) ou são recomendados por Jesus e nas
cartas (que é o caso do batismo, ceia e unção com óleo). O rito que Jesus fez ao curar o
cego foi casual, posto que ele curou outros cegos e não fez o mesmo procedimento (Mt
9.28, Mc 10.49); os lenços de Paulo também foram casuais, posto que em nenhum outro
lugar tal ato é recomendado. Na unção com óleo, Tiago deixa claro que quem irá curar o
enfermo é a “oração da fé”; ora, sabemos que, simbolicamente, o óleo representa o
Espírito Santo, que é o dedo de Deus para realizar prodígios (Lc 11.20), por isso, a
necessidade da unção. Como diz McLAREN(2006, 87) sobre a diversidade dos sinais e
maravilhas que Jesus realizava

Cada sinal e maravilha foi criativo e exclusivo, recusando a serem reduzidos


a uma fórmula ou a um mecanismo. Por exemplo, certa vez Jesus curou uma
doença com saliva e barro, em outra ocasião lavando em água, em outra,
simplesmente dizendo uma palavra a distância

Na verdade, o que o cristianismo fez foi desburocratizar o acesso a Deus,


tornando mais simples a espiritualidade, que era um fardo, cujo peso nem os próprios
líderes judaicos queriam suportar (Mt 23.4, Atos 15.10)

VII. Nova lei, novo sacerdote: nova ordem, novo estilo de liderança

Mas então surge uma questão intrigante. Se for assim, com tanta liberdade
para a pessoa desenvolver a si própria, então para que serve os líderes? Eles deveriam
exercer uma função parecida com a da lei para os judeus. São aios para conduzir os
neófitos a Cristo. E deveriam acompanhá-los no processo de maturação espiritual afim
de que eles se tornassem adultos espirituais (Hb 5.12-14) e conquistassem
independência, como um pai cria e educa um filho. A instrução deveria ser como a de
29

Cristo, até que os discípulos pudessem fazer suas próprias orações, invocar suas
próprias bênçãos, oferecer suas próprias ofertas, etc. Nesta fase, quando cada pessoa
atingiria sua própria fortaleza na fé, não precisaria mais de um aio. Vejamos o que diz
Hebreus 5.12 a esse respeito: “pois, com efeito, quando devíeis ser mestres, atendendo
ao tempo decorrido, tendes, novamente, necessidade de alguém que vos ensine, de
novo, quais são os princípios elementares dos oráculos de Deus; assim, vos tornastes
como necessitados de leite e não de alimento sólido” Infelizmente, o que há é
continuamente a dependência do líder, de sua imposição de mãos, de sua autoridade e
de seus ensinamentos, continuando a perpetuar as crianças em Cristo (ICo 3.1,2; 13.11,
Hb 5.12,13, IPe 2.2).

Diante do exposto, qual o desafio do líder da igreja que queira viver


segundo a teologia neotestamentária? Talvez um governo(será esta a palavra adequada?)
onde existisse o domínio que não humilha ainda que seja efetivamente domínio, que
aceitasse e respeitasse a sacerdotalização de todos onde cada um dos indivíduos da
comunidade tem em si a shekinah de Deus. Assim a igreja poderia realmente exercer o
poder que não explora ainda que seja efetivamente poder; a autoridade que não dobra a
coluna ainda que seja efetivamente autoridade (Mt 7.29, 2Co 10.8, Tt 2.15) ; o
privilégio que não abusa ainda que seja efetivamente privilegio. A parte que lhe cabe é
instruir, orientar, sugerir, guiar, sempre tendo em vista que as pessoas necessitam dele
para o crescimento espiritual, porém, uma vez que alguém atinge a maturidade
espiritual, essa pessoa não é mais inocente dos seus atos e deve responder por eles. É
assim que o Novo Testamento vê o líder; alguém que possui a magna função de cuidar
das pessoas até que elas cresçam e, uma vez que aprendam a “andarem sozinhas”, o
guia está livre de suas obrigações com a mesma. Esse é o melhor caminho para a
libertação de alguém, em qualquer sentido que se fale dela. A forma paternalista que a
igreja brasileira assumiu de como cuidar do rebanho, só atrasa o crescimento espiritual
das pessoas e as impedem de serem livres. Daí porque temos membros frágeis na
doutrina, nada ousados na fé e dependentes dos seus pastores para tudo. Tomo aqui
algumas categorias da ética filosófica para exemplificar. Na ética, existe as categorias
da heteronomia e da autonomia do agir.

A ética heteronômica é aquela em que o meu agir, o meu “dever fazer” parte
de algo externo. As determinações da minha conduta vem sempre de um mecanismo de
30

fora: um código escrito ou algum líder, ou uma instituição detém o poder de decidir por
mim, o que devo pensar e o que devo fazer. Os filósofos consideram infantil quem age
dessa forma, pois agem tal qual a criança que precisa sempre de um tutor para agir.
Aqui caberia uma reflexão sobre o que Paulo queria dizer sobre a Lei ser um aio(lit.
pedagogo) para os judeus. Na sua época, as famílias ricas tinham um escravo culto que
ensinava seus filhos a educação e Paulo diz que assim foi a função da Lei até o advento
de Cristo. Ora, não há duvida que Paulo está declarando que o cristianismo é a
emancipação espiritual do indivíduo, que não precisa mais da lei(móvel externo) para
decidir, posto que ela foi interiorizada pela transformação espiritual que Cristo efetua.
Em Cristo, dá-se a “maioridade espiritual” diz Paulo. Não preciso de uma lista de “faça
e não faça” fora de mim, posto que aprendi a decidir corretamente de acordo com a
revelação de Cristo em mim.

Uma vez adquirida a maioridade espiritual, a responsabilidade se desloca da


coletivização para a individuação. Um estudo da progressividade da revelação nos
mostra que na vigência da lei, a responsabilidade era coletiva, pois quando Acã peca,
mesmo tendo se arrependido e confessado o erro, toda sua família, inclusive os animais,
são condenados (Js 7:1-26). Mas, à medida que, a partir dos profetas, nos aproximamos
da iminência da revelação do Cristo, a responsabilidade vai se tornando cada vez mais
individual e isto é imprescindível para a maturidade do indivíduo. É o que lemos, por
exemplo, em Ezequiel 18:1-28. Aqui a responsabilidade é individual, independente do
histórico familiar, do mau ou bom caráter dos pais ou dos filhos, pois cada um
responderá por si mesmo, pelos seus próprios atos. Isto está sintetizado na frase “a alma
que pecar, essa morrerá” (v4). Paulo faz eco à Ezequiel quando também atesta isso em
dizer que Deus “retribuirá a cada um segundo o seu procedimento” (Rm 2.6) ou, no
melhor texto sobre tolerância e de boa convivência que ele escreveu, ele destaca:
“assim, pois, cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus” (Rm 14.12, ver 2Cor
5.10). Eis aqui o bar mitzvah do espírito cristão, a certeza de que ninguém pode mediar
a vida cristã de ninguém, a não ser ele próprio em Cristo Jesus. Da mesma forma que
Kant afirmava que a menoridade do homem é a incapacidade dele fazer uso do seu
próprio entendimento, assim, também é a criança em Cristo, a infantilidade cristã é a
incapacidade de o crente fazer uso da sua própria fé, ficando sempre dependente de
tutela para tal.
31

Analisemos a expressão “quando eu era menino” na primeira carta aos


Coríntios, capitulo 13.11. Embora Paulo se dirija aos cristãos da cidade de Corinto, a
maioria dos intérpretes afirma que a expressão “menino” corresponde a “fé judaica”. A
ética autônoma é a forma de agir de quem atingiu a fase adulta do pensar, tornou-se
maduro em decisões, e isto se utilizando do poder da racionalidade que está nele
mesmo. Kant é um arauto da ética autônoma. Em vários de seus escritos ele defende a
autonomia da razão, o poder de refletir por si mesmo para determinar algo, isso ele
deixa bem claro na sua resposta à pergunta O que é o esclarecimento, no final de sua
resposta ele diz sapere auti, ou seja, “ouse pensar”

Óbvio que, do ponto de vista cristão, não se pode defender a autonomia tal
qual a filosofia a deseja. Uma autonomia absoluta do ser, uma autosuficiencia que não
depende de nada nem ninguém a não ser do único tribunal crível: a razão. No
Cristianismo, essa auto-suficiência, essa maturidade, implica estar envolvido numa
comunidade, onde há troca de afetos, compreensão, respeito e submissão em amor. No
cristianismo, não existe “hierarquia”i, a autoridade não é impositiva, e a submissão é
voluntária e consciente onde todos são iguais, porém, isso não implica de forma alguma
em anarquia e individualismo egoísta, os iguais elegem dentre eles alguns que exercerão
autoridade sobre questões concernentes à doutrina e disciplina. Contudo, tal autoridade,
como disse Jesus não deveria ser de forma alguma semelhantes aos poderosos deste
mundo. F.F.BRUCE (2003, 383-384) faz uma bela tradução livre da carta de Paulo a
Filemon onde mostra o que Paulo entendia como relação de autoridade e submissão:

É por essa razão que lhe faço este pedido; faço-o por causa do amor, apesar
de poder exercer minha autoridade no nome de Cristo e lhe ordenar que faça
a coisa certa. Sim, eu poderia ordenar-lhe, como embaixador de Cristo Jesus;
mas não farei isso, prefiro pedir-lhe um favor como Paulo, prisioneiro de
Cristo Jesus... Escrevo esta carta, porque tenho toda confiança em sua
obediência; sei que você fará mais do que peço

O líder seria um pedagogo para que os da fé cheguem lá; desenvolvendo as


potencialidades do crer cujo motor já está nas pessoas, até que elas exerçam a fé sólida,
autônoma, livre. Eis a perícia e o desafio que o Cristo nos impõe: poder sem domínio;
autoridade sem opressão; glória sem orgulho; riqueza sem ostentação. Mas, quem, até
hoje, experienciou dessa forma? Seremos um dia capazes de viver conforme essa
autenticidade do indivíduo outorgada por Cristo? Os líderes exercendo a liderança com
a sofisticação e a nobreza do Cristo? Os membros exercendo sua fé na plenitude de sua
maturidade, responsáveis por si mesmos sem precisar que ninguém mais lhes ensine,
32

antes ensinando a outrem? Com a sua proposta efetiva de superação de todas as formas
de opressão, com seu fim tendo a liberdade do indivíduo enquanto capaz de ser em si
mesmo o agente do religare na sua mais profunda acepção, eis a proposta do novo
Sumo Sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque.

Qual é a sutil tentação para a liderança da igreja de todos os tempos?


Resposta: A mesma contestação que Jesus sofreu quando do início de sua missão.
Segundo JEREMIAS (2008, 126)

A tentação no deserto consiste em que Jesus deveria, como Moisés, repetir o


milagre do Maná. A adoração a Satã sobre o monte elevado tem claramente
como objeto impor-se como líder político. O salto do pináculo do pórtico do
templo, finalmente, deve ter sido entendido como um milagre espetacular
para legitimar a missão de Jesus. Isso significa que em todas as três variantes
da história trata-se de uma só e da mesma tentação: apresentar-se como
Messias Político... A tentação política, que implicava em evitar a via do
sofrimento, acompanhou como uma sombra durante toda a sua atividade

E J.Jeremias conclui dizendo que “os discípulos estavam


constantemente na mesma situação de tentação que ele próprio (Lc 22.28; a tentação
que se situava na esperança messiânica política foi nos dias da vida de Jesus também a
tentação deles”(idem, 130), ou seja a “via fácil do aplauso público” . Ora,
essa aparição política, com poder e autoridade, riquezas e glórias,
sinais e prodígios é o desejo do sacerdote que perdeu o foco da
paixão, que se politizou, que como um senador ou um deputado quer
“comandar”, ter regalias pela via fácil. Mas a peregrinação de Jesus,
sua via crucis, diz o contrário “quem quiser ser grande que se torne
servo”. Isto é radicalmente diferente do que se esperava do messias
davídico-levítico. Está claro que a fé em Cristo não é um judaísmo
melhorado, nem ao menos uma extensão dele; é algo total e
radicalmente novo, revolucionário, com uma nova lei, uma nova
ordem e uma nova espiritualidade. Uma verdadeira contra-cultura.

VIII. A excelência da Nova Aliança

A questão da relação entre os dois testamentos já gerou muitas controvérsias


na ordem de qual deles tem a primazia, se sobressai ou quem valida ou invalida quem.
Houve quem não fez distinção entre eles, atestando uma continuidade, outros uma
descontinuidade. Este presente livro, em vista a tudo o que foi escrito, é a favor da
33

descontinuidade, mais, de uma ruptura entre Velha e Nova Aliança. Isto, não quer de
forma nenhuma desmerecer a escriturística do Velho Testamento, portanto “tudo
quanto, outrora foi escrito, para o nosso ensino foi escrito” (Rm 15.4), ou “toda a
Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção,
para a educação na justiça” (2Tm 3.16). Mas aqui o que se tem em vista é o conteúdo da
essência da espiritualidade entre as alianças, onde há sim uma evidente diferença. Ora,
para quem ainda tem dúvidas sobre esta questão, basta analisar de como a epístola aos
Hebreus tem o propósito de demonstrar a superioridade de Cristo a tudo o que o
judaísmo tinha em alta conta (anjos, Moisés, templo, sábado, sacerdócio levítico,
sacrifícios), o autor atreve-se a ir longe na sua oposição ao Velho Testamento: “quando
ele diz Nova, torna antiquada a primeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e
envelhecido está prestes a desaparecer” (Hb 8.13). É intrépido ao falar da lei afirmando
que a mesma jamais aperfeiçoou coisa alguma devido à sua "fraqueza e inutilidade" (Hb
7.18,19). Mas não é somente o autor de Hebreus que faz essa aguda análise da
excelência da Nova Aliança.

Paulo anuncia uma gritante discrepância entre a justiça da lei e a justiça que
é pela fé em Romanos 10:3-10. Paulo diz que o amor de Deus excede todo
entendimento e eu aplico este mesmo espanto de Paulo à justiça de Deus, visto que não
dá pra enquadrar o ato salvífico de Deus em Cristo, em nenhum conceito de justiça
humano, que é individualista, utilitário, proporcional e retributivo. No antigo
Testamento a justiça de Deus era meritória, conforme prescrita por atos condicionais na
lei: “faça isso e receberás aquilo”, contudo, vejamos como Paulo argumenta com os
judeus de Roma: "Ora Moisés descreve a justiça que é pela lei, dizendo: O homem que
fizer estas coisas viverá por elas (teologia da retribuição). Mas a justiça que é pela fé
diz assim: Não digas em teu coração: Quem subirá ao céu? (isto é, a trazer do alto a
Cristo) Ou: Quem descerá ao abismo? (isto é, a tornar a trazer dentre os mortos a
Cristo)". Esta teologia, e que foi também a dos reformadores, diz que homem algum faz
por merecer ser justificado, e mais, com relação à salvação, homem nenhum teria o
poder de fazer encarnar a Cristo ou ressuscitá-lo dentre os mortos, de maneira que
sempre é necessária a intervenção de Deus como o ponto de partida e o de chegada para
a salvação do homem.
34

Paulo serviu-se de “muita ousadia no falar”(IICo 3.12) tanto quanto


Hebreus, quando em IICoríntios 3, ele compara os ministérios das Alianças, inclusive
com palavras duras. A Velha foi escrita “em tábuas de pedras” com “tinta”; sua
prescrição “mata”; os sacerdotes levíticos são ministros “da letra”; A Antiga oficiou um
“ministério da morte”, mesmo, um “ministério da condenação”; Ela teve a sua glória
desvanecente. Em contraposição ele exalta os aspectos da Nova aliança, esta é uma
“carta escrita no coração”, “pelo espírito do Deus vivente”, em “tábuas de carne, isto é,
nos corações”, seus ministros oficiam o “espírito que vivifica”. Seu “ministério é o da
justiça”; sua glória é “sobreexcelente” e “permanente”. E conclui dizendo que todo
aquele que ainda está debaixo da Velha aliança com Moisés tem um véu sobre seus
sentidos: “Pois até ao dia de hoje, quando fazem a leitura da antiga aliança, o mesmo
véu permanece, não lhes sendo revelado que, em Cristo, é removido, mas até hoje,
quando é lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles” (IICo 3.14,15).

Esta verdade é tão evidente que não há dúvidas, mesmo entre os judeus
contemporâneos, que o Cristianismo não é uma continuidade do judaísmo. Apesar de as
últimas pesquisas demonstrarem que só se pode entender Jesus se ele for estudado
dentro do seu Sitz im Leben7, - ou seja, dentro do contexto do judaísmo de seus dias e,
ele, como um judeu de seu tempo -, um intelectual como Harold Bloom 8(2006, 267),
que é perspicaz em encontrar incompatibilidades, por exemplo entre filosofia e
literatura, defende a tese no seu livro Jesus e Jave: Os Nomes Divinos, da
irreconciabilidade entre Cristianismo e Judaísmo, conclui ele que “o diálogo entre
cristãos e judeus não é sequer mito – no mais das vezes, trata-se de farsa”.

IX. Melquisedeque como modelo da nova ordem sacerdotal em Cristo

Melquisedeque é a figura mais enigmática da Bíblia e, segundo


CULLMANN, “sua pessoa alimentou desde a antiguidade a imaginação dos judeus”9.
As informações sobre ele são mínimas, ele é descrito apenas em Gn 14 e no Salmo 110
e hermeneuticamente aplicado a Jesus em Hb 7.

7
“situação vital”, uma expressão da teologia alemã que, ao fazer a exegese dos textos bíblicos procura
situá-los no seu contexto histórico-cultural o mais autêntico possível.
8
famoso crítico literário estadunidense, professor de Humanidades na Universidade de Yale, que escreve
freqüentemente sobre religião e a Bíblia. Diz que sua cultura é judaica, mas não crê na Aliança, nem
mesmo a mosaica.
9
Cristologia do Novo testamento, pg 114
35

Esta superação vétero-testamentária é razoável sob o argumento de Hebreus


que mostra que Jesus é sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque(Hb 5.6, 6.20),
este, como demonstra no seu capítulo central, maior que Levi(Hb 7.1-17). Segundo o
autor, posto que Jesus era da tribo de Judá, donde nunca “Moisés atribuiu
sacerdotes”(Hb 7.14) e não da tribo de Levi, há mudança no sacerdócio e também na lei
(v.12), como também a instituição dos sacerdotes não é mais arônica (v.11) - nem de
qualquer casta dos Hebreus, visto que Melquisedeque nem mesmo participa da
genealogia hebréia10 (Hb 7.6) -, mas segundo aquele “que não foi feito segundo a lei do
mandamento carnal, mas segundo a virtude da vida incorruptível” (Hb. 7.16). Qual
seria o modelo então do novo ordenamento sacerdotal? Seria,
segundo Hebreus, que do mesmo modo que o Sumo Sacerdote Levítico gerava
outros sacerdotes segundo a lei, assim o Sumo Sacerdote Jesus gera sacerdotes segundo
a ordem de Melquisedeque? E qual seria seus aspectos fundamentais? A orientação que
Jesus deu aos discípulos quanto à liderança? Ou seja, que qualquer que reivindique
"realeza", "nobreza", "excelência" ou alguma posição "principesca" acima da
comunidade-sacerdotal estaria em contradição com a nova forma de ser líder e a nova
ordem de Melquisedeque?

Uma das provas da superioridade de Melquisedeque sobre Abraão, é que


este e Levi, ainda não nascido, deram o dízimo e foram abençoados (Hb 7.4, 9). O
argumento de Hebreus é o da primazia. O mesmo que Jesus utiliza
para mostrar que é superior a Abraão, e, por conseguinte a Moisés,
em João 8.58 “Disse-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que antes que
Abraão existisse, eu sou”. É o mesmo que Paulo utiliza quando demonstra a
superioridade da fé segundo a promessa em relação às obras da lei,
na epístola aos Gálatas. A promessa tem uma primazia de quatro
séculos diante da lei pois "uma aliança já anteriormente confirmada por Deus, a
lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois, não a pode ab-rogar, de forma que venha
a desfazer a promessa" (Gl 3.17). Segue-se a mesma lógica ao ligar a figura de Cristo ao
sacerdócio de Melquisedeque: a ordem de Melquisedeque é maior que a de Levi, pelo
simples fato de Abraão ter sido abençoado por este enigmático sacerdote e dar-lhe o
dízimo; dessa forma, Levi, que depois iria ter o privilégio e a obrigatoriedade de cobrar
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Gn 14.18. Salém, antiga Jebus, viria a ser Jerusalém ou Sião. Sem maiores explicações, Melquisedeque
já era sacerdote do Deus Altíssimo em Jerusalém, 900 anos antes mesmo de esta ter sido conquistada por
Davi (ICr 11.4-9) e ter se tornado o centro espiritual de Israel e a cidade escatológica por excelência.
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os dízimos de seus irmãos, "pagou-os na pessoa de Abraão"(Hb 7.9) a este rei de salém.
Além do que, pelo fato do patriarca dar-lhe dos despojos como dízimo, o autor conclui
que este Melquisedeque era maior que Abraão, pois "abençoou o que tinha as
promessas...Evidentemente, é fora de qualquer dúvida que o inferior é abençoado pelo
superior" (Hb 7.6,7). De maneira que tanto a promessa, quanto a ordem sacerdotal de
Melquisedeque é instituída anteriormente e assim, superior à lei, ao ordenamento
levítico e até mesmo à nobreza escatológica da ascendência davídica ao messiado. A
epístola aos Hebreus, antes de ser somente contrária ao templo, está interessada em
demonstrar a obsolescência da religião bíblica em princípio.

Segundo CULLMAN (2002, 119, 120), o salmo 110, donde é citado


Melquisedeque é, no mínimo intrigante, posto que Jesus o utilize duas vezes em
situações onde é posto um contraste com dois poderosos arquétipos judaicos: a) A
filiação davídica do Messias e b) ao sacerdócio judaico. Ao que Jesus rejeita tanto um
quanto o outro. Diz ele:

Trata-se, primeiro, da pergunta feita aos escribas a respeito do Filho de


Davi(Mc 12.35ss)...podemos supor que Jesus fala de si mesmo. Se tal for o
caso – e bem parece que seja assim, em razão do contexto e da intenção
segundo a qual Jesus cita o Salmo – isto seria de suma importância para o
conhecimento da consciência que Jesus tinha de si mesmo: ele saberia ser o
Rei-Sacerdote “segundo a ordem de Melquisedeque”... a segunda passagem
em que Jesus cita o Salmo 110 é mais clara. Trata-se de sua resposta ao sumo
sacerdote em Mc 14.62. Jesus uniu aqui, em um só pensamento, Daniel 7 e o
Salmo 110: “vereis o Filho do Homem sentado à direita do poder de Deus
vindo sobre as nuvens do céu”. O “estar sentado à direita” liga-se
indissoluvelmente à imagem do rei-Sacerdote “segundo a ordem de
Melquisedeque” Não é significativo que Jesus aplique a si mesmo a palavra
relativa ao Sumo Sacerdote eterno no preciso instante em que comparece
diante do sumo sacerdote judaico, que o interroga sobre a pretensão do seu
messiado? Por sua resposta subtende-se que o seu messiado não é o do
Messias Nacional que os judeus esperavam; mais ainda: não reivindica nem a
função de sumo sacerdote terreno que tem diante de si; senão que quer ser o
Filho do Homem celestial e o Sumo Sacerdote celestial. Esta resposta é, pois,
paralela à que dá a Pilatos no evangelho de João (18.36): diante do
representante terreno da autoridade, afirma que Sua soberania não é deste
mundo; frente ao sumo sacerdote terreno, afirma que também o Seu
sacerdócio não é deste mundo

Mas em que consiste precisamente esta ordem de Melquisedeque, cujo


poder e simbolismo foi transferido agora para o Cristo Cósmico? Consiste no fato de
que toda mediação entre Deus e seu povo é feita única e exclusivamente por meio de
Cristo sem quaisquer outros intermediários. É assim que Albert Schweitzer, no seu livro
O Misticismo de Paulo, nos dá pistas. Segundo SCHWEITZER, Paulo nunca se dirigia
diretamente a Deus, senão por intermédio de Cristo, ou seja, o Cristo tornou-se o grande
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mediador cósmico entre Deus e os homens em todas as circunstancias, as frases “em


Cristo”, “por meio de Cristo”, “nele” são necessárias no vocabulário teológico de Paulo.
Éste é o misticismo crístico, ou seja, o “Estar-em-Cristo” não ser ao mesmo tempo o
“Estar-em-Deus”. Isto quer dizer que Cristo é o grande prisma, pelo qual, e tão somente
por meio dele tudo perpassa, e por meio do qual o homem pode se chegar a Deus; e não
somente o homem, mas toda a Criação. O “Estar-em-Deus” só acontecerá na
consumação de todas as coisas, por enquanto, é “por meio de Cristo” e “nele” que Deus
age. Ora, se somente em Cristo, os homens podem chegar-se a Deus, sendo ele o único
mediador, então não há razão de ser o ofício sacerdotal terreno, humano. Pois dessa
maneira, haveria duas mediações, as dos homens na terra e a de Cristo no céu, o que é
ilógico. É assim que Cristo está a interceder pelos homens junto a Deus (Hb 4.15; 5.2) e
advogando suas causas(IJo 2.1), em um santuário celestial “não feito por mãos
humanas”. Em suma, a mediação de Cristo não pode ser apropriada por homem
nenhum, e essa mediação é direta, sem templos, ritos ou sacrifícios, apenas pela fé
somente. Utilizar objetos e quinquilharias como “muleta” para a fé, é um desserviço a
esta verdade, assim como servir-se de qualquer teologia de resultados, de retribuição ou
de causa e efeito. Aqui está o salto qualitativo entre Velha aliança e Nova
Aliança, fato que, uma grande maioria ainda não se apercebeu. Porém,
quando percebermos, a questão é: teremos coragem de "seguir ao argumento até onde
ele nos levar"?

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Século,

17. VERNANT, Jean Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
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Coloquei “hierarquia” entre aspas para distinguir da hierarquia rígida, de disputa e imposição de poder que vemos no
mundo e na maioria dos sistemas eclesiásticos existentes hoje.

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