JESUS
E A DESSACRALIZAÇÃO DO
TEMPLO, SACERDÓCIO E
SACRIFÍCIO
“também vós mesmos, como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual para
serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais agradáveis a Deus
por intermédio de Jesus Cristo” (IPe 2.5)
Alagoinhas, BA
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2010
Prefácio
sacerdócio segundo este “rei de salém” e de como a igreja deve viver uma
espiritualidade que não tenha como modelo o culto levítico da Velha Aliança.
4
História da Teologia Cristã: 2000 Mil anos de tradição e Reformas, pág. 556
5
FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1988. p. 55
6
muitos livros, A História do Povo de Israel, em cinco volumes, Vida de Jesus, História
das Origens do Cristianismo, e a Igreja Cristã. Sobre os evangelhos, nega qualquer
revelação ou intervenção sobrenatural, rejeitando qualquer menção de mistério ou
milagres. Sua obra se tornou uma referência obrigatória para agnósticos e ateus.
Schleiermacher (1768-1834) é considerado o pai da teologia protestante liberal e da
hermenêutica filosófica. Foi um gigante na exegese bíblica e chegou a pastorear, mas
negou a historicidade dos milagres. Tentou “salvar” a teologia das bases racionais
transportando-a para as bases do sentimento. Sua “essência do cristianismo” é a de que
a humanidade possui uma consciência de Deus e, por conseguinte, um sentimento de
total dependência dEle, sendo Jesus o maior exemplo disto, pois sua consciência de total
dependência de Deus era distinta do resto da humanidade. Adolf Von Harnack (1851-
1930), teólogo alemão e historiador do cristianismo. De acordo com OLSON(1999,
566)
O seminário utiliza sua própria versão da Bíblia, traduzida por eles mesmos,
e alguns dos seus pressupostos para o estudo cristológico na verdade é uma síntese dos
principais postulados resultantes da pesquisa histórica sobre Jesus, desde o séc XVIII: A
distinção entre o Jesus histórico e o Cristo da Fé( Reimarus, Bultmann); os evangelhos
sinóticos como historicamente mais fidedignos(escola alemã); A prioridade de Marcos,
antes de Mateus e Lucas (História da Tradição); O documento Q (Crítica das Fontes);
rejeição da escatologia ou apocalíptica de fim de mundo para uma escatologia
“realizada”. Também, não é preciso muito pra inferir que o Seminário Jesus nega os
principais dogmas do Cristianismo: o nascimento virginal, a ressurreição e os milagres
dos evangelhos.
reuniam-se nas casas. O movimento prima por um forte apelo evangelístico e enfatiza
bastante a questão relacional e comunitária proporcionada no ambiente das células.
Paradoxalmente, os líderes das igrejas que se utilizam do método de crescimento,
almejam serem governantes de “igrejas de multidões”.
Enfim, este foi um passeio sucinto pela história da igreja, a fim de que se
percebesse que o tema “cristianismo autêntico” ou “cristianismo primitivo”, foi
recorrente e ainda hoje o é. Tal problema foi alvo dos mais eminentes pensadores, desde
a igreja pós-apostólica, teólogos medievais, filósofos modernos e contemporâneos,
historiadores, críticos literários, pedagogos e lingüistas. Pode-se observar que a maioria
das dissidências da igreja utiliza como argumento o mote do “voltemos à igreja das
origens”. Entretanto, longe de querer ser original, espero contribuir para mais um olhar
nessa tentativa de perceber mais um aspecto do “cristianismo original”, enriquecendo
um novo jeito de ser igreja. É claro que não contemplei autores eruditos importantes
como Bruno Bauer (1809-1882), Albert Schweitzer (1875-1965), Rudolf Bultmann
(1884-1976), Paul Tillich (1886-1965), Karl Barth (1886-1968), Emill Brunner (1889-
1966) e outros, pois fugiria à proposta do livro.
I. Introdução
Fora isto, até o Budismo, que não tem Deus, nem pecado, possui o seu
templo, os seus sacerdotes e os seus sacrifícios. O templo na concepção tradicional era a
morada de Deus, a classe sacerdotal era a mediadora da boa relação Deus/Homem, e os
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No medievo, o povo apenas comia das migalhas que caiam das mesas da
aristocracia espiritual, com a missa em latim e a leitura e interpretação da Bíblia
proibida para o leigo. No início da Idade Moderna, Lutero fez um esforço grandioso
para viver a liberdade cristã ao descobrir a justificação pela fé. Percebeu que era
sacerdote de si mesmo, que não era escravo de ninguém, embora servo de todos; que as
mediações haviam findado em Cristo, restando somente a graça; que a interpretação das
Escrituras deveria ser laicizada; porém, tudo isso não foi suficiente. Após a Reforma
Protestante, cada país que aderiu ao movimento instituiu sua Igreja Oficial, ligada ainda
ao Estado, influenciando nas decisões políticas. Continuou o sacerdócio, a aristocracia
eclesiástica e as bênçãos especiais. Mesmo após vários movimentos de renovação, quais
sejam, os reavivamentos, o pentecostalismo, etc., com todos eles tendo como intento e
lema o “retorno ao cristianismo das origens”, nenhum deles, se libertou completamente
da tradição levítica, ou seja, continuaram atrelados ao templo, ao sacerdócio e às ofertas
como necessários para a comunhão com Deus. E, nos dias atuais, em especial no Brasil,
os neo-pentecostais levaram estes símbolos à mais alta sacralidade, tornando-os
necessários para que se busque o favor de Deus. Os mega-templos são verdadeiras obras
salomônicas, na verdade, torres de Babel, com a intenção de tornar “célebre o nosso
nome” (Gn 11.4); a classe sacerdotal, ou seja, os apóstolos e bispos, com uma
hierarquia forte e rígida estão divinizados no meio do povo, constituindo um grupo
altamente elitista; ofertas e sacrifícios são partes essenciais de uma teologia de
retribuição, onde Deus só abençoa se for recompensado financeiramente, se houver
sacrifícios; ritos, símbolos e superstições pululam em suas reuniões. Ou seja, o culto
levítico sempre esteve como modelo do modo de ser da igreja até os dias de hoje.
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Ele também foi considerado o sacrifício de expiação dos pecados: “no dia
seguinte, viu João a Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o
pecado do mundo” (Jo 1.29). É óbvio aqui a alusão ao cordeiro pascal imolado no dia
da libertação do povo de Israel do Egito e que se tornou a tradição na festa do dia da
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“O título µ ε σ ι τ ε ς , mediador - termo técnico de ordem jurídica, com o qual se designa o
árbitro ou o fiador – não é mais que uma variante do título de sumo sacerdote” (Cullmann, Cristologia do
Novo Testamento. 2002, pág 121)
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expiação para os judeus. É assim que Paulo afirma nominalmente: “lançai fora o velho
fermento, para que sejais nova massa, como sois, de fato, sem fermento. Pois também
Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado” (ICo 5.7) e Pedro corrobora: “sabendo que
não foi mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do
vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como
de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo” (IPe 1.18,19). A morte de
Jesus também é chamada de oferta: “e andai em amor, como também Cristo
nos amou e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em aroma
suave” (Ef 5.2), ainda em Hebreus 10.10: “Nessa vontade é que temos sido
santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas”; ainda em
Hebreus: “Jesus, porém, tendo oferecido, para sempre, um único sacrifício pelos
pecados, assentou-se à destra de Deus ... Porque, com uma única oferta, aperfeiçoou
para sempre quantos estão sendo santificados (Hb 10.12,14)
absorvido pela vida” (IICo 5.4), Pedro também: “considero justo, enquanto estou neste
tabernáculo, despertar-vos com essas lembranças, certo de que estou prestes a deixar o
meu tabernáculo, como efetivamente nosso Senhor Jesus Cristo me revelou” (2Pe
1.13,14).
Com relação à oferendas, pode ser dito que se, pois o cristão é um sacerdote,
ele também não precisa mais de mediador pra oferecer oferta e sacrifícios a Deus, posto
que neste quesito, ele é sacerdote de si mesmo, adquirindo assim, o direito de oferecer
sua própria oferta: “Por meio de Jesus, pois, ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de
louvor, que é o fruto de lábios que confessam o seu nome ... Não negligencieis,
igualmente, a prática do bem e a mútua cooperação; pois, com tais sacrifícios, Deus se
compraz” (Hb 13.15,16). Daí porque agora, ajudar alguém nas suas necessidades
substitui o incenso e o sacrifício levítico. Veja o que Paulo diz quando recebe a ajuda
dos Filipenses: “Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde que Epafrodito
me passou às mãos o que me veio de vossa parte como aroma suave, como sacrifício
aceitável e aprazível a Deus” (Fp 4.18).
Mas é no texto de IPe 2.5 onde encontramos tudo o que foi dito até aqui,
reunidos num único verso: “também vós mesmos, como pedras que vivem, sois
edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes
sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo” (grifo
meu). Está aqui, numa só frase, a reunião dos elementos fundamentais do religare.
Isto ao mesmo tempo, é escandaloso porque fere o orgulho da complexa religiosidade,
que sempre viu o religare como o trabalho mais árduo da humanidade: deísta(Deus está
muito distante), ascético(somente por meio de extrema purificação pode se atingir a
luz), moral (deve haver uma lista de proibições que nos santifique), gnóstico(Deus é
bom e a criação é má, daí a necessidade do esforço árduo ou da revelação secreta) e
maniqueísta(Há dois princípios, o Bem e o Mal que interferem e controlam a vida dos
humanos); e extraordinário porque, uma vez concebido, é de uma simplicidade
aterradora.
estava ligado a um lugar, ou ainda, ele torna-se a própria sacralidade. Esta já não é mais
exterior, não está no mundo lá fora, mas em-si. É digno de nota que, na era patriarcal e
mesmo depois, durante a peregrinação no deserto a espiritualidade era nômade como o
povo o era. Deus acompanhava o grupo migrante para onde quer que ele fosse,
conforme está escrito: “estarei contigo para onde quer que fores”. Neste caso, não havia
necessidade de fazer peregrinações a um determinado local de culto ou santuário. O
Deus dos pais não se encontra em um santuário, mas é peregrino. Por isso, os patriarcas
constroem altares por onde passam. Os próprios patriarcas, são sacerdotes de si
mesmos, também realizam os ritos religiosos necessários, posto que o ofício sacerdotal
formal, elitizado, só viria mais tarde com a instituição da lei. De maneira que as
peregrinações e romarias à uma geografia sacra tornam-se inúteis, a busca da bênção de
um guru que detenha uma suposta autoridade para mediar não faz mais sentido, bem
como ofertar algo, algum objeto consagrado para agradar ou apaziguar a divindade é em
vão. Deus agora tem no ser-em-si tudo o que lhe agrada; uma morada, a auto-mediação
e a oferenda de si próprio. Deus torna-se nômade novamente em Cristo e, em seguida,
no cristão. De forma que, a fé, agora tal como no deserto, é um constante caminhar com
uma “logística” simples de levar Deus aonde quer que acampe. Assim, depois da Nova
Aliança, só há um lugar onde se reúne toda à sacralidade no mundo: o ser em Cristo.
Talvez seja isso o que Pedro pretenda dizer que Deus “nos deu tudo o que diz respeito à
vida e piedade”, e por isso somos “participantes da natureza divina” (2Pe 1.3,4)
Diante dessas evidências bíblicas, o que ocorre é uma dessacralização do
templo feita por Jesus, que já se evidencia com o encontro com a samaritana em João,
capítulo 4. Uma conseqüência séria destas premissas é a questão do lugar sagrado, o
lugar de adoração e da shekinah de Deus. Mas Jesus mesmo é quem desmitifica isso.
Segundo CULLMANN (2000, 37) “sua conversação lhe apresenta, por um lado, a
ocasião de falar do verdadeiro culto ‘em espírito e em verdade’ oposto, por sua vez ao
culto judaico oficial do templo de Jerusalém e ao culto samaritano de Gerazim”. É bom
lembrar o diálogo; a mulher de Samaria diz a Jesus:
Nossos pais adoravam neste monte; vós, entretanto, dizeis que em Jerusalém
é o lugar onde se deve adorar; ao que Jesus lhe respondeu: “mulher, podes
crer-me que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém
adorareis o Pai, Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes que o
Pai procura para seus adoradores, Deus é espírito; e importa que os seus
adoradores o adorem em espírito e em verdade (Jo 4.20-24).
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Para a estupefação de qualquer judeu, Jesus diz que a presença divina não
está mais ligada a um lugar; que Jerusalém, cidade do grande Rei, donde procederá a lei,
onde o templo foi construído, onde as festas eram celebradas, onde o sacrifício era
executado, não é mais o centro de adoração e peregrinação para se encontrar Deus e seu
perdão; o adorador agora torna-se um templo vivo que carrega Deus em si. Tal
afirmação é um absurdo para o espírito religioso. Mas não o era, por exemplo, para
Estevão, o primeiro mártir cristão, que já tinha consciência da dessacralização do
templo quando afirma: “Entretanto, não habita o Altíssimo em casas feitas por mãos
humanas” (Atos 7.48), o que provocou o espírito de zelo pela religiosidade
do templo, ao ponto de apedrejá-lo. CULLMANN (2000, 36-38) analisa
o discurso de Estevão da seguinte forma
Segue-se que não precisando mais de um lugar para adorar, alguém para
mediar, ou algo para oferecer, o cristão tem o privilégio de carregar o sagrado para onde
ele for. Ora, se me torno um templo, um sacerdote e uma oferta andante, encarnado em
mim mesmo, não preciso de um templo geograficamente determinado; não preciso de
uma casta elitizada de sacerdotes especiais, os quais me conduziriam a Deus e não
preciso de sacrifícios fora de mim para agradar a Deus, pois eu mesmo sou “o bom
perfume de Cristo”(IICo 2.15) ou posso oferecer meu ser como “sacrifício vivo”(Rm
12.1).
forma pedagógica de transmissão do saber sagrado. De maneira que religião e mito sem
rito é estéril. Porém, se Cristo tornou obsoletos os ritos que acompanham o templo e sua
casta sacerdotal levítica, juntamente com suas ofertas, estamos diante da verdadeira
demitologização na história das religiões, tão poderosa quanto a que os filósofos gregos
fizeram com sua mitologia. Uma espiritualidade composta da mais pura subjetividade e
abstração, ou seja, um culto totalmente livre de qualquer interstício material, mediador,
palpável, “humano”. Mas, quem suportaria uma religiosidade sem templos, sacerdotes e
ritos? Jesus e os primeiros discípulos viveram-na?
e sê sábio. Não tendo ela chefe, nem oficial, nem comandante, no estio, prepara o seu
pão, na sega, ajunta o seu mantimento”(Pv 6.6-7). Os insetos são seres maravilhosos.
Formigas, abelhas e cupins possuem um instinto societário impressionante e, com estes
minúsculos seres há uma inversão estonteante de uma famosa frase que diz que “o todo
é melhor que as partes”. Em certo aspecto isto é verdade, porque cada inseto trabalha
sinergicamente para o todo, mas não deixa de ser verdadeiro que, como cada um se doa
de maneira magistral no serviço, pode-se dizer muito bem que “cada parte é melhor que
o todo”. As formigas, abelhas e cupins não precisam de uma patrulha fiscal para
imporem à eles o que sabem que deve ser feito. Seu trabalho é voluntário, espontâneo,
disponível e estritamente responsável. Seria esta a consciência de cada numa
comunidade onde teria um líder eleito pelos seus. Este, um escolhido entre os iguais,
onde cada um sabe de suas responsabilidades e as executa sem precisar de estímulos,
propagandas subliminares, ameaças, ofensas, promessas de castigo, maldição ou
recompensas. O serviço cristão seria, assim, tal qual no reino dos insetos, instintivo, ou
melhor, intuitivo. Este modelo de relação líder-liderado parece por demais utópico,
ideal, na prática liderar uma igreja de carnais, criancinhas em Cristo dá muita dor de
cabeça, que o diga Paulo (ICo 3mas é o que está proposto no Novo Testamento
Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles
dias, diz o Senhor: na sua mente imprimirei as minhas leis, também sobre o
seu coração as inscreverei; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. E
não ensinará jamais cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão,
dizendo: Conhece ao Senhor; porque todos me conhecerão, desde o menor
deles até ao maior (Hb 8.10,11, ver Hb 5.12).
V. A igreja neotestamentária
Vês alguma coisa? Este, recobrando a vista, respondeu: Vejo os homens, porque como
árvores os vejo, andando, então, novamente lhe pôs as mãos nos olhos, e ele, passando a
ver claramente, ficou restabelecido; e tudo distinguia de modo perfeito” (Mc 8.22-25);
abençoando as crianças: “então, tomando-as nos braços e impondo-lhes as mãos, as
abençoava” (Mc 10.16); curando muitos enfermos: “ao pôr-do-sol, todos os que tinham
enfermos de diferentes moléstias lhos traziam; e ele os curava, impondo as mãos sobre
cada um” (Lc 4.40); A mulher na Sinagoga: “e, impondo-lhe as mãos, ela
imediatamente se endireitou e dava glória a Deus” (Lc 13.13);
VII. Nova lei, novo sacerdote: nova ordem, novo estilo de liderança
Mas então surge uma questão intrigante. Se for assim, com tanta liberdade
para a pessoa desenvolver a si própria, então para que serve os líderes? Eles deveriam
exercer uma função parecida com a da lei para os judeus. São aios para conduzir os
neófitos a Cristo. E deveriam acompanhá-los no processo de maturação espiritual afim
de que eles se tornassem adultos espirituais (Hb 5.12-14) e conquistassem
independência, como um pai cria e educa um filho. A instrução deveria ser como a de
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Cristo, até que os discípulos pudessem fazer suas próprias orações, invocar suas
próprias bênçãos, oferecer suas próprias ofertas, etc. Nesta fase, quando cada pessoa
atingiria sua própria fortaleza na fé, não precisaria mais de um aio. Vejamos o que diz
Hebreus 5.12 a esse respeito: “pois, com efeito, quando devíeis ser mestres, atendendo
ao tempo decorrido, tendes, novamente, necessidade de alguém que vos ensine, de
novo, quais são os princípios elementares dos oráculos de Deus; assim, vos tornastes
como necessitados de leite e não de alimento sólido” Infelizmente, o que há é
continuamente a dependência do líder, de sua imposição de mãos, de sua autoridade e
de seus ensinamentos, continuando a perpetuar as crianças em Cristo (ICo 3.1,2; 13.11,
Hb 5.12,13, IPe 2.2).
A ética heteronômica é aquela em que o meu agir, o meu “dever fazer” parte
de algo externo. As determinações da minha conduta vem sempre de um mecanismo de
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fora: um código escrito ou algum líder, ou uma instituição detém o poder de decidir por
mim, o que devo pensar e o que devo fazer. Os filósofos consideram infantil quem age
dessa forma, pois agem tal qual a criança que precisa sempre de um tutor para agir.
Aqui caberia uma reflexão sobre o que Paulo queria dizer sobre a Lei ser um aio(lit.
pedagogo) para os judeus. Na sua época, as famílias ricas tinham um escravo culto que
ensinava seus filhos a educação e Paulo diz que assim foi a função da Lei até o advento
de Cristo. Ora, não há duvida que Paulo está declarando que o cristianismo é a
emancipação espiritual do indivíduo, que não precisa mais da lei(móvel externo) para
decidir, posto que ela foi interiorizada pela transformação espiritual que Cristo efetua.
Em Cristo, dá-se a “maioridade espiritual” diz Paulo. Não preciso de uma lista de “faça
e não faça” fora de mim, posto que aprendi a decidir corretamente de acordo com a
revelação de Cristo em mim.
Óbvio que, do ponto de vista cristão, não se pode defender a autonomia tal
qual a filosofia a deseja. Uma autonomia absoluta do ser, uma autosuficiencia que não
depende de nada nem ninguém a não ser do único tribunal crível: a razão. No
Cristianismo, essa auto-suficiência, essa maturidade, implica estar envolvido numa
comunidade, onde há troca de afetos, compreensão, respeito e submissão em amor. No
cristianismo, não existe “hierarquia”i, a autoridade não é impositiva, e a submissão é
voluntária e consciente onde todos são iguais, porém, isso não implica de forma alguma
em anarquia e individualismo egoísta, os iguais elegem dentre eles alguns que exercerão
autoridade sobre questões concernentes à doutrina e disciplina. Contudo, tal autoridade,
como disse Jesus não deveria ser de forma alguma semelhantes aos poderosos deste
mundo. F.F.BRUCE (2003, 383-384) faz uma bela tradução livre da carta de Paulo a
Filemon onde mostra o que Paulo entendia como relação de autoridade e submissão:
É por essa razão que lhe faço este pedido; faço-o por causa do amor, apesar
de poder exercer minha autoridade no nome de Cristo e lhe ordenar que faça
a coisa certa. Sim, eu poderia ordenar-lhe, como embaixador de Cristo Jesus;
mas não farei isso, prefiro pedir-lhe um favor como Paulo, prisioneiro de
Cristo Jesus... Escrevo esta carta, porque tenho toda confiança em sua
obediência; sei que você fará mais do que peço
antes ensinando a outrem? Com a sua proposta efetiva de superação de todas as formas
de opressão, com seu fim tendo a liberdade do indivíduo enquanto capaz de ser em si
mesmo o agente do religare na sua mais profunda acepção, eis a proposta do novo
Sumo Sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque.
descontinuidade, mais, de uma ruptura entre Velha e Nova Aliança. Isto, não quer de
forma nenhuma desmerecer a escriturística do Velho Testamento, portanto “tudo
quanto, outrora foi escrito, para o nosso ensino foi escrito” (Rm 15.4), ou “toda a
Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção,
para a educação na justiça” (2Tm 3.16). Mas aqui o que se tem em vista é o conteúdo da
essência da espiritualidade entre as alianças, onde há sim uma evidente diferença. Ora,
para quem ainda tem dúvidas sobre esta questão, basta analisar de como a epístola aos
Hebreus tem o propósito de demonstrar a superioridade de Cristo a tudo o que o
judaísmo tinha em alta conta (anjos, Moisés, templo, sábado, sacerdócio levítico,
sacrifícios), o autor atreve-se a ir longe na sua oposição ao Velho Testamento: “quando
ele diz Nova, torna antiquada a primeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e
envelhecido está prestes a desaparecer” (Hb 8.13). É intrépido ao falar da lei afirmando
que a mesma jamais aperfeiçoou coisa alguma devido à sua "fraqueza e inutilidade" (Hb
7.18,19). Mas não é somente o autor de Hebreus que faz essa aguda análise da
excelência da Nova Aliança.
Paulo anuncia uma gritante discrepância entre a justiça da lei e a justiça que
é pela fé em Romanos 10:3-10. Paulo diz que o amor de Deus excede todo
entendimento e eu aplico este mesmo espanto de Paulo à justiça de Deus, visto que não
dá pra enquadrar o ato salvífico de Deus em Cristo, em nenhum conceito de justiça
humano, que é individualista, utilitário, proporcional e retributivo. No antigo
Testamento a justiça de Deus era meritória, conforme prescrita por atos condicionais na
lei: “faça isso e receberás aquilo”, contudo, vejamos como Paulo argumenta com os
judeus de Roma: "Ora Moisés descreve a justiça que é pela lei, dizendo: O homem que
fizer estas coisas viverá por elas (teologia da retribuição). Mas a justiça que é pela fé
diz assim: Não digas em teu coração: Quem subirá ao céu? (isto é, a trazer do alto a
Cristo) Ou: Quem descerá ao abismo? (isto é, a tornar a trazer dentre os mortos a
Cristo)". Esta teologia, e que foi também a dos reformadores, diz que homem algum faz
por merecer ser justificado, e mais, com relação à salvação, homem nenhum teria o
poder de fazer encarnar a Cristo ou ressuscitá-lo dentre os mortos, de maneira que
sempre é necessária a intervenção de Deus como o ponto de partida e o de chegada para
a salvação do homem.
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Esta verdade é tão evidente que não há dúvidas, mesmo entre os judeus
contemporâneos, que o Cristianismo não é uma continuidade do judaísmo. Apesar de as
últimas pesquisas demonstrarem que só se pode entender Jesus se ele for estudado
dentro do seu Sitz im Leben7, - ou seja, dentro do contexto do judaísmo de seus dias e,
ele, como um judeu de seu tempo -, um intelectual como Harold Bloom 8(2006, 267),
que é perspicaz em encontrar incompatibilidades, por exemplo entre filosofia e
literatura, defende a tese no seu livro Jesus e Jave: Os Nomes Divinos, da
irreconciabilidade entre Cristianismo e Judaísmo, conclui ele que “o diálogo entre
cristãos e judeus não é sequer mito – no mais das vezes, trata-se de farsa”.
7
“situação vital”, uma expressão da teologia alemã que, ao fazer a exegese dos textos bíblicos procura
situá-los no seu contexto histórico-cultural o mais autêntico possível.
8
famoso crítico literário estadunidense, professor de Humanidades na Universidade de Yale, que escreve
freqüentemente sobre religião e a Bíblia. Diz que sua cultura é judaica, mas não crê na Aliança, nem
mesmo a mosaica.
9
Cristologia do Novo testamento, pg 114
35
os dízimos de seus irmãos, "pagou-os na pessoa de Abraão"(Hb 7.9) a este rei de salém.
Além do que, pelo fato do patriarca dar-lhe dos despojos como dízimo, o autor conclui
que este Melquisedeque era maior que Abraão, pois "abençoou o que tinha as
promessas...Evidentemente, é fora de qualquer dúvida que o inferior é abençoado pelo
superior" (Hb 7.6,7). De maneira que tanto a promessa, quanto a ordem sacerdotal de
Melquisedeque é instituída anteriormente e assim, superior à lei, ao ordenamento
levítico e até mesmo à nobreza escatológica da ascendência davídica ao messiado. A
epístola aos Hebreus, antes de ser somente contrária ao templo, está interessada em
demonstrar a obsolescência da religião bíblica em princípio.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
3. BRUCE, F.F. Paulo: o apóstolo da graça, sua vida, cartas e teologia. São
Paulo: Shedd Publicações, 2003.
10. FLEW, Antony. Deus existe: as provas incontestáveis de um filósofo que não
acreditava em nada. São Paulo: Ediouro, 2008.
12. LADD. George Eldon. Teologia do Novo Testamento. 1ed. São Paulo: Exodus,
1997.
14. OLSON, Roger. História da Teologia Cristã: 2000 anos de tradição e reformas.
São Paulo: Editora Vida, 1999.
15. REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia antiga, v.1. São
Paulo:Paulus, 2003.
17. VERNANT, Jean Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
i
Coloquei “hierarquia” entre aspas para distinguir da hierarquia rígida, de disputa e imposição de poder que vemos no
mundo e na maioria dos sistemas eclesiásticos existentes hoje.