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CRUZ, Sebastião Velasco e MENDONÇA, Filipe.

O Campo das Relações Internacionais


no Brasil. Situação, Desafios, Possibilidades. IN MARTINS, Carlos Benedito e LESSA,
Renato (org.) Horizontes das ciências sociais no Brasil: ciência política. São Paulo,
ANPOCS, 2010. ISBN 978-85-98233-54-3 (Barcarolla).

O CAMPO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO BRASIL.. SITUAÇÃO,


DESAFIOS, POSSIBILIDADES.

Sebastião C. Velasco e Cruz


Filipe Mendonça

1. Introdução.

Para começo de conversa, uma palavra sobre a pertinência do tema, ou, pelo
menos, de seu lugar. Com efeito, por que falar de Relações Internacionais em um volume
dedicado ao estado da arte na Ciência Política?

Dado que o objeto das Relações Internacionais é o estudo da política mundial, a


resposta parece fácil: porque há uma unidade básica entre essa e as demais áreas da
disciplina, das quais ela se separa apenas por efeito da saudável lógica da divisão social do
trabalho. O exercício da autoridade legítima em territórios claramente delimitados e a
anarquia característica do sistema internacional são duas faces da mesma moeda. Uma não
vai sem a outra.

Quando tratamos de temas corriqueiros, podemos nos dar ao luxo de ignorar


esse fato. Assim, estudamos o jogo dos partidos no Congresso e as eleições, por exemplo,
como processos que se desenvolvem no âmbito da política doméstica de cada país, sem
dedicar muita atenção ao que pode estar ocorrendo simultaneamente em outras partes do
mundo. Por outro lado, damos por suposto os governos, com suas respectivas agendas,
quando tratamos de entender o desenrolar de uma negociação internacional. Mas em
situações mais profundas de crise, a distinção entre processos internos e externos se dilui.
Em 1964, os navios norte-americanos estavam a caminho da costa brasileira para intervir
em caso de necessidade. Em Honduras, em 2009, o Presidente Zelaia resistia ao golpe que o
depôs abrigado na Embaixada do Brasil, submetida a cerco militar cerrado por um governo
que a comunidade internacional desconhecia. E o que dizer dos conflitos que comoveram a
Geórgia, a Ucrânia, ou a velha Iugoslávia? Em todos esses casos torna-se impossível
separar política interna e internacional: existe apenas a política sans phrase.

O problema não se resolve, porém, de maneira tão simples. Cada domínio do


saber tem a sua história, o seu modo próprio de conceber a realidade (ainda que esse seja
frequentemente objeto de intensa disputa), suas formas características de abordar os temas
de estudo e de interagir com os domínios que lhe são afins. Com raízes plantadas na
história diplomática, no Direito Público Internacional e no ramo correspondente da
Economia, com o passar do tempo, as Relações Internacionais adquirem identidade própria,
e nem sempre seus praticantes se reconhecem como cientistas políticos.

No Brasil, esse fato tem dado lugar a um debate “interno” que já se prolonga há
anos. Seria ocioso examinar os argumentos esgrimidos pelos defensores das distintas
posições, para formular um juízo conclusivo sobre o tema em causa. O traçado das
fronteiras entre os campos científicos não obedece a nenhum princípio rígido: ele é o
resultado contingente e sempre mutável de processos que se dão no interior de cada campo
e em seu intercâmbio com os demais.

As Relações Internacionais sugiram na academia brasileira em íntima


associação com a Ciência Política, e esse vínculo se mantém no presente, expressando-se
institucionalmente na composição dos comitês que monitoram o sistema científico entre
nós. Se não houvesse outras, essa seria uma razão suficiente para incluir as Relações
Internacionais neste volume. Reconhecido o dado de realidade, bastaria acrescentar apenas,
nesta introdução, que sua vigência é precária, e pode se esgotar em futuro não muito
remoto.
Neste artigo, as Relações Internacionais no Brasil serão tratadas como um
campo distinto, que se conforma lentamente, e ganha fisionomia própria nas últimas
décadas. Não seria o caso de discorrer sobre essa noção, de emprego tão difundido na
Sociologia e outras disciplinas das Ciências Sociais. Mas convém dizer uma palavra rápida
sobre alguns de seus aspectos, de maior relevância para análise que se segue.

Tal como os entendemos, os campos

1) constituem-se como domínios distintos ao canalizar a atividade de seus


participantes para a consecução de fins comuns, apoiados em valores compartilhados.
Espaços no horizonte dos quais os agentes formulam planos de vida e realizam destinos
pessoais, os campos estabelecem os princípios que regulam as relações de cooperação e
competição entre os agentes, bem como os termos nos quais são definidos os interesses que
eles perseguem.

2) mantêm, uns com os outros, relações de maior ou menor proximidade. Como são
de tamanho e poder de atração diferente, suas relações tendem a ser marcadamente
assimétricas. Entre os campos é permanente a disputa pela primazia, que se mede em
termos de reconhecimento, prestígio, poder e recursos materiais. Nesse padrão de
relacionamento, é comum a penetração, a colonização dos campos mais débeis, que passam
a subordinar-se à lógica de ação dos campos mais fortes -- o que no limite pode levar ao
desaparecimento dos mesmos como segmentos distintos do espaço social. A autonomia,
portanto, não é nunca uma condição dada: ela resulta de um trabalho incessante de
autodefesa e de reafirmação de identidades.

3) envolvem a combinação de três atividades: auto-observação (operação pela qual


o sujeito reconhece tal ou qual elemento como parte de si próprio); auto-descrição
(produção de “artefatos semânticos” passíveis de serem referidos em processos
comunicativos subseqüentes como expressão de sua unidade); auto-reflexão, (operação que
se verifica quando o objeto considerado não é mais o observador ou o seu ambiente, mas a
unidade complexa que eles perfazem). Nos dois primeiros níveis a auto-referência ocorre
necessariamente nos campos; no terceiro ela existe como virtualidade. 1

Mas, a auto-referência não é uma propriedade exclusiva dos campos. Pelo contrário,
ela é co-extensiva à vida social. Nos processos mutuamente implicados de formação dos
Estados territoriais e do moderno sistema internacional a auto-referência se expressa na
longa decantação do conceito de soberania, na edificação das categorias do direito
internacional e nas formulações doutrinárias que procuravam dar conta da lógica que
presidia o relacionamento entre as unidades daquele sistema, servindo ao mesmo tempo
como guias práticos.

2. A formação do campo das relações internacionais no Brasil.

2.1. Primórdios

Na medida em que, rompido o vínculo colonial, o Brasil se incorporava àquele


sistema era inevitável que a reflexão sobre as condições de sua inserção viesse a se
manifestar. De forma embrionária, ela se faz presente já nos fundadores do Império, a
começar por José Bonifácio de Andrada e Silva, e -- de forma muito mais desenvolvida --
na obra de seus sucessores, com destaque para José Maria da Silva Paranhos Júnior, o
Barão do Rio Branco. A essa altura o Brasil já contava com uma tradição diplomática
consolidada, cujo lócus institucional era a o Itamaraty. Nessa época, e por muito tempo,
porém, a reflexão sobre o quadro internacional continuava a se fazer de forma fragmentária,
em discursos oficiais e artigos sobre temas da atualidade, e como aspecto ineludível da
atividade profissional dos diplomatas.

Com a criação do Instituto Rio Branco, em meados do século passado, esse


quadro começa rapidamente a se alterar. Com efeito, é como fruto das atividades docentes

1
Cf. Luhmann, Niklas, Social Systems, Stanford, Stanford University Press, 1995, cap. 11”Self Reference
and Rationality”, pp. 437-477.
desenvolvidas no Instituto que surgem as obras pioneiras de Hélio Vianna e de Delgado
Carvalho sobre a história diplomática do Brasil 2 ; resultado direto ou indireto também do
trabalho realizado nesse espaço são as obras de José Honório Rodrigues sobre a política
externa brasileira, aí incluídas as notas de curso ministrado entre 1946 e 1956, que vieram
tardiamente à luz como livro alguns anos atrás 3 . No ativo desse órgão, adicione-se ainda a
criação, em 1954, do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais e, conseqüentemente, a
criação em 1958 do mais antigo periódico especializado em circulação no País, a Revista
Brasileira de Política Internacional 4 . É bom destacar que antes disso, publicações
especializadas como a Revista de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas e a Revista
Brasileira de Estudos Políticos (1956) já faziam algumas aproximações com estudos da
política externa brasileira, embora sem a presença de um quadro de especialistas na área.

Não cabe especular aqui sobre as possíveis conexões entre esses


desenvolvimentos e a inflexão que a política externa brasileira conheceria pouco depois,
nos governos de Jânio Quadros e João Goulart. Mas convém assinalar a presença
importante de intelectuais oriundos dos quadros da diplomacia em uma publicação
ambiciosa, de alta qualidade e grande potencial, a revista Política Externa Independente,
que foi sufocada no seu terceiro número, pela censura do regime militar.

Apesar das restrições às liberdades em vigor, foi sob esse regime que algumas
iniciativas institucionais das mais importantes para a constituição da área de Relações
Internacionais no Brasil foram tomadas. Algumas rápidas menções bastam para ilustrar esta
assertiva: a Lei no. 5.717, de 26 de outubro de 1971, que criou a Fundação Alexandre
Gusmão; a decisão precursora da Universidade de Brasília de criar um curso de Graduação
em Relações Internacionais, que se tornou efetiva em 1974, e o lançamento pela editora
desta mesma universidade da “Coleção Pensamento Político’, que tornou amplamente
acessível ao leitor brasileiro um bom número de textos importantes sobre a temática da

2
Vianna, Hélio, História diplomática do Brasil, Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 1958, e
Delgado de Carvalho, Carlos, História Diplomática do Brasil, Rio de Janeiro, Companhia Editora
Nacional, 1959.
3
Rodrigues, José Honório e Steinfus, Ricardo A. S.., Uma história diplomática do Brasil (1531-
1945), Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1995.
4
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Revista Brasileira de Política Internacional: quatro décadas ao
serviço da inserção internacional do Brasil. Rev. bras. polít. int., Brasília, v. 41, n. spe, 1998 .
política internacional, entre os quais algumas obras clássicas (como Paz e Guerra entre as
Nações, de Raymond Aron, e Vinte Anos de Crise, de Edward Hallet Carr); ou ainda a
criação, em 1973, do Centro de Pesquisa e Documentação Contemporânea da Fundação
Getúlio Vargas (CPDOC) espaço no qual foram desenvolvidos estudos importantes sobre a
história das relações internacionais do Brasil 5

Mas não é só isso. Datam igualmente desse período a publicação de trabalhos


marcantes, que enriqueceram significativamente a incipiente bibliografia brasileira na área;
a criação de novas unidades de ensino e pesquisa, como o Instituto de Relações
Internacionais (IRI) da PUC-Rio -- que lançaria em 1985 a revista Contexto Internacional
e, pouco depois, o seu programa de Mestrado; as primeiras tentativas de dar algum grau de
organicidade à área, como os seminários internacionais realizados em Nova Friburgo, em
1977 e 1978 -- que desembocaram na criação de uma entidade com a denominação
expressiva de Conselho Brasileiro de Relações Internacionais; a criação, em 1978, do
Conselho Brasileiro de Relações Internacionais; a implantação de uma área de Relações
Internacionais no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), entidade criada
em 1976; a fundação do Núcleo de Estudos Estratégicos, em 1980, na UNICAMP; a
constituição, em 1981, de um grupo permanente de trabalho no âmbito da ANPOCS: o
GRIPE, Grupo de Estudos sobre Relações Internacionais e Política Externa; a criação da
revista Política e Estratégia, organizada pelo Centro de Estudos Estratégicos da Sociedade
Brasileira de Cultura e Convívio, mostrando-se um fórum de debates sobre questões
militares e estratégicas 6 ; a criação do Centro Brasileiro de Documentação e Estudos da
Bacia do Prata (CEDEP) na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS --, em
1983.

5
Cf., entre outros, os livros de Gerson Moura, Autonomia na dependência: a política externa brasileira de
1935 a 1942. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1980; Tio Sam chega ao Brasil, São Paulo, Ed.
Brasiliense, 1984, e Sucessos e ilusões - relações internacionais do Brasil durante e após a Segunda
Guerra Mundial , Rio de Janeiro, Ed.Fundação Getulio Vargas, 1991.
6
LESSA, Antônio Carlos. Instituições, atores e dinâmicas do ensino e da pesquisa em Relações
Internacionais no Brasil: o diálogo entre a história, a ciência política e os novos paradigmas de
interpretação (dos anos 90 aos nossos dias). Rev. bras. polít. int., Brasília, v. 48, n. 2, Dec. 2005
Essas indicações telegráficas não têm outro intuito senão o de balizar um
terreno que vem sendo explorado diligentemente pelo trabalho de vários colegas7 . Não
caberia resumir aqui os seus resultados. Da perspectiva que informa estas notas, importa é
reter a constatação que deles emerge: apesar dos inegáveis avanços obtidos, até o final do
período acima indicado a área de Relações Internacionais no Brasil era ainda rala e muito
fragmentada.

2.2. O campo das Relações Internacionais (quase?) Constituído

Passados vinte e cinco anos, a situação das Relações Internacionais no Brasil é


completamente distinta. Com efeito, nesse meio tempo houve um crescimento explosivo
dos estudos na área, e um correspondente processo de consolidação do campo, como
registrava, em 2005, o documento convocatório da reunião que daria origem à Associação
Brasileira de Relações Internacionais, ABRI.

“A área de Relações Internacionais no Brasil adquiriu, nos últimos


anos, um dinamismo inédito. Fruto de uma percepção mais clara
da relevância da dimensão global para a redefinição da inserção
do país no sistema internacional, este interesse se manifesta,
concretamente, em fenômenos como: o crescimento acelerado dos
cursos de graduação; a expansão da pós-graduação, em particular

7
Cf. Myamoto, Shiguenoli, “O Estudo das Relações Internacionais no Brasil: o estado da arte”. In
Revista de Sociologia e Política, No. 12, 1999, pp. 83-98; do mesmo autor, O Estudos Estratégicos
e a Academia Brasileira: Uma Avaliação. Trabalho apresentado no Panel on Strategic Studies da
Conferência Research and Education in Defense and Security Studies, promovida pelo Center for
Hemispheric Defense Studies, 22-25/05/2001; Paulo Roberto de Almeida, “Relações Internacionsi”,
in Miceli, Sergio (org.) O Que Ler na ciência Social Brasileira (1970-1995), São Paulo e Brasília,
Editora Sumaré/ANPOCS/CAPES, 1999, vol. III, (Ciência Política), pp. 191-255; do mesmo autor,
O estudo das relações internacionais do Brasil. Um diálogo entre a diplomacia e a academia.
Brasília, LGE Editora, 2006; Herz, Mônica, “O Crescimento da Área de Relações Internacionais no
Brasil”, in Contexto Internacional, Vol. 24, No. 1, 2002, pp. Brigagão, Clóvis, Diretório de Relações
Internacionais no Brasil (1950-2004), Rio de Janeiro, Universidade Cândido Mendes/Fundação
Ford, 2004; Vizentini, Paulo Fagundes, “A Evolução da produção intelectual e dos estudos
acadêmicos de relações internacionais no Brasil”, in Saraiva, José Flávio Sombra e Amado Luís Cervo,
O Crescimento das relações internacionais no Brasil, Brasília, Instituto Brasileiro de Relações
Internacionais, 2005, pp. 17-32; Breda, Norma, “História das Relações Internacionais no Brasil:
esboço de uma avaliação sobre a área”, História, São Paulo, Vol. 24, No. 1, 2005, pp. 11-39.
a abertura de novos mestrados e dos primeiros doutorados; a
expressão mais clara da identidade da área na estrutura das
agências de fomento à pesquisa; a disseminação de seminários e
debates sobre questões internacionais; a multiplicação de títulos da
área nos catálogos das editoras nacionais, etc.” 8

Desconhecemos pesquisas empíricas sistemáticas sobre o fenômeno, mas


alguns dos fatores que o condicionam são bastante claros.

O mais saliente dentre eles é a abertura econômica produzida no Brasil no


início da década de 90, inserida como esteve no processo mais amplo de transformação da
economia mundial que leva o nome de globalização. Para além das diferenças de ponto de
vista sobre a natureza desse processo, é evidente que ele tornou mais nítidos aos olhos de
todos os constrangimentos externos a pesar sobre a ação governamental e as novas
possibilidades abertas (ao país, às empresas e aos indivíduos) pelas mudanças em curso.
Um dos caminhos através dos quais esse processo impacta a formação do campo das
relações internacionais no Brasil é o aumento notável da demanda de profissionais
qualificados para trabalhar em atividades relacionadas ao comércio exterior, para atuar em
agências de governo (no âmbito nacional e subnacional), e para integrar o quadro técnico
de entidades internacionais e organizações não-governamentais dos mais variados tipos
com atuação no país. Outra via -- menos direta, mas não menos importante -- tem a ver
com a extraordinária facilidade de contato pessoal e de coleta de informação em qualquer
canto do mundo propiciada pela internet. Conjugados, os estímulos que vêm por esses dois
condutos reforçam a presença da dimensão internacional na consciência pública e dão um
glamour especial à área dedicada a seu estudo.

Um dos reflexos desse fato é a enorme disputa por vagas nos cursos de
graduação em Relações Internacionais criados recentemente em várias universidades
públicas. Mas é o setor privado que responde pelo crescimento explosivo do ensino de

8
Para Uma Associação de Relações Internacionais. Documento lido no Seminário de Relações
Internacionais no Brasil, Belo Horizonte, PUC-Minas, 29 de setembro a 1 de outubro de 2005.
terceiro grau na área. Segundo dados do INEP, dos 85 cursos de R.I. existentes em 2008,
apenas 12 se encontram em instituições públicas (4 federais, 4 estaduais e 4 municipais); a
e maioria (73 cursos) distribuí-se entre entidades privadas: 46 particulares (9 universidades,
15 centros universitários e 22 faculdades) e 27 fundações ou entidades filantrópicas 9 .

Esse dado chama a atenção para fatores institucionais menos evidentes, que
também contribuíram para a expansão do campo das Relações Internacionais nas últimas
décadas.

Um deles consiste na flexibilização das normas para a criação de novos cursos


introduzida pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1996. Podemos citar, a título de
exemplo, alguns dos dispositivos voltados a esse fim,: 1) os incentivos para a oferta de
cursos noturnos (art. 47, § 4º) 10 ; 2) o fim das “necessidades sociais” como uma das
variáveis empregadas na avaliação de abertura de novos cursos; 3) a garantia de maior
autonomia dos Centros Universitários, principalmente nas decisões de abertura de novas
graduações. Tais medidas favoreceram a ampliação da oferta de vagas nas mais diferentes
áreas, mas seus efeitos foram muito acentuados naquela que nos ocupa aqui. 11

Outro elemento digno de nota é a característica interdisciplinar, tão peculiar ao


curso de Relações Internacionais, e as fortes relações que esta mantém com áreas
tradicionais: a Ciência Política, o Direito e a Economia, sobretudo, mas também a História,
a Geografia, e a Sociologia. Esses atributos da área de Relações Internacionais tornam
menos custoso, política e financeiramente, o processo de criação de novos cursos, por
possibilitarem o aproveitamento dos recursos disponíveis em departamentos já
consolidados nas instituições de ensino.

9
Portal SiedSup do INEP
(http://www.inep.gov.br/superior/censosuperior/sinopse/default.asp). Sinopses Estatísticas
da Educação Superior – Graduação. Tabela 3.2
10
"As instituições de educação superior oferecerão, no período noturno, cursos de graduação nos
mesmos padrões de qualidade mantidos no período diurno, sendo obrigatória a oferta noturna nas
instituições públicas, garantida a necessária previsão orçamentária"
11
Vide JULIÃO, Taís Sandrim. ENADE 2009 e a avaliação da área de Relações Internacionais.
Mundorama, 2009
Em suma, atuando pelo lado da demanda e pelo lado da oferta de vagas, vários
fatores combinaram-se para desencadear nos últimos vinte anos um processo de
crescimento explosivo do ensino graduado de Relações internacionais no Brasil.

Os dados a seguir ilustram com eloqüência essa afirmativa: em 1995, existiam


no Brasil 3 cursos de graduação em Relações Internacionais; em 2008, 85. Em 1997 os 8
cursos existentes formaram 81 alunos; em 2008 formaram-se em Relações Internacionais
1.985 alunos.

Embora reveladores do grande dinamismo da área, esses números suscitam


interrogações preocupantes: existe um corpo docente de mestres e doutores capazes de dar
conta deste contingente de alunos em tão forte expansão? As instituições que os acolhem
estão devidamente equipadas para lhes proporcionar os recursos mínimos necessários à sua
formação? Alguns estudiosos acreditam que não 12 . Nesse contexto, assistimos à
multiplicação de cursos de caráter eminentemente aplicado, com ênfase em temas como
Comércio Portuário, Gestão em Negócios, Comércio Exterior, cuja importância, do ponto
de vista da consolidação do campo das Relações Internacionais no Brasil, é, no mínimo,
muito discutível.

Mais significativos, sob esse aspecto, são os dados relativos à pós-graduação.


Aqui também a expansão é impactante, mas ela ganha ímpeto um pouco mais tarde. O
primeiro programa de Mestrado em Relações Internacionais no Brasil foi organizado na
Universidade de Brasília, em 1984; três anos depois, surgia o segundo, na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Desde então, por quase 15 anos, o universo da
pós-graduação em Relações Internacionais no País esteve limitado a esses dois programas.
No mais, o que existia era o trabalho denodado de alguns poucos professores, que

12
Segundo Shiguenoli Myamoto, “os cursos recentes, por sua vez, têm sido criados e funcionam
com algumas deficiências que precisam ser rapidamente solucionadas, sob o risco de
comprometer a sua qualidade, prejudicando, portanto, os próprios alunos que ingressam nessas
instituições de ensino superior (IES)”. Para reflexões sobre padrão de qualidade nos cursos de
Relações Internacionais, ver MIYAMOTO, Shiguenoli. O ENSINO DAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS NO BRASIL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 20,
p. 103-114, jun. 2003
ministravam disciplinas e orientavam teses sobre temas de política internacional em
programas de outras disciplinas.

A partir de 2001, esse quadro começa a se alterar celeremente. Neste ano, a


PUC-RJ cria o primeiro curso de doutorado em Relações Internacionais Brasil. No ano
seguinte, entrava em funcionamento o doutorado em Relações Internacionais da
Universidade de Brasília, integrado por docentes egressos do Departamento de Ciência
Política e por forte equipe de especialistas em História das Relações Internacionais. A partir
daí, os programas de pós-graduação na área vão se multiplicar. Assim, no biênio 2007-
2008, dos 27 programas em funcionamento na área de Ciência Política e Relações
Internacionais, 15 eram de formação em Ciência Política e 12 em Relações Internacionais,
como se pode ver no quadro abaixo.

Programas de Pós-Graduação em Relações Internacionais no Brasil*

PROGRAMA IES UF Reconh Áreas de concentração


eciment
o pela
CAPES
Diplomacia IRBR1 DF 2002 Relações e Negociações Bilaterais
e Multilaterais, Estudos Brasileiros,
História Diplomática
Estudos Estratégicos de UFF2 RJ 2007 Teoria e análise de relações
Defesa e da Segurança internacionais e de segurança
internacional e O pensamento sul-
americano a respeito da Defesa e
da Segurança.
Relações Internacionais UFF3 RJ 2003 Economia e Política das relações
Brasil, Américas e Europa
4
Relações Internacionais UNB DF 1985 Política Internacional e Comparada;
(M) e História das Relações
2002 (D) Internacionais.
Relações Internacionais UEPB5 PB 2008 América Latina

Relações Internacionais UERJ6 RJ 2008 Política, Cultura e Instituições;


Estudos de Política Externa;
Economia Política Internacional e
Integração Regional
Relações Internacionais PUC- RJ 1987(M) Política Internacional
RIO7 2001(D)
Relações Internacionais UFRGS8 RS 2002 Política internacional e os
processos de integração regional
Relações Internacionais USP9 SP 2009 Economia Política Internacional,
(M) Cultura e Questões Normativas nas
2009(D) Relações Internacionais
Relações Internacionais UNESP/ SP 2003 Instituições, Processos e Atores;
MAR10 Política Externa; Paz, defesa e
Segurança Internacional
Relações Internacionais CEBELA RJ 2005 Integração na América do Sul
11

Relações Internacionais PUC/MG M 2007? Desenvolvimento e desigualdades


12
G internacionais e Instituições,
Conflitos e Negociações
Internacionais
*Quadro de elaboração própria, a partir de dados extraídos do site da CAPES <
www.capes.gov.br> e dos sites específicos das instituições.
1 2
Instituto Rio Branco; Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade
3 4
Federal Fluminense; Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos; Programa de Pós-
Graduação em Relações Internacionais da Universidade de Brasília; 5 Programa de Pós-Graduação em
6
Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba; Programa de Pós-Graduaçã em
7
Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Programa de Pós-Graduação
8
em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Mestrado em
9
Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Instituto de Relações
10
Internacionais da Universidade de São Paulo; O Programa de Pós-Graduação em Relações
Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e Puc-SP); 11 Mestrado em Relações Internacionais
12
na América do Sul do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos; Programa de Mestrado
Acadêmico em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Duas observações rápidas sobre as informações contidas neste quadro.

1) Embora seu número tenha crescido muito, a maior parte dos programas
concentra-se na região Sudeste (8 dos 12 existentes). Descontada a capital do País, que
sedia dois programas (o da UnB e o Instituto Rio Branco), o restante do país conta com
dois cursos de pós-graduação somente, (um na Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
e outro na Universidade Estadual da Paraíba).

2) O grau de amadurecimento desses programas é bastante desigual. De acordo


com o último documento de avaliação da CAPES (correspondente ao biênio 2007-2008),
entre os sete examinados destacam-se, previsivelmente, os programas da UNB e da PUC-
Rio que são dados como “consolidados” -- pelo volume de sua produção bibliográfica, o
numero e a qualidade das dissertações e teses concluídas, e pela participação de seus
membros em eventos significativos na área. Além dos programas pioneiros na área, o
referido documento dá destaque particular ao programa UNESP/UNICAMP/PUC-SP, “que,
no triênio, teve um grande crescimento em sua produção intelectual.”

Cabe salientar esse registro, porque o programa UNESP/UNICAMP/PUC-SP


foi criado em resposta a uma iniciativa conjunta do Ministério da Educação e do Ministério
de Relações Exteriores com o objetivo fomentar a pesquisa e estimular a criação de novos
programas de pós-graduação “estrito senso” no Brasil. Referimo-nos ao “Programa San
Tiago Dantas de Apoio ao Ensino de Relações Internacionais”, cujo edital foi publicado em
janeiro de 2001. Ao todo, foram aprovados 5 projetos nessa chamada, entre eles a proposta
de implantação do curso de doutorado em RI da Universidade de Brasília.
Alguns anos mais tarde, a CAPES, em parceria com o Ministério da Defesa
lançaria o edital Pró- Defesa nº 01/2005. Buscando fomentar redes de cooperação
acadêmica na área de Defesa Nacional, esse edital previa o estabelecimento de convênios
no âmbito do Programa de Apoio ao Ensino e à Pesquisa Científica e Tecnológica em
Defesa Nacional – PRÓ-DEFESA com o fim de promover a produção de pesquisas e a
formação de recursos humanos pós-graduados no País 13 .

A referência a essas iniciativas governamentais dá realce a mais um fator


importante na constituição do campo das Relações Internacionais no Brasil: a percepção em
setores dos círculos dirigentes de que o país carecia de conhecimentos socialmente
disseminados na área internacional, que se tornavam necessários para lidar com as
realidades emergentes no mundo pós-guerra fria. Além dos programas já mencionados, a
decisão política de criar os meios para suprir essa insuficiência informou a concepção de
outra iniciativa de vulto -- o Programa Renato Archer de Fomento à Pesquisa em Relações
Internacionais, lançado conjuntamente pelo Ministério de Ciência e Tecnologia e o
Ministério das Relações Exteriores, em junho de 2006.

Em outro plano, mas ainda na esfera governamental, contribuiu para a


constituição do campo das RI a criação de secretarias de relações internacionais em
governos subnacionais. O governo do estado do Rio Grande do Sul e Porto Alegre tomaram
13
As instituições contempladas foram estas: Consórcio Forças Armadas Século XXI da Fundação
Getúlio Vargas/FGV-RIO; Paz, Defesa e Segurança Internacional da UNESP-UNICAP-PUC-SP;
Rede Brasil Defesa da Universidade Federal Fluminense - UFF; Projeto de Fortalecimento e
Ampliação do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu oferecido pela Universidade da Força
Aérea - UNIFA da Universidade de Brasília - UnB; Consórcio Programa Rio de Janeiro de Estudos
de Relações Internacionais, Segurança e Defesa Nacional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ; Estudo Prospectivo do Impacto da Violência na Saúde Mental e Física das Tropas
de Paz Brasileiras: Efeitos Preventivos da Capacitação Física e da Resiliência Emocional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ; Mestrado Profissionalizante em Engenharia
Aeroespacial do Instituto Tecnológico da Aeronáutica - ITA; Estudo de Tecnologias para
Provimento de Comunicação em Sistemas Estratégicos de Defesa do Instituto Militar de
Engenharia - IME; Defesa Contra Guerra Química e Biológica do Instituto Militar de Engenharia -
IME; Formação de Pessoal Qualificado em Química Quântica Computacional para Atuação na
Área de Defesa Química do Instituto Militar de Engenharia - IME; Capacitação de Recursos
Humanos para Desenvolvimento de Estato-Reator a Combustão Supersônica do Instituto de
Estudos Avançados – IEAV; Sensores de Infravermelho Baseados em Semicondutores da Família
III-V Utilizando Transições Intrabanda (Nanoestruturados) e Interbanda da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro-PUC-RIO.
a dianteira nesse processo 14 , mas ele ganha impulso maior com a o estabelecimento da
Secretaria Municipal de Relações Internacionais de São Paulo, em junho de 2001. Além
destas, cabe mencionar ainda a Secretaria de Relações Internacionais e Cerimonial de
Curitiba, a Secretaria de Relações Internacionais de Salvador e a Secretaria de Relações
Internacionais de Belo Horizonte, entre outras.

Fora do âmbito governamental, merecem registro as unidades internacionais de


entidades de classe, como o Departamento de Relações Internacionais e Comércio Exterior,
da FIESP, a Secretaria Internacional da CUT, e a secretaria de Relações Internacionais da
Força Sindical, por exemplo. No campo partidário, o destaque é da Secretaria Internacional
do PT, que se mantém ativa desde que foi criada, em 1984, conta com um corpo técnico
constituído por profissionais com formação específica na área, e desenvolveu um trabalho
de reflexão própria com impacto na formulação da política externa do governo Lula. 15

Além dos já citados, é preciso incluir também neste arrolamento alguns


organismos voltados para a reflexão sobre a política internacional, que desempenham papel
relevante no debate sobre a política externa brasileira. Entre eles, o Grupo de Análise da
Conjuntura Internacional, GACINT, desdobramento da área de Relações Internacionais do
Instituto de Estudos Avançados da USP, criada em 1989 16 ; o Centro Brasileiro de Relações
Internacionais – CEBRI, fundado em 1998, com sede no Rio de Janeiro; e, mais
recentemente, o Instituto Fernando Henrique Cardoso.

14
Para saber mais sobre estas duas experiências pioneiras, ver SALOMÓN, Mónica e NUNES,
Carmen. A Ação Externa dos Governos Subnacionais no Brasil: Os Casos do Rio Grande do Sul e
de Porto Alegre. Um Estudo Comparativo de Dois Tipos de Atores Mistos. Contexto Internacional.
Rio de Janeiro, vol. 29, no 1, janeiro/junho 2007, p. 99-147. Segundo as autoras, “No caso de Porto
Alegre, a permanência de um mesmo partido (o Partido dos Trabalhadores (PT)) no governo
durante quatro gestões (1989-2004) permitiu pôr em prática uma ação externa estável e coerente.
Já no estado, a alternância política levou a uma ação mais errática, porém significativa”
15
Cf. Velasco e Cruz, Sebastião C. e Ana Maria Stuart, “Mudando de rumo: a política externa do governo
Lula”, in Velasco e Cruz, Sebastião C., O Brasil no Mundo: ensaios de análise política e prospectiva. São
Paulo, Editora da UNESP, 2010, pp. 71-86.
16
O grupo agrega especialistas do mundo acadêmico, da iniciativa privada e da diplomacia, que se
reúnem quinzenalmente para analisar a conjuntura internacional de diferentes ângulos -- relações
de poder e estratégia no contexto internacional; política externa; papel das organizações
internacionais e dos blocos regionais; fluxos de investimento; comercialização e tecnologia;
questões militares e de defesa; globalização e suas conseqüências sociais, econômicas e políticas
– e com uma abordagem pluralista. Mais no endereço < http://www.iri.usp.br/gacint.php>
Evento significativo no processo de conformação do campo das Relações
Internacionais entre nós foi o surgimento, em 1992, da Revista Política Externa, publicação
voltada para a discussão dos principais temas de política internacional sob perspectiva
brasileira. Uma dos mais importantes veículos da área, a Revista Política Externa
distingue-se dos demais periódicos citados neste artigo pelo alcance de sua circulação e
pelo público diversificado que atinge.

Com esta última menção, tocamos em um dos aspectos mais expressivos do


processo em causa, a saber, a constituição de um mercado editorial de livros de Relações
Internacionais, que se alimenta de traduções (de obras clássicas e estudos contemporâneos
influentes), mas também, em grande medida, de trabalhos escritos por especialistas
17
brasileiros . Nesse terreno, a oferta de manuais produzidos no país deve ser salientada,
por representar um passo importante na internalização do ciclo de reprodução dos recursos
humanos da área. A esse respeito, a observação feita pela autora de estudo comparativo
pioneiro sobre o ensino das relações internacionais na América Latina é reveladora.

“... texts authored by Latin Americans rarely appear in IR theory


course syllabi, with the exception of the Brazilian institutions
sureveyed, in which several IR textbooks written by Brazilian
professors are used.” 18

Igualmente notável é a publicação de obras dedicadas ao balanço dos estudos


das relações internacionais no Brasil, muitas delas citadas neste capítulo. Elas podem ser
tidas como manifestações importantes da reflexividade, a qual, como já se viu, é um das
características essenciais de um campo.

17
Cf. Vizentini, Paulo Fagundes, “A evolução da produção intelectual e dos estudos acadêmicos de relações
internacionais no Brsil”, op. cit.
18
Tickner, Arlen, “Latin America: still policy dependent after all these years?”, in ___ & Ole Waever,
International Relations Scholarship Around the World, London-New York, routledge, 2009, pp. 32-51 (p.
42).
Ela se expressa igualmente na atividade associativa. Nesse sentido, é
importante assinalar que, depois de várias tentativas frustradas, assistimos em 2005 à
criação de uma entidade representativa -- a Associação Brasileira de Relações
Internacionais -- que, embora jovem, mal ou bem, já passou duas vezes pelo teste da da
mudança em seus quadros dirigentes.

Os elementos apresentados até aqui justificam o juízo de que, no presente, a


área de Relações Internacionais no Brasil encontra-se em estágio avançado no processo de
sua formação como campo diferenciado.

3. Reflexões sobre o campo das Relações Internacionais no Brasil e seus desafios.

Um campo distinto, sim, mas como caracterizá-lo?

O ponto de partida obrigatório aqui é a pretensão desse campo de ser e de ser


reconhecido como um campo científico. Essa afirmativa não parece controversa, mas as
implicações dela não são nada claras. Se não, vejamos.

Em uma primeira aproximação, poderíamos dizer que um campo científico é um


sistema de produção de conhecimento, através de conhecimentos, sobre determinada classe
de objetos. Essa formulação é insatisfatória não pelo que contém, mas pelo que deixa de
fora. Basicamente, permanecem obscuras nela as questões absolutamente decisivas sobre
como são identificados os objetos (problemas) que pertencem ao domínio do campo
científico considerado, e como são aferidos os produtos da atividade nele desenvolvida, em
sua relevância e em sua pretensão de validade. A definição sugerida por Whiltley é
certeira, porque contempla com exatidão esses dois aspectos. Para o autor os campos
científicos “constituem um tipo distinto de organização de trabalho e controle na qual a
pesquisa é orientada para metas e propósitos coletivos, através da busca de reputação
pública entre grupos de colegas-competidores.” Em tais organizações -- ele esclarece -- “a
necessidade de adquirir reputação positiva de grupos particulares de praticantes é o meio
principal de controle sobre que tarefas são desenvolvidas, como são desenvolvidas, e como
19
o desempenho é avaliado.” Convém frisar, o campo científico assim definido não
adquire, necessariamente, corte disciplinar. Isso acontece quando eles se convertem em
unidades de controle do mercado de trabalho, que treinam produtores de conhecimento em
determinadas habilidades e os empregam, assegurando-lhes condições de monopólio sobre
a produção de contribuições acreditadas para a tarefa coletiva na qual os participantes do
campo estão engajados. Disciplinares ou não, para que os campos científicos se consolidem
é mister sejam eles capazes de assegurar prestígio social às reputações científicas que
conferem; de controlar o acesso a recompensas socialmente valoradas; de estabelecer
padrões de qualificação e excelência, e de se dotar de um sistema de comunicação próprio.

Dessas indicações sumárias podem ser derivadas inúmeras dimensões a serem


levadas em conta em um exercício de caracterização como o proposto neste lugar. Por
economia de tempo e espaço, contudo, apenas uma delas será explorada: a relação do
campo em questão com os campos com os quais ele tem interfaces.

Uma palavra breves sobre sua relação com campos extra-científicos. Como se pode
intuir, a contigüidade com campos dotados de forte poder de atração representa quase
sempre para o mais fraco um fator de distúrbio. No nosso caso essa observação é
particularmente pertinente no que tange ao campo do poder econômico. Com efeito,
enorme sua capacidade de atrair talentos, de projetar para outros campos os seus problemas
próprios e sua linguagem, de interpelar análises e interpretações deles provenientes, pelo
grau de articulação e pelo reconhecimento social de que desfrutam de seus porta-vozes.

As relações entre poder econômico e o campo das relações internacionais tendem a


ser mais estreitas do que a prevalecente entre o mesmo e outras áreas das Ciências Sociais.
Não há nada de lamentar neste fato. Isso porque 1) em muitos pontos pode haver
convergência entre os objetivos de conhecimento nutridos pelo campo científico e os

19
Whitley, Richard, The Intellectual and Social Organization of Sciences, Oxford, Oxford University Press,
2000 (2a. ed.), p. 25.
interesses que emanam do campo em causa; 2) o efeito de atração que ele exerce pode ser
contrabalançado pela força contrária que provém de outros campos igualmente próximos, a
começar pelo diplomático.

O problema das relações com os outros campos científicos merece atenção mais
detida. Aqui, os vínculos são internos, constitutivos: a regra de ouro é o intercâmbio, a
importação de idéias. Tudo seria mais simples se as relações fossem horizontais. Não é
assim. Entre os estabelecimentos científicos prevalece uma hierarquia clara. 20 A
consideração decisiva nesse âmbito diz respeito, portanto, ao princípio que rege aquele
movimento: ele vem de dentro, como resultado de necessidades reveladas na tentativa de
lidar com os problemas selecionados endogenamente pelo campo, ou, pelo contrário, se dão
como resultado do movimento expansivo de campos mais poderosos (por exemplo, a
colonização progressiva da Ciência Política norte-americana e, por meio dela, de segmentos
importantes das Relações Internacionais pela matriz da economia neoclássica, expressa no
programa da “escolha racional”). A diferença é marcante: quando a incorporação se dá sob
a segunda forma, ela vem acompanhada da imposição de uma nova agenda, novas técnicas
e estilos de análise, com a conseqüente desqualificação dos métodos e procedimentos
próprios do campo, bem como de seus usuários. A situação inversa não implica em
fechamento, desinteresse ou rejeição do que vem de fora. Pelo contrário: ela é muito mais
exigente, nisto que supõe uma atividade permanente de busca. O fundamental é que, neste
caso, a incorporação se dá de forma seletiva, preservado no campo o controle sobre a
descrição de seu domínio próprio, sobre a formulação dos problemas relevantes e sobre os
termos em que eles são pensados.

E tem mais. Como qualquer outro corpo social, os campos científicos existem no
tempo e no espaço: assim como têm passado e futuro, eles têm distintas expressões
nacionais. Ora, aqui também o problema das hierarquias se manifesta com força, 21 e é ele
que está no centro das discussões neste Seminário.

20
Para um tratamento sisstemático do tema, Cf. Elias, Norbert, “Scientific Establishments”. Elias, Norbert,
Martins, Hermínio e Whitley, Richard (eds.), Scientific Establishments and Hierarchies, Dordrecht, D. Reidel
Publishing Company, 1982, pp. 3-70.
21
Cf. Whitley, R. p. 231.
Agora, ccmo pensar a afirmação, no Brasil, de um campo em que a hegemonia
global dos Estados Unidos é tão marcada?

Ou não é tanto? Ou já não é mais?

Esse o tema de fundo do artigo de Ole Weaver. 22 Não caberia discuti-lo nesta
comunicação. Para os propósitos do argumento formulado aqui basta reter dois pontos: 1)
apoiando-se em Whitley -- que distingue sete tipos de campos científicos segundo sejam
altos ou baixos os valores exibidos por eles nessas três variáveis: grau de incerteza técnica,
grau de incerteza estratégica, grau de dependência funcional de suas atividades – Weaver
salienta o papel organizador desempenhado pelas narrativas sobre a história do campo em
termos de uma sucessão de “grandes debates”, papel este que -- embora diste bastante do
papel homogeneizador da economia matemática -- confere à disciplina das Relações
Internacionais nos Estados Unidos um grau de integração bem superior àquele vigente nas
“adhocracias fragmentadas” que povoam a grande área das Humanidades; 2) a supremacia
da disciplina norte-americana de Relações Internacionais, que se expressa
quantitativamente na assimetria entre o grau de abertura das publicações líderes nos
Estados Unidos e na Europa a contribuições oriundas dos respectivos campos nacionais.

Há uma certa oscilação no uso que Weaver faz dos adjetivos para caracterizar a
disciplina das Relações Internacionais. No final da década de 70, Hoffmann a tratou como
uma “disciplina americana”. Vinte anos depois Weaver continuava considerando-a uma
disciplina “not so international”. Mas em algumas passagens refere-se a mesma como uma
disciplina global. Esse último qualificativo parece não se justificar. O contraste entre os
percentuais de artigos de autores americanos publicados em revistas americanas de
diferentes campos das ciências naturais (40-50%) e nas revistas de Relações Internacionais
(em torno de 90%) 23 apóia este juízo. O mesmo efeito têm as observações de Weaver sobre
os fatores que dificultam a exportação das idéias crescentemente dominantes na disciplina

22
Weaver, Ole, “The Sociology of a Not So International Discipline: american and European Developments
in International Relations”, International Organization, 52, 4, 1998, pp. 687-727.
23
Cf. Weaver, op. cit., pp. 697-8.
norte-americana (a“escolha racional”).24 Mutatis mutandis, vale para as Relações
Internacionais a conclusão de Bourdieu em exame sobre a mesma questão no âmbito da
Sociologia. “... no presente não existe nenhum campo da sociologia mundial...” E vale
igualmente o diagnóstico proposto: (por várias razões, mas) “especialmente porque forças
puramente sociais e políticas podem ainda ser eficazes no universo sociológico. Ainda
existem neste universo formas de autoridade científica que são formas de autoridade
política disfarçadas, eufemizadas.” 25

Bourdieu fala como herdeiro de uma tradição sociológica imponente e como “maître
à penser” por seus títulos próprios. Nessa dupla condição, o problema prático que se
propõe é o do de como fazer avançar o processo de formação de um campo sociológico
verdadeiramente mundial, o qual procura responder apelando para os ensinamentos do
mestre florentino e sugerindo modos de disseminação das “virtudes cívicas científicas” em
escala global. Para quem esteja empenhado em consolidar um campo ainda incipiente como
o das Relações Internacionais, num país como o Brasil a questão é outra: trata-se de como
fortalecê-lo, quantitativa e qualitativamente, cônscio de que, por essa via, ele estará se
qualificando para engajar-se positivamente em um processo de globalização da disciplina,
caso algum dia ele venha a ter lugar.

Não há receitas para se fazer isso, mas algumas orientações gerais podem ser desde
já vislumbradas. Antes de qualquer coisa, enfrentar aquele problema envolve uma atitude: a
disposição de, reconhecendo a existência das hierarquias, operar no contexto delas com o
objetivo de em alguma medida alterá-las.

Há uma dimensão “objetiva” na tradução prática dessa vontade: recursos materiais e


institucionais limitados, por exemplo, entre outros constrangimentos sobre os quais a
capacidade de intervenção dos integrantes do campo é diminuta. Mas o mais importante
está em outro lugar. Ele reside na disposição de suspender a validação de quaisquer

24
Id. Ibid., pp. 725-6.
25
Boudieu, Pierre, “Epilogue: On the Possibility of a Fiel of World Sociology”, in Bourdieu, Pierre e
Coleman, James S. (eds.), Social Theory for a Changing Society, Bouder, San Francisco –London, West View
Press e New York, Russel Sage Foundation, 1991, pp. 373-388, (p.. 385)..
contribuições, venham de onde vierem, enquanto não tenham passado pelo crivo da crítica
interna.

Não se trata aqui de uma exigência arbitrária. Como se viu em outra parte, a
autonomia dos campos científicos é relativa, e em medida importante o rumo e a
configuração que tomam resultam de impulsos originados no contexto extra-científico no
qual se inscrevem. Essa afirmativa -- que vale para qualquer ciência, basta pensar no
impacto dos programas de combate ao câncer no campo da pesquisa médica; no efeito dos
investimentos na pesquisa nuclear por razões de segurança, que deram à Física no século
XX uma proeminência mais acentuada do que era a dela em passado próximo; ou o efeito
sobre a hierarquia dos “estabelecimentos científicos” dos programas presentes na área de
biologia molecular -- essa afirmativa, repita-se, tem alcance muito maior na área das
Relações Internacionais, cujos supostos normativos, temas, termos descritivos e esquemas
interpretativos tendem a ser fortemente afetados pela dinâmica dos campos da economia e
da política externa.

Uma das vantagens de pensar as Relações Internacionais como um campo, não


como “disciplina” está aí: a noção de campo chama a atenção para a importância de
conexões que de outro modo ficariam na penumbra. No caso da Economia esses vínculos
são patentes. A posição dominante de profissionais formados nos Estados Unidos em
instituições internacionais que condicionam poderosamente as políticas econômicas de
tantos países do mundo e -- sob certos aspectos, mais importante ainda -- geram os
dados e as análises primárias que conformam a agenda do debate sobre a economia
internacional e constituem matéria prima obrigada para análises mais abstratas, ainda as
mais críticas, sobre o assunto é bastante conhecida. No caso das Relações internacionais o
fenômeno pode ser também percebido, mas em escala muito menor. Como o grau de
integração internacional no campo da política é muito menor do que no da economia, as
relações entre o campo das Relações Internacionais e o campo do poder se dão
predominantemente no quadro das estruturas estatais dos diferentes países;
E, como sublinhado antes, esses vínculos não são “externos” -- indução, por
exemplo, da atividade da atividade de pesquisa em direção a certos temas de maior
interesse político e social. Um dos limites do artigo de Weaver está em não ter explorado --
sequer ter assinalado -- este aspecto. Ao concentrar seu foco em duas publicações de
enorme importância acadêmica ele se impede de refletir sobre o significado possível
(eventualmente importante até mesmo para a inteligência dos fenômenos que ocorrem no
espaço circunscrito que observa) dos deslocamentos em curso em outros domínios -- como
os pontos os foros onde os integrantes do campo se encontram e interagem com membros
de outros segmentos da elite nacional (think tanks -- Council of Foreign Affairs;
Brookings Institution; Hoover Institution, American Enterprise Institute, etc. ---, e revistas
como a Foreign Affairs).

Esse vínculo algo mais do que íntimo transparece até mesmo no conteúdo da
produção certificada pela “disciplina”. Considere-se à guisa de ilustração o debate sobre a
“Paz Democrática”. É surpreendente para o observador externo a seriedade com que tantos
pesquisadores se aplicam na confrontação empírica de um argumento que é reduzido a pó a
um rápido exame de sua lógica interna e das bases conceituais em que se apóia.26

A afirmação do princípio da independência de espírito e do rigor crítico é, pois, a


orientação cardeal. Aplicada ao caso que nos ocupa ela se traduz facilmente em inúmeras
indicações particulares. Não haveria como arrolá-las, mas pode ser conveniente mencionar
algumas para que a discussão se torna um pouco mais terra a terra.

1) Deflacionar a importância atribuída ao jogo variável de oposições que estrutura a


disciplina das Relações Internacionais no campo nacional hegemônico. “Neo-realismo” X
“institucionalismo liberal”, “racionalismo” X “reflexivismo” são formas de classificação
que cumprem a dupla função de descrever o campo e agir sobre ele, pelo efeito gerado nas

26
Cf. Martin Shaw, Toward a Theory of the Global State, Cambridge, Cambridge University Press, 2000, p.
266 (nota 24). , - Waltz, Kenneth N. “Structural Realism after the Cold War”, in G. John Ikenberry, (ed.)
American Unrivaled. The future of the Balance of Power. Ithaca and London, Cornell University Press, 2002.
Para entender as condições que dão sentido e circunspeção ao debate, Cf. Dezalay, Yves e Garth, Bryant,
“Droits de L’Homme et Philanthropie Hégémonique”, Actes de la Recherche em Sciences Sociales, 121/122,
1998, pp. 23-42, Gilhot, Nicolas, The Democracy Makes. Human Rights and International Order. Columbia
University Press, 2005.
disputas por recursos e reconhecimento que colorem as relações intra e inter-
departamentais. Para quem não está -- ou está apenas marginalmente -- envolvido neles,
é importante acompanhar a evolução desses embates. Mas é preciso, sobretudo, não perder
de vista particularismo deles, com os aspectos bisonhos que frequentemente tendem a
tomar. 27

2) Reforçar aquilo no qual o campo das Relações Internacionais no Brasil é forte,


explorar vantagens relativas (estudos sobre a região) e romper o princípio tácito perverso de
divisão de trabalho, mediante a consolidação de programas de pesquisa sobre os Estados
Unidos, além de países e regiões de importância estratégica. Isso já vem sendo feito, como
sabemos. Caberia somente agregar que, embora as condições entre nós sejam pouco
favoráveis ao trabalho sistemático sobre esses universos empíricos com fontes primárias,
esses programas cumprem de imediato a função vital de criar competências indispensáveis
para fins práticos e para o enriquecimento das análises feitas no país sobre todo tipo de
objeto.

3) Tirar proveito da posição periférica para diversificar “fontes de suprimento


teórico”. Repita-se aqui o que foi dito do intercâmbio entre o campo das Relações
Internacionais e outros campos científicos. A agregar, apenas a sugestão de ênfase em
proficiência lingüística, o alemão sendo um candidato forte.

4) Explorar de forma sistemática o significado teórico dos fenômenos estudados, na


certeza de que alguns deles podem dar origem a formulações de alcance geral. Dois
exemplos de ensaios ricos nessa linha: 1) o argumento teórico com o qual Carlos Escude
fundamentou a sua proposta, mais do que controversa do “realismo subalterno” 28 ; 2) a

27
Por exemplo, a propensão que eles estimulam a tomar estudos sobre fenômenos/processos localizados
como oportunidades para “testar” as teorias rivais, tarefa de antemão condenada ao fracasso porque as
“teorias” não são teorias no sentido exato do termo, mas “tradições”, “perspectivas”, no melhor dos casos,
“programas de trabalho. E não se diga ser este um vezo exclusivo de aprendizes. Ele aparece como traço
predominante mesmo em trabalhos de pesquisadores internacionais de reputação solidamente firmada..
Consulte-se, por exemplo, o livro, sob outros aspectos bem interessante, de Joseph M. Grieco, sobre as
negociações em torno das barreiras não tarifárias na Rodada Tóquio do GATT, Cooperation Among Nations.
Europe, América, And No-Tariff Barries To Trade, Ithaca and London, Cornell University Press, 1990.
28
Cf. Escudé, Carlos, “Hacia una nueva concepción de las unidades de sistem estructural de Waltz: el caso de
la política exterior argentina”, Agora,. Cuadernos de Estudios Políticos, No. 3, 1995, pp. 33-59.
observação segundo a qual nas zonas periféricas do sistema internacional os agentes
tendem a se ver sob o fogo cruzado de exigências dificilmente conciliáveis: a de implantar,
em curto espaço de tempo, modelos de organização sócio-economica e política (que
resultam, em seus locais de origem, de processos de evolução lentos, tortuosos, e em
muitos momentos brutais), e de observarem, ao fazer isso, normas de comportamento
compatíveis com os padrões consagrados em escala global, cujo suposto é exatamente a
vigência daqueles modelos que se trata de implantar 29 ; 3) a hipótese de que a violência
desatada nesses conflitos derive em boa medida da tentativa desesperada de reproduzir
mimeticamente o modelo de organização expresso no Estado nacional em áreas que, por
razões históricas e culturais, lhe são inóspitas 30 .

Esse último ponto remete diretamente ao comentário com o qual esta comunicação
estará encerrada. Na visão corrente, a idéia de pensar a relação entre um domínio científico
e a sua localização espacial não faz o menor sentido. As teorias científicas, acredita-se, são
corpos articulados de proposições nomológicas, derivadas de um conjunto de axiomas e
postulados. As teorias descrevem e explicam fenômenos que tem existência na realidade
externa a nossa consciência. Seu atributo principal é a objetividade. Os seus resultados
podem ser reproduzidos, testados, comprovados (ou refutados) por todos e por qualquer um
-- desde que esse um, naturalmente, disponha da competência intelectual para levar a cabo
semelhante tarefa. A teoria científica nada nos diz sobre o bom ou o mal, o desejável ou
desejável. Embora seja dinâmica -- o conhecimento é cumulativo -- em seu campo de
validade, a teoria científica assim entendida é acrônica e atópica.

Desnecessário é dizer que as Relações Internacionais e o conjunto das Ciências


Humanas estão muito longe desse ideal. Não teria cabimento discutir aqui se essa
representação idealizada da teoria científica é razoável. Basta contrastá-la com a noção
mais realista que Amartya Sem nos oferece ao caracterizar o que denominou de

29
Cf. Ayoob, Mohammed, The Third World Security Predicament. Sate Making, Regional Conflict, and the
International System.Boulder/London, Lynne Rienner Publishers, 1995.
30
Esse argumento, que aparece no artigo de Hostil previamente citado, constitui o núcleo da interpretação
desenvolvida no livro pungente de Goerge Corm, L’Europe et l’Orient. De la balkanisation à la libanisation:
histoire d’une modernité inaccomplie. Paris, Éditions la Découverte, 1999.
31
objetividade posicionada. Uma observação pode ser objetiva com referência a
perspectivas posicionais identificáveis. A posicionalidade pode se manifestar, tanto no
resultado da observação de eventos -- vistos de uma posição particular -- quanto b) na
avaliação geral de um evento, que se faz de uma perspectiva dada. Ilustração:
reconhecimento de objetos físicos à distância, como o sol e lua, cujos tamanhos parecem
modestos. Não se trata de ilusão subjetiva. A observação é posicionalmente objetiva porque
qualquer observador equipado com os mesmos recursos sensoriais teria percepção idêntica.
A teoria que nos diz que o tamanho daqueles corpos é outro, explica também porque eles
parecem menores quando vistos da posição que é a nossa.

Depois de um longo período em que a política internacional foi como que


simplificada pela lógica redutora do conflito entre blocos, com o fim da guerra fria o
sistema mundial ingressou em um terreno carente de mapas. Os devaneios de um mundo
livre afinal da ameaça da guerra cedo se esfumaram. Por terra caiu igualmente a idéia de
que o mundo se dividia em uma ‘zona de paz e prosperidade” (os países capitalistas ricos e
democráticos) e uma “zona de conflitos” (a periferia pobre e instável). Com as crises
financeiras do final do século passado, a projeção crescente dos movimentos anti-
globalização e, de forma incomparavelmente mais contundente, os ataques conjugados de
11 de Setembro, essa visão -- no final das contas reconfortante -- também ficou para
trás. Seu lugar foi tomado pelo cenário inquietante de um mundo onde os princípios
basilares do direito internacional não vigoram mais. Na origem desses deslocamentos
práticos e conceituais, a política da hiperpotência atingida, que reage em ofensiva, vestida
com roupagem cada vez mais ostensivamente imperial.

Por outro lado, assiste-se à emergência de novos centros de acumulação de poder


econômico e político na Ásia, à expressão de novas pautas de conflito na Europa e -- na
área de influência direta da potência hegemônica, onde os problemas de baixo crescimento
econômico, pobreza e desigualdades se agravam -- nesta área que acontece de ser a nossa

31
Cf. Sem, Amartya, “Positional Objectivity”, in Philosophy & Public Affairs, Vol. 22, No. 2, 1993, 126-
145.e id., “On Interpreting India’s Past”, in Bose, Sugata e Jala, Ayesha (eds.), Nationalism, Democracy &
Development, New Delhi, Oxford University Press, 1999, pp. 10-35.
-- os questionamentos do papel de liderança daquele Estado se tornam cada vez mais
acentuados.

O Brasil comporta em si muitos traços dessa situação profundamente contraditória.


Na medida em que o campo das Relações Internacionais no Brasil possa se valer dessa
posição singular para formular programas originais e corajosos de investigação ele estará
se credenciando para participar do colóquio da disciplina no plano global -- mais do que
isso, a dar sua modesta contribuição para que os desafios maiores de nossa época venham a
ser respondidos de forma menos desastrada.

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